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A exceção à regra da reparação integral

A exceção à regra da reparação integral

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A regra da reparação integral do dano consagrada no caput do artigo 944 do CC/2002 é excepcionada em seu parágrafo único, segundo o qual, havendo desproporção entre a gravidade da culpa e a extensão do dano, cabe ao julgador utilizar o critério da equidade para reduzir os valores da indenização.

O Enunciado n° 46 do Conselho de Justiça Federal (CJF)1, modificado pelo Enunciado n° 380, dispõe que, em razão do caráter de excepcionalidade, essa regra deve ser interpretada restritivamente, tanto nos casos de responsabilidade subjetiva quanto objetiva. Porém, é forte o entendimento na doutrina de que só se aplica o dispositivo nos casos de responsabilidade subjetiva ou de culpa concorrente, e, seguindo essa linha, GAGLIANO e PAMPLONA FILHO defendem que, após verificada a ocorrência da responsabilidade objetiva, não se deve aplicar o dispositivo porque não é plausível retroceder para discutir a incidência da culpa2:

"(...) a nova codificação civil brasileira trouxe à baila, no parágrafo único do referido dispositivo [artigo 944] uma inexplicável norma que limita a indenização em função da ‘desproporção entre a gravidade da culpa e o dano’, autorizando o juiz a reduzir equitativamente, a indenização. Trata-se de um retrocesso paradoxal no novo sistema, uma vez que, se a tendência é a responsabilidade civil objetiva, como, após a delimitação da responsabilidade, ter-se que discutir o elemento culpa?

A norma é válida e elogiável, para as hipóteses de culpa concorrente, que, como visto, não excluem a responsabilidade civil, mas devem ser levadas em consideração, como determinado no art. 945 (...). Outra solução seria considerar admissível essa redução apenas para demandas calcadas na responsabilidade subjetiva (culpa), caso em que, analisando a situação concreta, o juiz poderia reduzir o quantum, se verificar desproporção entre a gravidade da culpa e o dano".

Os autores destacam, ainda, que o dispositivo foi concebido unicamente para tratar da reparação do dano moral3:

"Isso porque não há qualquer lógica em se imaginar que o dano material, cuja indenização é fixada justamente pela extensão da lesão perpetrada, em uma operação quase aritmética, possa ser diminuída, uma vez que o prejuízo pecuniário é quase sempre constatado de forma objetiva, ao contrário dos danos morais (ou mesmo de danos materiais quantificados por arbitramento), em que se tem apenas uma expectativa do valor razoável, como uma forma de compensação pela lesão extrapatrimonial sofrida".

Apesar das relevantes palavras dos doutrinadores, o combatido dispositivo pode ser enfocado sob outros prismas4.

Embora irrelevante para determinar a obrigação de reparar na responsabilidade objetiva, a culpa forçosamente será considerada no arbitramento do valor reparatório5. Desta forma, o dispositivo não introduziu indevidamente a culpa no instituto da responsabilidade objetiva porque na hora de definir o "quantum" indenizatório essa última estará previamente estabelecida, motivo pelo qual não há qualquer relação de incompatibilidade. Aliás, a possibilidade de permitir a redução dos valores com base na culpa também nas hipóteses de responsabilidade objetiva foi o que justamente motivou o CJF a elaborar o Enunciado nº 380.

A análise da culpa pretende auferir o grau da contribuição do ofensor na efetivação do prejuízo para permitir ao julgador avaliar a intensidade com que irá aplicar o caráter pedagógico na decisão, até porque, a despeito da resistência da doutrina, a jurisprudência considera o caráter punitivo ao arbitrar a compensação de danos morais6.

Observa-se, então, se o prejuízo adveio da atuação direta do ofensor, através de comportamento omissivo ou comissivo, ou se o dever de reparar decorre mais da atividade exercida pelo agente (teoria do risco criado), independentemente de uma atuação nociva.

Ora, mesmo na responsabilidade objetiva é possível verificar se, e.g., o indivíduo, a empresa ou até o Estado procurou, de forma preventiva, amenizar o impacto dos seus atos ou dos atos de seus prepostos, com a cessão e a utilização de equipamentos corretos; a realização de treinamento adequado; ou através de orientação eficaz.

Nesse contexto, não é errado dizer que a indenização pode ser mitigada se o ofensor não contribuiu de forma maliciosa ou efetiva para a causação do dano em toda sua extensão, por ser questão de justiça. Entretanto, independentemente da responsabilidade ser objetiva ou subjetiva, não se discute o dever de reparar, mas a possibilidade de mitigar a reparação integral. Vale dizer: não se busca isentar o ofensor da responsabilidade atribuída pelo sistema jurídico, pois sequer se cogita a aplicação dessa exceção nas relações de consumo7, exceto (exceção da exceção) no caso de prestação de serviço pelo profissional liberal, cuja responsabilidade será apurada segundo sua culpa (artigo 14, § 4º, do CDC)8.

Firmada a questão da incidência do dispositivo em casos de responsabilidade objetiva, cabe asseverar, por outro lado, a inexistência de motivos para não reduzir a restauração integral do patrimônio por meio da equidade, em razão de situações onde é perfeitamente possível, como no caso da empresa que contrata motorista incauto que adentra com seu caminhão uma casa cujos proprietários haviam sido notificados pela Defesa Civil que deveriam se retirar do local pelo perigo de desabamento. Logicamente, a auferição dos prejuízos materiais deverá levar em conta essa notificação.

Nossos tribunais também aplicam a equidade quando fixam o pagamento de pensão até a data em que a vítima irá completar (ou completaria) sessenta e cinco anos9, pois é fato notório que há muito tempo a expectativa de vida do brasileiro é de setenta anos.

Já CAVALIERI10 aponta que os tribunais fixam, em média, cinco salários mínimos a título de indenização por gastos com funerais não comprovados por documentos, porque os julgadores entendem se tratar de despesa inevitável11.

Ademais, o Enunciado n° 46 do CJF não trataria o artigo 944, parágrafo único, do CC/2002 como exceção ao princípio da reparação "integral" do dano se estivesse apenas relacionado aos danos morais, porque em razão do caráter abstrato do instituto é impossível estabelecer sua "integralidade". Por esse motivo, inclusive, a melhor alternativa para estabelecer o valor reparatório no dano moral é a adoção do critério do livre arbitramento.

Outro fato que reforça a utilização do dispositivo é o dinamismo do Direito, que constantemente deve se adequar à realidade imposta pelo eterno processo de evolução experimentado pela sociedade, o que interfere diretamente na impossibilidade do legislador em regular todas as situações presentes e futuras.

Ora, se o ordenamento não previu o deslinde imediato de certos casos complicados, mas permitiu que o julgador o tutelasse por meio da equidade, não há motivos para combater esse permissivo – nada mais correto do que buscar na equidade a solução mais justa para o caso concreto. Assim, o julgador, ao abrandar o valor indenizatório aplicando o instrumento, não vai além do que observar a justiça nas circunstâncias não reguladas pela lei12.


NOTAS

01 Nova redação do Enunciado n° 46 do CJF, alterado pelo Enunciado n° 380 – "Art. 944: a possibilidade de redução do montante da indenização em face do grau de culpa do agente, estabelecida no parágrafo único do art. 944 do novo Código Civil, deve ser interpretada restritivamente, por representar uma exceção ao princípio da reparação integral do dano". Disponível em: <www.jf.jus.br>. Acesso em 13.fev.2009;

2 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. Vol. III. 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 368;

3 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Ob. cit., p. 79;

4 Não se está aqui fazendo uma análise crítica e depreciativa da obra dos grandes doutrinadores, cujos ensinamentos servem como fonte de pesquisa para os trabalhos e os artigos que desenvolvo. Vale lembrar, ademais, que essa foi a única obra entre todas as pesquisadas onde a matéria foi efetivamente enfrentada;

5 Apesar de toda a chiadeira da doutrina, essa não foi a única situação em que a culpa foi ressuscitada no CC/2002, uma vez que o também criticado artigo 1.704 determina que o cônjuge culpado pela separação preste alimentos ao outro na forma mais ampla possível, enquanto a fixação de pensão em seu favor levará em conta apenas o estritamente necessário a sua sobrevivência, após o preenchimento de determinados requisitos;

6 "Havendo a ocorrência do dano moral, a indenização deve representar uma punição ao infrator, capaz de desestimulá-lo na prática de novo ato ilícito". TJES, Ap. Cível 035.02.007384-3, Rel. ALINALDO FARIA DE SOUZA, DJ de 16/05/2006. No mesmo sentido: TJES, Ap. Cível 068.01.900005-5, Rel. NIVALDO XAVIER VALINHO – Rel. Substituto: EWERTON SCHWAB PINTO JUNIOR, DJ de 12/03/2004; STJ, REsp 715.320, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ de 11/09/2007; e STF, Ag. Inst. 455.846, Rel. Min. CELSO DE MELLO, julg. 11/10/2004. Disponíveis nos sites: <www.tj.es.gov.br>, <www.stj.jus.br> e <www.stf.jus.br>. Acesso em 13.fev.2009;

7 Nesse caso, em princípio, exclui-se a aplicação do dispositivo nas relações de consumo porque o microssistema foi criado para proteger o consumidor, mormente o honesto; e apenas no caso de culpa concorrente (artigo 945 do CC/2002) o "quantum" compensatório será arbitrado de acordo com a participação da vítima para a ocorrência do evento danoso, não havendo que se falar em equidade. Já a culpa exclusiva do ofendido exclui o dever de indenizar (artigos 12, § 3°, III, e 14, § 3°, II, ambos do CDC).

8 Art. 14, § 4°: "A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa";

9 "A pensão mensal a ser paga pelo Estado deve ser fixada desde o falecimento da vítima, à razão de 2/3 do salário mínimo, até a data em que completaria 25 anos de idade; a partir daí, à base de 1/3 do salário mínimo, até a data em que a vítima completaria 65 anos de idade. Precedentes: REsp 674.586/SC Relator Ministro LUIZ FUX DJ 02.05.2006; REsp 740.059/RJ DJ 06.08.2007; REsp 703.878/SP, DJ 12.09.2005". STJ, REsp 970.673/MG; Rel. Min. LUIZ FUX, DJe de 01/10/2008. No mesmo sentido: STJ, EDcl no REsp 861.074/RJ, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJe de 23/09/2008; STJ, REsp 994308/AM, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, DJe de 28/05/2008. Disponíveis em <www.stj.jus.br>. Acesso em 19.mar.2009;

10 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 108;

11 O exemplo se encaixa perfeitamente na exceção do artigo 944, parágrafo único, do CC/2002 se a quantia desembolsada for superior ao reembolso arbitrado. Se inferior, contudo, não resta configurada a "redução equitativa da indenização", porque, na verdade, não houve "redução";

12 A equidade "força o juiz a tomar em consideração as diversas circunstâncias e a adaptar-se a elas na aplicação do preceito, de modo que se restaure aquele princípio supremo de igualdade no qual a própria norma se inspira. A eqüidade tem, pois, em vista impedir qualquer possível dissonância entre a norma de direito e a sua aplicação concreta, mercê daquele poder de ampla e livre apreciação que se confere ao juiz". RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil. Vol. I. Campinas: Bookseller, 1999, p. 49. Na mesma esteira: "(...) a equidade está consagrada como elemento de adaptação da norma ao caso concreto. Apresenta-se a equidade como a capacidade que a norma tem de atenuar o seu rigor, adaptando-se ao caso sub judice. É, como vimos, o art. 5° da Lei de Introdução ao Código Civil que permite corrigir a inadequação da norma ao caso concreto. A equidade seria uma válvula de segurança que possibilita aliviar a tensão e a antinomia entre a norma e a realidade, a revolta dos fatos contra os códigos (...)". DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao código civil brasileiro interpretada. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 134/135.


referências

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007;

DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao código civil brasileiro interpretada. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2001;

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. Vol. III. 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2006;

RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil. Vol. I. Campinas: Bookseller, 1999.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEIXOTO, Fernando César Borges. A exceção à regra da reparação integral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2168, 8 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12929. Acesso em: 19 abr. 2024.