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Introdução ao direito constitucional argentino

Introdução ao direito constitucional argentino

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Historicamente, a Argentina vislumbrou presença espanhola, italiana e alemã, que neutralizou querandis orientais, charruas dos pampas, quíchuas andinos e guaranís recolhidos mais a nordeste. Originalmente, a Argentina pertenceu ao Vice-Reino do Peru (cf. SKIDMORE e SMITH, 2005, p. 269). Emancipada da Espanha a partir de Tucumán, em 1816, a identidade argentina oxigenou investidas de San Martin, que atingiu o Chile e o Peru, expulsando os chapettones em nome de realidade étnica criolla. Constituição de sabor federalista promulgada em 1853 provocou secessão da província de Buenos Aires, situação posteriormente normalizada. Em meados do século seguinte, Juan Domingo Perón encetou populismo vibrante, que encontra parâmetros em brasileiros de fortíssimo apelo popular, a exemplo de Getúlio Vargas e de João Goulart, coincidentemente também egressos dos pampas gaúchos. Deposto em 1955 por golpe militar, Perón amargurou exílio na Espanha, retornando no início dos anos setentas. Morreu em 1974; foi substituído por Isabel, sua segunda esposa, que não tinha o carisma da sua primeira mulher, Evita, primeira-dama que faleceu em 1952. Movimento militar afastou Isabel; uma junta implementou regime castrense que resistiu até 1983.

Os argentinos passaram por Videla, Roberto Viola, Leopoldo Galtieri, pela guerra das Malvinas (que ingleses insistem em chamar de Falklands), pelas revoltas dos caras-pintadas contra o julgamento dos oficiais identificados com a guerra suja, como chamou-se o regime dos quartéis. A posse de Menem em 1989 abriu o país para onda neoliberal, o que justificou a dolarização da economia por Domingo Cavallo em 1991, modelo abandonado em fevereiro de 2002. Enfrentando o Fundo Monetário Internacional, com bravatas e posições concretas, a Argentina, liderada por Kirchner, e agora por sua esposa, retoma posições perdidas, decorrentes das crises financeiras dos anos noventa, e que marcaram acirradas disputas presidenciais, a exemplo do embate entre Fernando de la Rúa e Eduardo Duhalde, em 1999, com vitória daquele primeiro.

A constituição da Argentina é de 1º de maio de 1853. O texto foi sancionado em congresso reunido em Santa Fé (cf. CASIELLO, 1954, p. 89). Foi reformada sucessivas vezes, em 1860, 1866, 1898, 1957 e 1994. Inicia-se com preâmbulo que dá conta de objetivo de se constituir união nacional, realizar-se a justiça, consolidar a paz interior, prover a defesa comum, promover-se o bem-estar geral e assegurar-se a todos os benefícios da liberdade, invocando-se a Deus como fonte de toda razão e justiça (invocando la protección de Dios, fuente de toda razón y justicia). Adota-se o modo representativo republicano e federal como forma de governo. Indica-se que o governo federal apóia o culto católico apostólico romano (el Gobierno federal sostiene el culto católico apostólico romano), assume-se uma postura confessional (cf. BIDART CAMPOS, 1986, p. 181). Na expressão de um constitucionalista argentino, em tradução livre minha, "um povo sem fé em Deus não é capaz de conceber os grandes princípios da moral e do direito, nem é capaz de formulá-los na lei escrita que o rege" (CALDERON, 1930, p. 351).

Escreve-se que o governo federal efetiva os gastos da Nação com fundos do Tesouro Nacional, obtidos da cobrança de direitos de importação e de exportação, da venda ou do aluguel de terras de propriedade nacional, da renda dos correios, e das demais contribuições que eqüitativa e proporcionalmente sejam impostas à população pelo Congresso Nacional, por empréstimos e operações de crédito decretadas pelo referido congresso, especialmente no caso de urgência.

Há previsão de poder constituinte decorrente, dado que se determinou que cada província poderá adotar constituição própria, mantidos o sistema republicano, e de acordo com os princípios, declarações e garantias identificados no texto constitucional. Permite-se intervenção federal nas províncias, com o objetivo de se manterem formas republicanas de governo, de se repelirem invasões externas, bem como por requisição das autoridades provinciais, para defesa, em caso de sedição ou de invasão por outra província. Atos públicos e processuais provinciais gozam de fé pública em todas as demais províncias. Proíbem-se limitações ao tráfego interno, e não se admite a cobrança de direitos de circulação lançados sobre produtos de circulação nacional.

Há previsão formal de que todos os habitantes da Nação gozam de direitos em conformidade com leis que regulamentem os respectivos exercícios, especialmente quanto à prerrogativa de trabalho, do exercício de qualquer atividade lícita, de navegação e comércio, de direito de petição às autoridades, de entrada, permanência, trânsito e saída do território nacional, de veiculação de idéias próprias independentemente de censura prévia, do uso e da disposição de propriedade pessoal, da associação para fins úteis, do exercício livre de culto religioso, de ensino e de aprendizagem.

Matéria laboral é indicada de forma ampla. Determina-se que o trabalhador gozará de proteção legal, de condições dignas e eqüitativas de trabalho, jornada laboral limitada, de descanso e de férias remuneradas, de retribuição justa pelo trabalho prestado, de salário mínimo vital e móvel, de igualdade de remuneração pela prestação da mesma tarefa, de participação nos lucros das empresas, de participação e colaboração no controle de produção das empresas, de proteção contra despedida arbitrária, de estabilidade no serviço público, de organização sindical livre e democrática, reconhecida por mera inscrição em registro especial.

O Estado outorgará benefícios de seguridade social de modo amplo e irrenunciável. Há previsão de lei para o estabelecimento de seguro social obrigatório, administrado por autoridades nacionais ou provinciais que detenham autonomia financeira ou econômica, e que sejam administradas por particulares em conjunto com o Estado.

Declara-se solenemente que na Argentina não há escravos (em la Nación Argentina no hay esclavos). Indica-se que a Argentina não admite prerrogativas de sangue ou de nascimento. Não se reconhecem títulos de nobreza. Adianta-se que todos os habitantes da Argentina são iguais perante a lei, admissíveis a todos os empregos sem outra condição que não a idoneidade (todos sus habitantes son iguales antes la ley, y admisibles en los empleos sin otra condición que la idoneidad). Determina-se que a igualdade é a base dos impostos e demais ônus públicos (la igualdad es la base del impuesto y de las cargas públicas).

Proclama-se a inviolabilidade do direito de propriedade. Determina-se que o confisco de bens é categoria banida do código penal argentino. Veda-se a qualquer força armada o poder de fazer requisições ou de exigir auxílios, de nenhuma espécie. A reserva legal é princípio abraçado pela constituição da Argentina. Indica-se que nenhum habitante da Nação poderá ser penalizado sem juízo prévio baseado em lei anterior ao fato punível; não se admitem juízos de exceção (ningún habitante de la Nación puede ser penado sin juicio previo fundado em ley anterior al hecho del proceso, ni juzgado por comisiones especiales). Ninguém pode ser obrigado a depor contra si mesmo.

O domicílio é inviolável, bem como correspondência epistolar e papéis privados. Proclama-se o fim da pena de morte, por causa de delitos políticos (quedan abolidos para siempre la pena de muerte por causas políticas). Indica-se que os cárceres da Argentina deverão ser limpos. Visa-se a segurança e não o castigo dos réus detidos; além disso, todas as medidas tomadas contra os presos, por pretexto de precaução, mas que os agrida, além do necessário, determina a responsabilização pessoal do juiz que autorizou as referidas medidas (los cárceles de la Nación serán sanas y limpias, para seguridad y no para castigo de los reos detenidos em ellas, y toda medida que a pretexto de precaución conduzca a mortificarlos más allá de lo que aquélla exija, hará responsable al juez que la autorice).

Para a constituição da Argentina estrangeiros gozam no território do país de todos os direitos civis que são próprios dos cidadãos argentinos. Podem exercer indústria, comércio, profissão. Podem possuir bens de raiz, navegar rios e costas, exercer livremente o culto. Podem redigir testamentos e casarem-se, conforme as leis da Argentina. Não estão obrigados a requerer cidadania argentina e nem a submeter-se a tributação extraordinária, decorrente da situação de estrangeiros.

Há dispositivo que indica que o povo não delibera e não governa, exceto por meio de seus representantes e por autoridades plasmadas na constituição. Escreveu-se que toda força armada ou reunião de pessoas que se atribua direitos do povo, postulando em nome desse, comete delito de sedição (el pueblo no delibera ni gobierna, sino por médio de sus representantes y autoridades creadas por esta Constitución. Toda fuerza armada o reunión de personas que se atribuya los derechos del pueblo y peticione a nombre de este, comete delito de sedición).

Indica-se que o governo federal fomentará a imigração européia. Não se poderá gravar com impostos, restringir por qualquer modo ou limitar a entrada em território argentino de estrangeiros que tenham objetivo de lavrar a terra, melhorar as indústrias ou introduzir e ensinar as ciências e as artes. O governo federal está obrigado a entabular relações de paz e comércio com as potências estrangeiras por meio de tratados que se ajustem aos princípios de direito público estabelecidos na constituição da Argentina. Não há óbices severos para reforma constitucional. A constituição pode ser reformada total ou parcialmente (la Constitución puede reformarse en el todo o en cualquiera de sus partes). A necessidade de reforma deve ser declarada pelo Congresso mediante o voto de um terço de seus membros. No entanto, exige convenção convocada especialmente para a reforma constitucional.

Há dispositivo referente à denominação do país e que informa que todos os nomes que identificam a Argentina desde a independência em 1810, Províncias Unidas do Rio da Prata, República Argentina e Confederação Argentina, podem ser usados indistintamente para designar o governo e o território das províncias, utilizando-se, no entanto, a expressão Nação Argentina (Nación Argentina) na identificação e sanção das leis.

A constituição da Argentina imputa aos partidos políticos o papel de instituições fundamentais do sistema democrático. Tem-se que a criação de partidos, e o exercício de suas atividades políticas, garantindo-se a representação das minorias, a competência para a postulação de cargos, o acesso à informação pública e a difusão de idéias. Ao Estado cumpre contribuir para a subvenção das atividades partidárias e para a capacitação dos dirigentes dos partidos. Dos partidos exige-se que seja dada publicidade quanto à origem e destinos dos fundos e do patrimônio (los partidos políticos deberán dar publicidad del origen y destino de sus fondos y patrimonio).

Há norma referente à proteção do meio ambiente. Todos os habitantes têm direito a um meio ambiente equilibrado e propício para o desenvolvimento humano. Aderiu-se ao paradigma do desenvolvimento sustentável, vinculando-se o uso do meio ambiente às necessidades presentes, sem comprometimento das gerações futuras. É dever do habitante da Argentina preservar a natureza. Determina-se que o dano ambiental acarretará obrigação de indenização, nos termos de lei. Remete-se às autoridades públicas a obrigação de proteger o direito ao meio ambiente sadio, a utilização racional dos recursos naturais, a preservação do patrimônio natural e cultural do país, a diversidade biológica, a informação e a educação ambiental. Proíbe-se a entrada no país de resíduos potencial ou efetivamente perigosos (se prohibe el ingreso al territorio nacional de residuos actual o potencialmente peligrosos), entre outros.

Há previsão sobre relações consumeristas. É que consumidores e usuários de bens e serviços têm direito, no que toca ao consumo, à proteção da saúde, segurança e interesses econômicos. Também se determinam referências de informação dotadas de adequação e de veracidade (a uma información adecuada y veraz). Às autoridades se remete o dever de proteger o exercício desses direitos de consumo, devendo também promover a educação consumerista e a constituição de associações de consumidores e de usuários.

Outorga-se a toda pessoa o direito de propor ação de rito sumário (acción expedita y rápida de amparo), na inexistência de qualquer outro meio judicial, contra ato de autoridade pública ou de particulares, na circunstância de lesão iminente ou real, que possa restringir, alterar ou ameaçar o titular do direito, como resultado de arbitrariedade ou de ilegalidade manifesta, e com referência a direitos e garantias reconhecidos pela constituição, por tratado ou por lei. O remédio possibilita até que o juiz declare inconstitucionalidade da norma guerreada.

O poder legislativo é bicameral. Há a Câmara dos Deputados da Nação e a Câmara dos Senadores das províncias e da cidade de Buenos Aires. A Câmara dos Deputados conta com representantes eleitos diretamente pelo povo, com número de parlamentares divididos entre as várias províncias do país. Exige-se do deputado a idade mínima de 25 anos, o exercício da cidadania há pelo menos quatro anos, que sejam naturais das províncias que os elegeram ou que nelas residam há pelo menos dois anos. O mandato é de quatro anos. Cada província elege três senadores, bem como a cidade de Buenos Aires. A idade mínima é de 30 anos, exige-se seis anos de cidadania, e há também percepção censitária, dado que exigem renda mínima. O mandato é de seis anos.

A constituição da Argentina indica que o poder executivo da nação será exercido por cidadão com o título de Presidente da Nação Argentina. Exige-se que o presidente tenha nascido em território argentino ou que detenha de outra forma nacionalidade originária, bem como o implemento de todas as demais condições que se exigem dos senadores. O mandato é de quatro anos. O Presidente é o chefe supremo da Nação, do governo e responsável político pela administração geral do país (es el jefe supremo de la Nación, jefe del gobierno y responsable político de la administración general del país).

O poder judiciário centra-se em uma Corte Suprema de Justiça e nos demais tribunais inferiores a serem estabelecidos pelo Congresso. Exige-se que o magistrado da Corte Suprema tenha exercido a advocacia por prazo mínimo de oito anos, e que também detenha as qualidades exigidas do senador, quanto a idade e demais requisitos. Um Conselho de Magistratura, regulamentado por lei e aprovado pela maioria absoluta dos membros de cada uma das casas do legislativo, irá selecionar os magistrados e apontar os demais ocupantes de cargos na administração do poder judiciário. Realizam-se concursos públicos para a ocupação nas magistraturas de primeiro grau. O Ministério Público é órgão independente e detém autonomia funcional e financeira. Sua missão é defender a legalidade e os interesses da sociedade, em coordenação com as demais autoridades da República.

O texto constitucional argentino também indica regime de transposição, guardando em seus aspectos mais estruturais o modelo racional oitocentista que parece ditar as constituições hoje no mundo conhecidas. Vivendo movimento de profunda transição de modelos, a Argentina sofreu ataque do capitalismo internacional, que resultou em crise sem precedentes. Posterior rompimento com a estrutura financeira externa, a exemplo de ruptura transitória com o Fundo Monetário Internacional, exige eventual rearticulação da engenharia constitucional, parecida com a vivida pelo Brasil, por ocasião da Emenda Constitucional nº 40, de 29 de maio de 2003, que desfigurou o art. 192 da constituição brasileira de 1988.


BIBLIOGRAFIA

BIDART CAMPOS, German J. Tratado Elemental de Derecho Constitucional Argentino. Buenos Aires: EDIAR, 1986.

CALDERON, Juan A. Gonzalez. Derecho Constitucional Argentino. Buenos Aires: Librería Nacional, 1930.

CASIELLO, Juan. Derecho Constitucional Argentino. Buenos Aires: Editorial Perrot, 1954.

SKIDMORE, Thomas E. e SMITH, Peter. Modern Latin America. New York: Oxford University Press, 2005.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Introdução ao direito constitucional argentino. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1620, 8 dez. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10740. Acesso em: 18 abr. 2024.