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A Constituição de papel e a Constituição real

A Constituição de papel e a Constituição real

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Este breve estudo trata dos principais aspectos encontrados nas teorias que abordam o contraponto entre o que se compreende por constituição real e constituição de papel, terminologia introduzida no estudo constitucional por Ferdinand Lassalle.

Acerca da definição de Constituição, García Pelayo [01] reconhece ser um dos termos mais "polifacéticos" encontrados na Política e no Direito. Explica Hertha Urquiza Baracho que, inspirado nos ideais liberais burgueses da unidade e invariabilidade da razão, que alçaram posição proeminente no século XVIII, ganhou corpo o sentido ideal de Constituição, refletido no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ao estatuir que "toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos, nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição". Segundo este conceito, o Estado, para que fosse caracterizado como "constitucional", deveria adotar regramento escrito (1), garantidor de liberdades (2) e limitador do poder mediante a divisão deste (3). Do contrário, estaria elencado como "Estado não constitucional". O sentido real da Constituição identifica-se mesmo com a noção etimológica da palavra constituição, estando representada pelos usos, costumes e tradições relativos ao exercício do poder político e instituições do Estado.

Em verdade, temos dito que tal diferenciação aparece mais nitidamente trabalhada nos estudos de Lassalle, situado entre os representantes do sociologismo constitucional, conforme assim o qualifica José Afonso da Silva [02]. É que, segundo sua concepção, a constituição real consiste no conjunto de fatores reais de poder que regem no país – o poder militar, o poder social, o poder econômico e o poder intelectual [03]. Tais fatores resultam na formação das leis e instituições jurídicas do Estado que, documentados, adquirem o status de Constituição jurídica, sendo nada mais que o pedaço de papel (Stück Papier) [04].

O valor e a durabilidade da Constituição de papel depende da sua congruência com os fatores sociais subjacentes, ou seja, com a Constituição real. Do contrário, esta fará sucumbir aquela, resultando no seu descumprimento.

É corolário desta teoria a noção de que os problemas constitucionais não consistem em problemas de direito, mas de poder, estando assim ligados à política. Não se deve pensar, porém, que esta teoria tenha apregoado que o poder devesse ter prevalência sobre o direito, pois, como bem observa José Afonso da Silva [05], a teoria de Lassalle não foi desenvolvida no plano do dever-ser, mas para dar conta do que verdadeiramente é.

Tal concepção, no pensar de Konrad Hesse, implica a negação da Constituição jurídica e do valor do Direito Constitucional enquanto ciência jurídica normativa, colocando-a mais próxima de outras ciências do ser, como a Sociologia e a Ciência Política, assim explicando:

"Como toda ciência jurídica, o Direito Constitucional é ciência normativa; diferencia-se, assim, da sociologia e da Ciência Política enquanto ciências da realidade. Se as normas constitucionais nada mais expressam do que relações fáticas altamente mutáveis, não há como deixar de reconhecer que a ciência da Constituição jurídica constitui uma ciência jurídica na ausência direito, não lhe restando outra função senão a de constatar e comentar os fatos criados pela Realpolitik" [06]

As idéias apresentadas por Lassalle se afiguram como verdadeiramente sedutoras, sendo de certo modo confirmadas pela experiência histórica. É o que bem demonstra José Afonso da Silva ao comentar o estudo empreendido por Charles A. Beard em 1913, que apresentou uma interpretação econômica da Constituição dos Estados Unidos, demonstrando que esta não se trata de uma peça de legislação abstrata, mas resultante de ponderações pertinentes aos direitos de propriedade de determinado grupo de âmbito nacional, embora claramente não formado "por todo o povo". [07]

Não obstante isso, Hesse perquire acerca da força normativa da Constituição, ou seja, se, ao lado dos fatores reais de poder advindos das relações fáticas, também existiria uma força determinante advinda da Constituição.

Na busca de tal resposta, parte-se do princípio de que a ordenação jurídica e a realidade devem ser consideradas como mutuamente condicionadas, uma vez que a análise isolada da normatividade é parcial, por se resolver apenas no âmbito da vigência ou não da norma, enquanto a análise isolada da realidade política e social despreza o significado da ordenação jurídica, como afirma haver ocorrido com o positivismo jurídico de Paul Laband e Jellinek, e com o positivismo sociológico de Carl Schmitt. É que a pretensão de eficácia (Geltungsanpruch) de uma norma está ligada necessariamente às condições naturais, técnicas, econômicas e sociais, bem como o que chama de substrato espiritual de determinado povo – que vem a ser os valores que influenciam a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas. Mas, pela Geltungsanpruch, a Constituição visa a imprimir ordem e conformação à realidade política e social, não podendo ser resumida a um simples reflexo dessa realidade. Assim conclui tal idéia:

"A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferenciadas: não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas" [08]

Mais adiante, partindo das idéias de Wilhelm Humboldt, Hesse alcança a conclusão de que a força normativa da Constituição, que não se resume a uma adaptação inteligente da realidade, converte-se em força ativa no momento em que as tarefas por ela impostas se fazem presentes na consciência geral.

Como requisitos à otimização da Constituição como força normativa, Hesse explica que se encontra ligado à sua correspondência em relação aos elementos sociais, políticos, econômicos e ao estado espiritual (geistige Situation) do presente. Para que melhor possa se adaptar às mudanças nesses fatores, deve-se limitar a alguns poucos princípios fundamentais. Não deve assentar-se, também, em uma estrutura unilateral.

Para essa otimização, impende assegurar o seu cumprimento, mesmo quando implicar o sacrifício de determinado interesse. Exerce efeito contrário, arrefecendo a força normativa da Constituição as freqüentes reformas, comprometendo a sua estabilidade. Ressalte-se o importante papel reservado à interpretação para a concretização da força normativa da Constituição: estando a eficácia desta condicionada aos fatos concretos da vida, a interpretação também há de ter em mente estas condicionantes. De tal modo, a mudança nas relações fáticas deve provocar mudanças na interpretação constitucional, embora esteja esta limitada ao sentido da proposição jurídica, não devendo a sua finalidade ser sacrificada em virtude de uma mudança de situação.

Pensamos que a problemática da constituição real e da constituição de papel liga-se à diferenciação entre constituição material e constituição formal. Segundo José Afonso da Silva, constituição material pode ser compreendida em duas acepções: uma ampla, identificada com a organização do Estado;

"significa a situação total da unidade e ordenação política, ou a concreta situação de conjunto da unidade política e ordenação social de determinado Estado, para usarmos expressões de Carl Schmitt." [09]

Na acepção restrita, constituição material significa as normas constitucionais escritas que regulam a estrutura do estado, organização de seus órgãos e direitos fundamentais.

Em sentido formal, é um documento escrito elaborado pelo Poder Constituinte apenas modificável a partir de formalidades especiais.

Por fim, há que se dizer que todo este debate, seja acerca dos limites da constituição real e de papel, seja acerca da constituição material e formal, encontra-se ligado às concepções de Estado e de Constituição e, em última análise, entre o ser (Sein) e o dever-ser (Sollen). Este debate permeou toda trajetória da afirmação do Direito Constitucional como disciplina autônoma. Embora se vislumbre a origem da concepção da identificação da Constituição com o regime político-social do país já em Hegel [10], é o que se vê em Lassalle, estabelecendo um profícuo diálogo com a concepção que circunscreve a Constituição ao seu texto, defendida pelo neokantismo e pelo normativismo positivista.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BARACHO, Hertha Urquiza. Teoria da Constituição. Revista Prima Facie, João Pessoa, ano 2, n. 3, jul./dez. 2003.

BERCOVICI, Gilberto. Constituição política: uma relação difícil. In: Lua Nova, n. 61, São Paulo, CEDEC, 2004.

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1991.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, São Paulo, Malheiros, 2004.


Notas

01 PELAYO, Manuel García. Constitución y derecho constitucional. Evolución y crisis de ambos conceptos. Revista de estudios políticos, Madrid, n. 20, 1948, in BARACHO, Hertha Urquiza. Teoria da Constituição. Revista Prima Facie, João Pessoa, ano 2, n. 3, jul./dez. 2003.

02 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, São Paulo, Malheiros, 2004, p. 23.

03 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1991.

04 Iden, ibidem.

05 SILVA, José Afonso da. Op. cit, 2004, p. 24.

06 HESSE, Konrad. Op. cit., 1991.

07 BEARD, Charles A. Uma interpretación econômica de la Constitución de los Estados Unidos, Buenos Aires, 1953, obra citada por SILVA, José Afonso da. Op. cit., 2004, p. 25.

08 HESSE, Konrad. Op. cit., 1991.

09 SILVA, José Afonso da. Op. cit, 2004, p. 37.

10 BERCOVICI, Gilberto. Constituição política: uma relação difícil. In: Lua Nova, n. 64, São Paulo, 2004, p. 7.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Raimilan Seneterri da Silva. A Constituição de papel e a Constituição real. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1544, 23 set. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10444. Acesso em: 18 abr. 2024.