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Dogmática penal: lições metodológicas de um direito contraditório

Dogmática penal: lições metodológicas de um direito contraditório

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A pretexto de modernidade, confinam o dolo no tipo, depois de amputado; emagrecem a culpabilidade; exorcizam o dolo específico; canonizam o tipo subjetivo, e assim por diante. No entanto, nada muda.

Sumário: 1. Introdução 2. Tipicidade 3. Revisão metodológica 4. Contradições sociais. 5. Em síntese. 6. Direito contraditório. 7. Código penal vigente 8. Conteúdo ideológico 9. Comportamento da sociedade 10. Participação do intérprete 11. Lições da contradição.


1. Introdução

Tipicidade, ilicitude, culpabilidade: eis as palavras mágicas de que se serve habitualmente o penalista na apresentação da estrutura jurídica do crime, do ponto de vista analítico-formal. Quer dizer, na tarefa de análise do delito, ele acaba descobrindo os elementos que existiriam sempre enquanto forma, idéia ou essência, independentemente de conteúdo ético-social.

Essa maneira de encarar o crime, nada obstante, só encontra justificativa como simples processo de comunicação do pensamento. Ligada obviamente a unilateral proposição teórica, de prévia dogmatização de conceitos, não tem o poder de antepor-se à realidade que procura desvendar. É que o crime, como realidade jurídica, não se revela por métodos puramente racionais, de lógica abstrata. Pelo contrário, se forma e se concretiza historicamente, no contexto das interações humanas. Exige assim de seu intérprete uma certa submissão intelectual em termos de constatação empírica, objetiva, inconfundível com eventual juízo de valor que vier a ser adicionado.

Examinemos, como exemplo, a própria tipicidade. Antes, contudo, convém esclarecer que, a par de acréscimos e adaptações, estou reagrupando matéria e texto já ventilados em Curso crítico de direito penal (Florianópolis: Obra jurídica, 1998).


2. Tipicidade

O que é tipicidade? Inútil procurar a resposta nos dicionários especializados, nos livros de doutrina, nos repertórios de jurisprudência. Ninguém sabe o que é tipicidade. E por quê? Porque tipicidade, à semelhança de tantas outras, não passa de expressão lingüística destituída de significado intrínseco. O significado de uma palavra, se for o caso, nasce com quem a pronuncia em primeiro lugar. E muda no minuto seguinte, por ato de vontade do interlocutor. Nada impede, é claro, que surja um certo consenso em torno dos enunciados, detalhe que apenas reforça a tese da arbitrariedade dos conceitos, significados e definições.

Nem todos pensam assim. Impressionados com a sabedoria ítalo-germânico-luso-espanhola dos novos tempos, penalistas brasileiros (latino-americanos, melhor dizendo) fazem coro à propalada cientificidade de novos conceitos, aleatoriamente redimensionados e redistribuídos na estrutura jurídica do crime.

Impõe-se uma visão crítica. A verdade é que, no fundo, qualquer pessoa pode dar ao tipo e à tipicidade o sentido e alcance que lhe convier, nas circunstâncias do caso concreto ou hipotético. E como o discurso da moda, bastante respeitável, se diversifica em princípios que traduzem na área jurídico-punitiva o mínimo possível de intervenção do Estado, tende-se a rever e redimensionar cada vez mais o significado técnico das expressões normativas. Contudo, sem nenhuma garantia de autenticidade original, no estilo platônico.

Ora, o tipo é exatamente aquilo que eu quero que ele seja, sobretudo se disponho de força e prestígio para impor meu ponto de vista. Não se necessita de neurônios privilegiados para se notar a diferença entre a ponte Hercílio Luz, em Florianópolis, e o cartão-postal que a reproduz. Mais ainda: para se perceber a diferença entre ela, como objeto real, concreto, construído pelo homem, e a palavra ponte, indicativa de obra de ligação entre margens opostas de algum curso de água ou qualquer outra superfície líquida, como se lê no Aurélio (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 1604); ou de construção destinada a pôr em comunicação dois lugares separados por um obstáculo (rio, vale, fosso, trincheira, estrada, via férrea, etc.), consoante o Caldas Aulete (Rio de Janeiro: Delta, 1964, p.3197).

It''s a bridge, diria um inglês. Es una puente, exclamaria o espanhol. Quem pensaria em contestá-los?

Bridge, puente, ponte. Entretanto, em direito penal, no estudo e dissecação da estrutura do crime, os especialistas continuam agindo como se estivessem diante de algo ainda mais sólido e, é claro, muito mais nítido e consistente. Parecem sugerir que a dogmática está sempre "descobrindo" algo novo e, portanto, evolui, tal como evoluem, por exemplo, a medicina, a astronomia, a física e a genética.

Só que o tipo, um dos componentes do crime, já teve e vai continuar tendo o tamanho, peso, cor e consistência que lhe quiserem conferir, pelo simples motivo de que ele não existe no mundo real, fenomênico, mas no plano inventivo de toda e qualquer mente humana.

O que afirmo está documentado. Vários doutrinadores já se deram ao trabalho de apontar, em seqüência, inclusive em termos de conteúdo, as múltiplas e disparatadas facetas desse famoso tipo germânico (Tatbestand). Com a ressalva, por evidente, de que a última, quase sempre a última, seria a verdadeira, porque compatível com os ventos da modernidade.

Vale o raciocínio (crítico) para qualquer expressão, palavra, categoria ou elemento de caráter terminológico: dolo, culpa, ilicitude, perigo, dano, culpabilidade, reprovabilidade, censurabilidade, erro de tipo, erro de proibição etc. O legislador, na prática, desde que conveniente, passaria a ocupar um plano secundário.

Além disso, prevaleceriam os princípios, de validade universal. Com eles vou moldando o crime não segundo meus gostos e preferências, e sim, porque os vejo com clareza e objetividade no plano ontológico, ou no plano científico. Os princípios da insignificância, da lesividade, da adequação social, da imputação objetiva, do risco permitido, da política criminal, e tantos outros, me livrariam de qualquer responsabilidade opinativa ou decisória. Quem quiser que acredite...


3. Revisão metodológica

Há que deslocar-se, de modo radical, no plano metodológico, o centro de atenção do penalista. Não lhe compete, por impossível, arrancar das palavras sentidos ontológicos que, no fundo, lhes são fornecidos pela vontade final de quem se encontra eventualmente no exercício do poder de ação, de decisão. Não lhe cabe esboçar teorias dogmáticas substitutivas da realidade jurídica desagradável a seus olhos. Ao reverso, cumpre-lhe tomar essa realidade como objeto de suas reflexões e, em conseqüência, alargar seus próprios horizontes de conhecimento na diversificação e alternância de enfoques explicativos dessa mesma realidade. A começar, por exemplo, pela realidade histórica do sistema legal em vigor.

Trata-se de um bom começo, diante de seu indiscutível prestígio ideológico. Além disso, elimina-se o insolúvel problema do significado das palavras. Estas, agora, fariam parte de um sistema empírico de significações arbitrárias, mas identificáveis historicamente, no tempo e no espaço. Com efeito, o legislador, e mais ninguém, seria o dono de seu próprio sistema. Tipo, dolo, pena, prescrição, decadência, atenuantes, agravantes, primariedade, livramento condicional: como as demais, são expressões que se fazem acompanhar, no contexto legislado, de sentido próprio, a ser descoberto pelo intérprete. Até mesmo o conceito de ação, na teoria do crime, se resolveria nesse plano meramente normativo, em contraposição aos que buscam ontologias nos confins da Via Láctea, como se passa ainda hoje com os incautos propagadores da teoria da ação finalista.

Sem dúvida, portanto, um bom começo. Mas começo provisório. O sistema legal, enquanto projeto de direito, carece efetivamente de operadores que, de alguma forma, jamais se afastam de si mesmos, de sua pessoal e insubstituível capacidade de compreensão e valoração dos fenômenos.

Vejamos, por exemplo, a legítima defesa. Percebe-se com facilidade que o legislador não a definiu. Fornece-lhe apenas contornos gerais. Em que consiste o "uso moderado dos meios necessários" à repulsa? O que é "agressão"? O que é agressão "injusta"? Agressão "atual"? Agressão "iminente"? Ainda que outros dispositivos legais possam ser chamados à colação, o conteúdo da legítima defesa acaba transferido, em última instância, para o grupo social. Este, mesmo que não o saiba, se faz legislador. Legislador efetivo, real, insofismável, na medida em que forja ou aceita as ideologias valorativas subjacentes à sua própria atuação.

Legislador, aliás, em todas as outras áreas do direito penal, comezinhas ou relevantes: estado de necessidade, cumprimento de dever, exercício de direito, coação irresistível, obediência hierárquica, imprudência, negligência, imperícia, concurso material e concurso formal de crimes, crime continuado, consumação, tentativa, arrependimento eficaz etc. Um legislador, bem se vê, tantas vezes incongruente: através de seus intérpretes – magistrados e demais operadores do direito, no mais amplo sentido da palavra – ele aciona, ou não, os dispositivos legais e constitucionais em vigor; facilita ou imobiliza a conduta administrativa, fornecendo ou sonegando informações; condena ou absolve os acusados, sem embargo da identidade das situações sob julgamento; aceita ou renega, dentro de suas possibilidades, direitos que sempre constrói ou reconstrói em seu próprio gesto de opção mais ou menos consciente e refletida.

Daí dizer-se que o direito, em seu todo, ainda não se libertou do sim e do não configuradores, por sinal, de sua essência.


4. Contradições sociais

No estágio atual da civilização ainda permanecem as contradições sociais no comando da juridicidade/injuridicidade das ações humanas. E a verdade é que lei, ideologia e intérprete se sobrepõem dialeticamente à unilateralidade das visões dogmáticas, não raro inconsistentes e reacionárias.

Paradoxalmente, porém, o crime não está na lei, nem no grupo social, nem no magistrado. O crime, do ponto de vista jurídico, apenas implica a interação desses agentes e fatores para uma eventual escolha ou opção, em função do grau de liberdade – física e psicológica – reciprocamente desfrutado. Liberdade que, à sombra exatamente dessas contradições, conduz ao "disparate" do crime/não-crime, dialeticamente nivelados. O delito e a pena se inserem no contexto bem mais amplo das lutas, aspirações e interesses humanos "concretores" do direito de cada dia. Leis e ideologias, por isso mesmo, na aparência de suportes retóricos, podem apenas refletir ou esconder a impositividade factual, mas juriferante, da vontade do mais forte.

Emergem assim do exame da realidade jurídico-penal fatores outros, e preponderantes, que não aqueles com que se preocupam ainda hoje penalistas de escol. Lei, ideologia, intérprete; ação, vontade, liberdade: estas palavras contêm mais verdades que as invencionices teóricas de dogmatas ensimesmados, inconscientemente, na priorização do supérfluo.

De nada vale dissecar o crime, em sua anatomia, através de artifícios analíticos que terminam ganhando foros de cientificidade pueril, ilógica, inconseqüente. Ciência é conhecimento. Conhecimento de alguma coisa necessariamente diversa dos instrumentos racionais e operacionais utilizados no processo. Assim, quando se redefine o crime (ou a pena) à custa da inspiração divina, dos ditames da reta razão ou, como ocorre atualmente, da verdade ontológica de sua estrutura, se desvia o curso dos acontecimentos à maneira dos mágicos de fraque e cartola.

Consultem-se os compêndios de direito penal. A pretexto de modernidade, confinam o dolo no tipo, depois de previamente amputado; emagrecem a culpabilidade, ou lhe cassam os direitos; exorcizam o dolo específico; canonizam o tipo subjetivo, e assim por diante. No entanto, nada muda. O crime jamais dependeu, para subsistir juridicamente, da elegância ou deselegância "técnica" com que o enxergam os penalistas de convicções dogmáticas apartadas da realidade histórico-social.


5. Em síntese

Lei, ideologia e intérprete, interligados dialeticamente, é que determinam, como fontes primárias, a juridicidade das ações humanas. Por outro lado, se o produto dessa dinâmica depende, de certo modo, das motivações valorativas e do grau de liberdade dessas fontes – vontade e liberdade de ação – é claro que o direito penal, enquanto ciência, necessita do sopro renovador de metodologia mais abrangente compatível com seu objeto e, pois, com sua revigorada visão teórica.

Sendo assim, alguma reconstrução há que ser feita no âmbito de ensino do direito penal, ou seja, no âmbito da respectiva dogmática.

Pois bem. A par das observações anteriores, de cunho metodológico, quais as lições que o direito penal pode aportar aos outros ramos do direito? Eis o assunto dos próximos itens.


6. Direito contraditório.

A essência contraditória do direito se prende à necessidade insofismável da figura do intérprete no processo de identificação e desdobramento lógico das regras de convivência social. Não importa se o próprio sistema normativo procura amenizar o problema, na hipótese de conflito, através do recurso à uniformização administrativa ou jurisprudencial, em nível superior. Simples possibilidades teóricas não correspondem à realidade juriferante das relações concretas existentes.

O direito, como fenômeno histórico, se elabora circunstancialmente a partir das predisposições emotivas e racionais de vários agentes e fatores em confronto, nas condições materiais disponíveis. Não basta, portanto, a vontade da norma, reputada oficial, se a vontade do intérprete se faz prevalecer no contexto contraditório de outras normas de conduta, igualmente coercitivas. A contradição, aliás, não desfigura o direito: em verdade o revela, ao deixar transparecer-lhe o caráter efêmero e transitório, confirmado por seus contrastes e revigorado por suas transformações.

Vejamos o tema em detalhe, na área do direito penal.


7. Código penal vigente

Não precisamos atravessar a fronteira e comparar legislações para percebermos as inevitáveis contradições do direito positivo. O próprio Código Penal brasileiro pode e deve ser visto como o agasalho natural de divergências interpretativas, eis que revestido de sedutora mensagem polivalente. Redigido em linguagem natural, que o torna desde logo necessariamente vago e impreciso, esmera-se ainda, em sua clássica divisão em duas Partes, Geral e Especial, em fornecer excelente subsídio retórico para o jurista preocupado em transferir responsabilidades, à maneira de Pilatos.

É que em sua Parte Geral, destinada à explicitação de princípios genéricos da estrutura jurídica do crime e da pena, o Código se especializa em dizer "não", direta ou indiretamente, através da sistematização, por exemplo, do concurso de pessoas, da tentativa, das dirimentes, das justificativas ou excludentes de crime etc. Também diz "não" na Parte Especial, em face das peculiaridades de certas infrações, mas nesta última se esmera em dizer "sim", bastante "sim" na longa série de crimes que vai compondo em consonância com o princípio da reserva legal.

Em resumo, ainda que grosseiramente, teríamos de um lado as "tábuas da lei" de caráter permissivo, correspondentes à ausência de crime, e de outro as "tábuas da lei" de natureza proibitiva, atinentes ao "sim" da criminosidade tipificada.

É claro que o dogmata – ou dogmático – tradicional, que até se entusiasma com o "progresso" da sofisticação legislativa e da elaboração doutrinária, não se assusta facilmente com o problema, pois logo se adianta em esclarecer que as contradições são aparentes, devendo ser resolvidas à custa de paciente trabalho de pesquisa do "espírito" da lei. Só que as várias técnicas de que se utiliza, em sua diversidade igualmente contraditória (lei, analogia, eqüidade, bom senso, política criminal etc.), desmentem o esforço de depuração do sistema legislado e deixam entrever, tantas vezes, a interferência abusiva de um outro sistema, o do próprio dogmata.

Os que têm visão crítica se mostram mais realistas: o intérprete, de alguma forma, é sempre partícipe do direito, já que depende de si mesmo, e de mais ninguém, para o modo e maneira de percepção das regras normativas que supõe – ou finge supor– encontrar previamente delimitadas. De seu gesto (um gesto, em verdade, compartilhado) é que nasce o direito, mesmo que em desacordo com o direito por outrem prefigurado.


8. Conteúdo ideológico

Daí a importância, agora enfatizada, do conteúdo ideológico da regra jurídica em disputa, na solução do dilema. Quer dizer, não basta a existência de algum texto de lei em abono da tese defendida, ou de algum argumento de peso de caráter hermenêutico ou doutrinário, porque se pode invocar diverso texto de lei, ou o "espírito" do sistema, ou qualquer outro argumento teórico de valor mais ou menos equivalente. Ocorre ainda que esse conteúdo ideológico pode ser compartilhado pelo grupo social, ou segmento desse grupo, que o segrega e reconstrói de modo incipiente e difuso, sem que se lhe negue, no entanto, ao grupo social, visível parcela de poder juriferante. Como lembra José Luiz Quadros de Magalhães ("Constitucionalismo e interpretação: um certo olhar histórico". Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1523, 2 set 2007), a sociedade muda por meio das contradições e conflitos internos e externos, a implicar mudança de valores que interferem nos próprios conceitos das palavras, dos significantes, aos quais, portanto, "passamos a atribuir novos significados".

O grupo social, mesmo que não o saiba, legisla concretamente através de vários atores: réu, vítima, testemunha, perito, autoridade pública ou privada, delegado de polícia, promotor de justiça, advogado, juiz de direito, membro do tribunal do júri e tantos outros. Constituição e Código Penal, destarte, acabam carecendo da contribuição valorativa, relativamente discricionária, de cada partícipe ou protagonista do enredo sócio-jurídico.

Assim, parece insuficiente a constatação de lesão corporal praticada sobre outrem para se afirmar de sua criminosidade, via Parte Especial; ou de sua legalidade, por intermédio da Parte Geral. É pouco, por exemplo, notar que o citado Código, em seu art. 129, § 2o, inciso III, considera crimes (lesão corporal gravíssima) a laqueadura e a vasectomia, haja vista a natureza do bem jurídico atingido e a correspondente irrelevância do consentimento da vítima. É que outros penalistas tenderiam neste passo a aceitar a juridicidade do consentimento e, em decorrência, encontrar abrigo retórico no próprio corpo do sistema, que admite a disponibilidade do bem jurídico e afirma não haver crime se o agente pratica o fato no exercício regular de direito.

Curiosamente, em ambas as respostas a Lei (Código Penal) serviria de base para o "sim" e o "não" que, no fundo, não lhe podem ser creditados, considerando que subsiste incólume a liberdade de opção de um operador jurídico ideologicamente engajado na solução acaso preconizada. Um engajamento, é certo, atraído ou explicado pela reciprocidade normativa entre lei e intérprete, de um lado, ou intérprete e grupo social, de outro.

Existe, atualmente, legislação específica sobre o tema (Lei n.º 9.263, de 12 de janeiro de 1996). Mas a antiga e persistente impunidade da aludida prática, juntamente com tantas outras, constitui a prova definitiva de que a sociedade legisla em termos de conteúdo e impõe a sua vontade, através de seus agentes, na reinterpretação de um sistema que é imaginado como meio e, não, como fim. A sociedade é a fonte última e a razão de ser de todo e qualquer sistema jurídico-normativo.

De qualquer forma, o recurso às tradicionais técnicas dogmáticas de interpretação e aplicação do direito se revela cada vez mais inconsistente, em matéria de segurança jurídica. A par da lei escrita, as outras fontes do direito, ou seja, a ideologia social e o intérprete com poder decisório, não têm a mesma fixidez e a relativa transparência da primeira. Com efeito, inexiste em regra harmonia ideológica na sociedade, assim como parece impensável a robotização da personalidade de cada interlocutor jurídico.

E mais. Vera Regina Pereira de Andrade, que aprofunda o exame das relações entre dogmática penal, criminologia e segurança jurídica, indaga "em que medida têm sido cumpridas as funções declaradas da Dogmática penal na modernidade" (A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do sistema penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 27). Entende que, revisitando-se o paradigma "desde suas bases fundacionais", reinterpretar a Dogmática Penal "implica redescobrir nele (no paradigma) potencialidades humanistas e virtualidades. Mas implica também falar de poder, violência e dominação, enquanto elementos que embora sistematicamente neutralizados e recusados pelo seu discurso lhe imprimem significação plena" (p. 34/35).


9. Comportamento da sociedade

Já escrevi alhures e hoje reafirmo com dose redobrada de convicção: "Quem quiser saber o que é o direito, consulte o que o homem faz. Olhe em seu redor. Se por acaso encontra leis que definem, ou pensam definir, o que é obrigatório, facultado ou proibido, convém continuar observando. Isto é, convém verificar se seus destinatários e, especialmente, os órgãos encarregados de dar-lhes execução, agem em tal sentido" (O poder judiciário e a lei: a decisão contra a lei na jurisprudência penal catarinense. Dissertação de mestrado submetida ao CPGD/UFSC. Florianópolis: 1979, p.180).

O fato é que uma rigorosa metodologia já deixou patente a indiferença, a passividade e, mesmo, a aprovação tácita ou militante de importantes camadas da população, de maior poder persuasivo e decisório, com respeito a uma série de condutas teoricamente enquadráveis na Parte Especial do Código, que tipifica os delitos. É o que se passa, por exemplo, com o aborto consentido, mormente nas primeiras semanas de gravidez (à parte o problema ético e religioso, inconfundível com sua faceta jurídico-penal); com a prática de esportes e outras atividades intrinsecamente perigosos e nocivos à saúde e integridade corporal; com a exploração de motéis e outros locais de "alta rotatividade", destinados a encontros de natureza libidinosa; com a publicação, venda e exposição de escritos e cenas de caráter claramente pornográficos; com o favorecimento à prostituição, em sua forma simples, na hipótese de "vítima" eleitora, maior e vacinada; com a ortotanásia ou eutanásia por omissão; com certos tipos de aparente corrupção de menores, ou de abandono moral e intelectual; com o trote acadêmico e a "pendura" em restaurante, por parte de acadêmicos de direito, em sua data festiva (11 de agosto); com certas espécies de curandeirismo e assim por diante.

Registro especial merece o revogado art. 220 do Código Penal em vigor, que até recentemente (ano de 2005) considerava delito o "rapto" consensual de vítima beirando os 21 anos de idade. Não havia clima nem chance para a abertura de processo-crime. Mas a doutrina, sem pestanejar, e com impecável rigor dogmático, anotava e explicava a estrutura típica, ilícita e culpável do exótico dispositivo legal...

Vale também o reverso da medalha. Nem sempre a ideologia da lei (princípio da reserva legal) suplanta os preconceitos e idiossincrasias do intérprete, que procede, então, acobertado pela segurança do cargo e a certeza de receptividade às decisões contra legem, em prejuízo dos acusados. A mesma parafernália teórico-argumentativa se volta agora contra réus liminarmente indefesos, apesar da lei, cuja inoperância se denota proporcional à impotência do grupo e à petulância de alguns intérpretes.

Tudo se resume em vontade e liberdade de ação. O valor da lei reside em sua capacidade de eliminar no intérprete a liberdade para impor, ele próprio, uma vontade adversa. Isso ocorre apenas nos casos fáceis, de corriqueira identidade ideológica. Maior liberdade de ação diante da lei lembra divergência valorativa no seio da sociedade ou, pelo menos, imobilidade funcional desta última em termos de controle e fiscalização.


10. Participação do intérprete

É bom que se insista. Nenhuma teoria, de seu turno, subsiste por si só. A teoria jurídica precisa seduzir o intérprete a ponto de eliminar o poder de convencimento de qualquer outra, que lhe dispute, como rival, a indicação do caminho a seguir. E não necessita ser exclusivista, açambarcante, absoluta, se bem que neste caso o desfecho se deduza com facilidade, conforme já exposto, em virtude do processo de identificação de premissas convergentes. Para o latrocida, em conseqüência, não há outra resposta senão a da condenação criminal, porque a premisssa da lei, neste caso, é a premissa da sociedade e é, também, a premissa do intérprete.

Outras vezes, todavia, o problema se torna insolúvel. São infinitas as hipóteses de variações interpretativas de peso e valor relativamente razoáveis, em função da incompletude normativa do sistema. O sistema jurídico não se limita à lei e, por isso mesmo, está sempre a demandar o esforço participativo da própria sociedade, que se antecipa, por suas idéias e atitudes, ao gesto decisório de quem age em seu nome, ou em nome do Estado.

Além disso, conforme assinalado em outro contexto, o penalista precisa se dar conta de que profere suas lições em linguagem natural (no Brasil, em língua portuguesa), o que significa dizer que não se liberta dos vícios que lhe são inerentes, mesmo quando se atém à terminologia técnica, especializada. E as regras de hermenêutica jurídica ainda conservam as mesmas virtudes e defeitos de qualquer sistema de linguagem articulada, virtudes e defeitos que se encontram igualmente na linguagem utilizada pelo próprio legislador ("Interpretação e analogia em face da lei penal brasileira: visão teórico-dogmática e crítico-metodológica". Jus Navigandi, Teresina, ano 11, nº. 1474, 15 jul. 2007).

De qualquer modo, o que importa realçar é que as leis, com toda a sua vagueza e ambigüidade, guardam uma zona de clareza que não tem impedido seu descumprimento, com ou sem ficções argumentativas. Mas até mesmo quando cumpridas à risca as leis não escapam à condição de simples projeto de direito, à espera de ratificação. Essa ratificação se dá como ato de vontade e liberdade e, não, como decorrência natural de sua projeção lógica. É que em outras oportunidades, na alternância de dispositivos, o intérprete pode preferir a utilização de técnica diferente, à revelia da lei, não passando os argumentos e teorias invocadas de véu encobridor de inconfessada autonomia jurídica.

Vejamos outros exemplos.

Os penalistas não se entendem sobre a natureza da ação cabível na hipótese de estupro cometido com violência real. Para o art. 225 do Estatuto Repressivo a ação penal é privada, mas a presença concomitante do art. 101, referente aos crimes complexos, vem permitindo a certos juízes e doutrinadores optar pela tese da ação penal pública. Trabalham, portanto, com muita liberdade em torno da aplicação do princípio que determina a prevalência da regra especial sobre a regra geral.

Não nego, aqui, a confusão causada pelo próprio legislador. Entretanto, não posso deixar de realçar mais uma vez a insuficiência das técnicas hermenêuticas diante da fonte maior do direito que é a vontade relativamente livre de quem se encontra no exercício do poder decisório.

É o que sucede também, nos livros de doutrina e no dia-a-dia forense, com as discussões acerca da existência de crime único ou, ao contrário, de concurso de delitos: material, formal, crime continuado.

No furto em residência, fica absorvido o crime de violação de domicílio? A ausência de representação da vítima na hipótese de lesão corporal culposa encerra qualquer possibilidade de processo e julgamento pela direção de veículo em estado de embriaguez (CTB, art. 306) ou sem habilitação ou permissão (CTB, art. 309)? Há estelionato, falsidade documental ou ambos os delitos na hipótese de vantagem ilícita obtida mediante o citado artifício fraudulento? Quantos roubos comete o assaltante que, de arma em punho, subtrai dinheiro de cada passageiro de um ônibus? Quantos crimes pratica o motorista sem permissão ou habilitação que, em estado de embriaguez alcoólica, participa de um "racha" nas proximidades de um hospital?

As teorias do cardápio (especialidade; subsidiariedade; delito-meio em face do delito-fim; consunção; fato posterior impunível; conceito de ato e de ação, dentre outras) não resolvem absolutamente o enigma, tendo em vista que variam, nas circunstâncias, o apetite e a predisposição visual dos especialistas. Os métodos utilizados, terrivelmente frágeis em suas próprias contradições, acabam cedendo terreno à manipulação ocasional do intérprete, agente concreto de um direito que, não raro, simula previamente positivado pelo legislador. Recorde-se que nas vezes em que decide contra legem nem sempre ele age abertamente, preferindo esconder-se nas sutilezas de uma retórica pessoal e comprometedora.

Pior ainda é constatar-se, com Alessandro Baratta, que "pesquisa empírica tem ilustrado as diferentes atitudes avaliativas e emotivas dos juízes diante de pessoas pertencentes a diferentes classes sociais". Se bem que inconscientemente, são feitos "julgamentos diferenciados segundo a classe social do acusado" relativos ao elemento subjetivo (dolo, culpa), ao caráter sintomático do crime e individualização da pena. "Em geral, pode-se afirmar que existe uma tendência de parte dos juízes de esperar comportamento em conformidade com a lei de indivíduos pertencentes às classes média e alta, e comportamento bastante contrário de indivíduos pertencentes às classes mais baixas"("Marginalidade social e justiça", [trad.]. Revista de Direito Penal, Instituto de Ciências Penais do Rio de Janeiro, nº. 21/22, jan./jun. 1976, p. 13).

Em síntese: mesmo no plano teórico (dogmática jurídica) a solução termina por depender do intérprete e, não, da qualidade dos argumentos expendidos. E como estes mudam a cada mudança de artigo ou parágrafo, em função, quem sabe, de novo conteúdo ideológico, cai por terra toda e qualquer objetividade aparentemente proclamada. Direito é fenômeno ocasional, circunstancial, aglutinado que se encontra à heterogeneidade normativa e contraditória de várias fontes em disputa.


11. Lições da contradição

Quais as lições de tudo isso, em nível de ensino do direito?

Ora, todo professor ou jurisconsulto necessita em seu ministério de uma teoria explicativa da realidade jurídica; melhor dizendo, de uma teoria delimitadora de uma realidade jurídica inalcançável em sua intrínseca objetividade.

A melhor teoria ainda é aquela que se realimenta das observações e retificações aportadas pelo objeto tal como ele se apresenta aos sucessivos processos de apreensão e reconhecimento, no plano intelectual.

A contradição é a mola propulsora do direito. Sem contradição o direito pára, estaciona. Conservação ou mudança, todavia, são questões que transcendem ao vocabulário do jurista. Ingressam no delicado terreno do "dever ser", onde as respostas se condicionam a programas ideológicos necessariamente destituídos de embasamento científico. Problemas políticos e filosóficos se resolvem na ação e omissão comprometidas com prévio engajamento emocional. As premissas do "dever ser" escapam ainda, em seu sentido absoluto, da humana capacidade de resolução de conflitos.

Percebida a essência contraditória do direito, segue-se outra importante lição, de ordem metodológica. Há que se ensinar, de preferência, o raciocínio dos juristas, suas técnicas argumentativas e, sobretudo, os fatores ideológicos de suas atitudes e motivações. A insistência em eliminar as antinomias compromete, em sua origem, a objetividade do processo de busca e apreensão do direito. Este é sempre dinâmico e aberto à participação valorativa de vários interlocutores, que invalidam, com seu gesto, as mistificações dogmáticas de cunho subjetivista.

Ensinar o direito é curvar-se à realidade normativa dos próprios fatos, gerados concretamente nas interações coercitivas inerentes ao intercâmbio de condutas.

Em outras palavras, e para ficar-se com a velha sabedoria, contra os fatos inexiste argumento. Mais cedo ou mais tarde se descobre, por exemplo, a inoperância da clássica "separação de poderes" se Executivo, Legislativo e Judiciário caminham de mãos dadas na preservação de graves injustiças sociais, algumas delas, inclusive, institucionalizadas, como se deu com a escravidão.

A reação popular, através de suas lideranças, pode contribuir para o arrefecimento de privilégios e desigualdades ou corrigir os excessos dogmáticos através da reinvenção de outro direito, em termos de conteúdo. Esse arrefecimento e essa reinvenção passam também, a título de aliança, pelo eventual desequilíbrio das forças que dividem entre si o comando oficial da normatização jurídica.

O grupo social, se não dita formalmente o direito, pelo menos o reformula no entrechoque de suas próprias necessidades, carências e frustrações. Direito, afinal, não é sinônimo de justiça, embora seja lícito esperar que ambos se aproximem reciprocamente na adesão participativa dos destinatários.

Fica implícita nesta pedagogia a revalorização das fontes tradicionais do direito – lei, costumes, jurisprudência – desde que niveladas dialeticamente e, não, fragmentadas e distorcidas na estrutura arquitetônica de pretensas hierarquias, meramente convencionais.

Diferentemente do magistrado romano, que pede os fatos para fornecer, em seguida, o direito, o teórico de visão crítica e realista pede os fatos do legislador, do juiz e da sociedade para deles extrair, em suas potencialidades e convergências dialéticas, os fatos normativos concretos, ainda que contraditórios.

E quanto às perspectivas para o futuro, se os fatos precedem à teoria?

O direito, enquanto fenômeno, se antecipa a quem o ensina. Pode, porém, transformar-se, em sentido ético e funcional, na medida em que seu aprendizado alargar o campo de liberdade de sua própria natureza evolutiva, germinada pelos homens em suas relações de convivência social.


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BASTOS, João José Caldeira. Dogmática penal: lições metodológicas de um direito contraditório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1571, 20 out. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10527. Acesso em: 25 abr. 2024.