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Júri e reformatio in pejus

Júri e reformatio in pejus

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O art. 617 do CPP enuncia:

"O Tribunal, câmara ou turma atenderá nas suas decisões ao disposto nos art. 383, art. 386 e art. 387, no que for aplicável, não podendo, porém, ser agravada a pena, quando somente o réu houver apelado da sentença".

Trata-se da proibição de uma reforma para pior em prejuízo do próprio recorrente, designada, em doutrina, de "reformatio in pejus indireta".

É um despropósito, além de profundamente injusto, que o acusado possa ser agravado em sua situação penal como decorrência de seu próprio recurso. O efeito objetivado através de todo e qualquer recurso é sempre "para melhor", nunca "para pior". O interesse em recorrer pressupõe benefício a alcançar.

E a regra proibitiva da "reformatio in pejus indireta" tem sido sistematicamente respeitada.

Mas, quando se trata de julgamento do Tribunal do Júri e não do juiz singular ou do segundo grau, os Tribunais, com a chancela da doutrina, não a aplicam, pois entendem proeminente o princípio constitucional da "soberania dos veredictos" (RT 596/327), embora sempre deixem expresso que o Juiz-Presidente, no segundo julgamento, e em face de idêntico veredicto, não pode fixar a pena em "quantum" superior ao estipulado primeiro (STF, HC. 66274-RJ - RTJ 127/561).


Servem de exemplos:

a) STF:

"REFORMATIO IN PEJUS INDIRETA. Tratando-se de preceito decorrente da lei ordinária (CPP, art. 617), a vedação da "reformatio in pejus" indireta não se aplica às decisões do Tribunal do Júri, cuja soberania assenta na própria Constituição Federal (art. 5º, XXXVIII). Habeas Corpus nº 73367/MG, STF, Rel. Min. Celso De Mello, j. 12.03.96, Informativo STF, 15.03.96, nº 23).

b) STJ:

"PROCESSO PENAL. JÚRI. QUESITO. NULIDADE. REFORMATIO IN PEJUS. Inviabilidade da aplicação do princípio da reformatio in pejus indireta nos julgamentos proferidos pelo Tribunal do Júri, em face da soberania de suas decisões. Precedentes desta Corte e do STF". (Recurso Especial nº 76541/DF, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 22.04.97, un., DJU 19.05.97, p. 20.686).

c) TJRGS

"JÚRI E REFORMATIO IN PEJUS. Réu pronunciado por homicídio qualificado por motivo fútil e por recurso que dificultou a defesa da vítima. Ausência de recurso, em relação à pronúncia.

"Submissão do réu a julgamento pelo Tribunal do Júri, que rejeitou as teses da legítima defesa e do excesso culposo, mas reconheceu o homicídio privilegiado por violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, julgando-se prejudicado o quesito da qualificadora do motivo fútil. Reconhecimento, pelo Júri, da qualificadora do uso de recurso que dificultou a defesa da vítima. Condenação do réu a 8 (oito) anos de reclusão. Apelo defensivo, suscitando a nulidade do julgamento, por deficiência de quesitação e porque a decisão dos jurados que reconheceu a qualificadora da surpresa teria sido manifestamente contrária à prova dos autos. Improvimento do apelo defensivo, pelo 1° fundamento, e provimento, pelo 2° fundamento.

"Submissão do réu a 2° julgamento pelo Tribunal do Júri. Rejeição da legítima defesa, já no 1° quesito a ela relativo, bem como do privilégio da violenta emoção e da qualificadora da surpresa. Reconhecimento da qualificadora do motivo fútil.

"Manutenção da pena do réu, no 1° julgamento (8 anos de reclusão), pela Dra. Juíza Presidenta, para não caracterizar "reformatio in pejus". Apelo do MP, com esteio na alínea "b", do inc. III, do art. 593, do CPP.

"Quando se trata de julgamento do Tribunal do Júri, não incide a regra que proíbe a "reformatio in pejus". Precedentes deste Tribunal, do Colendo STJ e do Pretório Excelso. Provimento do apelo do MP, com a exasperação da pena do réu para 13 anos de reclusão"(Apelação Crime nº 696118314, 3ª Câmara Criminal do TJRGS, Porto Alegre, Rel. Des. Nilo Wolff. j. 14.11.96, un.).

Da doutrina, por todos, Fernando Capez é explícito:

"Assim, anulado o Júri, em novo julgamento, os jurados poderão proferir qualquer decisão, ainda que mais gravosa ao acusado. Por exemplo, no primeiro julgamento o réu foi condenado por homicídio simples, ficando afastadas as qualificadoras; anulado o Júri, em virtude de recurso da defesa, poderá agora haver condenação até mesmo por homicídio qualificado, em face do princípio maior da soberania (os jurados estão livres para votar)"(Curso de Processo Penal, pág. 371.


Penso diferente.

Se o recurso é exclusivo da Defesa, havendo trânsito em julgado da decisão para a Acusação, o reexame não pode ser "para pior". Em nenhuma hipótese. É questão de bom senso.

Os pontos em que a Acusação foi vencida estão sob o manto da coisa julgada. O recurso, que por natureza é restritivo quando impugna julgado do Júri (STF: "Nos processos do Júri a apelação é sempre restrita e não devolve o conhecimento pleno da causa, ficando exclusivamente adstrita aos motivos invocados pelo vencido ao interpô-la." - HC 70589-8-SP, I T., Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU 16-09-94, p. 24.267), limita o âmbito de conhecimento, até porque não poderia o "vencedor" recorrer de sua "vitória".

Exemplificando:

Réu pronunciado por homicídio qualificado pela paga e emboscada foi condenado por uma das qualificadoras, a da paga, por hipótese. A decisão transitou em julgado para o Ministério Público. A defesa apela com base na alínea "d", inc. III, do art. 593 do CPP.

Se o Tribunal der provimento ao recurso, reconhecendo que a decisão condenatória foi "manifestamente contraria a evidência probatória", é óbvio que não examinará nem emitirá juízo sobre a qualificadora excluída pelos jurados, até porque não teria o menor sentido, e o novo julgamento, em uma conseqüência lógica, será estritamente limitado ao objeto da impugnação recursal acolhida. A qualificadora da "emboscada", que o Júri, no exercício de sua constitucional e soberana missão, julgou e expungiu, não integrará a imputação.

Nem mesmo diante de vício na formulação do quesito da qualificadora recusada, porque complexo "demais" em sua redação, tornando-o incompreensível aos jurados, poderia o Tribunal invalidar o julgamento do Júri no tocante à emboscada. Além da proibição da "reformatio in pejus direta", o tema "validade de quesito" não estaria compreendido pelos limites materiais da impugnação recursal, e as apelações do Tribunal do Júri são restritivas por natureza. "De nascença".

Dizer-se que o novo julgamento também envolve a qualificadora recusada, com base no argumento de que a CF assegura a soberania das decisões do Tribunal do Júri, não pode ser tão facilmente assimilado.

O julgado objeto do recurso também é expressão de soberania do Tribunal do Júri. E da "mesma" soberania do novo julgamento.

Enquanto preceito garantidor da liberdade do réu, a soberania dos veredictos não pode ser atingida. Mas, e a passagem é de Frederico Marques, "se ela é desrespeitada em nome dessa mesma liberdade, atentado algum se comete contra o texto constitucional" (Processo Penal, vol. 4., p. 467).

Assim, naquilo que não foi impugnado pelo recorrente, e que está passado em julgado, a decisão se mantém, exatamente como expressão de soberania do veredicto. É imutável. Sua fonte de produção, o Júri, foi soberano e definitivo.

Ao novo Conselho, encarregado do hipotético e exemplicativo caso, caberá apenas decidir sobre a imputação de homicídio qualificado pela paga. Nada além disso. A dupla qualificação imputada na denúncia e admitida pela pronúncia, foi "julgada e desconstituída" pelo Tribunal do Júri.

Nesse sentido:

"JÚRI - NÃO-RECONHECIMENTO DAS QUALIFICADORAS DO MEIO CRUEL E DA SURPRESA - DETERMINAÇÃO DE NOVO JÚRI PARA QUESTIONAMENTO TÃO-SÓ DO MEIO CRUEL.

É manifestamente contrária à provados autos a decisão que não reconhece o meio cruel, quando o homicídio é praticado mediante brutal espancamento, com pontapés e pisoteios da vítima. Constantes discussões e brigas do casal possibilitam o afastamento da qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima. Determinação de novo júri apenas para o exame da qualificadora do meio cruel.

Recurso ministerial provido por unanimidade".

(Apelação Crime nº 695026393, 4ª Câmara Criminal do TJRGS, Estância Velha, Rel. Des. Érico Barone Pires, 14.06.95).

E não é só.

Penso, também, e em frontal oposição ao julgado cuja ementa a seguir será transcrita, que se o réu apela tão só da qualificadora, o mérito da condenação por crime de homicídio transitou em julgado, mais uma expressão de soberania do Tribunal do Júri, pelo que o novo julgamento será circunstancial – sobre a qualificadora da emboscada.

"REFORMATIO IN PEJUS. HOMICÍDIO. JÚRI. DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA A PROVA DOS AUTOS. Tendo os jurados, no segundo Júri, reconhecida a qualificadora da traição não admitida no primeiro, não há que se falar em "reformatio in pejus" vez que a pena nova mais gravosa foi decorrência natural do referido reconhecimento. Apelo improvido" (TJRGS, Apelação nº 695155606, 4ª Câmara Criminal, Rel. Des. Érico Barone Pires, j. 29.11.95, un.).


Concluindo,

(a) em um sistema constitucional materialmente garantidor, a soberania dos veredictos e a autoridade da coisa julgada não convivem com o efeito "reformatio in pejus", em qualquer hipótese;

(b) o reconhecimento de que o veredicto do Júri anterior, naquilo que transitou em julgado, também é soberano, não significa violação ao princípio, e se em violação consistir, será em nome da liberdade, não havendo atentado algum contra o texto constitucional, pois a soberania dos veredictos só tem razão de ser caso opere como efetiva salvaguarda da liberdade;

(c) confortando a posição aqui sustentada:

"JÚRI - Condenação por homicídio qualificado consumado e por homicídio tentado. Réu que apelou da decisão do júri tão-só quanto à condenação pelo homicídio consumado. Condenação pelo homicídio tentado que transitou em julgado para as partes - Tribunal de Justiça que, entretanto, anulou o julgamento amplamente - "reformatio in pejus". Habeas corpus. Júri. Anulação do julgamento pelo Tribunal de Justiça. 2. O paciente foi condenado por homicídio qualificado consumado e por homicídio tentado. Recorreu da decisão do Júri, tão-só, quanto à condenação pelo homicídio consumado. 3. Quanto à condenação por homicídio tentado, não houve apelação nem do Ministério Público, nem do réu, ora paciente. 4. O Tribunal anulou o julgamento amplamente, por vício formal, determinando que o réu fosse submetido a novo pronunciamento do Júri, também de referência ao homicídio tentado. 5. Alegação, no habeas corpus, de "reformatio in pejus". 6. A apelação do réu ensejava à Corte julgadora anular o julgamento no que se referia à condenação por homicídio qualificado consumado. Ao determinar, entretanto, o Tribunal local a renovação integral do julgamento, pelo Júri, também quanto ao crime tentado, contra cuja condenação não houve apelação, ultrapassou os limites do recurso. 7. Na inicial o impetrante alega que houve "reformatio in pejus", pois a decisão prejudica ao paciente. 8. Habeas corpus deferido para, cassando em parte o acórdão referente à apelação criminal, afastar a determinação de o paciente ser submetido a novo julgamento pelo Júri, quanto ao homicídio tentado."(STF - 2ª T.- HC nº 73.641-6/SP - Rel. Min. Néri da Silveira - DJU 08/11/96, pág. 43.201).


Autor

  • Carlos Otaviano Brenner de Moraes

    Participa com seus artigos das publicações do site desde 1999.

    Exerce advocacia consultiva e judicial a pessoas físicas e jurídicas, numa atuação pessoal e personalizada, com ênfase nas áreas ambiental, eleitoral, criminal, improbidade administrativa e ESG.

    Foi membro do MP/RS durante 32 anos, com experiência em vários ramos do Direito.

    Exerceu o magistério em universidades e nos principais cursos preparatórios às carreiras jurídicas no RS.

    Gerações de atuais advogados, promotores, defensores públicos, juízes e delegados de polícia foram seus alunos.

    Possui livros e artigos jurídicos publicados.

    À vivência prática, ao estudo e ao ensino científico do Direito, somou experiências administrativas e governamentais pelo exercício de funções públicas.

    Secretário de Estado do Meio Ambiente, conciliou conflitos entre os deveres de intervenção do Estado Ambiental e os direitos constitucionais da propriedade e da livre iniciativa; Secretário Estadual da Transparência e Probidade Administrativa, velou pelos assuntos éticos da gestão pública; Secretário Adjunto da Justiça e Segurança, aliou os aspectos operacionais dos órgãos policiais, periciais e penitenciários daquela Pasta.

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MORAES, Carlos Otaviano Brenner de. Júri e reformatio in pejus. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 41, 1 maio 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1076. Acesso em: 20 abr. 2024.