Saúde mental e adoecimento de servidores públicos: O peso invisível da normalidade exigida

Leia nesta página:

RESUMO

O artigo aborda o impacto da invisibilidade da doença mental entre servidores públicos, destacando o estigma, a pressão por produtividade e a necessidade de políticas de apoio e prevenção à saúde mental.

1 - Introdução

A saúde mental de servidores públicos tem ganhado destaque nos debates sobre condições de trabalho e bem-estar psicossocial. Este grupo de trabalhadores enfrenta pressões singulares devido à natureza de suas funções, o que frequentemente resulta em altos níveis de estresse e, em muitos casos, adoecimento psíquico. Ao trazer a frase do personagem Coringa, "A pior parte de ter uma doença mental é que os outros esperam que você aja como se não tivesse", este artigo visa explorar o peso da invisibilidade da doença mental entre servidores públicos e como essa expectativa de "normalidade" agrava o sofrimento daqueles que necessitam de acolhimento e compreensão.

2. O Ambiente de Trabalho dos Servidores Públicos

Os servidores públicos, em suas diversas funções, estão frequentemente submetidos a pressões relacionadas à alta demanda por produtividade, burocracias inflexíveis e, muitas vezes, recursos insuficientes para atender às expectativas da sociedade. Estes fatores criam um ambiente propício ao desenvolvimento de transtornos mentais, como ansiedade, depressão e síndrome de burnout.

Estudos realizados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que o Brasil é o país com a maior taxa de pessoas com transtornos de ansiedade no mundo, e ocupa o quinto lugar em casos de depressão. No setor público, essas condições são exacerbadas pela sobrecarga de trabalho, pela precarização de condições laborais em muitos setores e pela falta de suporte psicológico adequado. Servidores em áreas como saúde, educação e segurança pública, por exemplo, estão frequentemente na linha de frente de situações de alta pressão e risco, o que contribui para o aumento de casos de adoecimento mental.

Além disso, o estigma associado a problemas de saúde mental no ambiente de trabalho público é especialmente forte. Em um setor onde a estabilidade de emprego é muitas vezes vista como um privilégio, servidores adoecidos psicologicamente podem enfrentar julgamentos negativos de colegas e superiores, que enxergam sua condição como uma "fraqueza" ou "falta de competência". Esse julgamento, muitas vezes sutil e implícito, reforça a ideia de que, mesmo estando doente, o servidor deve continuar a desempenhar suas funções de maneira "normal", sem que sua condição seja levada em consideração.

3. O Estigma da Saúde Mental: A Dualidade do Sofrimento Invisível

A frase do Coringa revela um dos aspectos mais cruéis do estigma da doença mental: a expectativa social de que aqueles que sofrem devam "mascarar" seu sofrimento e agir como se estivessem bem. No contexto dos servidores públicos, essa expectativa pode se manifestar de várias formas. Por exemplo, é comum que o adoecimento mental seja tratado com certo descrédito, levando à subvalorização dos sintomas psicológicos e à demora no diagnóstico e tratamento. Em muitos casos, o servidor pode ser incentivado a "aguentar firme" e "não deixar a peteca cair", perpetuando uma cultura de negação da própria saúde em prol do dever profissional.

Essa situação gera uma dualidade de sofrimento. De um lado, o servidor lida com o impacto direto do transtorno mental, que pode comprometer suas capacidades cognitivas, emocionais e físicas. De outro, ele enfrenta o peso de tentar "parecer bem" para evitar o preconceito e manter sua reputação profissional. Esse esforço contínuo de "manter as aparências" agrava ainda mais o estado psicológico do indivíduo, perpetuando um ciclo de adoecimento e dificultando a busca por ajuda adequada.

Em uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), constatou-se que cerca de 47% dos trabalhadores que enfrentam transtornos mentais não buscam auxílio profissional por medo de serem estigmatizados no ambiente de trabalho. No setor público, onde a cultura organizacional muitas vezes valoriza o comprometimento acima do bem-estar, essa realidade é ainda mais preocupante.

4. A Expectativa de Produtividade e a Negação do Adoecimento

Um dos principais fatores que levam à deterioração da saúde mental entre servidores públicos é a expectativa de produtividade contínua, mesmo diante de crises pessoais. Muitos servidores se sentem pressionados a continuar trabalhando, mesmo quando enfrentam graves problemas de saúde mental, por medo de perderem espaço no trabalho ou serem vistos como incapazes. O medo de represálias e o receio de serem considerados "fracos" levam muitos servidores a negligenciarem sua saúde, perpetuando um ciclo de sofrimento silencioso.

Essa pressão está diretamente ligada ao estigma que permeia o ambiente de trabalho em relação à doença mental. É comum que, ao buscar ajuda ou licença médica, o servidor público seja tratado com ceticismo ou até desdém, como se sua condição fosse algo passageiro ou exagerado. Tal abordagem reforça a ideia de que a saúde mental não é uma questão séria e que o servidor deveria ser capaz de "superar" seus problemas sem comprometer seu desempenho.

Casos exemplares podem ser observados em áreas de alta demanda emocional, como na segurança pública. Polícias militares, por exemplo, estão constantemente expostos a situações traumáticas e estressantes. Apesar disso, muitos policiais resistem em buscar ajuda psicológica por medo de serem afastados de suas funções ou de enfrentarem preconceito dentro da corporação. Essa negação do problema frequentemente resulta em quadros agravados de transtornos mentais, que poderiam ter sido tratados se identificados precocemente.

5. Consequências do Estigma: O Ciclo de Adoecimento

A consequência desse estigma e da expectativa de produtividade contínua é um ciclo de adoecimento que pode ser difícil de romper. A falta de apoio adequado para servidores públicos que enfrentam problemas de saúde mental pode levar ao agravamento de seus sintomas, resultando em licenças prolongadas, afastamentos e até mesmo aposentadorias precoces por invalidez. Dados da Previdência Social mostram que o número de servidores públicos afastados por transtornos mentais tem aumentado significativamente nos últimos anos, refletindo a gravidade da questão.

Além disso, a persistente negação do problema e a falta de uma cultura organizacional que promova o bem-estar psicológico resultam em prejuízos não só para o servidor, mas também para o serviço público como um todo, devido à queda de produtividade e ao aumento de custos relacionados à saúde. É importante destacar que a incapacidade de abordar adequadamente a saúde mental no serviço público cria um ambiente de trabalho insustentável a longo prazo, onde a sobrecarga e o adoecimento são vistos como parte do "normal" ao invés de problemas a serem resolvidos.

6. A Necessidade de Mudança: Acolhimento e Prevenção

Para romper com esse ciclo, é essencial que os órgãos públicos implementem políticas de saúde mental que não apenas tratem, mas também previnam o adoecimento. Isso envolve a criação de um ambiente de trabalho que valorize o bem-estar emocional dos servidores, oferecendo suporte psicológico contínuo, promovendo a saúde mental por meio de programas educativos, e treinando gestores para lidar com questões emocionais de maneira empática e eficaz.

Políticas de prevenção também devem incluir a flexibilização de jornadas de trabalho em casos de necessidade médica, o desenvolvimento de programas de reintegração para servidores afastados por motivos psicológicos, e a criação de espaços de diálogo onde os servidores possam expressar suas preocupações sem medo de represálias.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Além disso, é fundamental que se trabalhe na desconstrução do estigma da doença mental. A frase do Coringa nos lembra da crueldade de exigir que pessoas adoecidas ajam como se não estivessem doentes. Romper com essa mentalidade significa reconhecer que o adoecimento mental é real e requer tratamento, empatia e compreensão – não apenas dos profissionais de saúde, mas também dos colegas de trabalho e superiores.

7. Propostas de Melhoria para o Futuro

Para enfrentar esses desafios, algumas propostas concretas podem ser implementadas para melhorar a saúde mental dos servidores públicos:

  • Criação de Centros de Apoio Psicológico: Centros especializados em apoio psicológico para servidores públicos, com equipe multiprofissional treinada para atender de maneira confidencial e humanizada.

  • Capacitação de Gestores: Treinamento contínuo de líderes e gestores sobre saúde mental no trabalho, focando em práticas de acolhimento e prevenção do adoecimento psíquico.

  • Políticas de Flexibilização de Jornada: Adoção de políticas que permitam a flexibilização da carga horária de servidores que estão em tratamento de saúde mental, possibilitando um retorno gradual ao trabalho.

  • Incentivo à Cultura de Cuidado: Promoção de campanhas de conscientização dentro dos órgãos públicos, voltadas para a valorização da saúde mental, a fim de reduzir o estigma e promover uma cultura de cuidado entre os servidores.

  • Monitoramento de Indicadores de Saúde Mental: Implementação de sistemas de monitoramento que identifiquem precocemente sinais de adoecimento mental entre servidores, possibilitando intervenções mais eficazes e preventivas.

8. Conclusão

A saúde mental dos servidores públicos precisa ser tratada com a mesma seriedade que outras questões de saúde ocupacional. A exigência de "normalidade" frente ao adoecimento é um reflexo de uma sociedade que ainda precisa evoluir muito em termos de aceitação e tratamento adequado de transtornos mentais. Para mudar esse cenário, é necessário que os órgãos públicos adotem uma postura proativa, criando um ambiente de trabalho que respeite as limitações impostas pela doença mental e ofereça suporte adequado aos seus servidores. Afinal, a verdadeira produtividade e eficiência só podem ser alcançadas quando a saúde integral do trabalhador é levada em conta.

Referências Bibliográficas

  1. Organização Mundial da Saúde (OMS). (2017). Depression and Other Common Mental Disorders: Global Health Estimates. Geneva: World Health Organization. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/depression-global-health-estimates.

  2. Ministério da Saúde do Brasil. (2021). Saúde Mental no Brasil: Relatório da Saúde Mental 2021. Brasília: Ministério da Saúde. Disponível em: http://www.saude.gov.br/saude-mental.

  3. Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). (2020). Estudo sobre Transtornos Mentais no Brasil. Rio de Janeiro: ABP. Disponível em: http://www.abp.org.br.

  4. Organização Internacional do Trabalho (OIT). (2020). Saúde mental no local de trabalho. Geneva: International Labour Organization. Disponível em: https://www.ilo.org/global/topics/safety-and-health-at-work/WCMS_751269/lang--en/index.htm

Sobre o autor
Victor Lázaro Ulhoa Florêncio de Morais

Advogado Ex-defensor Público do Estado de Goiás Ex- Auditor de controle externo do Tribunal de Contas do Estado de Goiás

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos