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Exame de Ordem: três respostas

Exame de Ordem: três respostas

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Sumário: 1. A entrevista do Presidente da OAB; 2. A primeira alegação; 3. A segunda alegação; 4. A terceira alegação.


1.A entrevista do Presidente da OAB

Em entrevista publicada, no dia 10.06.2007, no jornal Correio de Sergipe, sob o título "Overdose de Ética não faz mal a ninguém", (Fonte: http://www.correiodesergipe.com.br/lernoticia.php?noticia=23030), o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto, dentre os vários assuntos abordados, tratou do Exame de Ordem, para dizer que, se ele fosse abolido, teríamos:

"Três conseqüências graves: imediatamente teríamos um acréscimo no hall (sic) de advogados do Brasil de aproximadamente 2,5 milhões de inscritos, com um crescimento anual de 249 mil profissionais. Se o Brasil já possui hoje algo em torno de 600 mil advogados, correspondendo a 20% dos advogados no mundo, se perceberia o absurdo que nós passaríamos a ter praticamente a metade dos advogados do mundo; o segundo, que é mais grave, é que boa parte com baixa qualificação profissional e a péssima qualidade do ensino jurídico. No último exame nacional da Ordem, que abrangeu 17 Estados da Federação, constatou-se a afirmação anterior. As boas instituições de ensino, que são poucas, conseguem aprovar mais de 75% dos seus inscritos, e as de péssima qualidade reprovam aproximadamente 100% dos seus egressos. Se o exame consegue a aprovação de mais de 75% egressos, não é o exame que está ruim, mas as instituições é que estão fracas; já o terceiro, que para mim é o principal aspecto, é que a profissão do advogado tem relação direta com a defesa de princípios e regras fundamentais ao ser humano, como a liberdade, a luta pela desigualdade (sic), a conquista de um direito violentado, a supressão de uma esperança de justiça (sic). E se essa profissão não é exercida com uma necessária qualificação, o prejuízo que se causa à cidadania que contrata o serviço é grave é irreversível. Certamente os presídios estariam superlotados de cidadãos que perderam sua liberdade por uma defesa mal feita. O exame de ordem é acima de tudo um instrumento de defesa da cidadania."


2.A primeira alegação

Quanto à primeira alegação, de que hoje nós temos 20% dos advogados do mundo, de que o fim do Exame de Ordem causaria um acréscimo de 2,5 milhões de advogados e nós passaríamos a ter praticamente a metade dos advogados do mundo, tenho a dizer o seguinte:

Em outras oportunidades, dirigentes da Ordem já afirmaram que esse acréscimo seria de 1,9 milhões. De qualquer maneira, esse número parece um exagero, porque hoje o número de bacharéis que concluem os nossos cursos jurídicos deve estar em torno de 50 mil por ano. Assim, o fim do Exame de Ordem causaria um acréscimo, talvez, de 500 mil advogados, dobrando, praticamente, o número de inscritos.

Se é verdade que nós temos 20% dos advogados do mundo, então todos os advogados do mundo estão no Brasil e nos Estados Unidos, porque muitos críticos do sistema legal americano costumam afirmar que os Estados Unidos têm 70% dos advogados do mundo, a exemplo de Greg Hickman, no artigo: Are There too many Lawyers? (Fonte: Power-ofAttorneys.com). Diz ele: "The U.S. has seventy percent of the world’s lawyers but only five percent of the world’s population. U.S. industry spends hundreds of billion dollars annually on litigation costs and efforts to avoid liability. We have thirty times more lawsuits than Japan, one of America’s primary trade competitors…"

Sabe-se que os Estados Unidos têm aproximadamente 1,3 milhões de advogados. Se é verdade que a América tem 70% dos advogados do mundo, então o Brasil, com 600 mil advogados, deveria ter algo em torno de 30%!!!!!!

Ou seja: França, Inglaterra, Itália, Espanha, Portugal, Canadá, Argentina, etc., não têm advogados! Na minha opinião, os dados americanos não são confiáveis, e nem os dados divulgados pela OAB.

Pois bem: suponhamos, apenas para argumentar, que seja verdade que os Estados Unidos e o Brasil têm muitos advogados. Será que isso é ruim? Será possível falar em "excesso" de advogados?

Para Lin Yutang, escritor americano, o excesso de advogados inviabiliza a Justiça: "When there are too many policemen, there can be no liberty. When there are too many soldiers, there can be no peace. When there are too many lawyers, there can be no justice."

Na minha opinião, o alegado excesso de advogados não seria, necessariamente, ruim, desde que os advogados respeitassem a lei e que as leis não se preocupassem em criar empregos e privilégios para os advogados. Se realmente estamos em uma República, a igualdade deve prevalecer. Nessas condições, pode-se afirmar que o dito excesso não seria prejudicial, absolutamente. Ao contrário, quanto mais advogados, maior poderia ser o respeito à cidadania do nosso povo, que nas condições atuais desconhece os seus direitos.

A verdade é que deve sempre prevalecer o interesse público, e não o interesse corporativo. O Legislativo não pode ser controlado pelos advogados, para votar as leis que possam atender, apenas, aos seus interesses. O Judiciário não pode decidir, também, sob a influência desses interesses. O Executivo não pode ser controlado pelos advogados, ou pelos dirigentes da OAB. A OAB não pode ser transformada em um partido político, porque o seu poder poderá ser utilizado em benefício dos interesses de seus dirigentes, ou dos seus interesses corporativos. A Frente Parlamentar dos Advogados, formada por 115 deputados, é um exemplo do poder da OAB, dentro do Legislativo brasileiro. (Fontes: http://www2.camara.gov.br/internet/homeagencia/materias.html?pk=104529 e http://www.oab-rj.com.br/content.asp?cc=24&id=2194 )

O mesmo raciocínio se aplicaria, evidentemente, em relação a outras pessoas ou grupos, que detenham o poder suficiente para desviar o Governo de sua função básica e para fazer que os seus interesses individuais ou corporativos prevaleçam sobre o interesse público, a exemplo dos industriais, dos banqueiros e da mídia.

A própria OAB não pode ser tão fortalecida, institucionalmente, ao ponto de interferir no equilíbrio dos Poderes constituídos. O advogado é indispensável à administração da Justiça, diz o art. 133 de nossa Constituição, mas é preciso não esquecer que o interesse público deve ser respeitado. Não é possível que os interesses corporativos da OAB, ou de seus dirigentes, interfiram em todos os Poderes constituídos, em detrimento do interesse público. Dessa forma, a OAB passaria a ser um poder inconstitucional, porque contrário ao princípio básico da independência e harmonia dos Poderes. Dessa forma, o advogado seria prejudicial à administração da Justiça....

Não se pode admitir a concentração dos poderes do Estado nas mãos de uma só pessoa, ou de um só grupo, já o dizia Montesquieu, no Espírito das Leis, e as suas idéias foram desenvolvidas no Federalista, por Hamilton, Madison, e Jay, para defender a aprovação do projeto da Constituição americana, que deveria garantir a liberdade do povo, contra os abusos do Governo. Madison alertava, então, para o perigo da concentração do poder nas mãos de um grupo, ou de uma facção, "same hands group", ou "faction", que ele definia como: "a number of citizens who are ruled and actuated by some common... interest adverse to the rights of other citizens,... or to the permanent and aggregate interests of the community". (Fonte: James Madison, Federalist, nº 10)

A Constituição Americana foi escrita, portanto – e a nossa também, supõe-se -, para impedir a tirania e para prevenir que qualquer grupo de interesses (same hands), que pudesse surgir posteriormente, adquirisse o poder, inviabilizando a independência e harmonia dos Poderes e o respeito ao princípio republicano.

Nos Estados Unidos, há quem diga que a Constituição também já foi rasgada, há muito tempo, exatamente pelo desrespeito a essas idéias, defendidas por Montesquieu e por Madison.

Ronald Bibace, um professor de Direito Constitucional de Forte Lauderdale, na Flórida, defende a idéia de que os advogados não poderiam exercer cargos no Executivo, nem no Legislativo, porque a Constituição o proíbe, exatamente na cláusula da separação dos poderes: "Article II, Sect. 3: No person belonging to one branch shall exercise any powers appertaining to either of the other two branches unless expressly provided herein."

Para expor as suas idéias, em defesa do governo constitucional e representativo e para evitar que o poder do Estado americano continue sendo concentrado nas "mesmas mãos" da "profissão legal", de modo que "os advogados/juízes façam as leis, as interpretem e as apliquem, atentando assim contra o espírito e os objetivos da Constituição", o professor Bibace escreveu uma continuação dos "Federalist Papers". (Fonte: Constitutional Guardians of America - http://www.constitutionalguardian.com/)

Ou seja: se os advogados estão vinculados ao Poder Judiciário, não poderiam exercer nenhuma função, no âmbito dos outros dois ramos do Governo. No Brasil, a Constituição diz – é a única no mundo – que o advogado é indispensável à administração da Justiça (art. 133). Como poderiam, então, os advogados (same hands), ligados pelos mesmos interesses, pertencer, também, ao Legislativo e ao Executivo? Quem faz as leis não pode julgar, nem administrar, ao mesmo tempo, e é isso que caracteriza a separação dos Poderes, e que se supõe que poderia impedir a implantação de uma tirania.

De qualquer maneira, voltando ao nosso tema do Exame de Ordem, se o Brasil têm ou não tem advogados em excesso, esta não é uma discussão jurídica. O excesso de advogados pode ser mau para o mercado de trabalho, que somente absorverá os mais competentes, mas pode ser bom para o consumidor, para aquele que precisa contratar serviços jurídicos, porque a maior competição exigirá melhores serviços, daqueles que quiserem continuar a exercer essa profissão liberal.

Mas esta não é uma discussão jurídica, porque existe, no Brasil, uma coisa que se chama Constituição, e que todos deveriam conhecer. A Constituição garante a liberdade do trabalho e a liberdade do exercício profissional, o que significa, claramente, que todos têm o direito de escolher uma profissão liberal, como a advocacia, e que ninguém, nem mesmo a OAB, com todo o seu poder, tem o direito de limitar o número de "vagas" de advogados, para proteger o mercado de trabalho dos atuais inscritos. Chama-se a isso: reserva de mercado. O "excesso" de advogados não serve para justificar, absolutamente, o Exame da OAB.

Portanto, a primeira alegação do Presidente da OAB, de que o fim do Exame de Ordem daria ao Brasil metade dos advogados do mundo, é inteiramente descabida, porque não tem nada a ver com um debate jurídico. Juridicamente, deve ser respeitada a liberdade do exercício profissional, consagrada pelo inciso XIII do art. 5º da Constituição Federal, aliás uma cláusula pétrea, que nem mesmo uma emenda constitucional poderia abolir.

Não é possível, juridicamente, fazer com que o Congresso Nacional aprove uma lei, e nem mesmo uma emenda constitucional, limitando o número de "vagas" para advogados, médicos, engenheiros, jornalistas, professores, pintores, mecânicos, etc.. O que deve prevalecer é a igualdade. Todos terão o direito de estudar, o direito de adquirir uma qualificação profissional, o direito de trabalhar, o direito de exercer uma profissão liberal, em igualdade de condições, com as mesmas oportunidades...


3. A segunda alegação

Quanto à segunda alegação, referente "à baixa qualificação profissional e à péssima qualidade do ensino jurídico", é também descabida, simplesmente porque não compete à OAB avaliar a qualificação profissional dos bacharéis formados em nossos cursos jurídicos. Isso é competência do Estado brasileiro, conforme claramente previsto na Constituição Federal, especialmente nos artigos 205 e 209. A qualificação do advogado é garantida pelo diploma, que lhe é conferido por uma instituição de ensino superior, autorizada e avaliada pelo Estado. Não é o Exame da OAB que deve qualificar o advogado, mas o ensino superior. À OAB, cabe apenas a fiscalização do exercício profissional.

Para Vital Moreira, um dos mais renomados constitucionalistas de Coimbra, "A vocação natural das Ordens Profissionais não é a de controlar a formação académica dos candidatos à profissão, essa já está "acreditada" no título académico, mas sim a de lhes ministrar uma adequada formação quanto à deontologia profissional e quanto às boas práticas da profissão (coisas que não competem às universidades), e depois proceder ao necessário controlo e punição das infracções a umas e outras. O mais espantoso a este respeito é que a maior parte das ordens profissionais não cumpre a primeira dessas tarefas elementares e poucas cumprem razoavelmente a segunda". (Fonte: O Império das Corporações Profissionais, http://www.fcsh.unl.pt/docentes/cceia/ordens-profis.doc)

Se é verdade que existem muitos cursos jurídicos de péssima qualidade, cabe ao Estado brasileiro impedir que esses cursos continuem funcionando. O que não é possível é continuarem sendo enganados, os bacharéis em Direito, formados por esses cursos, autorizados e fiscalizados pelo MEC, que depois de receberem um diploma que, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, atesta a sua qualificação profissional, ficam impedidos de trabalhar, por um órgão de classe que não é uma instituição de ensino superior e que não tem competência para avaliar a sua qualificação profissional. Para que serviria o diploma, então?

O que não é possível é continuar a proliferação de cursinhos preparatórios para o Exame de Ordem, muitos deles patrocinados pelas próprias Seccionais da OAB. Tudo isso depõe contra a imagem da Ordem, que não deveria se meter no que não é de sua conta, e que depois se sujeita às diversas denúncias que têm sido feitas, quanto à lisura de seu Exame, a exemplo do que ocorreu em Goiás, quando a Polícia Federal prendeu, dentre outras pessoas, o Presidente e o Vice-Presidente da Comissão do Exame de Ordem, acusando-os de terem formado uma quadrilha, para vender a aprovação no Exame, e de terem obtido um rendimento de aproximadamente 3 milhões de reais.

O que não pode continuar é a ineficiência das instituições públicas de ensino superior, nas quais um aluno custa ao Estado quase dez vezes mais do que a mensalidade das melhores instituições privadas.

O que não pode continuar é o mercantilismo de muitas instituições privadas, que não se preocupam com a qualidade do ensino que oferecem, mas apenas com os altos lucros que a atividade pode proporcionar. Muitos políticos, hoje, são donos de faculdades. Dirigentes da OAB são diretores de cursos jurídicos, ou seja, atuam nas duas funções, como jogadores e como árbitros.

No Congresso Nacional, diversos parlamentares são donos de instituições de ensino superior, que já estão enfrentando problemas, decorrentes do baixo poder aquisitivo de nosso povo, que não tem como pagar as altas mensalidades de um curso universitário.

Assim, o deputado federal Bonifácio de Andrada (PSDB–MG) é dono da Universidade Presidente Antônio Carlos, a UNIPAC, que administra 176 ‘campi’ em diversas cidades do interior mineiro. De acordo com levantamento feito pela reportagem do Jornal do Brasil (Fonte: Eles Fizeram Faculdades, Inês Garçoni e Leandro Mazzini – Jornal do Brasil, 02.04.2006 - http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=258972), existem outros deputados na mesma situação, mas o problema é que muitos deles são membros da Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, que pode aprovar projetos de lei que beneficiam as suas próprias faculdades:

"Até aí, morreu o Neves, como diz a letra de Jorge Ben Jor, gravada por Elis Regina. É direito de qualquer deputado investir no empreendimento que bem lhe convier. O problema é que Bonifácio é membro da Comissão de Educação e Cultura (CEC) da Câmara, onde projetos de lei tomam forma, e podem mudar a vida de milhões de universitários e beneficiar as faculdades. Bonifácio não é o único no seleto grupo. Ao lado dele, três deputados donos de faculdades atuam na mesma comissão: Murilo Zauith (PFL-MS), dono da Unigran, em Dourados (MS); Átila Lira (PSDB-PI), cuja irmã é reitora da Faculdade Santo Agostinho, em Teresina; e Clóvis Fecury (PFL-MA), dono de duas universidades – a Uniceuma, em São Luís, e a portentosa Unieuro, em Brasília. Somadas, ambas contam com mais de 23 mil alunos. Além dos que despudoradamente legislam na CEC, há pelo menos mais cinco parlamentares donos de instituições de ensino superior, ou ligados a elas, principalmente nos próprios redutos eleitorais, conforme levantamento feito pelo JB. Juntas, têm matriculados mais de 120 mil alunos. São eles os deputados Corauci Sobrinho (PFL-SP), cuja mulher, Elmara Corauci, é reitora da Unaerp (Ribeirão Preto); Lael Varella (PFL-MG), dono da Faminas, em Belo Horizonte e Muriaé; Paulo Lima (PMDB-SP), da Unoeste, em Presidente Prudente; André Zacharow (PMDB-PR), presidente da associação que mantém a Faculdade Evangélica do Paraná; e João Matos (PMDB-SC), dono da Faculdade Sinergia, em Navegantes. Interpelados sobre a ética que envolve a participação de empresários de educação numa comissão que deveria defender interesses públicos, os quatro integrantes da CEC negaram legislar em causa própria e usam discursos com viés social na defesa de suas causas..."

Coincidentemente, o Congresso aprovou o ProUni – Programa Universidade para Todos, através do qual o Estado brasileiro, em vez de aumentar o número de vagas nas universidades públicas, decidiu pagar bolsas de estudo para centenas de milhares de jovens brasileiros, nas mesmas instituições privadas, que pertencem, algumas, aos políticos, aos parlamentares e a outras pessoas, que têm poder e representatividade para influir nas decisões do Governo brasileiro. Interesse público? Pode ser...

Mas apesar de tudo isso, apesar de existirem cursos jurídicos de péssima qualidade, apesar das deficiências que o MEC apresenta, no desempenho de suas funções, não cabe à OAB, insisto, avaliar a qualificação profissional dos bacharéis em Direito. Essa avaliação deveria ser feita pelo MEC, exclusivamente. Caberia à OAB – e também ao Ministério Público - exigir que o MEC desempenhasse corretamente as suas atribuições. E mais: essa avaliação da qualificação profissional deveria ser gradual, porque não é possível que se permita que o estudante perca cinco anos de sua vida e gaste milhares de reais em mensalidades, para que depois de concluído o curso ele venha a ser considerado incapaz de exercer a sua profissão! A avaliação deveria ser permanente, para que o estudante fosse logo reprovado, se não tivesse um rendimento satisfatório, e para que os cursos de baixa qualidade fossem fechados, ou fossem obrigados a melhorar o seu desempenho.

Não cabe à OAB, portanto, controlar os cursos jurídicos, e não cabe à OAB defender, exclusivamente, o mercado de trabalho dos advogados inscritos em seus quadros, esquecendo, completamente, que tem a obrigação de respeitar e, mais do que isso, tem a obrigação de defender a Constituição, conforme previsto no art. 44 de seu Estatuto ( Lei 8.906/1.994).

Em São Paulo, por exemplo, quase 80% dos advogados inscritos trabalham como advogados dativos, ou seja, recebem seus honorários do Estado, para defenderem pessoas carentes, que não podem pagar um advogado. Esses advogados se queixam, freqüentemente, de que são mal remunerados. Sabe-se, também, que o atendimento das pessoas carentes deixa muito a desejar e que os nossos presídios estão lotados de pobres, que não podem pagar advogados e que são "defendidos" por esses advogados dativos, ou por defensores públicos, cujo número é insuficiente para atender a enorme demanda.

Verifica-se, portanto, que o problema é o mercado de trabalho. Os dirigentes da OAB se preocupam com o mercado de trabalho dos advogados inscritos e esquecem a Constituição. O Exame da OAB, claramente inconstitucional, é defendido com unhas e dentes, como se fosse a salvação da Justiça brasileira, contra os profissionais incompetentes. Os dirigentes da OAB, que são incapazes de defender juridicamente o Exame de Ordem, passam a defendê-lo com alegações desse tipo, dizendo que já temos um número excessivo de advogados e que os bacharéis são incompetentes e desqualificados. E os advogados antigos, por que não são obrigados a fazer o Exame de Ordem, para que se verifique se eles têm a necessária qualificação? Direitos adquiridos, por acaso?

Ao mesmo tempo, em vários Estados brasileiros, os dirigentes da OAB se preocupam em garantir um emprego público, sem concurso, aos advogados inscritos em seus quadros. É o caso dos convênios para a assistência judiciária gratuita, que continuam existindo, mesmo depois que a Constituição de 1.988 criou as Defensorias Públicas. Em São Paulo, mesmo após a criação da Defensoria, o que somente aconteceu em janeiro de 2.006, o convênio com o Estado continuou a existir, por exigência da própria OAB. E existem muitos outros convênios, que a OAB assinou com os diversos municípios paulistas.

Recentemente – em 10.07.2007 -, a OAB/SP assinou um novo convênio de assistência judiciária gratuita, no valor de R$284 milhões. (Fonte: Convênio entre OAB-SP e Defensoria beneficia carentes: http://conjur.estadao.com.br/static/text/57434,1). São 47 mil advogados atendendo as pessoas carentes. Por que será que a OAB não exige que o Estado de São Paulo aumente o número de defensores públicos e realize os necessários concursos? Por que será que os dirigentes da OAB/SP fazem tanta questão de manter esse convênio? Mas 47 mil advogados? Não seria um exagero? Quantos defensores públicos seriam necessários para fazer o mesmo serviço, se a Constituição fosse respeitada?

Em Santa Catarina, até hoje, não existe Defensoria Pública. Existe um convênio semelhante ao de São Paulo, ou seja, dinheiro público correndo para os cofres da OAB, que remunera os advogados conveniados. Recentemente, em maio deste ano, a Associação Nacional dos Defensores Públicos da União ajuizou, no Supremo Tribunal Federal, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3.892), contra uma lei complementar e contra um dispositivo da Constituição de Santa Catarina, que permitem a manutenção desse convênio, que é inconstitucional, porque usurpa uma competência que a Constituição atribui exclusivamente à Defensoria Pública. (Fonte: Atribuição de Estado – Defensores não querem que OAB atue na defensoria de SC: http://conjur.estadao.com.br/static/text/55190,1)

Pelos mesmos motivos, poderia ser ajuizada uma ADI, perante o STF, contra o artigo da Lei paulista que criou a Defensoria Pública, mas permitiu a manutenção do convênio. Infelizmente, eu tenho quase certeza de que o STF não daria provimento a essas Ações, alegando certamente que os carentes precisam de assistência judiciária e que os convênios são necessários, enquanto não for possível realizar os concursos públicos!!! Afinal, essa é a alegação dos dirigentes da OAB e de diversos "juristas" que defendem a manutenção do Convênio: em primeiro lugar, o interesse dos pobres, que precisam de advogados!!!

Não se sabe, exatamente, o que será que está impedindo a realização desses concursos públicos, e que talvez a impeça por mais uns vinte anos, talvez. Sabe-se, apenas, que São Paulo já tem 200 mil advogados, que enfrentam dificuldades no mercado de trabalho, devido a algumas circunstâncias da economia brasileira, e que o Exame de Ordem tem reprovado, em São Paulo, aproximadamente, 90% dos bacharéis inscritos, impedindo, dessa maneira, que a situação se agrave ainda mais.


4. A terceira alegação

Vejamos, finalmente, a terceira alegação do Presidente da OAB, que ele reputa como a mais importante, na sua tentativa de provar a absoluta necessidade do Exame de Ordem, dizendo que "a profissão do advogado tem relação direta com a defesa de princípios e regras fundamentais ao ser humano, como a liberdade, a luta pela desigualdade (sic), a conquista de um direito violentado, a supressão de uma esperança de justiça (sic). E se essa profissão não é exercida com uma necessária qualificação, o prejuízo que se causa à cidadania que contrata o serviço é grave é irreversível. Certamente os presídios estariam superlotados de cidadãos que perderam sua liberdade por uma defesa mal feita..."

Neste ponto, o Presidente da OAB está correto, porque o advogado deve ter a necessária qualificação, para não causar ao seu constituinte um prejuízo irreversível. No entanto, para que se saiba se o advogado tem a necessária qualificação, não cabe à OAB aplicar o seu Exame de Ordem, que é inconstitucional, porque não compete à OAB fiscalizar e avaliar o ensino. A solução correta seria um Exame do MEC, que deveria ser feito, conforme dito anteriormente, de maneira gradual, para reprovar, desde logo, nas primeiras séries, os alunos que não tivessem o rendimento mínimo necessário, e para exigir um mínimo de qualidade, dos nossos cursos jurídicos.

Dessa maneira, a OAB não precisaria invadir as atribuições do MEC, avaliando os cursos jurídicos, reprovando os bacharéis já diplomados, e rasgando a Constituição, com a sua insistência em realizar um Exame que não lhe compete, sob a alegação de que o advogado desqualificado poderia causar prejuízos graves e irreversíveis ao cidadão que dependesse de seus serviços.

Não resta dúvida de que o advogado precisa ter um mínimo de qualificação profissional, mas o que dizer, então, do médico desqualificado? Como pode a OAB defender a constitucionalidade do seu Exame, se ele existe apenas para os bacharéis em Direito? E os outros profissionais liberais, não precisam de qualificação? E o princípio constitucional da isonomia, para que serve? Ou será que o médico desqualificado não pode causar prejuízos graves e irreversíveis, mais do que o próprio advogado? Afinal, o advogado desqualificado não costuma matar os seus clientes, em decorrência dos seus erros. Pelo menos por enquanto, porque ainda não temos, no Brasil, a pena de morte.

Quanto aos nossos presídios, já estão superlotados de pobres, que perderam a sua liberdade, não "por uma defesa mal feita", como supõe o Presidente da OAB, mas por absoluta falta de defesa, que talvez possa ser atribuída, em grande parte, às nossas Defensorias, ou às suas deficiências, e aos Convênios e dativos da OAB, que não conseguem movimentar a nossa paquidérmica, corporativa e dispendiosa Justiça, para tornar efetivas as nossas mitológicas garantias constitucionais.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fernando. Exame de Ordem: três respostas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1481, 22 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10178. Acesso em: 19 abr. 2024.