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O crime de financiar o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro

O crime de financiar o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro

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Desde a entrada em vigor da Lei n.º 11.343, de 23/8/2006, que instituiu nova sistemática repressiva das ilicitudes envolvendo substâncias estupefacientes e revogou a Lei n.º 6.368/76 e a Lei n.º 10.409/02, deixou de ser crime de lavagem de dinheiro ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores destinados a financiar ou custear o tráfico de drogas.

A nova lei veio resolver a confusão gerada pelo veto de 35 artigos da Lei n.º 10.409/02, que foi aprovada para substituir a Lei n.º 6.368/76. De fato, o veto ao Capítulo III (arts. 14 a 26) da Lei n.º 10.409/02, que descrevia os crimes, manteve em vigor os arts. 12, 13 e 14 da Lei n.º 6.368/76, que definiam os delitos referentes a tóxicos. Conseqüentemente, apesar da promulgação da Lei n.º 10.409/02, esses artigos continuaram a definir as infrações antecedentes ao crime de lavagem de dinheiro, para os efeitos do inciso I do art. 1º da Lei n.º 9.613/98 [01].

Destaque-se que a Lei n.º 11.343/06 substituiu a expressão "prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica" da ementa e do art. 1º da Lei n.º 6.368/76, pela expressão "repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes." O parágrafo único do art. 1º da Lei n.º 11.343/06 define claramente o conceito de "drogas". [02] Têm-se, a partir de agora, um conceito legal de "drogas" que não ficou restrito à categoria dos entorpecentes, nem das substâncias causadoras de dependência física ou psíquica. Drogas serão todas as substâncias ou produtos com potencial de causar dependência, com a condição de que estejam relacionadas em dispositivo legal específico ou estejam relacionados pelo Poder Executivo como tal.

A Lei n.º 10.409/02 já trazia essa alteração terminológica (de "substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica" para "drogas"). Todavia, como todo o Capítulo III da Lei n.º 10.409/02, que tratava dos crimes e das penas, foi vetado, permaneceu em vigor o texto original da Lei n.º 6.368/76, o que impediu a alteração do conceito legal.

A mudança foi importante para adequar a legislação nacional à nomenclatura que se consolidou mundialmente. Com efeito, o termo "drogas" é de uso corrente na Organização Mundial de Saúde (OMS) e no meio acadêmico-científico. Além disso, a Convenção Única sobre Entorpecente da ONU, promulgada em 1961, e a Convenção de Viena contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988, ao se referirem às substâncias tóxicas ou entorpecentes utilizam simplesmente o termo drug (droga). Destaque-se que a Convenção de Viena é o embrião da base jurídica para a cooperação no combate à lavagem de dinheiro.

A lavagem de dinheiro é delito acessório, ou seja, pressupõe a existência de um crime anterior como antecedente lógico incontornável de sua ocorrência, nos moldes do que ocorre com a receptação. Juana Del Carpio Delgado escreve que no caso do crime de lavagem de dinheiro é necessário o cometimento de um crime antecedente como pressuposto essencial da tipificação. Es en éste (crime antecedente) en el que va a tener origen el objeto material sobre el que va recaer la conducta típica respectiva. [03]

Isidoro Blanco Cordero ensina ser majoritária a corrente doutrinária que entende que o fato prévio (crime antecedente) é elemento normativo do tipo "branqueamento de capitais". Por outro lado, corrente minoritária desloca o delito prévio da condição de elemento normativo do tipo para condição objetiva de punibilidade. Citando a doutrina alemã, Blanco Cordero ensina que es mayoritaria la opinión de que la exigencia del delito previo constituye un auténtico elemento del tipo (echtest Tatbestandmerkmal). Según estos autores, es un elemento que ha de probarse ante el tribunal competente para juzgar el ecubrimiento. [04] Acrescenta, ainda, Blanco Cordero que a união ou vinculação do delito de lavagem de dinheiro ao crime antecedente se expressa mediante o princípio da acessoriedade. Para a configuração do injusto contido no crime de "branqueamento de capitais" exige-se, por suas características ontológicas, o delito prévio. La cuestión principal en materia de accesoriedad radica en determinar qué elementos del concepto dogmático de delito han de concurrir en el hecho previo para que el delito de blanqueo tenga relevancia penal. [05]

Todavia, essa faceta de acessoriedade não retira a característica autônoma da lavagem de dinheiro em relação aos crimes que obrigatoriamente a antecedem. Conforme o art. 2º da Lei n. 9.613/98, o processo e julgamento "independem do processo e julgamento dos crimes antecedentes referidos no artigo anterior, ainda que praticados em outro país". Dessa forma, existirá o delito de lavagem de dinheiro ainda que ignorada a autoria daqueles crimes ou inimputáveis seus autores ou mesmo absolvido determinado acusado por falta de provas. Considerando tratar-se de crime acessório, o pressuposto objetivo mínimo de imputação exige certeza razoável da existência do crime anterior do qual, quer mediata quer imediatamente, originou-se o bem que passou pelo processo de "lavagem".

Com a alteração legislativa de 2006, os tipos penais antecedentes à lavagem de dinheiro relacionados ao tráfico de drogas passaram a ser descritos pelos artigos 33 e 34 da Lei n.º 11.343/06. [06]

Interessante observar que a nova lei criou um tipo penal específico para a conduta de financiar ou custear os crimes previstos nos artigos 33 e 34 da Lei n.º 11.343/06. Anteriormente, o ato de financiar ou custear o tráfico encontrava-se englobado no disposto no inciso III do § 2º do art. 12 da Lei n.º 6.368/76 (contribuir de qualquer forma para incentivar ou difundir o tráfico).

Ressalte-se que a redação do art. 14 do Projeto que deu origem à Lei n.° 10.409/02, havia acrescentado os verbos "financiar" e "traficar ilicitamente" ao tipo do art. 12 da Lei n.º 6.368/76, para ampliar as condutas sujeitas à imputação penal. Em outras palavras, a conduta de financiar estava contida no caput do art. 14 e era equivalente ao ato de "traficar". Na Mensagem n.º 25, de 11/1/02, o Presidente da República justificou a necessidade do veto pelo risco de provocar profunda instabilidade no ordenamento jurídico, vez que a alteração poderia promover a "evasão de traficantes das prisões", pois o verbo "traficar" acrescentado pelo projeto, e que não aparece na lei vigente, poderia concentrar sobre si, em caráter exclusivo, a aplicação da Lei n° 8.072/90 (Crimes Hediondos). [07] Note-se que o veto presidencial ao art. 14 da Lei n.º 10.409/02, não teve a intenção de evitar que o financiamento ou o custeio do tráfico de drogas fosse criminalizado, pois normalmente aquele que dá suporte econômico–financeiro a qualquer atividade ilícita exerce função primordial para sua viabilidade.

O novo tipo penal do art. 36 da Lei n.º 11.343/06, tem por objetivo atingir aqueles que fomentam e dirigem com poderio financeiro as organizações criminosas. [08] A mudança, no entanto, trouxe um descompasso de ordem constitucional entre a lei de combate às drogas e a lei de repressão à lavagem de dinheiro. De fato, após a edição da Lei n.º 11.403/06, os verbos "financiar" ou "custear" constituem tipo autônomo, ou seja, trata-se de novo crime.

Considerando a opção do legislador brasileiro em listar em numerus clausus o rol do art. 1º da Lei n.º 9.613/93, em homenagem ao inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal e o art. 1º do Código Penal, os quais dispõem que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal", e ainda que a interpretação extensiva e a analogia são proibidas em direito penal, não se pode considerar o crime previsto no art. 36 da Lei n.º 11.403/06, como delito antecedente ao crime de lavagem de dinheiro.

Esse problema só poderá ser solucionado com a alteração do art. 1° da Lei n.° 9.613/93 para incluir o crime de "financiar" ou "custear" o tráfico (art. 36 da Lei n.° 11.343/06).


Notas

01Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:

I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;

02Parágrafo único.  Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.

03DELGADO, Juana Del Carpio. El delito de blanqueo en el nuevo Código Penal. Valência: Tirant lo Blanch, 1997, p. 117.

04SANCHEZ, Carlos Aránguez. El delito de blanqueo de capitales. Madrid: Marcial Pons, 2000, p. 170.

05CORDERO, Isidoro Blanco. El delito de blanqueo de capitales. Pamplona: Editorial Aranzadi, SA, 1997, p. 117.

06Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

§ 1º  Nas mesmas penas incorre quem: I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;

(...)

Art. 34.  Fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e pagamento de 1.200 (mil e duzentos) a 2.000 (dois mil) dias-multa.

07Capítulo III – Dos Crimes e das Penas (art. 14 ao art. 26): Art. 14. Importar, exportar, remeter, traficar ilicitamente, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, financiar, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar a consumo e oferecer, ainda que gratuitamente, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, sem autorização do órgão competente ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena: reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem: I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, financia, vende, expõe à venda ou oferece, ainda que gratuitamente, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de produto, substância ou droga ilícita ou que cause dependência física ou psíquica, sem autorização do órgão competente ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar; (grifos nossos)

(...)

Razões do veto

(...)

Quanto ao artigo 14 do projeto, o primeiro do capítulo em comento, o tipo em questão já é contemplado pelo art. 12 da Lei nº 6.368/76, com a mesma cominação de pena. No projeto, todavia, dois verbos somaram-se aos verbos do tipo vigente: "financiar" e "traficar ilicitamente". Conquanto representassem, em tese, avanços legislativos, contêm o risco inadmissível, ainda que remoto, de provocar profunda instabilidade no ordenamento jurídico.

Veicula-se tese no meio jurídico pela qual a redação proposta pelo projeto no art. 14 promoveria uma "evasão de traficantes das prisões". Explique-se. O verbo "traficar" acrescentado pelo projeto, e que não aparece na lei vigente, poderia concentrar sobre si, em caráter exclusivo, a aplicação da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Crimes Hediondos), que impõe o cumprimento integral em regime fechado da pena para o crime de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. Em decorrência disso, apenados condenados por decisão judicial que contenha referência expressa a verbos como "produzir", "ter em depósito", por exemplo, não estariam submetidos à norma especial sobre o regime. Hediondo seria, por essa interpretação, apenas o verbo novo, o "traficar". Assim, por causa do princípio da irretroatividade da lei penal mais grave, todos indivíduos condenados e processados pelo tipo do art.12 da Lei nº 6.368/76, poderiam estar, automaticamente, descobertos pela Lei nº 8.072/90.

Conquanto seja tese de duvidosa plausibilidade, divulgada "ad terrorem", não é do interesse público que se corra risco algum a respeito do tema.

Em vista disso, somado ao fato de que em vários artigos há remissão expressa ao art. 14, a permanência dos demais artigos do Capítulo III acarretaria difícil e temerária conjugação com os tipos previstos na Lei nº 6.368/76. Isso porque a interpretação extensiva e a analogia são proibidas em direito penal.

08Art. 36. Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 20 (vinte) anos, e pagamento de 1.500 (mil e quinhentos) a 4.000 (quatro mil) dias-multa.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Alexis Sales de Paula e. O crime de financiar o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1505, 15 ago. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10277. Acesso em: 19 abr. 2024.