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Possibilidade da existência de normas constitucionais inconstitucionais

Possibilidade da existência de normas constitucionais inconstitucionais

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RESUMO

O presente estudo busca, de uma maneira propedêutica, analisar se há a possibilidade de existirem normas que, oriundas de um mesmo Poder Constituinte Originário, pudessem entrar em conflito com outras normas do Texto Constitucional e, em virtude disso, serem consideradas inconstitucionais.

Das idéias formuladas pelo jurista alemão Oto Bachof, autor da Monografia "Normas Constitucionais Inconstitucionais?", passando por monografias e pareceres de ilustres constitucionalistas brasileiros, a pesquisa tem seu problema delimitado na análise do sistema constitucional brasileiro, através do aprofundamento de três pontos: A limitação do Poder Constituinte Originário, A existência de uma hierarquia entre as normas constitucionais e o princípio da unidade da Constituição e, por fim, A competência dos Tribunais Constitucionais


I-) Introdução

A presente monografia nasceu dos nossos questionamentos diante da leitura do livro Normas Constitucionais Inconstitucionais? (Verfassungswidrige Verfassungsnormen?), do jurista alemão Otto Bachof.

O autor levanta a tese da possibilidade de se constatarem normas constitucionais, dentro do Texto originário da Constituição, que seriam inconstitucionais em face ao Direito Supralegal , permitindo , portanto, a declaração de inconstitucionalidade pelos Tribunais Constitucionais.

Baseia-se em decisão do VerfGH(1) da Baviera , onde "se afasta um conceito de Constituição puramente formal, ao incluir o próprio direito suprapositivo na Constituição como padrão de controle" (2).

Esta decisão, datada de 24-04-1950, relativa ao art.184 da Constituição da Baviera, entre outras coisas, dizia: "A nulidade inclusivamente de uma disposição constitucional não está a priori e por definição excluída pelo fato de tal disposição, ela própria, ser parte integrante da Constituição. Há princípios constitucionais tão elementares, e expressão tão evidente de um direito anterior mesmo à Constituição, que obrigam o próprio legislador constitucional e que, por infração deles, outras disposições da Constituição sem a mesma dignidade podem ser nulas...Se o art.184 da Constituição tivesse o sentido de colocar o legislador, no tocante às medidas a tomar por este relativamente aos grupos de pessoas aí designados, duradouramente fora da Constituição e do direito, seria nulo, por infração da própria idéia do direito, do princípio do Estado do Direito, do princípio da igualdade e dos direitos fundamentais que são expressão imediata da personalidade humana." (3)

Vários autores rechaçaram a tese do Professor Otto Bachof, dentre os quais destacamos, o ilustre jurista Paulo Bonavides. Além de ser um dos maiores constitucionalistas brasileiros, é um extremo conhecedor do Direito Constitucional Alemão, país onde originou a tese das normas constitucionais inconstitucionais .

Ferrenho opositor, elaborou um brilhante parecer para o Governo do Estado de Roraima , em análise da Ação Direta de Constitucionalidade, proposta pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul em 1996, sobre a possível inconstitucionalidade do art.45 da Constituição Federal.

Neste, o Professor Paulo Bonavides critica a proposta em questão, ao argumentar que "com base na monografia de Bachof e em decisões frágeis de duas Cortes alemãs, que jamais firmaram jurisprudência, desenvolvem os autores da ação argumentos que se desmoronam diante da evidência das objeções assentadas sobre a verdade da jurisdição, da doutrina e das leis." (4)

Mesmo sendo um trabalho datado de 1951 e amplamente discutido pelos constitucionalistas, é interessante notarmos que, até hoje, diante da monografia Normas Constitucionais Inconstitucionais? ainda surgem indagações sobre a possibilidade ou não da existência destas e, dependendo das obras pesquisadas, encontraremos juristas defendendo ou rechaçando esta idéia, contrariando aqueles que dizem se tratar de uma questão pacífica.

Além do cunho eminentemente doutrinário, o debate sobre as normas constitucionais inconstitucionais toma o revelo prático e atual no momento em que, proposições como a ADIN lançada pelo Governo do Rio Grande do Sul, em 1996, é considerada "em toda a história constitucional do Brasil, a primeira ação que se formula judicialmente para declarar inconstitucional um artigo da Constituição".

Até que ponto a rigidez das Constituições são imunes às influências e vinculações extrapositivas? O Poder Constituinte Originário deve respeitar valores transcendentais e, se isto ocorrer, normas em desacordo poderão ser consideradas inconstitucionais? Há hierarquia interna entre as normas constitucionais ou o que vigora é o princípio da unidade da constituição? E qual a competência e os limites dos Tribunais ou Cortes Constitucionais?

Deixemos bem claro que esta monografia, em razão da complexidade e vastidão do tema, não tem a pretensão de esgotar a matéria.

Tentaremos ordenar e analisar os três pontos basilares que, ao nosso sentir, sustentam as discussões sobre o assunto. No que tange às informações jurisprudênciais, buscaremos casos que ocorreram no Direito Pátrio.


II-) Da inconstitucionalidade das normas oriundas do Poder Constituinte Derivado ( Poder Constituído de Reforma)

A grande maioria da doutrina constitucional admite possibilidade da inconstitucionalidade de normas que foram formuladas pelo Poder Constituído de Reforma. O Constituinte originário difere-se do Constituído de Reforma porque "enquanto o primeiro precede o ordenamento jurídico, trazendo em si uma natureza de poder de facto, o segundo - Poder de Reforma- existe dentro do próprio ordenamento, por opção do constituinte, tendo em vista a necessidade de adaptar-se o texto as novas situações, realidades e valores sociais." (5)

Se o poder constituído de reforma, como o próprio nome já diz, nasce de um poder superior à este, o Poder Constituinte Originário- que limita a atuação e a força revisional que tem aquele, seja pela matéria, seja pelo procedimento- , de maneira alguma, o constituído poderá sobrepujar, suplantar, denegrir ou modificar princípios e normas que o constituinte originário entendeu serem fundamentais e irretocáveis dentro do Texto Constitucional. O Poder Constituído de Reforma é, portanto, "aquele poder inerente à Constituição rígida que se destina a modificar essa Constituição segundo o que a mesma estabelece." (6)

Como procedermos se houver a criação de uma emenda que viole preceitos materiais e formais do Texto Constitucional, como , por exemplo, aquela que viesse a ferir a cláusula pétrea ?

"Emenda Constitucional deste tipo não se compatibiliza com o Texto Constitucional; ao contrário, foge do modelo, quebra o sistema, agride o ordenamento jurídico, compromete a harmonia, significando ato de subversão e de traição perpetrado pelo constituinte de segundo grau. Reforma não é suspensão, supressão ou destruição da Constituição. O Poder de emendar, concedido ao constituinte derivado, não inclui, obviamente, a possibilidade de violar os fundamentos, subverter o espírito, solapar os princípios da Lei Maior" (7).

Corroborando com esta afirmativa, o professor Zeno Veloso cita em seu livro (Controle Jurisdicional de Constitucionalidade) decisão inovadora do STF , julgando a Adin n?939-DF, cujo objeto consistia em impugnar o IPMF( imposto provisório sobre a movimentação financeira) criado através de Emenda Constitucional n?3 e Lei Complementar n?77/93. O Pretório Excelso afirmou:

"Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é de guarda da Constituição( art.102, a , da CF)-RTJ, 151/756."


III) Colisão de normas constitucionais no tempo. Impossibilidade de inconstitucionalidade de norma constitucional superveniente

Ao mesmo tempo , o choque entre normas constitucionais no tempo, ou seja, de um Texto Constitucional com outro superveniente, também não necessita de maiores estudos.

As características do Poder Constituinte Originário afastam qualquer dúvida, porque ele é "fundacional, genuíno, primário, de primeiro grau, inalienável - responsável pelo nascimento da Constituição. Ao atuar na etapa de criação constitucional, esse poder primogênito logra os caracteres de inicial, autônomo e incondicionado, preexistindo a qualquer ordenamento jurídico- positivo." (8)

"Assim, como base da ordem jurídica do Estado, a nova Constituição determina a perda da eficácia e validade da Constituição anterior, com todas as consequências decorrentes, inclusive no tocante à ordem jurídica anterior". (9)

Confirmando este pacífico entendimento, o STJ em 10 de outubro de 1994 não conheceu o recurso especial, nº 31.750-6-SP, interposto pelos funcionários públicos estaduais contra o Estado de São Paulo , que alegavam o direito adquirido à "sexta parte" em virtude de coisa julgada em ordenamento jurídico anterior(1969). Eis trecho do acórdão:

"II- Uma Constituição nova não fica subordinada ao ordenamento jurídico constitucional anterior. O constituinte , ao procurar dar conteúdo jurídico à sua vontade política, busca sempre aquele ‘mínimo ético’, base de todo o direito. (...)Coerentemente, no ADCT (art.17), expressou a impossibilidade de invocação de "direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título".


IV) Colisão de normas constitucionais, oriundas do Poder Constituinte originário, dentro de um mesmo Texto Constitucional.

Resta-nos ainda e, aí sim, entrando no fulcro de nossa pesquisa, verificar a possibilidade da verificação de normas constitucionais inconstitucionais oriundas do mesmo poder constituinte originário, ou seja, se um Texto Constitucional pode abrigar normas que se choquem e, em vista disso, se poderíamos aplicar o controle de constitucionalidade, detectando e expurgando da Carta as normas doentes.

Diante da leitura de algumas obras , contatamos que existem três aspectos basilares para o aprofundamento da matéria, onde residem os principais focos de divergência entre os juristas. São eles:

a) limitação do Poder Constituinte Originário;

          b) hierarquia interna e o princípio da unidade na Constituição;

          c) competência dos Tribunais ou Cortes Constitucionais.

          IV.a) Limitação do Poder Constituinte Originário

Para aqueles que defendem a possibilidade de normas constitucionais inconstitucionais , os argumentos seriam:

  1. a provável falibilidade do poder constituinte originário, ou seja, na elaboração do Texto Constitucional os legisladores constituintes, dentro do próprio embate da Assembléia, poderiam macular a Carta, criando contradições e antagonismos que, posteriormente, deveriam ser solucionados;
  2. a existência de limites ao poder constituinte originário mediante um direito supralegal (ou também considerado como Direito Natural), "a existência de um consenso social acerca pelo menos das idéias fundamentais da justiça,(...) a proteção da vida humana e da dignidade do homem, a proibição da degradação do homem num objeto, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, a exigência da igualdade de tratamento e da proibição do arbítrio" (10) .

Ou seja , o poder constituinte originário poderia cometer erros na elaboração da Constituição ou, em contrapartida, não respeitar direitos consolidados por um direito supralegal, valores metafísicos onde não são levados em conta "princípios constitutivos de toda e qualquer ordem jurídica e, nomeadamente, NÃO se deixe guiar pela aspiração à justiça e NÃO evite regulamentações arbitrárias" (11).( as partículas negativas foram inseridas por nós)

Já aqueles que discordam , entendem que:

  1. "a probabilidade de uma norma constitucional originariamente inconstitucional é bastante restrita em estados de direito democrático-constitucionais." (12)
  2. quanto à constatação de um direito supralegal , diz o constitucionalista Jorge Miranda, numa citação do mestre Paulo Bonavides: "não concordamos , pois, com Otto Bachof quando reivindicando para toda e qualquer ordem constitucional valores supralegais, daí retira suscetibilidade de inconstitucionalidade. Ainda que aceitemos que em toda e qualquer ordem jurídica se encontram aqueles valores , nem sempre eles alcançam força suficiente para conformar a Constituição e, portanto, para determinar constitu_ cionalidade ou inconstitucionalidade dos atos jurídicos-públicos." (13)

As críticas surgem quando se verifica que, dentro de um Estado Democrático de Direito- o embate político é realizado mais claramente, com o poder constituinte originário, cujo titular é o povo, sendo exercido pelos seus representantes eleitos. A formação do Texto Constitucional passa por um processo de debates e discussões onde as contradições haverão de ser sanadas ainda no momento de criação daquele.

Concomitantemente, as limitações que o Poder Constituinte tem, sem dúvida alguma, são oriundas da sociedade em que está inserido. E não deixam de haver influências como o direito natural, isto é, "os chamados ‘direitos da pessoa humana’, por exemplo, desde o direito à subsistência até as prerrogativas da igualdade e liberdade" (14) .

O conjunto de direitos inerentes da própria humanidade ou "as conquistas axiológicas, emergentes do processo histórico" (15) serão tomados como parâmetros para a elaboração da Lex Fundamentalis.

Mas, depois de elaborada e passando a vigorar, estas influências extra-positivadas não terão força necessária para determinar o que é correto ou errado dentro da Carta ( o que é constitucional ou inconstitucional).

A Constituição é o "documento onde estarão consagrados os princípios da nova ordem jurídica, culminância dos ideais e anseios perseguidos pelos revolucionários e que resultam dos entrechoques das forças vitoriosas" (16) e, sendo assim, é dotada de total legitimidade por ser fruto dos representantes do titular do poder constituinte: o povo. Antes de mais nada, o Texto Constitucional é a opção político ideológica da coletividade.

          IV.b) A existência de uma hierarquia entre as normas constitucionais e o princípio da unidade da Constituição.

          Este é, ao meu ver, o ponto mais difícil para a solução desta problemática.

É importante distinguirmos, dentro do gênero "norma constitucional", o que é regra e princípio constitucionais. Estes são expressões normativas consolidadas a partir dos valores (fundamentos) ou fins (diretrizes) predeterminados constitucionalmente, que se destinam a dar o máximo de coerência, univocidade e concreção ao ordenamento jurídico fundado numa dada Constituição" (17) ( Carmen Lúcia Rocha). Já as regras constitucionais estatuem preceitos normativos, tal como as regras jurídicas infraconstitucionais, estabelecem um padrão de conduta a ser seguido pelo cidadão diante de uma situação jurídica individual, que pode determinar uma permissão, obrigação ou proibição." (18)

Em virtude de existir na Constituição uma série de princípios, sejam eles fundamentais, gerais ou específicos, poderíamos imaginar que há "fenômenos de tensão" entre eles. A possibilidade de introduzirmos uma "lógica do tudo ou nada" entre princípios iria de encontro com a própria essência da Constituição, que não deixa de ser o "resultado de um compromisso entre vários atores sociais, transportadores de idéias, aspirações e interesses substancialmente diferenciados e até antagônicos ou contraditórios." (19)

Ou seja, as aparentes contradições entre os princípios constitucionais haverão de ser sanadas pela interpretação dos aplicadores, ou seja, "uma concretização proporcional dos princípios nas situações jurídicas individuais" (20).

Em vista disso, não há como encontrarmos princípios constitucionais inconstitucionais.

O que cabe analisar é se podem existir conflitos de regras entre si ou das regras para com os princípios.

A conhecida divisão entre normas formalmente constitucionais e normas materialmente constitucionais, é um dos argumentos dos que defendem a concretização de regras constitucionais inconstitucionais. Se as normas que apenas integram o corpo da Constituição para ganharem força constitucional entrarem em choque com normas materialmente constitucionais , aquelas seriam consideradas inconstitucionais.

Já o ilustre jurista Ivo Dantas , desenvolve a tese da existência de princípios fundamentais ( que aparece sob o Título I da Constituição da República Federativa do Brasil ) que "representados por esta ou outra expressão, implica uma subierarquia interna. Isso significa que o conteúdo da Constituição nada mais deverá ser do que o desenvolvimento de tais princípios. Assim, admite-se a existência de Normas Constitucionais Inconstitucionais." (21)

Muito interessante este posicionamento pois, "a partir da consagração, pelo texto constitucional, de Princípios Fundamentais e de Princípios Gerais voltados para determinado setor, parece-nos possível estabelecer entre ambos uma nova hierarquia. Nesta, os primeiros ocupam o ápice da pirâmide e os segundos uma posição intermediária entre os Princípios Fundamentais e as normas a que chamaríamos de setoriais." (22)

Se comprovada a hierarquia, um possível choque entre uma regra inferior com um princípio em estamento superior, ensejaria dizer que aquela não respeitou uma posicionamento constitucional de maior grau, o que levaria a constatação de que ela é inconstitucional.

Por outro lado, outros doutrinadores contrariam tais teses, alegando que não há hierarquia entre as os princípios e normas constitucionais, ou seja, lecionam a verificação do "princípio da unidade hierárquico-normativa" (23)

"O princípio da unidade hierárquico-normativa significa que todas as normas contidas numa constituição formal têm igual dignidade ( não há normas só formais, nem hierarquia de supra-infra-ordenação dentro da lei constitucional)" (24)

E o jurista português J.J. Gomes Canotilho, um dos defensores desta corrente, prossegue na sua explicação: "embora a Constituição possa ser uma ‘unidade dividida’(P. Badura) dada a diferente configuração e significado material das suas normas, isso em nada altera a igualdade hierárquica de todas as suas regras e princípios quanto à sua validade, prevalência normativa e rigidez".

"O fundamento subjacente a toda a idéia de unidade hierárquico-normativa da Constituição é o de que as antinomias eventualmente detectadas serão sempre aparentes e, ipso facto, solucionáveis pela busca de um equilíbrio entre as normas, ou pela exclusão da incidência de alguma delas sobre dada hipótese, por haver o constituinte disposto neste sentido" (25).

Portanto, todos as normas quando inseridas em uma Constituição seriam dotadas de constitucionalidade. Os choques ou antinomias entre regras ou entre regras e princípios haverão de ser harmonicamente conciliadas, tranformando-se numa contradição aparente que , de forma alguma , macularia a coerência e a força da Constituição.

          IV.c) Da Competência dos Tribunais Constitucionais

Outro aspecto importante para a compreensão deste debate é o estudo do grau de competência dos Tribunais ou Cortes Constitucionais no controle da constitucionalidade.

Até que ponto poderia ir um Tribunal na defesa da Constituição? Como um poder constituído haveria de anular um preceito elaborado pelo seu criador ( poder constituinte originário)?

Há autores que acreditam que compete aos Tribunais detectar e avaliar a antinomias presentes no Texto Constitucional, mesmo sendo aquelas oriundas do poder constituinte originário.

Na defesa da Constituição acima de tudo, a Lex Fundamentalis não poderia ser atacada por normas que estivessem corrompendo seu "espírito".

Caberia ao Tribunal ou Corte Constitucional , como perfeito "Guardião" da Constituição, protege-la, inclusive, de normas violadoras criadas pelo poder constituinte originário.

"A competência de controle de um tribunal constitucional relativa à constitucionalidade das leis, abrange também a faculdade de controle, nela incluída, relativa à constitucionalidade." (26)

Entretanto , a grande maioria dos autores entendem que os Tribunais Constitucionais por serem poderes constituídos, com limites expressamente definidos nas Constituições, não poderiam alargar sua jurisdição acima daquilo que lhes foi permitido.

Faz-se mister reproduzirmos um magnífico trecho do parecer do mestre Paulo Bonavides sobre a problemática que seria instaurada com a permissão dos Tribunais Constitucionais analisarem a constitucionalidade de artigos da Constituição:

"O Tribunal Constitucional, poder constituído, não há de inverter a sua função, como ocorrerá caso reconheça a si mesmo competência para desfazer ou invalidar preceitos da própria Constituição.

Nessa hipótese, não se arvora ele tão-somente em "quarto Poder", mas em Poder dos Poderes, acima do Executivo e do Legislativo, sobranceiro à própria Constituição, deslembrado de que desta lhe provém toda a autoridade exercida no desempenho da função jurisdicional.

A Magistratura Suprema não pode, pois, ser fiscal das regras da Constituição com a faculdade de anulá-las a seu livre alvedrio, sem repudiar e subverter a mesma de legitimidade. Transformada em primeira instância constitucional do País, ela acorrentaria aos seus pés aquilo que outrora fora a soberania do povo e da Nação." (27)

É interessante destacarmos a tendência, em nosso país, de se apoiar a idéia de que o Tribunal Constitucional (isto é, o Supremo Tribunal Federal) somente poderá exercer o controle de constitucionalidade dentro dos limites expostos pela vigente Constituição, ou seja, a análise da concordância das leis e dos atos normativos com as normas e princípios do Texto.

Em recente, mas não menos histórica, decisão o STF não conheceu a já acima mencionada Ação Direta de Inconstitucionalidade promovida pelo Estado do Rio Grande do Sul, cuja ementa do acórdão , da lavra do Ministro Moreira Alves, reproduzimos:

"Ação direta de inconstitucionalidade.

Esta Corte, ao apresentar a ADIN 815, dela não conheceu por entender que não tem jurisdição constitucional para julgar a alegação de inconstitucionalidade de expressões dos parágrafos 1º e 2º do artigo 45 da Carta Magna Federal em face de outros preceitos dela (que são também os alegados como ofendidos na presente ação), sendo todos resultantes do Poder Constituinte Originário.

Persistindo, portanto, a eficácia desses parágrafos 1º e 2º da Constituição Federal, e se limitado os dispositivos ora impugnados (artigo 2º , caput e parágrafo único, e artigo 3º da Lei Complementar nº 78, de 30 de dezembro de 1993) a reproduzir exatamente os seus critérios numéricos, são estes constitucionais".

Em seu voto, Moreira Alves conclui que "compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição( art.102, caput), o que implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição".


V-) Conclusão

Entendemos que o debate, nos seus três aspectos levantados, sobre o tema Normas Constitucionais Inconstitucionais concentra seu maior dilema na constatação ou não de uma hierarquia interna entre os princípios e regras da Constituição.

A limitação , por valores transcendentais, do Poder Constituinte Originário e a existência e influência de um Direito Supralegal na constitucionalidade das normas presentes na Carta , são argumentos que perdem força no embate, pois :

  • os possíveis "parâmetros" impostos ao Poder Constituinte Originário estão na pré-elaboração do Texto ; opções feitas e consagradas , aqueles não mais influem;
  • quanto ao Direito Supralegal, é interessante notarmos que na maioria das Constituições atuais, inclusive na brasileira, a inclusão dos direitos fundamentais do homem e da coletividade já é pacífica, levando a análise dos choques e colisões do campo externo (Direito Supralegal X Constituição) para o âmbito interno da Carta (hierarquia interna das normas).

A Competência e a Limitação dos Tribunais ou Cortes Constitucionais serão reflexos da opção doutrinária que tomamos: a hierarquia interna ou princípio da unidade da Constituição.

Se pendermos para hierarquia , necessariamente, os Tribunais haverão de se pronunciar sobre as antinomias no Texto ; se optarmos pelo princípio da unidade da Constituição, os choques serão apenas aparentes e a função dos Tribunais se limitará na harmonização do Texto através da interpretação do conjunto da obra.

As discussões doutrinárias perdurarão entre os juristas , ainda por muito tempo.

Cabe-nos ressaltar da dificuldade prática que será criada com a possibilidade dos Tribunais em declarar normas constitucionais inconstitucionais, visto que, no caso brasileiro por exemplo, não há competência determinada no Texto para isso.

Entendemos que, em defesa do Estado Democrático de Direito, o princípio da unidade da Constituição como postulado em nossa ciência é a saída mais coerente e cautelosa, inclusive para a própria preservação do constitucionalismo.

Coadunamos com o mestre Paulo Bonavides nos riscos que haveremos de correr ao deixar tão significativa parcela de poder nas mãos de um Tribunal. Da separação dos poderes , partiríamos para a inclusão de um super-poder , quiça acima dos moldes do Poder Moderador de nossa Constituição de 1924.

Enquanto não forem criadas outras formas de participação popular , verdadeiramente do titular do Poder Constituinte originário , no processo democrático e ,porque não, na revisão ,emenda e controle de constitucionalidade, qualquer tipo de declaração de normas constitucionais inconstitucionais pelos tribunais ou qualquer outro poder constituído, representará um atentado dos mais graves à Constituição.

As normas constitucionais nascendo de um Poder Constituinte legítimo, representante do povo, as opções por ele escolhidas deverão ser respeitadas, sendo necessário que os aplicadores do Direito, ao lerem os princípios e as regras constitucionais, "compreendessem, na medida do possível, como se fossem obras de um só autor, exprimindo uma concepção correta do direito e da justiça"(Dworkin).


NOTAS

  1. Verfassungsgerichtshof , que significa Tribunal Constitucional
  2. BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais. Livraria Almedina , 1994, p.23
  3. Idem. p.23-24.
  4. BONAVIDES, Paulo . A Constituição Aberta . O art.45 da Constituição Federal e a Inconstitucionalidade de normas constitucionais. São Paulo : Malheiros , 2ª Edição , p. 215.
  5. DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição. Rio de Janeiro: Renovar , 1996 , p 170
  6. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direito Constitucional Comparado, I- O Poder Constituinte , pp. 155 e 156.
  7. VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. Belém : Cejup,1999 , pp.144.
  8. BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p.20.
  9. FERRAZ, Ana Cândida da Cunha. A Transição Constitucional e o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF de 1988 in Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política. Vol.26.
  10. BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais. Livraria Almedina , 1994.
  11. BACHOF, Idem. página 41.
  12. CANOTILHO. J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Livraria Almedina,3ª edição, 1999. p.1157.
  13. BONAVIDES, Paulo . A Constituição Aberta . O art.45 da Constituição Federal e a Inconstitucionalidade de normas constitucionais. São Paulo : Malheiros , 2ª Edição , p. 219.
  14. REALE, Miguel. Direito Natural/Direito Positivo. São Paulo : Saraiva , 1984 , p.4
  15. idem.
  16. RUSCHEL, Ruy Ruben. O Poder Constituinte e a Revolução in Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política. Vol.02 . São Paulo: Editora Revista dos Tribunais , p.112.
  17. FRANÇA, Vladimir da Rocha. Questões sobre a hierarquia entre as normas constitucionais na Constituição de 1988. Revista jurídica na Internet - JUS NAVIGANDI. ( www.jus.com.br), 1999.
  18. Idem.
  19. CANOTILHO. J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Livraria Almedina,3ª edição,1999. p.1108.
  20. FRANÇA, Vladimir da Rocha. idem.
  21. DANTAS, Ivo. Princípios Constitucionais e Interpretação Constitucional. Rio de Janeiro:Lumen Juris, p.102.
  22. idem. p.86
  23. CANOTILHO. J.J.Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Livraria Almedina,3ª edição, 1999. p.1109.
  24. idem. p.1109
  25. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo : Saraiva, 1996. pp.196
  26. Grewe in Normas Constitucionais Inconstitucionais. Livraria Almedina , 1994 , p.31
  27. BONAVIDES, Paulo . A Constituição Aberta . O art.45 da Constituição Federal e a Inconstitucionalidade de normas constitucionais. São Paulo : Malheiros , 2ª Edição , p. 224-225.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

POGLIESE, Marcelo Weick. Possibilidade da existência de normas constitucionais inconstitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 40, 1 mar. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115. Acesso em: 24 abr. 2024.