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O não-dito e o encoberto na Súmula nº 382 do STJ

O não-dito e o encoberto na Súmula nº 382 do STJ

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«Súmula 382/STJ - A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade».

"Tudo que é dito" – lê-se em Gadamer – "não tem sua verdade simplesmente em si mesmo, mas remete amplamente ao que não é dito" [Verdade e Método, II, p. 181].Para esclarecer isso, diz ele, distinguem-se duas formas em que o dizer movimenta-se para trás de si mesmo: o que no dizer permanece não dito, tornando-se, porém, presente como não-dito no dizer e, além disso o que no dizer se encobre" [Idem, ibidem, p. 210]. A "reflexão hermenêutica ainda mais profunda – agrega – não se refere apenas ao não-dito, mas ao que o dizer encobre" [idem, ibidem, p, 212].

O não-dito e o encoberto são a chave para abrir as portas do entendimento da Súmula 382 do STJ. O texto utiliza a fórmula de uma inequação, pois a expressão "Juros superiores a 12% ao ano não são necessariamente abusivos" engloba qualquer valor maior que 12% ao ano, ou seja, um número sem limite como uma terra sem horizonte, uma galáxia sem fronteiras. Superiores a 12% pode ser qualquer número próximo a 12 como pode ser um número virtual existente além da nossa imaginação. Qualquer número. A Súmula, portanto, nasce com o signo da desproporção e colide, frontalmente, com o princípio do devido processo legal substancial expresso no art. 5º, LIV e no princípio da defesa do consumidor do art. 170, V, ambos da Constituição.

Essa forma estranha de criar uma súmula envolve, portanto, um não-dito e encobre sentidos contrários ao ordenamento fundamental. A Súmula 382, na verdade, é uma cilada. Quando ela fala em 12% ao ano, a voz que se ouve tem remansos de inocência, lembrando a linguagem moderada do Código Civil quanto a juros de 1% ao mês ou 12% ao ano. Quando a Súmula utiliza os termos "superiores a 12% ao ano", ela perde a mansidão e [des]oculta a face assustadora de um olhar sem limites.

A leitura do Resp 1.061.530-RS, de 22 de outubro de 2008, indicado como uma das primeiras fontes recentes da Súmula, levanta o véu das origens da Súmula 382. "As premissas básicas da Súmula foram lançadas no Resp. 407.097-RS", lê-se no Acórdão do Resp 1.061.530. Quem voltar àquela fatídica tarde 12 de março de 2003 em que essas "premissas" foram lançadas no Resp. 407.097-RS e em outro, julgado na mesma oportunidade [Resp. n. 420.111-RS], verá que a 2ª. Seção do STJ discutia a abusividade de juros de 10,9% ao mês e ali se decidiu que a abusividade dependia de prova cabal a ser efetuada pela vítima do alegado abuso. Sobre os ombros combalidos do cidadão devedor o Tribunal da Cidadania pôs o pesado fardo desse oneroso encargo de provar que 10,9% ao mês não era necessariamente abusivo mesmo numa inflação de 5% ao ano. Nesses Recursos Especiais ns. 407.097/RS e Resp. 420.111-RS, precursores da Súmula 382, o CDC – Código de Defesa do Consumidor – saiu com o rosto de tal forma desfigurado que mais parecia um projeto transgênico gerador de um CDB ou Código de Defesa dos Bancos.

A decisão em que as "premissas" da Súmula 382 começaram a germinar foi adotada, então, por um voto médio. Os vencidos foram Antônio de Pádua Ribeiro e Sálvio de Figueiredo que defenderam o equilíbrio dos contratos bancários pela aplicação da taxa SELIC mais juros de 6%. Os vencedores se dividiram. Quatro ministros, Carlos Alberto Menezes Direito, Ari Pargendler, Nancy Andrighi e Castro Filho votaram no sentido de que 10,9% ao mês não era, em si mesmo, uma taxa abusiva. (naquele momento, a inflação era de 5% ao ano). Quem viesse a alegar a abusividade tinha de demonstrá-la cabalmente [sic]. Três ministros – Barros Monteiro, Fernando Gonçalves e Aldir Passarinho Júnior – foram mais radicais: defenderam a tese de que "a taxa de juros contratual não pode ser reexaminada em juízo", rendendo-se ao velho culto do pacta sunt servanda, cujos deuses pareciam soterrados pela função social do contrato. Assim, enquanto os quatro primeiros, Menezes Direito à frente, produtor de um extenso voto importado de outro recurso especial, jogaram pá de cal no princípio da inversão do ônus da prova [CDC, art. 6º, VIII] e desconsideraram a regra da nulidade de prestações desproporcionais ou excessivamente onerosas [CDC, art. 6º, inc. V], os outros três ressuscitavam, em toda sua plenitude, o princípio dos pacta sunt servanda para impedir que a abusividade pudesse sequer ser questionada pelas vítimas do abuso.

Durante seis anos, essa metástese foi lentamente corroendo o tecido do CDC sem que a comunidade jurídica dos consumidores conseguisse reagir contra a letalidade do mal oculto naquelas "premissas" que acabam de gestar a Súmula 382. Na sessão de julgamento em que esses pressupostos foram assentados, o Ministro Menezes Direito registrou, em seu longo voto, que "a seu pedido" [sic] encomendara trabalho sobre o spread bancário a professores da Fundação Getúlio Vargas com base no qual atingiu as conclusões de que "uma taxa de 10,9% ao mês não se pode presumir abusiva", mesmo numa inflação de um dígito.

Agora, depois da consagração da tese, com a adesão de novos Ministros em decisões recentes, as mãos dos juízes foram algemadas e as chaves jogadas ao fundo do poço, como se diria na novela das oito. Fato nada auspicioso. Essa fórmula da inequação, em cujo étimo se encontra a raiz da palavra igualdade com sinal contrário, revela que atrás da taxa "superior" a 12% ao ano, escondem-se, na verdade, taxas de 12% ao mês ou, capitalizando, 289% ao ano, que é um número enquadrável na Súmula que inclui, na sua estante de juros, qualquer número acima de 12% ao ano.

Chegou a alvitrar-se, no Resp 1.061.530, qual seria o parâmetro do abuso e começou de desenhar-se uma figura nova: a taxa média do mercado para operações similares. Como o mercado é cartelizado por envolver economia de grandes bancos mas em pequeno número, o consumidor sempre terá dificuldades de provar que a taxa que o escraviza é abusiva... se ela estiver situada na média dos abusos do mercado.

O que está por detrás da Súmula, portanto, são números muito distantes dos 12% ao ano. O não-dito no texto da Súmula é que as instituições financeiras são se sujeitam a limitação de juros [sic]. A elas não se aplicam os arts. 591 e 406 do CC. A palavra mês é cuidadosamente encoberta pela inequaçao "superiores a...". Por isso se diz que juros superiores a 12% ao ano por si só não indicam abusividade e concede-se que, "em casos excepcionais" [sic], os contratos poderão sofrer revisões se "a abusividade for cabalmente demonstrada" [sic].

"O entendimento hoje vigente nesta 2ª. Seção" – diz o Acórdão em comento – "indica que a regra para juros remuneratóros é a livre pactuação" [sic] e nisso se revela o que a Súmula encobre. O pano de fundo da Súmula 382, portanto, é um cenário de luto do Código de Defesa do Consumidor com suas regras de inversão do ônus da prova, da nulidade das cláusulas onerosas e abusivas em defesa do cidadão.

O curioso é que a Súmula é editada quase ao mesmo tempo em que as autoridades monetárias do COPOM anunciam, quase ao mesmo tempo, uma vitória da política monetária na previsão de juros de 9,25% ao ano. Assim, enquanto se festejam juros de um dígito ao ano, a inequação da Súmula consagra juros infinitos ao mês. A Súmula, portanto, é uma cilada, uma armadilha, algemas para o pulso de juízes inconformados, sensíveis aos injustiçados atraídos pelas facilidades dos sonhos de consumo, pessoas desarmadas que, além de não terem segurança na via pública, perdem-na também na via judicial.

Aos consumidores podem ser dedicados os versos do pouco lembrado vate fluminense Eduardo Alves da Costa "No caminho com Maiakovski". "Na primeira noite" – diz o poeta –"eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada."


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBELO, Darci Norte. O não-dito e o encoberto na Súmula nº 382 do STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2190, 30 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13069. Acesso em: 19 abr. 2024.