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Considerações para a construção de um conceito histórico da cidadania

Considerações para a construção de um conceito histórico da cidadania

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RESUMO

O presente artigo tem a finalidade de fornecer elementos para a construção de um conceito histórico da cidadania e demonstrar que não se pode utilizar o pensamento de Rousseau para fundamentar e relacionar os termos cidadão e cidadania com os direitos de votar e ser votado, pois se trata de distorção interpretativa, é "ver o passado com os olhos do presente". O cidadão é titular de direitos que são produtos de um processo histórico recente, com início na modernidade e que ainda não se esgotou. Nesse contexto, para a construção de um conceito de cidadania, faz-se necessário a construção critérios que considerem, primeiramente, que é o ser humano que faz sua história, ao mesmo tempo em que é feito por ela. O homem e suas instituições culturais, políticas e jurídicas, só podem ser compreendidos na dimensão da historicidade, onde se constrói o ser jurídico, vale dizer, cidadão e cidadania.

ABSTRACT

This article aims to provide elements for the construction of a historical concept of citizenship and demonstrate that it cannot use the thinking of Rousseau for bottom and to relate the citizen and citizenship terms with the rights to vote and be voted, because it is an interpretative distortion, it is like to "see the past with the eyes of the present". The citizen is entitled of rights which are products of a recent historic process, beginning in modernity and which are not yet exhausted. In this context, for the construction of a concept of citizenship, it is necessary to build criterions which consider, firstly, that it is the human being which makes its history, at the same time that it is done by it. The man and its cultural, political and legal institutions, may only be included in the dimension of historicity, where the legal being is building, in other words, citizen and citizenship.

PALAVRAS-CHAVE: cidadão; cidadania; direitos; democracia representativa.

KEYWORDS: citizen; citizenship; rights; representative democracy.


1. INTRODUÇÃO: OBJETIVOS, DELIMITAÇÕES E METODOLOGIA.

A finalidade deste artigo é tecer considerações sobre a compreensão jurídico-histórica dos termos cidadão e cidadania, superando a conceituação corrente restrita ao exercício dos direitos inerentes à democracia representativa.

Utilizaremos, a exemplo da delimitação realizada por Sérgio Resende de Barros e por José Murilo de Carvalho [01], a determinação de sobre quais povos recaem as assertivas realizadas, restringindo-se, assim, ao sistema ocidental.

Assim deve ser entendido o sistema aqui demarcado: é ocidental, porque nele a civilização dominante é a ocidental e não porque se reduza a ela, já que as potências que o lideram projetam sua influência sobre as demais civilizações admitidas por Huntington, destacadamente sobre a ortodoxa, a hindu, a japonesa, a latino-americana e a possível civilização africana. Todas essas – acrescentando-se às matrizes: Europa Ocidental e Estados Unidos, bem como Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Israel e outros países formam o sistema ocidental. [02]

Serão identificados no desenvolvimento a localização espacial e temporal a que se referem as afirmações e considerações, ponderando que os direitos do homem são produtos históricos.

Nesse sentido:

Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, nem todos de uma vez e nem de uma vez por todas. [03]

Visto isso, o desenvolvimento do tema se dará tomando por pressuposto o desenvolvimento histórico jurídico, mediante a seleção de fontes de informação que o atendam. Contudo, com essa exposição, não se pretende demonstrar um desenvolvimento evolucionista e continuísta dos direitos, mas rechaçar tal afirmação.

Ponderaremos ainda que...

"...o pesquisador deve usar sua realidade como instrumento de comparação para identificar semelhanças e diferenças com experiências passadas. Dito de outra forma, devemos permanecer abertos a sistemas de valores radicalmente diferentes, evitando considerar o passado com a lente do presente." [04].

E, acompanhando o entendimento da mesma autora citada, utilizaremos datas e eventos históricos como marcos históricos, meros referenciais que não se compõe somente de momentos determinantes de alteração do rumo da história. Vale observar a citação que complementa e acresce nossa afirmação:

A história não é composta exclusivamente por grandes momentos, decisões políticas, guerras e rupturas revolucionárias, da mesma forma que o direito não é exclusivamente composto por normas escritas impostas pelo legislador. [05]


2. CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE O CIDADÃO E A CIDADANIA COM FUNDAMENTO NOS CONCEITOS DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU

Na literatura jurídica atual, ao tratar da cidadania, em meio a esforço doutrinário para diferenciá-la dos conceitos de povo e população, nação e nacionalidade, e até mesmo do conceito de cidadão, são comuns os apontamentos, como notas distintivas hábeis a individualizá-la, da necessária preexistência da nacionalidade e do gozo dos direitos políticos.

E, é nesse sentido, para esses autores, que "Cidadão, no direito brasileiro, é o indivíduo que seja titular dos direitos políticos de votar e ser votado e suas conseqüências.", e que cidadania consiste no "atributo político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela representação política." [06], e, no mesmo sentido, que "Cidadão: é o nacional (brasileiro nato ou naturalizado) no gozo dos direitos políticos e participantes da vida do Estado." [07], ou, ainda, "Já a palavra "cidadão" é voltada para designar o indivíduo na posse de seus direitos políticos." [08].

Os autores que apontam o fundamento dessas definições, pois nem todos o fazem [09], indicam o reconhecimento da existência de direitos públicos subjetivos remetendo aos escritos de Rousseau.

Segundo o próprio JELLINEK, a raiz dessa teoria, que leva ao reconhecimento da existência de direitos públicos subjetivos, encontra-se em ROUSSEAU, quando diz que os associados, que compõem a sociedade e o Estado, recebem coletivamente o nome de povo, cabendo-lhes a designação particular de cidadãos quando participam da autoridade soberana e sujeitos quando submetidos às leis do Estado. [10]

Nas palavras de Rousseau, no capítulo VI - "Do pacto social", de sua obra "Do Contrato Social":

A respeito dos associados, tomam coletivamente o nome de Povo, e chamam-se em particular Cidadãos, como participantes da autoridade soberana, e Vassalos, como submetidos às leis do Estado. Esses termos, porém se confundem muitas vezes e se tornam um por outro; basta saber distinguir quando se empregam com toda precisão. [11]

Contudo, para a compreensão das afirmações de Rousseau (1712 a 1778), não se pode perder de vista que ele viveu em diversos países da Europa [12], no século XVIII, pois foi nesse contexto histórico que escreveu e desenvolveu suas idéias.

Nesse passo, de se notar que em seu "Contrato Social", antes de realizar a sua definição de cidadão, realizou considerações sobre o que se considerava por cidade "noutro tempo", pois desta forma era chamada a "pessoa pública, formada assim pela união de todas as outras", mas "que hoje se chama república, ou corpo político, o qual é por seus membros chamado Estado quando é passivo, soberano se ativo, poder se o comparam a seus iguais." [13] Frise-se, desde já, que ele se referiu a hoje no século XVIII, anos de 1700, antes da revolução francesa.

Além disso, quando realizou referência à cidade abriu nota de rodapé no seguinte teor:

Quase se perdeu entre os modernos o verdadeiro sentido desta palavra, e grande parte deles toma burgo por cidade, e o burguês por cidadão. Ignoram que as casas compõe o burgo, e os cidadãos, a cidade. Aos cartagineses custou caro outrora o mesmo erro. Não se soube que se desse o título de cives a vassalos de algum príncipe, nem antigamente aos macedônios, nem hoje aos ingleses, ainda que mais perto da Liberdade que os outros todos. Só os franceses tomam familiarmente o nome cidadãos porque dele não têm idéia alguma, como se pode ver em seus dicionários. Se assim não fora, usurpando-o, cairiam em crime de lesa-majestade: esse nome entre eles exprime uma virtude e não um direito. Quando Bodin quis falar de nossos concidadãos e burgueses, enganou-se grosseiramente, tomando uns pelos outros. Não assim M. d’Alembert, que distinguiu bem, no seu artigo Genebra, as quatro ordens de homens (cinco mesmo a contar os simples estrangeiros) que estão em nosso burgo, e das quais só duas compõe a República. Não sei que outro autor francês haja compreendido o verdadeiro significado da palavra cidadão. [14]

Vê-se que Rousseau considerava a cidadania um direito, tanto que classifica outros entendimentos como equivocados. Um direito de participar da atividade soberana.

Com relação à atividade soberana, devemos contextualizá-la no momento histórico. Trata-se de período pós-feudal, onde ele e outros pensadores desenvolvem o pensamento iluminista num contexto de governos monárquicos, sendo alguns absolutos, como na França, ou monarquias limitadas, como na Inglaterra.

Nesse contexto permite-se extrair que a atividade soberana era exercida pelos reis, não se olvidando que Rousseau aloca no povo a soberania, pois "Segundo ele o povo é o único soberano e a vontade geral do povo é a expressão da soberania." [15], devendo ele próprio se governar, o que nos remete ao exercício da democracia direta.

Na mesma época em que Rousseau viveu e tratou da democracia, hoje adjetivada direta para distingui-la da representativa e participativa ou semi-direta, o barão de Montesquieu (1689 a 1755) desenvolveu idéia antitética à democracia: a representação política.

Porém, gize-se, o contexto histórico é de monarquias, absolutas ou relativizadas, sem se falar ainda no exercício efetivo da representação política, idéia que se materializa na França após a Revolução Francesa. Também não havia forma de governo como no ideal desenvolvido por Rousseau, da democracia nos moldes gregos do "século de Péricles" (461 – 431 A.C) em Atenas.

Assim, temos duas situações a ponderar acerca da atividade soberana a que se refere Rousseau: se considerado o desenvolvido em sua obra, como ideal, somos remetidos à democracia direta, e atividade soberana significa, em última análise, a atividade do povo. Doutro lado, se considerado o contexto histórico em que escreveu e no qual critica o conceito de cidadania desenvolvido por autores, somos remetidos às monarquias, nas quais, se absolutas, a atividade soberana vem a significar, também em última análise, a atividade do rei.

Nesse passo, definir cidadãos como os participantes da atividade soberana, na obra de Rousseau, significa alocá-los no grupo maior que é o povo, pois do Estado são associados, e significa, a contrário sensu, que nem todos do povo são cidadãos; desta forma, nem todo o povo participa da atividade soberana que se origina em si mesmo.

Em suma, todo cidadão integra o povo, e no povo reside a soberania. Somente os cidadãos participam da atividade soberana, que, por sua condição, se origina também em si.

Porém, estas conclusões possuem sentido se consideradas num governo de forma democrática e, para Rousseau, exercida diretamente. Noutro contexto, noutra forma de governo, como as do momento histórico em que ele desenvolveu sua obra, ou seja, de monarquias, o conceito perde o sentido. Afinal, apesar de época diversa, quem participou efetivamente da atividade soberana do Rei Luis XIV, da França, ou de Jaime II, da Inglaterra?

Não se perca de vista que...

O cerne do pensamento rousseauniano parece repousar na afirmação de que o homem, ao submeter-se integralmente à vontade geral, escapa da sujeição a uma vontade particular. Obedecendo à lei para cuja elaboração ele diretamente contribuiu, o homem não obedece senão a si mesmo. [16]

Nesse passo, rechaça-se definitivamente a possibilidade de Rousseau se referir ao cidadão como participante da atividade do monarca absoluto, pois é uma contradição em termos, e significa a submissão da vontade geral a uma vontade particular. Essa repulsa tem como pressuposto "a alienação total de cada sócio, com todos seus direitos, a toda comunidade; pois dando-se cada um por inteiro, para todos é igual a condição, e, sendo ela para todos igual, ninguém se interessa em torná-la aos outros onerosa." [17]

Não há que se perder de vista, outrossim, que Rousseau também se opôs veementemente a qualquer possibilidade de representação, como se pode verificar do trecho de sua obra:

Não se pode representar a soberania pela mesma razão que se não pode aliená-la; consiste ela essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa; ou ela é a mesma, ou outra, e nisso não há meio-termo; logo os deputados do povo não são, nem podem ser representantes seus; são comissários dele, e nada podem concluir decisivamente. É nula, nem é lei, aquela que o povo em peso não retifica. [18]

Frise-se que possivelmente ocorreu erro na tradução ou impressão deste trecho, visto que a palavra final não deveria ser "retifica", mas sim "ratifica", pois, em que pese a similitude gráfica, seus significados absolutamente são diversos. Ademais, em outras edições consta "ratifica" [19].

Sobre a ponderação acerca da origem da compreensão da cidadania como o direito de votar e ser votado, de que, "Segundo o próprio JELLINEK, a raiz dessa teoria, que leva ao reconhecimento da existência de direitos públicos subjetivos, encontra-se em ROUSSEAU..." [20] é descabida basicamente por duas razões.

Primeiro em razão da inexistência, naquele momento histórico, de direitos públicos subjetivos, que somente foram declarados na França, na Revolução Francesa em 1789, em que pese a existência prévia de direitos dos ingleses, e somente deles, reconhecidos em razão da tradição no Bill of Rights em 1689, um dos produtos da Revolução Gloriosa, sem desconsiderar os direitos reconhecidos e declarados após a Revolução Americana (1776) em 1791. Pondere-se ainda que a nomenclatura direitos públicos subjetivos não encontra unanimidade doutrinária, significando para uns o mesmo que direitos fundamentais [21] e, para outros, nomenclatura derivada dos direitos individuais do Estado liberal, não podendo, em razão disso, significar direitos fundamentais [22], cuja compreensão é mais extensa. Porém, numa ou noutra definição, tem-se que titulares, os indivíduos, os opõem contra o Estado, e tal condição só se verifica com os produtos das revoluções liberais burguesas que somente ocorreram após Rousseau, e tanto o é que os seus escritos também as inspiraram, juntamente com outros autores.

Acerca da relação entre o iluminismo e o constitucionalismo, bem como sobre os autores iluministas e a relação com as revoluções liberais burguesas, vale observar:

Pois bem, essas idéias(iluministas) surgidas e aprofundadas na Inglaterra, na França e na Alemanha, em particular com Hobbes, Locke e Benthan, Voltaire, Montesquieu e Rousseau, Leibniz, Lessing e Kant, acabaram por formar o movimento político-jurídico denominado Constitucionalismo. Tal movimento veio a ser a grande e poderosa cunha final fincada, para derribá-lo, no tronco do absolutismo real, por obra especialmente dos revolucionários instalados no III Congresso, que reuniu representantes das treze Colônias norte-americanas em 1776, e na Assembléia Nacional, que reuniu os representantes do Terceiro Estado francês, em 1789. Esses dois movimentos revolucionários alimentaram-se das idéias do Iluminismo e deram nascimento à Constituição em moldes modernos, ou seja, um diploma normativo ao mesmo tempo estruturante do poder soberano de que garante os direitos naturais do homem, tendo por instrumento a separação de poderes. [23]

A segunda razão, cujos fundamentos já foram apontados neste texto, consiste na incorreção em se vincular a participação na atividade soberana com o direito de votar e ser votado, com base em Rousseau, especialmente porque a atividade soberana do momento histórico em que ele viveu, bem como a por ele idealizada, não são as hoje exercidas. A atividade soberana hoje se exerce essencialmente, mas não exclusivamente, por representação política, idéia a que ele se opôs.

Assim, questiona-se: como fundamentar logicamente uma definição de cidadania como o direito de votar e ser votado, direitos inerentes à representação política, com um autor que a ela é contrário?

Daí porque a utilização do conceito de cidadania desenvolvido por Rousseau somente tem sentido naquele momento histórico e no contexto do desenvolvido em sua obra, não se podendo aplicá-lo, sem incorrer em distorções, à democracia representativa, como pretendem aqueles autores.

Para a compreensão e utilização atual dos termos cidadão e cidadania, deve ser considerado o momento histórico que imediatamente sucedeu Rousseau: o das revoluções liberais burguesas.

No momento histórico em que Rousseau viveu o déspota está no centro da atividade soberana. Com as declarações de direitos, produtos das revoluções liberais burguesas, aonde o Estado é submetido às leis, muda-se o ponto de vista, o centro da atividade soberana volta-se para os cidadãos.

É com o nascimento do Estado de Direito que ocorre a passagem final do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos singulares só tem deveres e não direitos. No Estado Absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos. [24]

Assim, alterando-se a atividade soberana, por meio de alteração de sua titularidade, bem como se declarando direitos a serem opostos ao Estado, direitos públicos, muda-se substancialmente as notas que caracterizam e compõe os termos cidadão e cidadania. O cidadão passa a ser titular de direitos a serem opostos ao Estado, o que não se viu em momentos históricos anteriores, sendo esses direitos, num primeiro momento, as liberdades públicas.

Daí a razão pela qual autores como T. H. Marshall consideram que o exercício da cidadania é complexo e historicamente definido, e a apresentam com várias dimensões, sugerindo que ela se desenvolveu lentamente na Inglaterra, primeiramente com os direitos civis no século XVIII, e, em seqüência lógica e cronológica, com os direitos políticos no século XIX, e com os direitos sociais no século XX [25].

Na verdade o autor atrelou o desenvolvimento histórico da cidadania ao desenvolvimento dos direitos humanos, merecendo, porém, ressalvas no que diz respeito à interpretação histórica, visto que impregnada de ideologia evolucionista e continuísta dos direitos historicamente conquistados, o que não pode ser tido como correto.

O surgimento seqüencial dos direitos sugere que a própria idéia de direitos, e, portanto, a própria cidadania, é um fenômeno histórico. O ponto de chegada, o ideal da cidadania plena, pode ser semelhante, pelo menos na tradição ocidental dentro da qual nos movemos. Mas os caminhos são distintos e nem sempre seguem linha reta. Pode haver também desvios e retrocessos, não previstos por Marshall. [26]

Contudo, a compreensão histórica acima, que atrela o desenvolvimento da cidadania ao desenvolvimento dos direitos humanos, merece complemento.

Após as revoluções liberais burguesas os termos cidadão e cidadania não exprimem conceitos diversos dos momentos anteriores somente e exclusivamente porque se desenvolvem os direitos humanos.

Esses termos se desenvolvem e evoluem na medida em que se desenvolve o processo histórico e se alteram as relações de governo da sociedade humana, pois é assim que evoluíram, e ainda evoluem, os direitos. Ao iniciar um de seus livros, Sérgio Resende de Barros, no primeiro parágrafo, introduz:

Aqui se inicia um estudo da evolução histórica em que, na relação fundamental do governo da sociedade humana, os sujeitos transitaram da imposição de deveres pelo governante ao governado à oposição de direitos do governado ao governante, passando entre uma e outra pela composição de deveres com direitos entre ambos. Em suma: a evolução dos deveres aos direitos humanos. [27]

Note-se que adotamos neste artigo uma posição interpretativa jurídico-histórica, e nesse sentido, sobre as formas de governo, esse também é o nosso posicionamento. E...

Isso tem o seguinte resultado: as várias formas de governo não são apenas modos diversos de organizar a vida política de um grupo social, mas também fases ou modos diversos e sucessivos, geralmente concatenados, um descendendo do outro, pelo seu desenvolvimento interno, dentro do processo histórico. [28]

Pondere-se, doutro lado, ainda com relação à interpretação histórica da cidadania, que ela muitas vezes se perde em meio a inúmeras interpretações filosóficas, sociológicas, antropológicas, estritamente jurídicas, gerando, cada uma ao seu modo, produções sobre a cidadania, o que acarreta a sua fragmentação.

Dada a crença bastante difundida segundo a qual a cada disciplina, ou "ciência", corresponde a um certo conjunto ou tipo de idéias, tornou-se inevitável que, em cada uma delas, a "cidadania" apareça aos pedaços, fragmentada, abordada ou entendida de acordo com enfoque respectivo. Teoricamente aceitáveis como procedimentos analíticos, tais práticas favorecem tendências que condizem à coisificação e estilhaçamento da cidadania em múltiplas cidadanias: cidadania política, econômica, social, e assim por diante. [29]

Esse visão, porém, está evoluindo na medida em que se desenvolve método que difere "das histórias tradicionais, e, no caso da cidadania como objeto de estudo, precisamente por perceberem que a cidadania "não anda só", ou seja, não se trata mais de reconstituir a trajetória histórica de uma idéia", trata-se, na verdade, de perceber "as formas concretas de representações e práticas sociais que envolvem a prática da cidadania, seus "companheiros de viagem", como: individualismo, solidariedade, espaço público e espaço privado, comunidade e sociedade, liberdades, democracia, representação e participação, direitos.". Com isso...

...em sentido mais substantivo, "a cidadania se define como o direito de ter direitos", historicamente a cidadania corresponde, em última instância, aos processos de resistência e luta contra os poderes de todos os tipos com suas práticas tendentes a dominar, explorar e disciplinar grupos e indivíduos. [30]

Consideramos que a evolução da interpretação histórica, por método que considera diversos elementos, representa avanço na compreensão da cidadania. Contudo, a conclusão de que evidencia diferenças entre o sentido substantivo e sentido histórico não está correto. Não há como desprender o processo de aquisição e evolução dos direitos dos "processo(s) de resistência e luta contra os poderes", pois neles se originaram.

Podemos vislumbrar essa posição, apesar de não declarada, em autores das ciências sociais.

Ao identificarmos a participação citadina como uma forma diferenciada da democracia representativa – a que passa por partidos políticos, eleições e integração formal dos governos (Merino, 1994) - , pensamos o tema a partir de sua dimensão cotidiana e de seu impacto societal. Entendemos que a participação pode assumir duas faces: uma que põe a sociedade em contato com o Estado, e outra que busca o seu próprio fortalecimento e seu desenvolvimento autônomo. O que está efetivamente em pauta é o alcance da democratização do aparelho estatal, notadamente no que diz respeito à sua publicização. Em outras palavras, trata-se de pensar sobre a participação popular e sua relação com o fortalecimento de práticas políticas e de constituição de direitos que transcendem os processos eleitorais e seus impactos freqüentemente ambíguos e/ou contraditórios sobre a cidadania. [31]

Verifica-se que o autor, apesar de não utilizar uma compreensão histórica, aponta uma busca, por meio da participação popular e da constituição de direitos para além dos processos políticos-eleitoriais, meros direitos de votar e ser votado, da ampliação da compreensão da cidadania.

Contudo, há distorção na compreensão de democracia como forma de governo, estrutura de governo, e democracia como essência, conteúdo da forma de governo adotada. Pois, em última análise, a ampliação da cidadania, que foi sugerida pelo autor, implica na democratização da forma de governo adotada, indicando uma maior participação, e desta forma, a democracia participativa.

É certo que a democracia participativa é evolução em relação à democracia representativa, sendo que inclusive foi adotada expressamente em nossa Constituição, logo no parágrafo único do artigo primeiro, ao dispor que "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.", visto que confere a possibilidade do poder também ser exercido diretamente pelos meios previstos na própria Constituição.

Assim, havendo alteração da forma de exercício do poder, ou como prefere Rousseau, da forma de participação na atividade soberana, alteram-se os pontos que compõe o conceito de cidadania, as notas distintivas que compõe o conceito.

Cabe considerar, em sede de finalização do desenvolvimento, que a metodologia adotada neste artigo pode sofrer graves críticas, especialmente quanto à "tentação teleológica".

A "tentação teleológica" consiste em se interpretar a cidadania, em qualquer espaço-tempo, sempre em função de seu vir-a-ser, isto é, daquilo que o historiador já sabe de antemão acerca do curso posterior de tal cidadania. Sob tal ótica, as histórias da cidadania apresentam-se sempre como algum tipo de estudo das "origens" da cidadania. [32]


3. DAS CONCLUSÕES

Refletindo sobre as idéias desenvolvidas no presente trabalho, concluímos que não se pode utilizar o pensamento de Rousseau para fundamentar e relacionar os termos cidadão e cidadania com os direitos de votar e ser votado.

Trata-se de distorção interpretativa, é "ver o passado com os olhos do presente", pois o cidadão é titular de direitos que são produtos de um processo histórico recente, com início na modernidade e que ainda não se esgotou. Nesse contexto, para que possamos construir um conceito de cidadania, faz-se necessário a construção de alguns critérios que leve em consideração, primeiramente, o fato de que é o ser humano que faz sua história, ao mesmo tempo em que é feito por ela. O homem e suas instituições culturais, políticas e jurídicas, só podem ser compreendidos na dimensão da historicidade, onde se constrói o ser jurídico, vale dizer, cidadão e cidadania.

Por outro lado, definir o cidadão somente como titular de direitos relativos à democracia representativa, direitos de votar e ser votado significa, em última análise, restringir a sua compreensão histórica. Na dimensão da historicidade, o conceito de cidadão e cidadania é ainda um conceito aberto, em processo de construção permanente, em torno do qual, a cada dia, insere-se novos valores e novas conquistas. Por fim, no âmbito da Ciência do Direito, há que se adotar sempre uma interpretação ampliativa para a compreensão da dimensão histórico-jurídica na qual o ser humano está inserido.


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Notas

  1. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2001
  2. BARROS, Sérgio Resende. Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 09. No parágrafo aqui citado, o autor acrescenta nota de rodapé nos seguintes termos: "Após inventariar diversos autores, Huntington conclui que as principais civilizações contemporâneas são as seguintes: a sínica ou chinesa, a japonesa, a hindu, a islâmica, a ortodoxa, a ocidental, a latino-americana e, possivelmente, a africana (Cf. HUNTINGTON, Samuel P. The clash of civilizations and the remaking of the world order, cit., p. 45 est seq.)."
  3. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Regina Lyra. 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 25.
  4. SABADELL, Ana Lúcia. Reflexões sobre a metodologia na história do direito. Caderno de direito: cadernos do curso de mestrado em direito da Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba - São Paulo, vol. 2, n. 4, p. 36, 2003.
  5. Idem p. 36.
  6. SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 19ª Ed. rev. ampl. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 349.
  7. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21ª Ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 193.
  8. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do estado e ciência política. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 72.
  9. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21ª Ed. São Paulo: Atlas, 2007.
  10. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 23ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 99. Vale notar que Celso Ribeiro Bastos aponta o mesmo fundamento (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do estado e ciência política. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 71).
  11. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 32.
  12. "Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra, Suíça, em 28 de junho de 1712. Após a infância em ambiente calvinista, emigrou em 1728 para Turim, Itália, e se converteu ao catolicismo. Viveu com Madame de Warens em Chambéry, na França, de 1733 a 1740, período em que se tornou um ávido leitor e começou a escrever. Em 1742 foi para Paris em busca da fama e da fortuna, mas durante anos não obteve êxito. Na Academia de Ciências, apresentou um projeto para uma nova notação musical, o qual foi recusado. De 1743 a 1744 trabalhou como secretário do embaixador da França em Veneza. De volta a Paris, no começo de 1745, iniciou sua ligação com Thérèse Levasseur, jovem criada que lhe deu cinco filhos e com a qual se casou, em 1768, numa cerimônia civil." C.F. ©Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.
  13. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 32.
  14. Idem.
  15. AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 40ª Ed. Rio de Janeiro: Globo, 1941, p. 274.
  16. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do estado e ciência política. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 240.
  17. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 31.
  18. Idem, p. 92.
  19. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 108.
  20. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 23ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 99. Vale notar que Celso Ribeiro Bastos aponta o mesmo fundamento (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do estado e ciência política. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 71).
  21. BARROS, Sérgio Resende. Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
  22. SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 19ª Ed. rev. ampl. São Paulo: Malheiros, 2001.
  23. SPROESSER, Andyara Klopstock. O constitucionalismo norte-americano e francês. In: CASTARDO, H. F.; CANAVEZZI, G. E. D.; NIARADI, G. A. Lições de direito constitucional: em homenagem ao prof. Sérgio Resende de Barros. Campinas, SP: Millenium, 2007, p. 04.
  24. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Regina Lyra. 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 78.
  25. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2001, p. 10.
  26. Idem, p. 30.
  27. BARROS, Sérgio Resende. Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 01.
  28. BOBBIO, Norberto. Teoria das formas de governo. Trad. Sérgio Bath. 8ª Ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1995, p. 36.
  29. FALCON, Francisco J. C. História e cidadania. In: MARTINS, Ismênia de L.; IOKOI, Zilda M. G.; SÁ, Rodrigo P. de. Anais do XIX Simpósio Nacional da ANPUH – Associação Nacional de História realizado em Belo Horizonte – MG em julho de 1997. São Paulo: Humanitas / FFLCH – USP, 1998, p. 30.
  30. Idem, p. 31.
  31. JACOBI, Pedro Roberto. Políticas sociais e ampliação da cidadania. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 12.
  32. FALCON, Francisco J. C. História e cidadania. In: MARTINS, Ismênia de L.; IOKOI, Zilda M. G.; SÁ, Rodrigo P. de. Anais do XIX Simpósio Nacional da ANPUH – Associação Nacional de História realizado em Belo Horizonte – MG em julho de 1997. São Paulo: Humanitas / FFLCH – USP, 1998, p. 30.

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ALMEIDA, Luiz Eduardo de. Considerações para a construção de um conceito histórico da cidadania. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 2005, 27 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12141. Acesso em: 19 abr. 2024.