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A Constituição de 1988 e a legislação anterior

A Constituição de 1988 e a legislação anterior

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A inconstitucionalidade é a situação de conflito existente entre uma lei e a Constituição. Não existe nada mais importante do que o controle da constitucionalidade das normas infraconstitucionais, ou seja, o controle da regularidade dessas normas, em face dos princípios da Lei Fundamental.

A norma inconstitucional é inválida e não pode produzir nenhum efeito. É nula, exatamente porque conflita com a Lei Fundamental. Não basta, porém, que se saiba que essa norma é inconstitucional. É preciso que exista a potencialidade da sanção de invalidez dessa norma, isto é, que seja sempre possível retirar, prontamente, da ordem jurídica, a norma infraconstitucional que conflite com a Constituição, porque se isso não for possível, a Constituição deixará de ser uma Lei Fundamental, e a inconstitucionalidade prevalecerá. A Constituição deixará de ser efetiva, porque suas normas não serão obedecidas, e as leis inconstitucionais continuarão sendo aplicadas.

Há quase quarenta anos, nosso professor de Direito Constitucional, Dr. Orlando Bitar, criticava a interpretação dada pelo prof. Alfredo Buzaid à Lei 2.271/54, que tratava da argüição de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Dizia o prof. Buzaid que o Procurador Geral da República não era obrigado a submeter ao Supremo o exame da matéria, e o Dr. Bitar mostrava que somente o Supremo deveria decidir a respeito da inconstitucionalidade, porque se o Procurador Geral pudesse decidir a respeito do encaminhamento ou não, dessa argüição de inconstitucionalidade ao Supremo, ele estaria usurpando suas atribuições de guardião da Constituição.

O tempo mostrou que o Dr. Bitar tinha razão, e hoje nós temos, além do controle incidental da constitucionalidade, que cabe a todos os juízes e tribunais, no exame dos casos concretos submetidos ao seu julgamento, um formidável elenco processual destinado a possibilitar o controle direto, em tese, da regularidade das normas infraconstitucionais em face da Lei Máxima, com a Ação Direta, a Declaratória de Constitucionalidade e a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.


Infelizmente, no Brasil, o controle direto de constitucionalidade, através do qual a lei é apreciada, em tese, pelo Supremo Tribunal Federal - e nos Estados existe um processo semelhante, não pode ser utilizado para o exame da regularidade das normas infraconstitucionais em face de texto constitucional posterior. Essa limitação, decorrente do entendimento firmado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, impede que as normas inconstitucionais anteriores sejam invalidadas através da Ação Direta de Inconstitucionalidade. O Supremo entende que, nesse caso, sendo a lei anterior e a Constituição posterior, não existe inconstitucionalidade, mas revogação, porque a norma constitucional posterior revoga a lei preexistente, e o Supremo se nega a decidir as Ações Diretas referentes a essas leis preexistentes. O mais interessante é que o Supremo não se nega a decidir a respeito da inconstitucionalidade dessas mesmas leis anteriores, no controle incidental.

É claro que deveria prevalecer a efetividade constitucional, ao em vez desse exagerado formalismo, porque com esse entendimento, o que ocorre é que essas leis continuam sendo aplicadas, durante longos anos, haja vista que não podem ser retiradas da ordem jurídica através do controle direto, e o Supremo somente as examinará através do recurso extraordinário, depois de quatro ou cinco anos.

É o que vem acontecendo, apenas para exemplificar, com a lei estadual do Pará n° 5.011/81, alterada pela de n° 5.301/85, que estabelece que "a pensão garantirá aos dependentes do segurado que falecer uma importância correspondente a 70% (setenta por cento) do salário de contribuição e será devida a partir da data do óbito."

Em 1.988, a Constituição Federal garantiu aos aposentados e pensionistas o direito à integralidade, mas essa Lei estadual inconstitucional continua sendo aplicada pelo IPASEP, que até hoje paga apenas 70% dos valores devidos. Apenas os pensionistas que ingressaram na Justiça, através de Mandados de Segurança, e de Ações Ordinárias, já estão recebendo os valores integrais, ou aguardando o pagamento das diferenças referentes aos últimos cinco anos.

Evidentemente, em um País como o nosso, onde a todo momento a Constituição está sendo substituída, ou então está sofrendo reformas, fica extraordinariamente facilitada a prevalência dessas normas inconstitucionais, porque elas, pelo simples fato de que são anteriores à Constituição, não podem mais ser objeto de exame através da Ação Direta. O Supremo Tribunal Federal entende que as leis anteriores à Constituição foram revogadas, e muitas continuam sendo aplicadas, durante décadas. Em decorrência, no exemplo dado, do IPASEP, os pensionistas recebem valores inferiores, desde 1.988, e aqueles que recorrerem ao Judiciário, receberão apenas as diferenças relativas aos cinco últimos anos. A lei inconstitucional continuará a prevalecer, o que torna evidente a falha de nosso sistema de controle da constitucionalidade.

Resta a esperança de que essa lacuna, pertinente ao controle de constitucionalidade das normas ordinárias anteriores à Constituição, possa ser preenchida através do novo instituto da argüição de descumprimento de preceito fundamental (CF, art. 102, § 1º), criado pela Emenda Constitucional n° 3, de 17.03.93, e regulamentado pela Lei n° 9.882, de 03.12.99.



Informações sobre o texto

Texto publicado em "O Liberal", 07.11.2000

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fernando. A Constituição de 1988 e a legislação anterior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 48, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114. Acesso em: 19 abr. 2024.