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A prisão como instituição paradigmática da sociedade de controle

A prisão como instituição paradigmática da sociedade de controle

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RESUMO

O contexto político e jurídico peculiar ao ancien regime, observável principalmente durante a Idade Moderna, permitia o exercício de uma prática punitiva amplamente assentada no emprego de suplícios e penas de morte. Tais punições se davam de maneira cruel e despótica, prescindindo de quaisquer vínculos e fundamentações. Tal contexto, por si só, exigiu mudanças racionalizadoras no âmbito penal, tarefa para a qual se empenharam diversos pensadores. Durante o século dezoito elaborou-se, pois, um aparato teórico limitador do poder estatal com vistas a nortear o exercício da punição pelo Estado. Porém, a esse período racionalista seguiu-se uma sensível alteração nos padrões morais e políticos da sociedade do século dezenove, responsável pela marginalização do projeto setecentista em benefício de um novo paradigma penal. A prisão-pena exsurgiu no centro deste novo modelo de sistema punitivo, carregando em si os valores da época, dentre os quais aqueles intimamente ligados à mentalidade burguesa.

PALAVRAS-CHAVE: CONTROLE SOCIAL. PRISÃO. CAPITALISMO.


INTRODUÇÃO

O debate acerca da questão punitiva é algo recorrente na doutrina moderna e, embora velho de séculos, certamente continua a despertar acesas discussões nos círculos acadêmicos.

O resultado prático-teórico de tais celeumas ganha amplitude quando transposto para o cenário de países periféricos, marcados pela discrepância sócio-econômica de seus cidadãos, bem como pela constante violação de direitos humanos.

O presente trabalho busca traçar laços concretos que envolvam numa mesma rede aspectos relativos ao sistema punitivo, a pena de prisão e o capitalismo, tudo como exigência de melhor conhecer a realidade circundante na busca de possibilidades emancipatórias, resgatando-se, assim, teorias críticas do direito penal já ultrapassadas.

Assim, partindo-se de idéias foucaultianas, pretende-se analisar a relação de interdependência que abarca o estabelecimento da prisão enquanto pena e o desenvolvimento da sociedade capitalista, ambos inseridos no contexto social do século dezenove.

Para tanto, após expor brevemente a conjuntura jurídico-penal dos séculos precedentes, ressalta a guinada teórica ocorrida durante o século dezoito no sentido de racionalizar o direito penal, bem como a sistemática punitiva então exercida.

Aborda-se, posteriormente, uma mudança de paradigmas sociais ocorrida na passagem para o século dezenove, oportunidade em que a prisão ganhou assento privilegiado no modelo punitivo vigente.

Por fim, há que se traçar a íntima relação entre o surgimento e desenvolvimento do capitalismo e o nascimento da sociedade de controle, que tem na pena de prisão seu exemplo máximo.


1. PUNIÇÃO NA IDADE MODERNA

O quadro político europeu do século dezesseis é marcado pelo advento da monarquia absoluta. A união entre os primeiros comerciantes da Idade Média e os reis indolentes propiciou a retomada do poder por parte destes, dando origem ao despotismo característico da Idade Moderna.

O Estado, neste novo cenário, passou a ser livremente comandado pela figura do monarca, detentor absoluto do poder político. Tal poder desconhecia quaisquer vínculos e limites e se caracterizava por impor uma barbárie repressiva, que assolava súditos carentes de direitos e garantias em níveis mínimos.

A punição exercida pelo Estado não observava limitação de qualquer tipo, uma vez que assentada na onipotência do poder real, que propriamente concretizava a idéia de Estado (L’Etat c’est moi). É possível falar em uma utilização irracional do poder político, que se fazia presente na sociedade através de um exercício indiscriminado e cruel da punição.

Não havia sequer necessidade de se justificar a aspereza das punições bem como as condutas puníveis. Fazê-lo seria o mesmo que questionar a própria soberania do rei. Identificando-se o monarca como soberano máximo, num contexto de ânimos submissos oriundos do feudalismo, era inimaginável qualquer crítica ao modo de agir da realeza enquanto liderança política e religiosa.

Os suplícios aos criminosos se davam, nesta época, de maneiras muito diversas. De forma geral, é possível aduzir que a punição era voltada ao corpo do condenado, de modo a infligir-lhe dor, sofrimento e humilhação.

A prisão como pena autônoma, por sua vez, era desconhecida nesse período, servindo tão-somente para preservar o corpo do condenado até a aplicação do castigo.

Não obstante afirmar-se ter surgido já na Idade Média o que alguns consideram o embrião da pena de prisão [01], ainda assim, essa não era a utilização principal da prisão, que continuava servindo de custódia do réu, até a aplicação de suplícios.

Já no fim do século XVII, a obra do monge beneditino Mabillon exerceu grande influência no contexto das punições. Insurgia-se o monge contra o modo que as penitências eram infligidas ao condenado, propondo reformas quanto ao trabalho, à higiene etc. (DOTTI, 1998, p. 08). Seu pensamento girava em torno da correção moral do condenado e sua reabilitação, por meio de severa disciplina e sanções rígidas, isolamento e instrução religiosa.

O exemplo de Mabillon é ilustrativo de uma conjuntura histórica ansiosa por mudanças no âmbito da aplicação das penas. Fruto desse anseio, o iluminismo trouxe em seu bojo ideais humanizantes acerca das punições, ao abandonar a fundamentação teológica da pena para conferir-lhe um fim utilitário. Buscava-se, assim, pensar racionalmente a questão punitiva.


2. RACIONALIZAR DA PENA

É neste momento histórico de fins do século dezessete e início do século dezoito que floresce um pensamento filosófico voltado para a reflexão acerca dos fins e fundamentos da pena, ensejando mudanças profundas nos sistemas penais da Europa.

Os iluministas passaram a ter no Homem o centro das atenções, valendo-se do jusnaturalismo para pregar direitos preexistentes e superiores ao Estado, reconhecidos a todos os homens por serem válidos universalmente (CARDOSO, 2004, p. 36).

Admitindo-se a existência de tais direitos, tornou-se possível impor limites ao poder estatal, uma vez que, frente aos direitos naturais, este já não tinha mais caráter de absoluto.

Empreenderam-se na tarefa de racionalização do direito penal jusfilósofos como Beccaria, Bentham e Brissot [02], através da reformulação teórica da lei penal, sendo que uma das principais reformas produzidas foi a idéia de que o crime não devia guardar relação com a infração moral (FOUCAULT, 2002, p. 80).

Com a distinção entre crime e infração moral, permitiu-se retirar do âmbito de intervenção do Estado absolutista um grande número de condutas que eram punidas tão-somente por constituírem faltas morais.

Assim, só podia ser punida a conduta expressamente vedada pelo poder político por meio de uma lei. Tal conduta haveria de ser socialmente danosa para ser definida como crime, não bastando sua reprovabilidade moral.

Assim, como conseqüência, tem-se que "somente as leis podem decretar as penas relativas aos delitos; e esta autoridade não pode residir senão no legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social" (BECCARIA, 2002, p. 40)

Com a distinção mais clara entre infração moral e penal, passou também a existir uma nova definição de criminoso, respaldada na idéia de dano social. O criminoso era tido como um inimigo da sociedade, à medida que lhe causava danos com a sua conduta. Ao infringir os valores da sociedade, o infrator dela se excluía, rompendo com o pacto social (FOUCAULT, 2002, p. 81).

Interpretando o fenômeno criminal como um dano social, os juristas/filósofos da época passaram a ver a lei penal como um instrumento de retribuição/reparação desse dano, bem como um meio impedir que novos danos ocorressem. A justificativa da pena passa a ser norteada, então, pela idéia de defesa social, centrada na necessidade de preservação da ordem e reparação de danos.

Nota-se que o pensamento da época estava impregnado pela idéia de contrato social. Diversas são as matizes relacionadas ao contratualismo mas, de forma geral, pode-se dizer que, segundo tal pensamento, cada membro da sociedade teria conferido idealmente uma parte mínima da sua liberdade ao soberano para que este, imbuído de poder sobre cada indivíduo, pudesse fazer prevalecer a paz entre os homens. Em caso de violação das regras, o infrator estaria desrespeitando o pacto, razão pela qual se lhe aplicaria uma sanção.


3. O PROJETO PENAL REFORMADOR

Através do desenvolvimento da teoria do crime foi possível avançar também na construção da teoria da pena. Definindo-se mais acuradamente quais condutas seriam classificadas por crimes e quais critérios seriam utilizados pra tal definição, foi possível também repensar que tipos de punições seriam adequados aos diversos tipos de crimes.

Conforme FOUCAULT (2002, p. 82-83), pautados na noção de defesa da ordem, reparação de dano, contrato social etc, bem como diante da necessidade de limitar o poder punitivo do Estado, procuraram os jusfilósofos desenvolver parâmetros para a punição.

Dentre os diversos tipos de penas imaginadas, é possível mencionar:

a) banimento. Se um criminoso viola o pacto social e com isso nega os valores aceitos por sua sociedade, ele mesmo se exclui do sistema social, devendo, portanto, ser banido. É o que se vê no capítulo XVII do Dos delitos e das penas: "quem perturba a tranqüilidade pública, quem não obedece às leis, isto é, às condições com as quais os homens se suportam reciprocamente e se defendem, deve ser excluído da sociedade, ou seja, deve ser banido dela".

b) penas infamantes. Trata-se da marginalização do indivíduo, em nível moral e psicológico, sem bani-lo da comunidade em que vive, ocasionada pela humilhação imposta a ele através da pena. "As penas corporais e dolorosas não devem ser cominadas àqueles delitos que, fundamentados no orgulho, tiram glória e alimento da própria dor, aos quais convém o ridículo e a desonra" (BECCARIA, 2002, p. 85). E, mais adiante, "as injúrias pessoais contrárias à honra, isto é, a justa porção de respeito que um cidadão tem o direito de exigir dos outros, devem ser punidos com a desonra (BECCARIA, 2002, p. 106).

c) trabalho forçado. Tendo presente a idéia de reparação, obriga-se o criminoso ao trabalho como modo de compensar o dano por ele causado. Seria, por exemplo, as hipóteses da prática dos delitos de furto. Nesses casos, geralmente o infrator é pessoa pobre e desprovida de bens, incapaz de ressarcir danos pecuniários. O ideal seria, pois, que através do próprio trabalho se compensassem as perdas advindas do delito

Observa-se um princípio taliônico nestas penas, haja vista guardarem uma relação reciprocidade com o delito. É o que se depreendo do texto de Beccaria acerca da punição relativa ao delito de furto:

a pena mais oportuna será aquela única espécie de escravidão que se possa considerar justa, isto é, a escravidão, por algum tempo, das obras e das pessoas à sociedade comum, para ressarci-la com a própria e perfeita dependência do injusto despotismo exercido indevidamente sobre a convenção social (BECCARIA, 2002, p. 84).

Como premissas da aplicação das penas, permeavam as idéias de prevenção e proporcionalidade, segundo as quais era necessário impedir que o dano fosse novamente efetivado, aplicando-se, para tanto, penas correspondentes aos delitos.

A esse respeito, afirma o marquês acerca da função da pena:

o fim, pois, não é outro senão impedir o réu de causar novos danos a seus concidadãos e de demovê-los de praticar outros iguais. As penas, portanto, e o método de infligi-las devem ser escolhidos de modo que, guardadas as proporções, causem a impressão mais eficaz e mais duradoura nos homens, e a menos penosa no corpo de réu (BECCARIA, 2002, p. 72).

Mello Freire (1738-1798), profundamente influenciado pelas idéias de Beccaria, bem como fundamentado no contratualismo, traçava um panorama a respeito da aplicação racional da pena, nos seguintes termos:

a pena deve ser, tanto quanto possível, proporcional ao delito, e deve ser estabelecida segundo a sua natureza e índole. Assim, aqueles que violam a religião, deverão ser castigados com coisas que nasçam do mesmo culto, aqueles que depreciam os bons costumes e a honestidade de vida serão depreciados pelos outros e reprimidos por sua desonra e sinalizados pela infâmia; os perturbadores da ordem pública serão desterrados da cidade ou se lhes quitará a liberdade; aos que ofendem a segurança dos cidadãos, ou que causem dano em seu corpo, na sua felicidade ou na sua fama, será apenado no seu corpo, será multado em dinheiro ou sofrerão dano na sua boa fama (apud ZAFFARONI;PIERANGELI, 2004. p. 261).

O novo paradigma proposto encontrou eco nos legisladores franceses do século dezoito (pós-revolução francesa), os quais foram responsáveis por positivar tais ideais nos primeiros códigos penais da época.

A título de exemplo, Lepeletier de Saint-Fargeau e Brissot apresentaram projetos norteados por princípios semelhantes, que foram utilizados na confecção do I Código Penal Revolucionário (FOUCAULT, 2002, p. 83).

As idéias racionalistas do século dezoito foram adotadas também por monarcas, tais como o Grão Duque da Toscana, Pedro Leopoldo, bem como a Imperatriz Catarina II, da Rússia, no que constituiu o despotismo ilustrado. Várias foram as tentativas de mudanças, embora algumas não tenham conseguido nenhum efeito prático (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 201).

Tem-se, assim, um aparato doutrinário-legislativo (teórico-prático) montado em torno da teoria do crime, pronto a nortear os rumos do exercício punitivo, inaugurando-se o iluminismo em âmbito jurídico-penal e buscando racionalizar os poderes soberanos.


4. O SURGIMENTO DA PRISÃO-PENA E A MUDANÇA DE PARADIGMAS

Em que pese a criação deste aparato racional, o sistema de penalidades que se seguiu foi outro. A prática penal exercida por volta de 1820, no seio de uma incipiente sociedade industrial, desviou-se sensivelmente daquele projeto apresentado pelos teóricos iluministas.

De fato, as penalidades imaginadas na época pelos jusfilósofos foram rapidamente descartadas, isso quando não passaram apenas de uma punição simbólica, como foi o caso do trabalho forçado.

A pena de prisão, subutilizada à época, não figurava privilegiadamente no projeto original desenvolvido pelos jusfilósofos do século dezoito, tendo sido apenas mencionada por Beccaria e Brissot, conforme aponta Foucault (2002, p. 84).

No entanto, esta forma de punição passa a ter lugar certo na prática penal em meados do século XIX, alterando sensivelmente os planos iluministas quanto às formas de punição.

Desgarrando-se da tendência racionalista/iluminista, a prisão transforma-se, pouco a pouco, no principal instrumento punitivo do Estado, ainda que desvinculada de qualquer justificação/fundamentação teórica.

Esse desvio ocorrido no planejamento teórico iluminista é representativo de uma mudança ocorrida na Europa durante o século dezenove. Essa mudança se fez pelo interesse cada vez maior no indivíduo criminoso em detrimento do dano por ele causado ao bem socialmente útil:

podemos citar como exemplo as grandes reformas da legislação penal na França e demais países europeus entre 1825 e 1850/60, que consistem na organização do que chamamos circunstâncias atenuantes: o fato da aplicação rigorosa da lei, tal como se acha no código, poder ser modificada por determinação do juiz ou do júri e em função do indivíduo em julgamento. O princípio de uma lei universal representando unicamente os interesses sociais é consideravelmente falseado pela utilização das circunstâncias atenuantes que vão assumindo importância cada vez maior (FOUCAULT, 2002, p. 84).

Parece ocorrer, durante o século dezenove, uma reaproximação do direito com a moral, uma vez que a punição passa a ser exercida como uma forma de controle do indivíduo, e não como meio de defesa da sociedade contra os fatos por ele praticados.

Nas palavras de Foucault (2002, p. 88),

tem-se, portanto, em oposição ao grande saber de inquérito, organizado no meio da Idade Média através da confiscação estatal da justiça, que consistia em obter os instrumentos de reatualização de fatos através do testemunho, um novo saber, de tipo totalmente diferente, um saber de vigilância, de exame, organizado em torno da norma pelo controle dos indivíduos ao longo de sua existência.

Desse modo, ingressa-se no século XIX com uma nova perspectiva de justiça criminal, voltada cada vez mais ao controle moral do indivíduo, superando-se ou interrompendo-se a tentativa iluminista de limitar o poder estatal e conferir racionalidade à punição.

Para tanto, foi preciso que o controle sobre o indivíduo se deslocasse do âmbito do poder judiciário – o qual personificava a idéia de justiça – para figurar em instituições administrativas dele independentes. A polícia – para vigiar – e as instituições pedagógicas, psicológicas e médicas – para corrigir – formarão um aparato de apoio a um poder judiciário responsável pelo controle do indivíduo (FOUCAULT, 2002, p. 86).

A análise de Foucault, mais descritiva do que valorativa, pode deixar transparecer a idéia de certo "dirigismo", como se estas mudanças se dessem planejadamente. Não há que se pensar dessa forma, entretanto.

Todas estas mudanças convergiram para a mesma direção (sociedade de controle) em virtude de partirem de paradigmas comuns, arvorados na defesa social, fomentados pela crença na existência de "criminosos natos", no maniqueísmo – idéias estas que surgiram no século XIX saídas de círculos acadêmicos restritos.

Ao mesmo tempo, particularidades históricas deram o contorno para o modelo de controle social. O advento do capitalismo, por exemplo, foi um dos principais fatores que influenciaram na construção desse modo de se exercer o poder e a repressão penal.

Também essa nova forma de justiça se justificará pela necessidade de alcançar a paz social e a segurança. Todavia, há nela uma sensível mitigação dos princípios iluministas da legalidade e utilidade, em virtude da valorização da análise de periculosidade e personalidade do indivíduo.

Essa tendência se fez presente também no Brasil, notadamente na Constituição de 1891 e no Código Penal de 1890. Ela permitiu que comportamentos de grupos sociais contrários ao governo da República fossem criminalizados e perseguidos. Puniam-se, principalmente, a vadiagem, as sociedades "secretas", as reuniões "ilícitas" e as conspirações, nitidamente como um meio de exercer o controle através da repressão [03].

Aqueles considerados vadios, após serem condenados eram encaminhados a colônias correcionais e forçados a exercer diferentes ofícios. Impunha-se uma rotina disciplinar assentada no trabalho com o fim de inserir o apenado no sistema produtivo e garantir sua "regeneração" (ALVES, 1997, p. 27).

Nesse novo contexto social, permeado pela idéia de controle [04], a prisão representará um modelo ideal, ilustrado principalmente pela idéia do panoptikon.

É possível, pois, traçar paralelos entre a prisão e as diversas instituições presentes na sociedade à época. Fábricas, quartéis, hospitais e escolas assumem a forma de panoptikon, seguindo todas, como reflexo dessa nova sociedade de controle, um padrão comum assentado no modelo de prisão.

Difícil dizer o porquê desta mudança de paradigmas. A visão estruturalista de Michel Foucault, porém, permite notar que não foi a prisão que surgiu como meio de punição peculiar ao século XIX, influenciando as demais instituições. Diferentemente, é possível, a título de perquirição, inferir que a prisão responde a novos ideais presentes no século dezenove do mesmo modo que estas demais instituições respondem.


5. RELACIONANDO CAPITALISMO, PUNIÇÃO E PRISÃO – DUAS HIPÓTESES FOUCAULTIANAS

Como dito, questão intrincada é saber por que e como se deu a passagem de um modelo teórico construído sobre fatos para uma prática de controle. E mais, como esse modelo adotou a prisão como meio de punição por excelência.

Foucault reporta-se à existência, na Inglaterra, de grupos sociais de natureza paramilitar criados para sua autodefesa quando das grandes mudanças ocorridas no cenário político e econômico do fim do século dezoito e início do século dezenove.

Cita, como exemplos destas associações de origem burguesa/aristocrática, a Infantaria Militar de Londres e a Companhia de Artilharia, as quais se formaram espontaneamente no seio de grupos sociais abastados para garantirem a ordem nos bairros e cidades (FOUCAULT, 2002, p. 91).

Na sociedade mais economicamente desenvolvida do século dezenove, houve movimento semelhante ao das associações paramilitares, perpetrado, desta feita, por grupos econômicos – e não sociais – através de uma polícia privada, constituída para a defesa de seu "patrimônio, seu estoque, suas mercadorias, os barcos ancorados no porto de Londres, contra os amotinadores, o banditismo, a pilhagem cotidiana, os pequenos ladrões":

essas sociedades respondiam a uma necessidade demográfica ou social, à urbanização, ao grande deslocamento de populações do campo para as cidades; respondiam também [...] a uma transformação econômica importante, a uma nova forma de acumulação da riqueza, na medida em que, quando a riqueza começa a se acumular em forma de estoque, de mercadoria armazenada, de máquinas, torna-se necessário guardar, vigiar e garantir sua segurança (FOUCAULT, 2002, p. 91-92).

Uma vez observando-se essa demanda por vigilância em nome da proteção do novo capital, há que se indagar como foi possível ao Estado moderno de matriz burguesa dar origem a uma sociedade baseada no controle e vigilância moral de seus membros.

5. 1. Sociedade de controle

Houve, de fato, por parte do Estado, o que se pode chamar de uma tendência à apropriação dos mecanismos sociais de controle. De certa maneira, é através desta apropriação que o Estado passa a exercer sobre o indivíduo um controle de suas ações, empenhando-se na sua correção.

Esse movimento, que ocorreu em vários países do mundo, é objeto de análise por Foucault tanto na Inglaterra quanto na França.

5.1.1. O caso inglês

No início do século dezoito havia diversos grupos sociais originados da pequena burguesia espalhados pela Inglaterra. Tais grupos, com forte apelo religioso, tinham por objetivo garantir a ordem em seu interior, através da supressão dos vícios, bem como dos hábitos contrários à moral. Exercia-se, pois, um forte controle difuso dos indivíduos, no seu aspecto moral, nas esferas populares da sociedade.

Foucault salienta, porém, que a manutenção da ordem moral empregada no interior destes pequenos grupos nada mais era do que a tentativa de escapar à sanha punitiva do Estado que, à época, contava com mais de 300 casos (infrações) que previam como punição a pena de morte.

Assim, vê-se "que era muito fácil para o poder, para a aristocracia, para os que detinham o controle sobre o aparelho judiciário exercer pressões terríveis sobre as camadas populares":

para escapar desse poder judiciário os indivíduos se organizavam em sociedades de reforma moral, proibiam a embriaguez, a prostituição, o roubo, etc, todo o que permitisse ao poder atacar o grupo, destruí-lo... Trata-se, portanto, mais de grupos de autodefesa contra o direito do que de grupos de vigilância efetiva (FOUCAULT, 2002, p. 93).

Ocorre que, no decorrer do século XVIII, esse controle difuso e popularesco passou a ser suscitado, cada vez mais, pelas classes mais ricas da sociedade inglesa – aristocracia, clero, nobreza – e o que era um instrumento para a autodefesa contra o controle penal do Estado passou a ser um aliado do poder político para o controle social (FOUCAULT, 2002, p. 93).

Não é difícil imaginar o interesse que teriam os detentores do poder no controle moral dos membros da sociedade. Exercendo este tipo de controle, naturalmente preventivo, evitar-se-ia a ocorrência de delitos, o que era mais vantajoso do que simplesmente remediá-los, sancionando o autor de um dano já consumado e, certamente, irreparável.

O passo seguinte a esse deslocamento vertical do controle foi conferir a ele - o controle moral - o status de controle penal, através da criação de uma legislação específica [05], permitindo, assim, a expansão da repressão penal do Estado em ambientes de cunho moral.

Observa-se, assim, a passagem do controle exercido através de grupos e comunidades, marcadamente religiosas, desloca-se através das classes sociais, hierárquica e verticalmente estabelecidas, de modo a chegar ao ápice do Poder Político.

5.1.2. O caso francês

Na França ocorreu um processo diferente, haja vista o aparelhamento estatal mais robusto imposto pela monarquia absoluta francesa.

O país já possuía, pelo século XVIII, um instrumento para-judiciário - a polícia -, bem como grandes prisões, cujo exemplo clássico é a Bastilha. Não obstante, havia também uma forma de controle espontâneo exercido horizontalmente pelos súditos através de um instrumento monárquico. Tal era a lettre-de-cachet [06].

A lettre-de-cachet era utilizada principalmente pelo poder real, como um temível instrumento de punição. Contudo, permitia-se também ao indivíduo comum solicitar uma lettre-de-cachet, fazendo valer, em um fato cotidiano, uma punição real [07]:

a lettre-de-cachet consistia, portanto, em uma forma de regulamentar a moralidade cotidiana da vida social, uma maneira do grupo ou dos grupos – familiares, religiosos, paroquiais, regionais, locais, etc. – assegurarem seu próprio policiamento e sua própria ordem (FOUCAULT, 2002, p. 97).

Porém, durante a greve de relojoeiros ocorrida em 1724, foram patrões que solicitaram uma lettre-de-cachet que ocasionou a prisão dos revoltosos. O ministro do rei, porém, recuando de sua decisão, pretendeu cancelar a ordem expedida. A corporação dos relojoeiros, então, tomou a frente na querela trabalhista e solicitou ao rei a manutenção da ordem.

Esse é um exemplo de como um instrumento de controle moral passou a ser utilizado para fins econômicos sobre a população operária incipiente.

Foucault observa que a prisão, enquanto instrumento de punição, surgiu exatamente das lettres-de-cachet. Isso porque quando uma lettre-de-cachet era enviada contra alguém, "esse alguém não era enforcado, nem marcado, nem tinha de pagar uma multa. Era colocado na prisão e nela devia permanecer por um tempo não fixado previamente" (FOUCAULT, 2002, p. 98).

Interessante notar que a prisão se estendia até que o solicitante da lettre-de-cachet afirmasse que o preso tinha se corrigido. Surge ai, então, a idéia de aprisionar para corrigir que, nas palavras do autor francês, é uma "idéia paradoxal, bizarra, sem fundamento ou justificação alguma ao nível do comportamento humano" (FOUCAULT, 2002, p. 98).

Observa-se que, por uma via distinta, a França chegou a um modelo de controle semelhante ao inglês, onde a resposta punitiva do Estado está mais relacionada ao comportamento do indivíduo do que ao fato por ele praticado.

Em ambos os casos, esta forma de punição, modelo contemporâneo hegemônico de punição do Estado Democrático de Direito, não é fruto do projeto jurídico elaborado pelos primeiros jusfilósofos. Distancia-se desta formulação teórica para privilegiar os mecanismos de controle social.

5.2. O capitalismo

Foucault põe na base destes acontecimentos políticos a rápida implementação do capitalismo durante o século dezoito, o qual investe num modo de riqueza não mais estritamente monetário, como nos séculos precedentes, mas que valoriza os bens de produção, os estoques, as matérias-primas etc, produtos palpáveis e quase sempre expostos às vistas dos trabalhadores.

Isso porque a forma de produção feudal, em que o servo se ligava à terra e ao Senhor Feudal, passou a ser realizada com base na lei de oferta e procura. Nessa transição, a produção deixa de ser eminentemente agrícola e passa a ser manufatureira, deslocando-se a riqueza para as mãos dos donos dos meios de produção (ZAFFARONI, 2004, p. 248).

Assinala ZAFFARONI (2004, p. 249) que

durante esse processo, a população concentrada nas cidades se tornava perigosa; como não tinha trabalho e tinha fome, desprendeu-se dos controles sociais feudais, nada tinha a perder e estava geograficamente no mesmo lugar em que se concentravam as riquezas. A riqueza e a miséria concentravam-se nas cidades. Os crimes aumentavam. Era necessário apelar a um controle social exemplar, de contenção.

Tornara-se imperioso o controle dos indivíduos, uma vez que estes estavam agora diretamente ligados às riquezas das classes dominantes. Isto posto, não bastava defender a idéia de que a pena deveria reparar o dano, já que as classes desfavorecidas seriam incapazes de restituir à nobreza valores econômicos. Era necessária uma constante e efetiva vigilância dos potenciais criminosos.

Na Inglaterra, particularmente, a pilhagem dos estoques contidos nos armazéns e navios tornou-se freqüente no fim do século XVIII, fato que passou a exigir providências no sentido de impedir a ocorrência deste dano [08].

No caso da França, de outro lado, após a Revolução Francesa, ocorreu uma divisão das grandes propriedades rurais onde trabalhavam os camponeses, fragmentando-as em pequenas propriedades e inviabilizando o modo de subsistência dos trabalhadores rurais, concentrado na produção agrícola.

O aumento do grupo camponês desempregado e necessitado passou a requerer a atenção dos donos das propriedades, exigindo métodos para sua proteção. Mas as dificuldades exigiram que esses camponeses desempregados procurassem na cidade novos meios de subsistência. Assim, a propriedade a ser protegida, que no início era a rural, com o tempo passou a ser a industrial.

Deste modo, o controle da população miserável era uma necessidade. Era imperioso discipliná-la, adaptando-a ao novo modo de vida da cidade. Assim, através dos asilos foi possível albergar os pobres que não apresentavam riscos à população e através do cárcere foi possível segurar aqueles tidos por perigosos (ZAFFARONI, 2004, p. 264).

Percebeu-se que era mais vantajoso exercer uma repressão velada e difusa do que prosseguir com os espetáculos de suplícios, pautados em toda exemplaridade que podia irradiar de um bode expiatório posto no centro do teatro punitivo.

Observa-se, assim, que o desenvolvimento do capitalismo propiciou o surgimento de determinados meios de vigilância e controle do indivíduo, explicando, igualmente, a tomada dos meios de controle social difusos por parte do poder oficial.

Nota-se que o capitalismo, desenvolvido em um lento processo histórico, consistiu em mola propulsora para a criação de instrumentos destinados ao controle e repressão, ante a necessidade de proteção do capital.

5.3. A prisão

O século XIX assistiu ao desenvolvimento paulatino da prisão e ao expansionismo do modo de produção capitalista.

Nesse contexto, a prisão-pena concretizava o método adequado para se exercer o controle do indivíduo, ao passo que o capitalismo era uma das instâncias que reclamava esse controle.

Vê-se, nesse sentido, que não somente a prisão, mas a fábrica e demais instituições (escola, quartéis militares, hospitais) seguiam o modelo de controle, exercido tanto em nível moral como pedagógico, psiquiátrico, etc. A prisão nada mais era do que a instituição ideal para esse novo modelo. O supra-sumo da idéia do panoptikon.

Contextualizando, pois, a prisão, observa-se que ela possuía natureza semelhante às demais instituições sociais, diferenciando-se delas à medida em que atuava, particularmente, no indivíduo tido por criminoso. Seu mister circunscrevia-se a combater a criminalidade, segregando os agentes infratores de modo impedi-los de delinqüir.

Enquanto fruto de uma sociedade classificada por Foucault como sociedade de controle, a prisão tinha seus pressupostos assentados nos ideais presentes à época.

Releva ressaltar que tais pressupostos se baseavam, cada vez mais, no modelo econômico oriundo do capitalismo, inspirado na idéia de proteção dos bens de produção e impulsionado pela tensão decorrente dos conflitos entre classes.

Aceitando-se como plausível a idéia de conflitos entre classes, remetida, aqui, à idéia de conflito de interesses, nota-se que começa a se configurar, no cenário capitalista, a imagem do sujeito que vai representar a idéia da ameaça social. Começa a se desenvolver a figura do delinqüente que deve ser vigiado.

Tal sujeito, certamente, identificar-se-á, de alguma forma, com aqueles que não tomaram parte privilegiadamente no novo modelo de produção econômica.

Aí é possível observar o viés político da prisão, já que ela realiza um projeto de punição nascido no bojo da sociedade contratualista/burguesa.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Houve um momento em que o anseio punitivista do Estado Absolutista pós-feudal precisou ser limitado.

Atendendo a reclamos do Iluminismo houve a racionalização do poder punitivo por meio da reformulação teórica do direito penal, num contexto em que a pena só poderia ser aplicada a crimes previstos expressamente na legislação e que atingissem algum bem social relevante.

Houve, porém, seguindo-se a essa mudança penal, o abandono de seus princípios norteadores, com a simultânea valorização da prisão como forma de punição.

Ao mesmo tempo, houve uma tendência do poder não mais em punir os fatos praticados pelos criminosos, mas em controlar e corrigir quem se desviasse da norma. O instrumental para isso foi tomado dos próprios mecanismos de controle existentes nas camadas sociais populares.

Desse modo, o século XIX é marcado pela existência de um constante controle social e moral dos indivíduos. Um sem-número de instituições nascia modelado por este novo paradigma, do qual a prisão é o melhor exemplo.

Assim, para o fim do controle social exigido pela nova sociedade capitalista do século XIX, a prisão exsurge como eixo principal do esquema de punições dos modernos sistemas penais.


REFERÊNCIAS

ALVES, Paulo. A verdade da repressão: práticas penais e outras estratégias na ordem republicana: 1890-1921. São Paulo: editora Arte & Ciência/UNIP, 1997.

BECCARIA, Cesare, marchese di. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Rio Estácio de Sá, 2002.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

CARDOSO, Franciele Silva. Penas e medidas alternativas: análise da efetividade de sua aplicação. São Paulo: Método, 2004.

DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002.

SHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRÊA JUNIOR, Alceu. Teoria da Pena: finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.


Notas

  1. Era a prisão eclesiástica, que excetuava a regra da prisão-custódia. Tratava-se do enclausuramento de sacerdotes infratores e hereges em mosteiros para que refletissem sobre seus erros. Nestes casos, a prisão, em si, era a punição dada aos infratores e, por isso, pode-se considerá-la antecedente da moderna pena privativa de liberdade (SCHECAIRA, 2002, p. 33-34).
  2. Mencionem-se, também, Lardizábal, Romagnosi, Carmignani e Carrara, entre outros, pensadores contratualistas que de maneiras diversas buscaram a fundamentação e justificação da pena.
  3. Art. 399 do Código Penal: Deixar de exercer profissão, ofício ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meio de subsistência e domicílio certo em que habite; prover a subsistência por meio de ocupação proibida por lei e manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes: Pena de prisão celular por quinze a trinta dias (ALVES, 1997, p. 25).
  4. Não mais o controle arbitrário peculiar às monarquias absolutistas, mas um exercido o mais veladamente possível, justificado cientificamente e até, certo ponto, limitado por garantias legais.
  5. Texto de 1804 escrito pelo Bispo Watson: "As leis são boas, mas infelizmente, são burladas pelas classes mais baixas. As classes mais altas, certamente, não as levam muito em consideração. Mas esse fato não teria importância se as classes mais altas não servissem de exemplo para as mais baixas". "Peço-lhes que sigam essas leis que não são feitas para vocês, pois assim ao menos haverá a possibilidade de controle e de vigilância das classes mais pobres" (FOUCAULT, 1999, p. 94).
  6. Ordem do rei dirigida diretamente a uma pessoa, obrigando-a a fazer ou deixar de fazer alguma coisa.
  7. Por exemplo: "maridos ultrajados por suas esposas, pais de família descontentes com seus filhos, famílias que queriam se livrar de um indivíduo, comunidades religiosas perturbadas por alguém, uma comuna descontente com seu cura" (FOUCAULT, 1999, p. 96).
  8. O criador da polícia na Inglaterra, Colquhoun, era alguém que a princípio foi comerciante, sendo depois encarregado por uma companhia de navegação de organizar um sistema para vigiar as mercadorias armazenadas nas docas de Londres (FOUCAULT, 1999, p. 101).

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SILVA, João Carlos Carvalho da. A prisão como instituição paradigmática da sociedade de controle. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2066, 26 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12354. Acesso em: 19 abr. 2024.