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Dissonância cognitiva e o juiz de garantias

Dissonância cognitiva e o juiz de garantias

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A concomitância das atribuições de um juiz responsável por conduzir uma audiência de custódia (e, ao final dela, decidir pela decretação de uma prisão preventiva) e por proferir a sentença ao final do processo, condenando ou absolvendo o réu, impõe uma distorção explicada pela teoria da dissonância cognitiva.

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar o instituto do juiz de garantias, novidade trazida pela Lei n. 13.964/2019, conhecida popularmente como “Pacote Anticrime”, idealizado no sentido de aperfeiçoar a legislação penal e processual. Não se trata, porém, de mera análise do instituto; o esforço acadêmico se dá no sentido de estabelecer uma interface entre o novo instituto e a Teoria da Dissonância Cognitiva, desenvolvida pelo psicólogo Leon Festinger. O artigo propiciará ao leitor a compreensão acerca da importância do juiz de garantias para o Estado de Direito, a partir do que preconizam os ideólogos da Teoria da Dissonância Cognitiva. Restará demonstrado como o processo humano de dissonância cognitiva afeta diretamente a materialização do princípio da imparcialidade da jurisdição, e como o juiz de garantias se apresenta, perante os jurisdicionados, como mecanismo idôneo para mitigar os riscos da inevitável dissonância cognitiva.

PALAVRAS-CHAVE: Pacote Anticrime. Juiz de Garantias. Teoria da Dissonância Cognitiva.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Da Jurisdição. 2.1. Dos Princípios da Jurisdição. 2.2. Das Regras de Competência Processual Penal. 2.3. Da Competência por Prevenção. 3. A Dissonância Cognitiva. 4. Do Juiz de Garantias. 4.1. A Dissonância Cognitiva e o Juiz de Garantias. 5. Conclusão.


1.Introdução.

A existência de uma jurisdição, que decorreu da separação dos poderes nos moldes delineados a partir da obra de Montesquieu, representou um significativo avanço civilizacional. A prerrogativa dos cidadãos de terem seus conflitos solucionados por um terceiro, representante do Estado (e, não mais, pelos próprios particulares), é um pressuposto democrático cuja observância é imprescindível. Entretanto, mais do que a existência do referido “terceiro” como responsável por compor as contendas entre particulares, é necessário que se qualifique a atividade jurisdicional, a qual deve observar diversas premissas (princípios), a fim de propiciar, aos jurisdicionados, soluções que se aproximem, ao máximo, do que se idealiza com relação à “justiça”. Sobre estes princípios e os mecanismos para sua plena implementação, haverá um aprofundamento ao longo do presente esforço acadêmico.

No que diz respeito à qualificação da atividade jurisdicional, é preciso destacar que a maneira pela qual se organiza o Poder Judiciário brasileiro, no âmbito da jurisdição penal, apresenta uma configuração, no mínimo, problemática. Tem-se, no ordenamento jurídico nacional, regras muito bem traçadas de competência (forma de dividir funcionalmente o exercício da jurisdição), que é definida de acordo com a qualidade pessoal de quem está sendo julgado (vide a regra do “foro privilegiado”, a qual determina que, em razão da função que a pessoa ocupa, ela há de ser julgada em determinado grau de jurisdição), com a natureza do crime (nessa esteira, existem as Justiças Especiais, como a Eleitoral) ou com a localidade em que se deu o fato criminoso.

Em alguns casos, porém, as regras serão insuficientes para delimitar o juízo competente para julgar a ação penal. Quando, por exemplo, se tratar de crimes ocorridos na divisa de duas ou mais jurisdições ou de crimes continuados ou permanentes, a existência de mais de um juízo competente é inexorável. Nestes casos, o que definirá a competência penal será a precedência de um juízo, com relação aos demais, na tomada de alguma decisão referente ao caso (como, por exemplo, o decreto de medida de natureza cautelar). Trata-se da competência por prevenção, que constitui regra subsidiária de definição do juiz competente.

Sobre a competência por prevenção, é imperativo que se discuta sobre os problemas que recaem sobre ela, sobretudo do ponto de vista cognitivo do juiz. Nesta perspectiva, a comunidade científica investiga se este juiz, que toma alguma decisão na fase investigatória, se vincula cognitivamente ao que ele decidiu, prejudicando sua isenção (imparcialidade) para, ao final do processo, condenar ou não um réu. Sobre esta questão, que está relacionada ao estado de desconforto emocional chamado de “dissonância cognitiva”, essa produção acadêmica também se debruçará.

Ademais, há que se tratar sobre o instituto do “juiz de garantias”, que já fora objeto de várias proposições legislativas, e, finalmente, foi integrado ao ordenamento jurídico brasileiro, na esteira da aprovação do “Pacote Anticrime” (Lei 13.964/2019) (este último, de autoria do então Ministro da Justiça, Sérgio Moro). No texto original da Lei, o juiz de garantias não era uma previsão. No entanto, quando do trâmite do Projeto de Lei no Congresso Nacional, o referido instituto foi inserido, a despeito da contrariedade externada pelo idealizador do Pacote, Sérgio Moro, que, dentre outros argumentos, alegou que a implementação do juiz de garantias corroboraria a impunidade.

Por ora, é importante introduzir a noção de que o instituto foi idealizado como sendo uma solução para a contaminação do juiz participante da fase de investigação, tendo em vista que, a partir da implementação do juiz de garantias, dois juízes participariam do processo de imputação penal: um na fase investigatória (pré-processual); o outro, na fase processual. O instituto será apresentado como mecanismo para contornar a inevitável dissonância cognitiva dos julgadores, e, mais do que isso, como uma forma de aprimorar a atividade jurisdicional, de forma que os jurisdicionados possam, enfim, confiar que terão um julgamento imparcial, feito por um juiz sem as amarras da contaminação prévia.


2.Da Jurisdição.

A separação dos poderes, tal como se concebe hoje, passados séculos do lançamento de suas bases (o qual foi feito essencialmente na obra de Montesquieu, “O Espírito das Leis”, escrita em 1748), é considerada um dos pilares de um regime democrático. A ideia preconizada por Montesquieu passa, em suma, pela separação dos poderes em três diferentes frentes: Legislativo, Executivo e Judiciário. 

Quanto ao Poder Judiciário, sua consolidação foi de suma importância, uma vez que, consoante observado por André Machado Maya (2008, p. 4921), antes da separação dos poderes nos moldes montesquianos, a jurisdição, que se trata do poder de julgar do Estado (sendo uma verdadeira manifestação da soberania deste), era exercida por particulares, o que, evidentemente, tornava incipiente a proteção dos direitos individuais de cada um. Destarte, era flagrante a necessidade de um juiz autônomo com relação aos demais poderes e, mais do que isso, alheio às partes envolvidas nos conflitos a serem solucionados.

A jurisdição é definida, comumente, como o “poder-dever de dizer o direito no caso concreto”. Trata-se de conceito oriundo da tradicional doutrina civilista. A jurisdição penal (sobre a qual recai a presente pesquisa) é, para AURY LOPES JR. (2020, p. 211), mais do que o referido conceito abrange. Para o processualista, “a jurisdição é uma garantia” e o “poder- dever” tem como inerente a função de garantidor de direitos. Nessa esteira, é assertivo dizer que a jurisdição é instrumento para a efetiva realização das garantias constitucionais.

O supracitado conceito de jurisdição, que preconiza a necessidade de se garantir a eficácia da garantia dos direitos fundamentais dos jurisdicionados, deve observar certos princípios para que se logre o objetivo traçado. Afinal, pensar em garantia de direitos, sem que se fale no princípio da imparcialidade do juiz, seria absolutamente inócuo, tendo em vista que, por exemplo, um juiz contaminado por preconcepções não teria condições cognitivas de proferir uma sentença atinente à realidade processual que deveria norteá-lo.

Recorrendo a outro exemplo para se ratificar a imprescindibilidade do embasamento principiológico que deve ter a jurisdição penal, um juiz que pudesse atuar livremente, sem que fosse provocado, tenderia a perseguir tese (normalmente de cunho acusatório) que ele formulará anteriormente, isto é, haveria uma busca seletiva de informações para que se lograsse a manutenção da coerência entre opinião e conhecimento (SCHÜNEMANN, 2012, p. 35). Desse cenário, infere-se a necessidade de estrita observância do princípio da inércia, sobre o qual, assim como com relação ao da imparcialidade, esta pesquisa se debruçará com maior profundidade.

2.1Dos Princípios da Jurisdição.

Na esteira do que foi colocado acerca da jurisdição, é importante aprofundar-se em seus princípios. Como bem coloca AURY LOPES JR., apenas ter uma jurisdição não basta, isto é, a existência de um juiz para dizer o direito no caso concreto é insuficiente. Segundo o autor, é necessário que o magistrado “reúna algumas qualidades mínimas, para estar apto a desempenhar seu papel de garantidor” (2021, p. 23).

A imparcialidade do julgador é uma das “qualidades mínimas” que um juiz deve possuir. Para se garantir a imparcialidade do juiz, é preciso que a este se estabeleça algumas garantias, como a independência, que, segundo Luigi Ferrajoli (2002, p. 464), se trata da exterioridade do juízo com relação ao sistema político e em geral a todo sistema de poderes (isto é, os magistrados, no exercício da jurisdição, devem estar blindados de ingerências que possam viciar seu julgamento), e é instrumentalizada por certas garantias preconizadas na Constituição Federal, como as de inamovibilidade, vitaliciedade e a de irredutibilidade de subsídios (dispostas no art. 95 da Carta Magna). É evidente que a imparcialidade só será possível se o juiz for independente e, assim, não precisar ceder a pressões oriundas de membros de outros poderes ou do próprio Poder Judiciário.

Além da necessidade de independência da jurisdição, não é razoável se falar em imparcialidade em um sistema em que o juiz acumula as funções de acusar e julgar. Quando há acúmulo de funções, o juiz, inevitavelmente, formula suas teses acerca do caso e quando ouve a outra parte (a da defesa), acaba subestimando-a ou até desconsiderando-a. Augusto Jobim do Amaral (2014, p. 171) sintetiza com maestria essa problemática: “o decisor antecipa o juízo, ao menos em alguma medida, e qualquer “afeto” (tanto no sentido mais superficial de ser tocado, quanto na qualidade mesma profunda de estima) pelo contraditório é perdido por traição − assassinado antes mesmo de se realizar. Contraditório abortado, natimorto”.

Destarte, um processo penal sem que haja a presença de três diferentes sujeitos (juiz, acusador e réu), cada qual incumbido de uma única função, fulmina qualquer esboço de uma jurisdição imparcial. AMARAL (2014, p. 183) ainda ressalta que, para se garantir a imparcialidade do juiz, mais do que a simples separação das funções de acusar e julgar, premissa básica de um sistema acusatório, deve haver o alheamento do juiz da atividade investigatória ou instrutória, tema que será aprofundado neste trabalho posteriormente.

Há, hodiernamente, uma divisão da imparcialidade em objetiva e subjetiva. Esta diz respeito à convicção pessoal do juiz, que não pode ter pré-juízos formados (LOPES, 2021, p. 25). Evidentemente, é uma tarefa complexa aferir a imparcialidade no íntimo da convicção de um magistrado, mas, quando, por exemplo, este tiver manifestado publicamente sua opinião sobre os fatos a serem apurados ou sobre as pessoas envolvidas, pode-se afirmar que resta prejudicada a imparcialidade subjetiva (RITTER, 2016, p. 61). Quanto à imparcialidade objetiva, ela diz respeito à aparência de imparcialidade que o juiz demonstra. Se na conjuntura na qual estiver inserido o juiz há garantias o suficiente para se dissipar qualquer dúvida acerca da imparcialidade do magistrado, resta configurada a imparcialidade objetiva (LOPES, 2021, p. 26). Portanto, não basta que, subjetivamente, o julgador esteja isento de preconcepções; é preciso que o juiz aparente ser imparcial.

Outro princípio que norteia a jurisdição penal, e que decorre do princípio da imparcialidade, é o da inércia. Segundo reza este princípio, o poder jurisdicional não pode ser exercido caso não tenha havido sua provocação prévia. Sendo assim, o julgador não está apto a agir de ofício, dando início a um processo acerca de uma causa sobre a qual ele não foi chamado a atuar (LOPES, 2021, p. 113). Aplicando o princípio ao sistema processual penal brasileiro, a jurisdição só pode atuar quando o Ministério Público externar sua pretensão acusatória (nos casos de ação pública) ou quando o particular oferece queixa-crime (nos casos em que a ação é de iniciativa privada) (LOPES, 2021, p. 113). Antes destas iniciativas por parte daqueles incumbidos de acusar, ao Judiciário cabe a estagnação, isto é, a inércia.

Quando a Constituição Federal dispõe, em seu art. 5º, LIII, que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, ela consagra o princípio do juiz natural (AVENA, 2020, p. 32). Segundo esse princípio, todo cidadão tem direito de saber quem irá processá-lo, assim como tem direito de saber, de antemão, quem será juiz ou quem serão juízes que irão julgá-lo caso ele venha a delinquir e precise se submeter à jurisdição penal (LOPES, 2021, p. 114). No momento em que uma pessoa comete um crime, a ela já estava designado o órgão jurisdicional competente para julgá-la. Caso assim não fosse, poderia acontecer, por exemplo, a designação de um juiz para atuar especialmente em determinado caso, levando-se em conta a identidade da pessoa do acusado (AVENA, 2020, p. 32), o que, de forma flagrante, geraria insegurança para os jurisdicionados, que não teriam a garantia de imparcialidade.

2.2Das Regras de Competência Processual Penal.

A jurisdição, enquanto forma de expressão da soberania estatal, é una, o que não impede que o poder jurisdicional seja objeto de repartição de competências a fim de se melhor operacionalizar a administração da Justiça (PACELLI, 2020, p. 152). A jurisdição penal é, inclusive, uma das “parcelas” da jurisdição, sendo ela encarregada e especializada em matéria criminal (PACELLI, 2020, p. 153). Dentro da jurisdição penal, também são repartidas competências, segundo alguns critérios. Os critérios principais de fixação de competência são os que dizem respeito à competência em razão da pessoa (ratione personae), à competência em razão da matéria (ratione materiae) e, por fim, os que dizem respeito à competência em razão do lugar (ratione loci). A seguir, devido à importância da fixação da competência para a garantia do juiz natural, serão explicados os retrocitados critérios principais.

A competência em razão da pessoa é aquela que se refere à condição “funcional ou a qualidade das pessoas acusadas” (AVENA, 2020, p. 701). A depender da pessoa que supostamente cometeu delitos, a ação penal tramitará em juízo singular ou em tribunal. O foro especial por prerrogativa de função, que tem como razão de existência a asseguração da independência e do livre exercício de determinados cargos e funções, é um critério de fixação de competência ratio personae. Por exemplo, se um governador de Unidade da Federação comete um crime relacionado ao cargo, ele há de ser julgado originariamente no Superior Tribunal de Justiça, consoante determina o art. 105, I, ‘a’, da Constituição Federal.

A competência em razão da matéria, por sua vez, tem como critério a natureza dos fatos incriminados. Portanto, a depender do fato delituoso supostamente praticado pelo acusado, a ação penal tramitará em uma das Justiças, quais sejam: a Justiça especial militar, a Justiça especial eleitoral, a Justiça comum federal ou a Justiça comum estadual (AVENA, 2020, p. 701).

Por fim, a competência em razão do local é aquela concernente ao lugar em que ocorreu a infração penal. É a partir desse critério que se define qual é o foro competente para processar e julgar o acusado. O foro na Justiça Militar é representado pelos Conselhos de Justiça; na Justiça Eleitoral, são as Zonas; na Justiça Federal, as Seções/Subseções Judiciárias; e, na Justiça Estadual, as Comarcas (AVENA, 2020, p. 701).

Quanto aos dois primeiros critérios (competência ratio personae e competência ratio materiae), a doutrina majoritária (que conta com nomes como os de Norberto Avena e Eugênio Pacelli) os coloca como sendo absolutos para se fixar a competência, enquanto o critério da competência ratio loci seria relativo. Aury Lopes Jr. (2021, p. 115), se posicionando ao lado da minoria, afirma, com veemência, que “a eficácia da garantia do juiz natural não permite que se relativize a competência em razão do lugar”. Destarte, para o grande processualista, a competência ratio loci é, também, absoluta.

2.3 Da Competência por Prevenção.

A competência por prevenção constitui critério subsidiário de definição de competência, isto é, deve ser adotada quando, por alguma razão, os demais critérios não puderem ser aplicados ao caso (PACELLI, 2021, p. 225). 

A competência por prevenção, prevista no art. 70, §3º do CPP demonstra que sempre que for incerto o limite territorial entre duas jurisdições, ou mesmo quando houver incerteza em relação a jurisdição por motivo da infração ter sido tentada ou consumada nas divisas de duas ou mais jurisdições, valer-se-á da prevenção. (NUCCI, 2021, p. 349)

Essa previsão é aplicada, por exemplo, quando há desconhecimento sobre o local da infração, não podendo a competência territorial ser aplicada (PACELLI, 2021, p. 225). Para ilustrar a presente afirmação, quando for desconhecido o local da infração, existe a possibilidade de que o acusado possua várias residências ou domicílios, que não possua nenhuma ou que não se saiba o seu paradeiro, tornando impossível a aplicação do critério do domicílio ou residência (PACELLI, 2021, p. 225). Aplicar-se-á, nestes casos, de forma subsidiária, a regra da prevenção.

Esta regra também pode ser utilizada em casos de delitos que se enquadrem em crime continuado e delito permanente, conforme previsto no art. 71 do CPP. Este tipo de delito ocorre quando o agente comete duas ou mais ações ou omissões e provocam dois ou mais resultados e que, em decorrência de circunstâncias estabelecidas em lei, a conduta seguinte é considerada uma derivação (continuação) da primeira. Neste exemplo, os crimes podem atingir o território de mais de uma jurisdição, sendo então necessário utilizar-se do instituto. (NUCCI, 2021, p. 351).

Verifica-se que, se houver dois ou mais juízes igualmente competentes, a competência será conferida aquele que agir primeiro, isto é, aquele que for pioneiro na edição de ato de conteúdo decisório ou de medida a este relativa, de acordo com o art. 83 do Código de Processo Penal (PACELLI, 2021, p 226). Infere-se da leitura do art. 83, em especial do trecho, “um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da denúncia ou da queixa”, que o legislador menciona a fase pré processual e a processual propriamente dita, de maneira que o instituto pode ser invocado nas duas fases de persecução penal (PACELLI, 2021, p 226). Contudo, o legislador, no art. 83, não deixou de forma expressa o que este quis dizer com “ato do processo ou de medida a este relativa”, fazendo-se necessário esforço interpretativo.

Assim, no decorrer dos referidos procedimentos administrativos, pode surgir a necessidade de restrição de direito individual, como se dá no exemplo da prisão em flagrante. Diante deste cenário, faz-se necessário o controle de legalidade do ato, devendo a apreciação da necessidade de manutenção da medida restritiva ser do Judiciário. Como resultado da jurisdição garantida pelo Poder Público ao Judiciário, a prisão realizada guarda relação com a instrumentalidade do processo e regular atuação jurisdicional (PACELLI, 2021, p. 226). Sendo assim, a liberdade provisória, seja ela com ou sem fiança, ou o relaxamento da prisão em flagrante, serão considerados como conteúdos decisórios e serão utilizados como critério determinante para a prevenção do juízo (PACELLI, 2021, p. 226).

Tendo em vista que o modelo processual brasileiro é influenciado pelo princípio acusatório, em que a observância das regras de competência é de rigor para que seja preservada a imparcialidade do magistrado, a competência por prevenção pode receber críticas pela antecipação no conhecimento de questões fundamentais do processo, as quais o influenciam desde o primeiro momento, de maneira a decidir de uma determinada forma quando do momento decisório (PACELLI, 2021, p. 227).

Com o intuito de dirimir a questão mencionada, surgiu, com o Projeto de Lei de nº 8.045, o instituto do juiz de garantias, que será tratado em momento oportuno, como possível solução para a distorção gerada pelo critério da competência por prevenção.


3.A Dissonância Cognitiva.

Antes de adentrarmos o tema da dissonância cognitiva, é necessário entender alguns conceitos que surgem a partir dela e o seu efetivo surgimento. Segundo Leon Festinger (1975, p. 11), é flagrante o constante esforço que o indivíduo empenha para ficar em um estado de coerência com si próprio. Nesse sentido, leciona o autor: “a tendência de suas opiniões e atitudes, por exemplo, é para existirem em grupos internamente coerentes” (1975, p.11). Tem-se notado, em estudos, que tal busca pela coerência se dá em diversos âmbitos, como em atitudes políticas e atitudes sociais, de modo geral.

Há uma espécie de coerência que, segundo Festinger, abrange o que a pessoa tem de conhecimento ou crê com aquilo que ela faz. Exemplo clássico é o da pessoa que sabe que fumar é nocivo à sua saúde, mas, mesmo assim, continua a fumar. É firmado que a coerência é uma coisa usual e, com isso, coloca-se o questionamento sobre essas exceções, colocadas anteriormente, se elas podem ser aceitas por essas pessoas que agem diferente do que pensam ou acreditam. Esta aceitação ocorre de forma rara, sendo que o mais usual é que se tente racionalizar a questão.

Ainda segundo o autor, muitas dessas pessoas que empreendem um processo cognitivo de racionalização vão buscar eliminar ou atenuar o estado de incoerência. O fumante, por exemplo, vai justificar a continuidade do ato de fumar, dando destaque a pensamentos como “os perigos não são tão altos como falam” ou “o ato de fumar é tão prazeroso que compensa o risco”, e, com isso, torna o ato de fumar coerente com suas ideias. Entretanto, nem sempre se obtém sucesso com as tentativas de racionalizar, culminando em desconforto psicológico para o indivíduo.

Pode-se conceituar a dissonância como sendo a existência de relações discrepantes entre opiniões, conhecimentos ou crenças; a dissonância cognitiva, em si, é condição anterior que vai levar a uma atividade controlada com o fito de se reduzir a dissonância. Já, com relação aos psicólogos da cognição, de acordo com Clóvis de Barros Filho, a dissonância cognitiva, é a tendência que se tem mundos que estejam em desalinho com o nosso próprio ponto de vista. A dissonância pode surgir por meio de novos acontecimentos que vive o indivíduo, e, uma vez que esse indivíduo não é totalmente capaz de controlar tudo e qualquer coisa que aconteça e toda e qualquer informação que chegue a ele, a incidência de dissonâncias torna-se corriqueira. Nestes casos, segundo Leon Festinger (1975, p. 14), tem-se a dissonância momentânea. E, mesmo que não haja novas situações para isso, considerando que as coisas não são totalmente nítidas e bem definidas cem por cento do tempo, a existência da dissonância torna-se uma situação do cotidiano.

Tendo a ciência de que se deu a dissonância, há a necessidade de tentar reduzi-la. Utilizando-se do exemplo do fumante, quando este toma ciência dos malefícios que o cigarro traz, esse indivíduo poderá, para reduzir a dissonância, parar de fumar ou tentar mudar o conhecimento adquirido a respeito do fumo, tentando arranjar algum benefício que o fumo pode trazer, de maneira que os malefícios se tornem insignificantes.

Outro exemplo, colocado por Clóvis de Barros Filho, é a troca de canal em debates políticos, no qual se o candidato em que você apoia está se saindo bem no debate, a tendência é que você não mude de canal, mas se ele está perdendo ou indo mal, você tem maior chance de mudar de canal, isso ocorre por conta da tentativa das pessoas de procurarem mundos ou situações que concordem com aquilo que você está pensando ou acredita e evitar aquilo que lhe traz desconforto. Ademais, percebe-se então, a partir da narração de Barros Filho, que a tolerância é uma forma de resistência da dissonância cognitiva, pois, a partir da tolerância, a pessoa obtém a consciência de que determinada situação é desalinhada com aquilo que ela acredita, mas, mesmo assim, se aceita aquela situação e se expõe a ela. Não obstante, há situações em que não se consegue eliminar ou reduzir a dissonância.

A dissonância pode decorrer de alguns fatores, dentre os quais o colocado pelo autor, qual seja, uma inconsistência lógica, que se dá, por exemplo, quando o indivíduo crê que o ser humano vai à Lua no futuro, entretanto, acredita, ao mesmo tempo, que o ser humano não é capaz de produzir uma tecnologia e equipamentos eficientes o suficiente para ultrapassar a atmosfera; ou seja, esse indivíduo possui crenças dissonantes entre si, vez que uma decorre da outra.

Ademais, a dissonância pode decorrer de hábitos culturais, isto é, situações que, para determinada cultura, podem ser dissonantes, mas, em outra região, que possui uma cultura diferente, o ato pode ser consoante. A título de exemplo, pode-se citar o hábito de se comer com as mãos. Em determinado local, é considerado natural o ato de comer com as mãos, sem utilizar- se de talheres, mas, em outro, esse mesmo ato pode ser repudiado.

A dissonância pode resultar, também, de uma opinião específica, que fora incluída numa opinião geral, como, por exemplo, no caso em que uma pessoa é adepta de um partido, mas, no pleito eleitoral em específico, prefere candidato de outro partido. Neste caso, resta consolidada a dissonância, por ter estado preestabelecido que, por ser ideologicamente compatível com um partido, deveria favorecer candidatos desse partido.

No que diz respeito à magnitude da dissonância, podemos defini-la a partir da consideração de três elementos: o primeiro é que se os elementos cognitivos forem relevantes, a relação que eles possuem podem ser consonantes ou dissonantes. O segundo elemento, a magnitude da dissonância vai aumentar conforme a importância ou o valor que os elementos possuem aumentar. E a terceira, o total de distâncias que possui conjuntos de elementos cognitivos é de responsabilidade da proporção das relações relevantes entre os conjuntos que são dissonantes.

Retomando a questão da busca pela redução da dissonância, foi demonstrado pelo autor a existência de dois elementos cognitivos: o comportamental e o ambiental. Para reduzir ou eliminar a dissonância, pode-se eliminar a dissonância alterando o elemento comportamental, fazendo com que ele se torne consonante com relação ao elemento ambiental. Segundo Festinger (1975, p. 26) “o processo mais simples e mais fácil de conseguir isso consiste em mudar a ação ou sentimento que o elemento comportamental representa”. Transformando a tese em exemplo, pode-se citar a situação em que uma pessoa que fuma descobre o quão prejudicial isso é para a saúde dela e, por isso, para de fumar.

Contudo, nem sempre é possível mudar o comportamento, obrigando que a mudança se dê com relação ao elemento ambiental. Essa mudança ocorre quando se altera a situação a que o elemento corresponde. Não é tarefa tão “fácil” quanto a de mudar o comportamento, pois, para alterar o ambiente, é necessário que o indivíduo tenha controle sobre o meio. 

Em casos em que não é possível eliminar a dissonância, pode ocorrer a adição de novos elementos cognitivos, a fim de tentar reduzir a sua magnitude. Isso, entretanto, não é fácil, pois não se tem uma amplitude com relação às possibilidades de adicionar esse novo elemento. É certo que existe uma resistência com relação a redução da dissonância, já que, se isto não ocorresse, não existiria qualquer dissonância duradoura, existindo somente a momentânea, já que, em não havendo resistência, seria facilmente eliminada. Assim como existem duas modalidades de mudança, há também diferentes fontes de resistência com relação à mudança, com nexo as classes dos elementos cognitivos comportamentais e ambientais.

No que tange ao elemento comportamental, temos como primeira fonte de resistência à mudança a questão da receptividade do elemento à realidade, como se dá, por exemplo, ao visualizar que a grama é da cor verde, é extremamente difícil pensar que não seja assim. É certo, segundo o Leon Festinger, que o comportamento tem baixa resistência à mudança, uma vez que alteramos continuamente diversas ações do dia a dia. Sendo assim, é questionado quais são então as circunstâncias que tornam difícil mudar. A primeira seria com relação a dor ou a algum prejuízo que tal mudança possa gerar. E, em segundo, o comportamento pode ser bom com relação a outros aspectos, como a pessoa que continua comendo em um restaurante que não gosta somente em razão do fato de que seus amigos comem no estabelecimento. Em terceiro, que tal mudança possa ser impossível, o que se dá, por exemplo, quando se vende o carro e, depois de um tempo, quer ele de volta, o que se torna impossível caso o novo dono venha a se recusar a vender ou devolver.

Assim como demonstrado no elemento anterior, com relação ao elemento ambiental, a resistência encontrada é relacionada à realidade, o que se diferencia do anterior é que as possibilidades aqui são nulas, pois, como exemplo, mesmo que se pudesse mudar a localização de uma praça, isso é difícil de conseguir.

Por fim, existe a questão da evitação da dissonância, a partir da qual se busca evitar que a dissonância aumente ou ocorra. Por exemplo, na busca por conseguir informações ou dados para um novo elemento cognitivo, ela vai debater com pessoas que possuem o mesmo pensamento que ela, de maneira a evitar debater com pessoas que pensam de forma distinta.


4.Do Juiz de Garantias.

O juiz de garantias foi, consoante relatado anteriormente, uma (boa) novidade trazida pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), apesar de não ter estado no projeto original, de autoria do então Ministro da Justiça, o ex-juiz Sérgio Moro. A inclusão do instituto na Lei se deu a partir de uma emenda proposta pelo deputado Marcelo Freixo (PSB-RJ), a qual foi criticada publicamente pelo idealizador do Pacote Anticrime, Sérgio Moro, que chegou a solicitar ao Presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), que vetasse o instituto quando da sanção do Projeto de Lei, pleito que não foi atendido pelo chefe do Executivo, o que motivou discussões acaloradas entre os componentes da sua base de apoio.

O “juiz de garantias”, como foi denominado, enfrentou e enfrenta muita resistência no seio da sociedade civil. Para atenuar a resistência social ao instituto, AURY LOPES JUNIOR (2021) chegou a sugerir que fosse dado outro nome a ele, como, por exemplo, “juiz da investigação”, uma vez que, falar em “garantias” em um país cuja cultura processual penal é de matriz inquisitória, tende a gerar um sentimento geral de repulsa. Aliás, a referida resistência é muito bem personificada na figura do então ministro Sérgio Moro, que se posicionou de maneira contrária ao instituto, alegando, por exemplo, o frágil argumento da falta de estrutura do Judiciário brasileiro para implementar essa nova figura processual penal.

Quanto ao instituto em si, ele encontra previsão legal no art. 3º-B do Código de Processo Penal, que elenca as incumbências do juiz de garantias. A partir deste dispositivo legal, foi inserido, no processo penal brasileiro, a figura de um juiz incumbido de atuar exclusivamente na fase pré-processual (isto é, na fase investigatória). Segundo AURY LOPES JUNIOR (2021), porém, a concepção do instituto se deu a partir de uma construção híbrida, no sentido de que o juiz atua, também, na fase processual, vez que, além de receber ou rejeitar a denúncia, é responsável por citar o réu para apresentação da resposta preliminar, após a qual absolve-o sumariamente ou não, marcando audiência de instrução e julgamento caso não se dê a absolvição sumária.

O juiz de garantias atua, portanto, na fase de investigação, exercendo o controle de legalidade acerca dos atos de investigação promovidos pelo Ministério Público e pelo órgão policial, e deliberando acerca da adoção de medidas cautelares pessoais, reais ou probatórias na aludida fase, sempre a requerimento ou representação do Ministério Público e da Polícia (PACELLI, 2021). Quando, por exemplo, for requerida, pelo MP, a decretação de uma prisão preventiva, o juiz de garantias deverá analisar se estão presentes os requisitos dessa prisão cautelar, sem os quais esta última não pode ser decretada, sob pena de submeter o imputado ao cumprimento de pena antecipada, no sentido do que apregoa a jurisprudência do STJ, segundo a qual, para haver custódia cautelar, deve restar demonstrada a imprescindibilidade desta para o sucesso das investigações.

Com a inauguração do instituto do juiz de garantias, além da divisão de funções entre dois juízes (com  um juiz incumbido da parte investigatória e, de outro lado, outro juiz responsável por conduzir o processo e proferir a decisão resolutiva do caso), houve outras mudanças na estrutura do processo penal, como a que está disposta no art. 3º-C, § 3º, do Código de Processo Penal. Nesse sentido, quanto à parcela dos autos que é enviada pelo juiz de garantias ao juiz julgador, assevera Aury Lopes Jr (2021):

“É importante compreender que houve uma mudança radical no processo e no atuar do juiz. Agora, o juiz das garantias, quando remete os autos para o juiz da instrução e julgamento, não encaminha automaticamente a integralidade dos autos! Os autos ficarão acautelados na secretaria do juízo das garantias, que remeterá para o juiz da instrução apenas: a denúncia ou queixa; a decisão de recebimento, para compreensão do que foi recebido e do que foi rejeitado, por exemplo; decisão que decretou medidas cautelares ou prisão cautelar, para controle e também para revisão no prazo de 10 dias; decisão que manteve o recebimento e não absolveu sumariamente (art. 397) ” (p. 157).

Em síntese, o legislador restringiu o que pode ser enviado pelo juiz de garantias ao juiz da instrução (ou juiz julgador), de maneira que os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias não serão apensados aos autos do processo que serão enviados ao juiz da instrução e julgamento. Buscou-se, com isso, preservar a originalidade cognitiva do juiz que resolverá o processo, no sentido do que será explanado adiante.

Por fim, vale ressaltar, antes mesmo de se dar início ao esforço de se estabelecer uma interface entre o juiz de garantias e a Teoria da Dissonância Cognitiva, que o juiz de garantias, que não exerce função investigatória e tampouco produz provas (JUNIOR, 2021), veio para aprimorar a jurisdição penal atual, no sentido de possibilitar que esta última possa ser exercida de forma imparcial (RITTER, 2016) e de reforçar a estruturação acusatória do processo penal, ainda que tenha vindo de maneira tardia, sobretudo se se considerar o movimento latino- americano, do final do séc. XX, de adequação das leis processuais penais à Convenção Interamericana de Direitos Humanos (MAYA, 2018).

4.1 A Dissonância Cognitiva e o Juiz de Garantias.

Com o exposto sobre a dissonância cognitiva e o juiz de garantias, cumpre relacionar ambos os institutos para demonstrar o seu efeito no Processo Penal. A dissonância cognitiva faz com que um indivíduo busque incansavelmente por informações ou dados que corroborem os elementos cognitivos que obteve anteriormente. Este mesmo indivíduo não conseguirá valorizar, de fato, outros que tragam à baila elementos dissonantes, rejeitando, assim, debates, informações ou qualquer outro dado que não vá de encontro com a sua convicção ou repertório cognitivo.

Cumpre mencionar que é inerente ao ser humano estar sujeito  aos impactos da dissonância cognitiva, pois é natural que as pessoas tenham preconcepções sobre as mais diversas pautas e que dificilmente estejam aptas a se desvencilhar desses elementos cognitivos prévios, que são as preconcepções. É necessário, então, trabalhar a partir desta premissa para mitigar os danos causados pelos impactos da dissonância, em específico no âmbito do Processo Penal, já que, com ele, está-se a lidar com a liberdade dos indivíduos.

Com a ideia da dissonância em mente e observado o Processo Penal brasileiro, o juiz que tem acesso ao processo de investigação de um suspeito e do delito por ele supostamente cometido buscará, depois, no âmbito do processo propriamente dito, elementos que comprovem a culpa desse suspeito. Isto se dá porque o juiz que atua nas duas fases do processo penal está contaminado por preconcebimentos que foram formados no momento do ato decisório na fase investigatória, momento este em que não é assegurado o direito à ampla defesa e contraditório. A dissonância cognitiva pós decisão, teorizada por Festinger, explica esse fenômeno.

De acordo com RUIZ RITTER, os impactos advindos da dissonância cognitiva afetam diretamente nas deliberações de um indivíduo (2016, p. 99). O autor ilustra esta assertiva com o exemplo das pessoas que não conseguiam decidir qual carro estas deveriam adquirir. Prévio à escolha pelo veículo “A” ou “B”, na hipótese desenhada, cada pessoa tem elementos cognitivos que irão fazê-los decidirem por “A” ou por “B”. No caso, alguns dos elementos que apontam para a compra do automóvel são: motor, consumo de combustível, design e preço. No caso, é suposto que o “A” obtenha maior desempenho em relação ao motor quando comparado ao “B”, e o automóvel “B” tem um menor consumo de combustível, melhor design e preço. Caso opte pelo “A”, por exemplo, tenderá a valorizar com veemência a importância do motor de um automóvel e menosprezar pontos como o design e o preço.

Como já abordado antes e elucidado por RUIZ RITTER, “ciente de que o sujeito busca sempre coerência plena entre sua razão (cognição) e sua ação (comportamento) ” (2016, p. 99), não seria possível adquirir o modelo de carro “A” sem que houvesse conflito com as cognições criadas anteriormente. Em decorrência do exemplo trazido, conclui-se que não há como tomar decisões sem aceitar os impactos da dissonância cognitiva.

Com o exemplo abordado, fica claro que o juiz que conduz a fase investigatória, de matriz inquisitiva (sem, pois, a garantia do contraditório), não será capaz de ser um juiz imparcial na fase processual penal, uma vez que tomará decisões baseadas nas informações (elementos cognitivos) com as quais tivera contato anteriormente, nas quais se baseou, também, para decretar medida de urgência na fase investigatória, como, por exemplo, uma prisão cautelar.

Consoante assevera FLÁVIO DA SILVA ANDRADE (2019), estará constituída a dissonância quando, em sede de cognição sumária, que conta com os elementos indiciários levantados no inquérito policial, o juiz decidir por uma medida de urgência e, no processo, após cognição exauriente (vez que observados os ritos processuais-probatórios), perceber que a medida de urgência não se justificava. Neste caso, o magistrado encontrar-se-á em uma situação cognitiva flagrantemente desconfortável, a qual ele tentará mitigar, a partir do menosprezo dos elementos cognitivos dissonantes e da supervalorização dos consonantes.

O juiz de garantias seria, portanto, o instituto trazido para promover a redução dos impactos da dissonância cognitiva no processo penal. Esta figura, conforme mencionado por ANDRÉ MAYA (2018, p. 2) já está presente em diversos Códigos de Processo Penal da América do Sul, como o Chile, Paraguai e Colômbia, não sendo o Brasil pioneiro na implementação do instituto. A ideia do juiz de garantias, em suma, é a de criar um novo órgão jurisdicional para atuar exclusivamente na fase de investigação (pré-processual) (MAYA, 2018, p.2). Sendo feita a separação de competências entre o juiz da fase pré-processual e da processual, há uma maior proteção da legalidade da investigação criminal e na tutela dos direitos do indivíduo, evitando os impactos da dissonância que, inevitavelmente, ocorrem.

Contudo, apesar do instituto do juiz de garantias vir para trazer soluções quanto aos impactos da dissonância cognitiva no Processo Penal brasileiro, o ministro e atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, suspendeu a sua implementação até decisão no Plenário da Corte, conforme liminar da ADI 6.298/2019 (STF, 2020). Tal suspensão veio carregada do argumento que pode ser sintetizado com a seguinte assertiva: “a criação do juiz das garantias não apenas reforma, mas refunda o processo penal brasileiro e altera direta e estruturalmente o funcionamento de qualquer unidade judiciária criminal do país (2020)". Com base no entendimento do referido ministro, a aprovação do projeto resultaria em uma alteração radical na estrutura do Poder Judiciário. Ainda, argumenta o ministro que esta alteração causaria impacto orçamentário, “(...), o fato é que a criação de novos direitos e de novas políticas públicas gera custos ao Estado, os quais devem ser discutidos e sopesados pelo Poder Legislativo (...). (2020)." 

Com base nesses argumentos, Fux, na ADI 6.298/2019, demonstra que os artigos que trazem o instituto do juiz de garantias deveriam ser inconstitucionais, basicamente utilizando- se do argumento de que não se pode aprimorar o Processo Penal pela falta de estrutura. É nítido o contrassenso das argumentações de Fux, tendo em vista que a ideia do juiz de garantias não é reformar o Poder Judiciário, como ele alega, mas, sim, criar uma nova atividade dentro do Poder Judiciário que altera sua estrutura somente no tocante à redistribuição de competências.

Essa alteração adequa o Poder Judiciário para uma “reorganização da estrutura já existente” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020, p.21) para que sejam respeitados os princípios que norteiam o processo penal, principalmente o da imparcialidade do juiz. No caso, não é necessário a alteração de todo o Processo Penal como Fux faz parecer, mas, sim, a implantação de meios que promovam a apropriada gerência das competências judiciárias para a efetiva prestação jurisdicional dividida nas duas fases do Processo Penal (investigação penal e o processo propriamente dito), que devem ser de competência de juízes distintos (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020, p. 21).

Por fim, Fux não reconhece, portanto, que a divisão de competências entre juízes seja um meio eficaz de redução dos vieses cognitivos destes, ainda que este reconhecimento seja uma análise política e a competência do STF seja julgar a constitucionalidade dos artigos que implementam o juiz de garantias (3º-A a 3º-F da Lei 13.964/2019), ou seja, não há, da parte do eminente magistrado Luiz Fux, argumentação baseada na Constituição (MORAES, 2020, p.1).


5.Conclusão.

Ante o exposto, faz-se notória a importância, para o aperfeiçoamento da jurisdição penal brasileira, do advento de um instituto processual penal na configuração do juiz de garantias, que é capaz de atacar, de forma direta, um problema gravíssimo do sistema processual penal brasileiro, qual seja, a polivalência do magistrado no sentido de que, a ele, é atribuída a competência para conduzir a fase investigatória (com base no critério da prevenção, ao qual dedicamos um tópico do trabalho) e a fase processual.

A ausência de uma figura como o juiz de garantias, que atua exclusivamente na fase pré-processual, culmina em aberrações processuais, como se dá no exemplo do juiz que é responsável, concomitantemente, por conduzir uma audiência de custódia (e, ao final dela, decidir, eventualmente, pela decretação de uma prisão preventiva, caso presentes os requisitos desta) e por proferir uma sentença ao final do processo, condenando ou absolvendo um réu.

O problema de “aberrações” como a supracitada é o conflito cognitivo que decorre dessa conjuntura, o qual é muito bem explicado pela Teoria da Dissonância Cognitiva, desenvolvida por Leon Festinger, que explana, com maestria, acerca da dissonância existente entre cognições referentes a uma mesma situação, o que acarreta, no processo cognitivo de um indivíduo, um “movimento” para que a dissonância se reduza e a pessoa encontre um estado de coerência.

A dissonância se faz presente, no âmbito do exercício jurisdicional, quando, por exemplo, um juiz decide por uma prisão cautelar na fase investigatória, medida que ele teve que embasar a partir de um juízo de valor sobre o agente supostamente criminoso e as condutas supostamente delituosas imputadas a ele. A partir desse juízo de valor feito para adotar medida restritiva do direito de liberdade do imputado, cada elemento de prova dissonante com relação aquilo que o magistrado considerou para editar aquela decisão acarretará, ao magistrado, uma situação cognitiva desconfortável, a qual ele tentará atenuar, a partir do desprezo das cognições dissonantes e da supervalorização das consonantes.

Em razão da dissonância cognitiva, portanto, a existência de um juiz para a fase investigatória (no caso, o juiz de garantias) diferente do juiz que conduz a fase processual e profere sentença é imprescindível, uma vez que, com o juiz de garantias, se retira da fase processual o juiz prevento, já contaminado por preconcepções que formulara quando da emissão de ato decisório na fase investigatória, fase em que impera uma dinâmica inquisitória, de contraditório precário.

Por derradeiro, vale ressaltar que a busca pelo aprimoramento da jurisdição penal deve ser incessante, de maneira que sempre se almeje a observância dos princípios inferidos de um Estado Democrático de Direito. A Lei 13.964/2019, com a inauguração do juiz de garantias, trouxe, indubitavelmente, um avanço para o sistema processual penal brasileiro, que, agora, poderá ter fortalecido o seu viés acusatório, sobretudo no sentido de proporcionar, mais do que uma jurisdição imparcial, uma jurisdição que aparente ser imparcial perante os jurisdicionados, isto é, perante os cidadãos brasileiros.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NICETTO, Luiza dos Santos; PRANDO, Vinicius et al. Dissonância cognitiva e o juiz de garantias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7097, 6 dez. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101274. Acesso em: 12 maio 2024.