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Comentários à lei da anistia aos estrangeiros em situação irregular no território brasileiro

Comentários à lei da anistia aos estrangeiros em situação irregular no território brasileiro

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Em julho de 2009, o governo brasileiro decretou a anistia aos estrangeiros em situação irregular no País, permitindo sua regularização para obtenção de residência provisória, conversível em permanente após dois anos.

Introdução

Em julho deste ano (2009), o governo brasileiro decretou a anistia aos estrangeiros em situação irregular no País, permitindo sua regularização para obtenção de residência provisória, conversível em permanente após dois anos.

A base legal da anistia concedida pelo governo brasileiro encontra-se na Lei n. 11.961/09 e no seu Regulamento, o Decreto n. 6.893/09. [01] Este artigo examina questões difíceis de interpretação da Lei, as quais suscitam dúvidas relevantes, possíveis conflitos jurisprudenciais e opostas posições doutrinárias. Algumas dessas questões já foram discutidas na vigência das leis anteriores de anistia, pelo que vale referir a experiência anterior levada aos tribunais pátrios para obter indicativos de tendências atuais de julgamento.

O objetivo é apresentar uma análise técnica da Lei, comentando seus principais pontos, com especial atenção àqueles que podem ensejar múltiplas interpretações.

Com essa missão, o artigo aborda seis questões: 1) abrangência da Lei quanto à "situação migratória irregular"; 2) limite temporal para exercício do direito à anistia; 3) interpretação do critério da "permanência no território nacional"; 4) nacionalidade do estrangeiro candidato à anistia; 5) questões documentais; 6) Transformação em residência permanente.


1. "Situação migratória irregular"

O artigo 1º da Lei estabelece dois requisitos essenciais para fazer jus ao benefício: a) ingresso no território nacional antes de 1º de fevereiro de 2009; b) nele permanecer em situação migratória irregular.

Ao contrário das anistias anteriores, em especial aquela de 1998, que dava anistia ampla a todos aqueles em situação irregular, não é clara a abrangência na anistia de 2009 de certas hipóteses de irregularidade.

A restrição deriva da limitação aparentemente introduzida pelo artigo 2º da Lei, que arrola como irregular apenas o estrangeiro que:

I - tenha ingressado clandestinamente no território nacional; II - admitido regularmente no território nacional, encontre-se com prazo de estada vencido; ou III - beneficiado pela Lei n. 9.675, de 29 de junho de 1998, não tenha completado os trâmites necessários à obtenção da condição de residente permanente.

São três, portanto, os casos de irregularidade migratória previstos no diploma legal sob comento. O primeiro é o ingresso clandestino, como aquele feito pelas largas fronteiras terrestres do Brasil, sem registro ou passagem por alfândega. Também é esta a situação daqueles que viajam a bordo nos compartimentos de carga dos navios, somente se apresentando à tripulação quando próximos da chegada, ou nem isso, fazendo a viagem totalmente incógnitos.

O segundo, certamente o mais corriqueiro e o que alcança o maior contingente de estrangeiros candidatos à anistia, refere-se a expiração do prazo de estada. Aplica-se ao estrangeiro que tenha vindo ao Brasil com visto de turista e aqui tenha permanecido numa das seguintes situações: a) permanência superior a 90 (noventa) dias, sem ter encaminhado pedido de renovação à Polícia Federal; b) permanência no território nacional superior a 180 (cento e oitenta) dias num período de 365 (trezentos e sessenta cinco) dias; c) permanência superior ao prazo lançado no passaporte, quando menor do que 90 (noventa) dias.

O terceiro caso de irregularidade toca aos beneficiários da Lei anterior de anistia que não tenham logrado êxito em seu pleito.

Numa primeira leitura, tem-se a impressão de que a Lei deixou de fora, portanto, outros casos de irregularidade, tais como os que passamos a enumerar:

a)a mudança de empregador de imigrante admitido com visto de trabalho (artigo 100 da Lei 6.815/80, o Estatuto do Estrangeiro [02]);

b)o exercício de atividade profissional remunerada por estrangeiro com visto de turista, de trânsito ou estudante, assim como dependentes de estrangeiro titular de visto temporário de qualquer espécie e jornalista estrangeiro em relação a fonte pagadora brasileira (artigo 98 da Lei 6.815/80), além das vedações similares aos portadores de visto de cortesia, oficial ou diplomático (artigo 104 da Lei 6.815/80);

c)o engajamento do estrangeiro com visto de turista ou de trânsito como tripulante em porto brasileiro, nas condições especificadas no artigo 105 do Estatuto do Estrangeiro;

d)falta de comunicação ao Departamento de Polícia Federal de alteração do domicílio do estrangeiro registrado, no prazo de 30 (trinta) dias (artigos 102 da Lei 6.815/80 e 81 do Decreto 86.715/81) [03], ou de alteração na sua nacionalidade, no prazo de 90 (noventa) dias (artigo 103 da Lei 6.815/80);

e)falta de apresentação do estrangeiro ao Departamento de Polícia Federal para registro, depois de admitido seu ingresso, no prazo de 30 (trinta) dias (artigo 58 do Decreto 86.715/81). [04]

Entretanto, claramente a voluntas legislatoris, anunciada tanto pelo Poder Executivo, em especial o Presidente da República e o Ministro da Justiça, assim como a exposição de motivos apresentada ao Congresso Nacional, aponta em sentido oposto, referindo-se a uma anistia ampla e geral.

A redação não é determinante. Quisesse excluir todas as demais hipóteses levantadas por nós, teria inserido cláusula restritiva, como "serão consideradas irregulares somente as seguintes situações". Por outro lado, houvesse clara intenção em abrir a lista, não seria cuidado extremo inserir termo que denotasse essa vontade, como "sem prejuízo de outras situações de irregularidade previstas na legislação, considera-se em situação migratória irregular, para fins desta Lei, o estrangeiro que (...)". O melhor, em todos os casos, seria repetir a fórmula já empregada na Lei anterior de Anistia ou mesmo nos Acordos Operativos com Argentina e Bolívia, que apenas mencionam "situação ilegal" ou "situação irregular". [05]

Nossa posição é a de que a Lei deve ser entendida em sentido amplo e que as demais hipóteses de irregularidade não listadas no artigo 2º devem também justificar a concessão do benefício da anistia. Elas enquadram-se, na pior das hipóteses, nos "casos omissos e especiais" referidos no inciso II do artigo 9º do Decreto n. 6.893/09, a serem decididos pela Secretaria Nacional de Justiça, vinculada ao Ministério da Justiça. [06] Não há motivo de ordem política, social ou legal para negar a estrangeiro que cumpra os demais requisitos da Lei o benefício da anistia. Seria um contrassenso privilegiar o estrangeiro que ingressou de forma clandestina e obteve trabalho irregular face àquele que simplesmente laborou sem visto que a tanto o autorizasse. Por isso, defendemos interpretação extensiva das hipóteses de irregularidade que ensejam a anistia.

É de se consignar, embora já sem relação com o argumento de extensão do benefício da anistia, mas ligado ao tema do tópico, a possibilidade de quem já tenha formulado pedido de regularização imigratória optar pela anistia, desistindo do processo em curso. Este direito está previsto no artigo 11 da Lei 11.961/09 e regulado pelo artigo 8 do Decreto 6.893/09.


2. Limite temporal para exercício do direito à anistia

A Lei, no artigo 4º, e o Decreto, no artigo 1º, taxativamente determinam que o requerimento deve ser formulado nos 180 (cento e oitenta) dias seguintes à publicação da Lei. Considerando que a Lei foi publicada em 3 de julho de 2009, o prazo para requerer anistia encerra-se no final deste ano.

Diferentemente da Lei n. 9.675/98, a Lei e o Decreto contêm disposição expressa sobre o prazo. No passado, a determinação do lapso temporal foi relegada apenas ao Decreto regulamentador, sendo omissa a Lei. Tal composição legislativa incidiu em antinomia, posto que o Decreto criava restrição a direito instituído por Lei. Logo, era sustentável a tese de nulidade da prescrição temporal do Decreto, por violação da Lei. Afinal, o critério da hierarquia é preponderante quando houver conflito entre disposições de um mesmo ordenamento jurídico.

Houve decisão favorável ao estrangeiro que cumpria os requisitos da anistia segundo a Lei, mas que havia perdido o prazo de noventa dias para regularização estipulado pelo Decreto:

A Lei nº 9.657/98, alterando o dispositivo da Lei nº 7.685, de 02/12/88, ampliou o prazo para o estrangeiro em situação ilegal requerer o registro provisório e regularizar sua situação no Território Nacional, não estabelecendo um termo para tal. Presentes os requisitos de certeza e liquidez do direito pleiteado, autorizadores da concessão da segurança, afasta-se a deportação dos impetrantes. [07]

Esta discussão, porém, não será travada a respeito da atual Lei de anistia. Atentos devem estar os estrangeiros ao limite de cento e oitenta dias, pois eventual prorrogação será mera liberalidade das autoridades responsáveis e possível apenas se feita de forma geral.


3. interpretação do critério da "permanência no território nacional"

Outro ponto merecedor de atenção é a situação dos estrangeiros que saíram do território nacional depois de 1º de fevereiro e voltaram ao país. A Lei admite ao menos duas interpretações. Pela mais restritiva, somente seria candidato à anistia o estrangeiro que tivesse entrado antes de 1º de fevereiro e permanecesse, sem mais sair do território, nem mesmo por pouco tempo, até obter o protocolo de entrada do requerimento de anistia. A interpretação extensiva da Lei permitiria considerar apto à anistia o estrangeiro que tiver o animus de permanecer no território nacional, ainda que tenha dele se ausentado por pequenos períodos. É claro que a versão mais abrangente não pode incluir aquele estrangeiro que esteve em nosso território antes de 1º de fevereiro de 2009 e já não mais aqui estava no momento da publicação da Lei, pois a Lei requer permanência no território nacional. Tampouco poderá beneficiar aquele que saiu do Brasil em março, suponhamos, e somente tenha voltado três meses depois. É que nestes casos não há o animus, a vontade de fixar residência, motivo pelo qual seria incongruente conceder-lhe residência provisória. Por outro lado, merece-a o estrangeiro que aqui tenha seu domicílio no período, mesmo que tenha saído por curtos períodos. Essa ressalva valerá para o estrangeiro que saiu para uma curta viagem de turismo e ainda mais para quem se ausentou com alguma justificativa específica, tal como tratamento de saúde ou para cumprir determinação administrativa ou legal no país de origem (apresentar-se ao serviço militar, por exemplo). Já na vigência da Lei anterior de anistia os tribunais assim interpretaram essa situação, dando guarida à interpretação extensiva:

ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. REGISTRO PROVISÓRIO. ANISTIA. LEI Nº 9.675/98, ART. 1º. DEC. Nº 2.771/98, ART. 1º. Caso em que, apesar das saídas e entradas intercorrentes, acha-se caracterizada a intenção de permanência no território nacional em 29.06.98. [08]

Em acórdão ainda mais claro a esse respeito manifestou-se o mesmo Tribunal:

ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. REGISTRO PROVISÓRIO. INDEFERIMENTO. INTERPRETAÇÃO DA LEI Nº 7.675/88, ART. 1º, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 9.775/98. Ante o disposto no art. 1º da Lei nº 7.675/88, com a redação dada pela Lei nº 9.775/98, o verbo " permanecer " não deve ser tomado em acepção absoluta, mas relativada ao ponto de significar presença predominante, desconsideradas pequenas ausências insuscetíveis de afetar a constatação de que o estrangeiro, ingressado no território nacional e aqui estando em situação irregular, até a data da promulgação da lei, pretendia fixar residência no Brasil com ânimo de ficar em definitivo. Se a Lei da Anistia quis beneficiar o estrangeiro em situação ilegal, com residência no Brasil anterior à data-limite de 29.06.98, é inadmissível que eventual movimentação de entrada e saída do território brasileiro, inerente ao próprio ambiente social da fronteira, seja suficiente para descaracterizar a comprovação de residência anterior àquela data. [09]

Na vigência da Lei anterior sobre anistia a estrangeiros o Tribunal Regional Federal da 4ª Região pareceu acolher tese mais abrangente, ao considerar irregular, e, portanto, apto a requerer anistia, o estrangeiro residente que possuía visto de turista por ter saído e voltado recentemente:

ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. REGISTRO PROVISÓRIO. 1. Segundo a Lei nº 7.685, de 02.12.88, alterada pela Lei nº 9.675, de 29.06.98, e regulamentada pelo Decreto nº 2.771, de 08.09.98, tem direito a registro provisório o estrangeiro que, tendo ingressado no território nacional até o dia 29 de junho de 1998, aqui permaneceu" em situação ilegal". 2. Estando demonstrado que o estrangeiro mantém residência no Brasil, em situação irregular, há muito tempo antes da referida data, as suas posteriores saídas do País, para retornar em seguida com visto de turista, de modo algum alteram a situação de irregularidade, para efeito de concessão do registro em causa. O visto de turista, em tais casos, nada regulariza, a não ser em aspectos meramente formais. Quanto à substância dos fatos, que é o que interessa ao Direito, o referido visto apenas acentua a irregularidade, já que serve de instrumento para justificar que, sabidamente, não está aqui como turista, mas como residente permanente. [10]

A tese contrária, mais restritiva, foi advogada pela União Federal, que sustentava que

a Lei n. ° 9.675⁄98 não permite o registro provisório ao estrangeiro que tenha saído do território nacional, e a ele tenha regressado após 29 de junho de 1998. O art. 1o, da Lei n. ° 9.675, de 29 de junho de 1998, estabelece: "Art. 1o. Poderá requerer registro provisório o estrangeiro que, tendo ingressado no território nacional até a presente data, nele permaneça em situação ilegal." A exegese da regra é pura e simples: o estrangeiro que ingressou no território nacional depois que a norma entrou em vigor não tem direito a registro provisório. [11]

Contudo, mesmo o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar recurso especial baseado na exegese restritiva da Lei anterior de anistia, manteve o posicionamento de maior flexibilidade já adotado no tribunal de origem:

I - É ilegal a situação de quem vive permanentemente no Brasil, usando visto de turista. A renovação periódica de tal visto não afasta a irregularidade, nem impede a outorga do registro provisório, desde que o primeiro ingresso em nosso território tenha ocorrido até 29-06-98 (L. 9.675⁄98 - Art. 1o) II - A ausência circunstancial, após 29-06-98, do estrangeiro, para o fim específico de renovar o visto não lhe retira o direito ao registro provisório. [12]

Em determinada ocasião, o mesmo Tribunal foi ainda mais longe, valendo-se de interpretação teleológica, fulcrada na intentio legislatoris, para considerar que mesmo estando ausente do País na própria "data de corte" fixada pela Lei poderia o estrangeiro requerer residência provisória, se comprovado estivesse seu ânimo de fixar residência no Brasil. Do voto do Relator, extraem-se relevante excertos nesse sentido:

De fato, o agravado teve saídas e entradas em território nacional antes do advento da Lei em comento. Inconteste, ainda, o fato de o estrangeiro encontrar-se momentaneamente ausente do território nacional na data de 29 de junho de 1998. (...) Ademais, é vasta a jurisprudência do STJ no sentido de reconhecer ao estrangeiro com múltiplas entradas (tendo em consideração a necessidade de obtenção de novo visto de turista, que possui validade de apenas 3 meses), e inclusive ausência na data de 29 de junho de 1998, o direito à anistia em tela.

Após a deliberação, o acórdão ficou assim ementado:

ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESTRANGEIRO RESIDENTE NO BRASIL. REGISTRO PROVISÓRIO. BREVE SAÍDA DO TERRITÓRIO NACIONAL. LEI N. 9.675/98 (ART. 1º). PRECEDENTES. 1. A breve saída do território nacional e o posterior retorno ao Brasil após o prazo estabelecido no art. 1º da Lei n. 9.675/98 não descaracteriza a permanência anterior do estrangeiro em solo brasileiro, o que autoriza, portanto, a regularização de sua permanência no território nacional por meio de registro provisório. (REsp 278.446/PR, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Turma, julgado em 11.10.2005, DJ 13.03.2006 p. 240) 2. Agravo regimental não-provido. [13]

Dentre os precedentes citados que embasaram referida decisão, está outro acórdão do mesmo STJ, deveras interessante para o tema em análise:

Por outro lado, o Tribunal a quo entendeu que a permanência de três meses com ânimo de aqui fixar domicílio era o suficiente para que o agravado pudesse fazer jus à referida anistia.Constata-se da impetração que o estrangeiro, nacional da Síria, reside no território nacional desde 1991, após sua entrada clandestina, e que esteve ausente do país após o dia 29 de junho de 1998. O breve retorno do estrangeiro ao Brasil, afirmação ratificada pelo r. voto condutor do acórdão recorrido, autoriza a regularização de sua permanência no território nacional por meio do registro provisório. Como bem ponderou o nobre desembargador relator do acórdão profligado, "o objetivo do legislador foi, inequivocamente, regularizar a situação dos estrangeiros que, até a data estabelecida naquele diploma legal, se encontrassem de forma irregular em solo brasileiro. O juiz a quo deu ao vocábulo permanecer uma interpretação muito estreita. Não é porque o estrangeiro se ausentou por um breve tempo do país, sem ânimo de abandoná-lo, que a sua permanência anterior em solo brasileiro tenha se descaracterizado. A lei não poderia pretender, por absurdo, impedir o deslocamento dos estrangeiros. Não foi essa a intenção do legislador". [14]

Ora, o raciocínio aplicado outrora mantém-se incólume sob a égide da nova Lei. Com efeito, antes como agora há dois requisitos temporais para a anistia, quais sejam, repetimos, ingresso antes de data determinada por Lei (29.06.1998 na Lei 9.675/98 e 01.02.2009 na Lei 11.961/09) e permanência em território nacional em situação irregular. A tese de que o estrangeiro não poderia ausentar-se do País para caracterizar a permanência não prevaleceu sob a redação da Lei de 1998; tampouco poderá prevalecer agora, na vigência da Lei 11.961/09, que possui igual comando.


4. Nacionalidade do estrangeiro candidato à anistia

A Lei não discrimina a nacionalidade do estrangeiro para efeito de concessão de anistia. Ela vale para todos. Não são levados em conta, portanto, aspectos relativos à reciprocidade de tratamento dos brasileiros no país de origem do pleiteante.

Não obstante essa abrangência no campo da validade pessoal da norma, cumpre examinar a situação dos estrangeiros que já foram beneficiados por outras condições especiais de regularização, a exemplo dos argentinos.

Em razão de Decisão tomada no seio do Mercosul, posteriormente efetivada por um Acordo Operacional entre Brasil e a Argentina, os brasileiros na Argentina e os argentinos no Brasil podem solicitar residência provisória no consulado do outro país. [15] Atualmente, por força de Acordo bilateral já promulgado, os argentinos poderão requerer diretamente a transformação de seus vistos em permanentes, assim como regularizar sua situação migratória. [16]

Apesar do Acordo mercosulino, ainda é possível que argentinos procurem a Polícia Federal ao abrigo da nova Lei. E deverão ser atendidos, em particular se sua entrada no País tenha sido clandestina, pois os clandestinos estão excluídos do Acordo (artigo 5º, §2º, do Acordo Operativo). Igualmente serão interessados na nova Lei os argentinos que obtiveram a residência provisória, mas deixaram de se apresentar à Polícia Federal, em descumprimento ao artigo 10 do Acordo Operativo.

O Brasil entabulou negociações similares com diversos países da América Latina, como Uruguai, [17] Bolívia, [18] Chile [19] e Suriname [20]. Tais acordos bilaterais, em regra, têm restrições de prazo para requerimento do benefício da regularização. Logo, a Lei de anistia também servirá aos nacionais desses países que não requereram a tempo o benefício previsto em seus acordos bilaterais, da mesma forma que os atenderá quando os acordos não estiverem vigentes.


5. Questões documentais

A Lei não define com precisão quais são os documentos que podem provar a situação de clandestinidade. O Decreto refere-se somente a "III - comprovante de entrada no Brasil ou qualquer outro documento válido que permita à Administração atestar o ingresso do estrangeiro no território nacional até 1o de fevereiro de 2009." Essa prova poderá ser difícil de ser mensurada. Relatos indicam que interessados tentam provar seu ingresso por contratos de aluguel de imóvel ou de veículo automotor, mas há rejeição pela Polícia Federal. Certo é que documentos particulares e unilaterais não podem provar o ingresso no território nacional. A melhor prova será, neste caso, a certidão de inscrição consular ou declaração do cônsul do país de origem do estrangeiro, quando possível, afirmando o comparecimento ao consulado do país do interessado em data anterior a 1º de fevereiro de 2009.

A apresentação do passaporte não é necessária. A dispensa é justificada pela possibilidade de ingresso regular no Brasil, com dispensa de visto, para os cidadãos originários e países com os quais o Brasil mantém acordo para dispensa de visto e apresentação de documento de viagem, como é o caso dos países do Mercosul, embora o acordo ainda não esteja vigente. [21] Porém, a falta do passaporte obriga o estrangeiro a buscar prova segura de seu ingresso no território nacional antes da data limite, recaindo no mesmo problema acima abordado sobre os clandestinos.

Quanto à tradução juramentada dos documentos, cumpre fazer menção ao Acordo de dispensa de tradução do Mercosul. Este tratado, já vigente, dispensa os cidadãos do Mercosul de traduzirem passaportes, certidões negativas de antecedentes criminais, certidões de nascimento e casamento e cédulas de identidade (artigo 2º). [22] Então, para os originários dos países do Mercosul, não vale a exigência de tradução juramentada da certidão de nascimento constante do artigo 1º, §2º, do Decreto 6.893/09.


6. Transformação em residência permanente

Não se pode deixar de registrar num comentário analítico da Lei o direito instituído ao estrangeiro anistiado de obter residência permanente no País, na forma do artigo 7º:

No prazo de 90 (noventa) dias anteriores ao término da validade da CIE, o estrangeiro poderá requerer sua transformação em permanente, na forma do regulamento, devendo comprovar: I - exercício de profissão ou emprego lícito ou a propriedade de bens suficientes à manutenção própria e da sua família; II - inexistência de débitos fiscais e de antecedentes criminais no Brasil e no exterior; e III - não ter se ausentado do território nacional por prazo superior a 90 (noventa) dias consecutivos durante o período de residência provisória.

O último requisito deve ser objeto de elevada atenção pelo estrangeiro anistiado que quiser obter a autorização de permanência. Não é clara, neste aspecto, a possibilidade de valer-se dos argumentos expostos acima para a situação do estrangeiro que saiu do País entre a data limite para ingresso no território nacional e a verificação de sua situação de irregularidade. O motivo é simples: neste caso, a Lei foi taxativa ao fixar a exigência de não haver longa ausência. Havendo justificativa, poderá o estrangeiro pleitear a residência permanente com recurso ao procedimento instituído pela Secretaria Nacional de Justiça para casos omissos e especiais.


Considerações Finais

Em seus aspectos técnicos, não obstante uma sequência de ponderações técnicas relacionada às possibilidades hermenêuticas de suas normas, a Lei tem condições de realizar amplamente seu mister, abrangendo estrangeiros nas mais diversas situações de irregularidade, tenham ou não se ausentado do território nacional, desde que mantenham ânimo de aqui fixar residência.

No nosso sentir, o mais apropriado é promover uma interpretação extensiva dos dispositivos legais, admitindo como anistiadas pessoas que se enquadram no escopo maior da Lei que é o de o País reafirmar sua vocação como país multicultural, multiétnico e de acolhimento. Este é o ensinamento do ex-Ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer, exarado noutro contexto, mas que bem se aplica por revelar interpretação da vocação brasileira:

Devemos ter presente que a sociedade brasileira é fundamentalmente pluralista em sua origem, permanece pluralista em seu presente, e tem como vis directiva ser pluralista em seu futuro. [23]

Não é demais lembrar, para finalizar, que a anistia, ampla e irrestrita, realiza propósitos constitucionais, insculpidos nos artigos 3º, inciso IV, - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, e 4º, inciso II, - reger-se pelo princípio da prevalência dos direitos humanos. Esperamos que a anistia abra a via da revisão das normas sobre estrangeiros no País, para que possamos, nesse tema, rumar para uma sociedade cosmopolita, plural, multicultural, aberta e harmônica.


Notas

  1. BRASIL. Lei nº 11.961, de 2 de julho de 2009. Dispõe sobre a residência provisória para o estrangeiro em situação irregular no território nacional e dá outras providências. DOU de 3.7.2009. BRASIL. Decreto nº 6.893, de 2 de julho de 2009. Regulamenta a Lei no 11.961, de 2 de julho de 2009, que dispõe sobre a residência provisória para o estrangeiro em situação irregular no território nacional, e dá outras providências. DOU de 3.7.2009.
  2. BRASIL. Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980. Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração. D.O.U. de 21.8.1980. Republicada pela determinação do artigo 11, da Lei nº 6.964, de 09.12.1981.
  3. BRASIL. Decreto n. 86.715, de 10.12.1981. Regulamenta a Lei n. 6.815, de 19.08.1980, que define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração e dá outras providências. DOU, 11.12.1981.
  4. Outras situações poderiam ser aventadas, em especial as dos artigos 107 do Estatuto do Estrangeiro. Porém, nas vedações à aquisição proprietária previstas no artigo 106 e também aquelas referentes às zonas de fronteira, entendemos que as normas se dirigem sobremaneira aos órgãos de classe, à Junta Comercial e ao Oficial dos Registros Públicos e outras autoridades que devem cuidar para evitar a infração a esse dispositivo. Trata-se mais de nulidade da aquisição ou do registro do que de "situação migratória irregular". Doutra banda, o artigo 107, ao proibir exercício de atividade política ou interferência nos negócios públicos do Brasil, fá-lo sob pena de expulsão (artigo 65 do mesmo diploma legal) e, nesta condição, não pode se beneficiar da anistia.
  5. Vide notas e abaixo.
  6. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Portaria n. 2.231, de 3 de julho de 2009. Estabelece as atribuições da Secretaria Nacional de Justiça e do Departamento de Polícia Federal no procedimento de concessão de residência provisória para o estrangeiro em situação irregular no território nacional a que alude o Decreto nº 6.893, de 2 de julho de 2009. DOU, n. 126, Seção I, de 6.7.2009. p. 30. Dispõe o artigo 2º da Portaria: "Art. 2º Cabe à Secretaria Nacional de Justiça orientar e decidir os casos omissos e especiais advindos dos pedidos referidos no artigo 1º. Parágrafo único. Os casos omissos e especiais referido no caput poderão ser protocolizados na Central de Atendimento da Secretaria Nacional de Justiça ou em uma unidade do Departamento da Polícia Federal." O procedimento foi regulamentado pela SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA. Portaria n. 22, de 7 de julho de 2009. Disciplina o procedimento para análise dos casos omissos ou especiais para concessão de residência no País conforme dispõe a Lei nº 11.961, regulamentada por meio do Decreto nº 6.893, ambos de 2 de julho de 2009. DOU, n. 129, 9 de julho de 2009, p. 48.
  7. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO (TRF4). Apelação Cível n. 1999.72.00.010281-9. Rel. Des. Federal Edgard Antônio Lippmann Júnior - 4ª Turma Julgamento de 10.10.2000. A decisão foi mantida no STJ. Recurso Especial nº 371.100 - SC (2001/0158655-4). Relator Ministro Garcia Vieira, Decisão monocrática de 6.12.2001.
  8. TRF4. REO 1999.04.01.071230-2. Quarta Turma, Relator Valdemar Capeletti, DJ 24/11/1999,
  9. TRF4. REO 1999.04.01.087584-7. Quarta Turma, Relator Valdemar Capeletti, DJ 22/03/2000.
  10. TRF4. AMS 1999.04.01.083486-9. Terceira Turma, Relator Teori Albino Zavascki, DJ 01/03/2000.
  11. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). REsp 278.461/SC. Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma. julgado em 03/05/2001, DJ 20/08/2001. p. 354.
  12. STJ. REsp 278.461/SC. Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma. julgado em 03/05/2001, DJ 20/08/2001. p. 354.
  13. STJ. AgRg no Ag 927.461/SP. Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 21/08/2008, DJe 23/10/2008.
  14. STJ. REsp 290.684/PR. Rel. Ministro Franciulli Netto, Segunda Turma, julgado em 03.06.2003, DJ 08.09.2003 p. 269. Sem grifo no original.
  15. MINISTÉRIOS DE ESTADO DAS RELAÇÕES EXTERIORES E DA JUSTIÇA. Portaria Interministerial de 28 de agosto de 2006. Dá execução ao Acordo, por troca de Notas, entre a República Federativa do Brasil e a República Argentina, para Implementação entre si do Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul e seu anexo. Diário Oficial da União, Seção I, Nº 166, terça-feira, 29 de agosto de 2006, p. 66-67. O Acordo do Mercosul ainda não está em vigor, faltando duas ratificações (Argentina e Paraguai), justificando o Acordo Operativo para dar-lhe vigência entre dois de seus Membros. Acordo semelhante que inclui Chile e Bolívia está na mesma situação. O Brasil já promulgou ambos os acordos. MERCOSUR. Acuerdo sobre Regularización Migratoria Interna de Ciudadanos del MERCOSUR. Brasilia, 5 de diciembre de 2002. Disponível em: http://www.mre.gov.py/dependencias/tratados/mercosur/registro%20mercosur/mercosurprincipal.htm. Acesso em 31 de julho de 2009.
  16. BRASIL. Decreto nº 6.736, de 12 de Janeiro de 2009. Promulga o Acordo entre a República Federativa do Brasil e a República Argentina, celebrado em Puerto Iguazú, em 30 de novembro de 2005. "Artigo 1º. Os nacionais brasileiros que se encontrem na Argentina e os nacionais argentinos que se encontrem no Brasil poderão obter a transformação dos vistos de turista ou dos vistos temporários em permanente, desde que requeiram e cumpram com os requisitos previstos no presente Acordo."
  17. MINISTÉRIOS DE ESTADO DAS RELAÇÕES EXTERIORES E DA JUSTIÇA. Portaria Interministerial de 27 de outubro de 2006. Dá execução ao Acordo, por troca de Notas, entre a República Federativa do Brasil e a República Oriental do Uruguai, para Implementação entre si do Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul e seu anexo. Diário Oficial da União, Seção I, Nº 209, terça-feira, 31 de outubro de 2006, p. 313.
  18. BRASIL. Acordo, por troca de notas, para regularização migratória, com a República da Bolívia. DOU nº. 179, de 16/09/2005, Seção 1 página 67. O prazo de 180 (cento e oitenta dias) para regularização foi prorrogado por ajuste e consta da Portaria nº 1.194, de 26 de junho de 2008 do Ministério da Justiça. Disponível em: http://www.mj.gov.br. Acesso em 2 de agosto de 2009.
  19. BRASIL. Acordo por troca de notas para Bilateralização do Acordo sobre residências para nacionais dos Estados Partes do Mercosul, Bolívia e Chile. Disponível em: http://www2.mre.gov.br/dai/b_chil_128_5737.htm. Acesso em 31 de julho de 2009. Não foi encontrada, nessa data, referência a ato que introduzisse definitivamente este acordo no ordenamento jurídico brasileiro.
  20. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Decreto Legislativo nº 271, de 2007. Aprova o texto do Acordo sobre Regularização Migratória entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República do Suriname, celebrado em Paramaribo, em 21 de dezembro de 2004. Diário Oficial da União - Seção 1 - 05/10/2007. p. 5. Não consta ainda que haja sido promulgado o Acordo pelo Presidente da República.
  21. MERCOSUR. Acuerdo sobre Exención de Visas entre los Estados Partes del Mercosur. Florianópolis, 15 de diciembre de 2000. Disponível em: http://www.mre.gov.py/dependencias/tratados/mercosur/registro%20mercosur/mercosurprincipal.htm. Acesso em 31 de julho de 2009.
  22. MERCOSUR. Acuerdo sobre Exención de Traducción de Documentos Administrativos para Efectos de Inmigración entre los Estados Partes del MERCOSUR. Florianópolis, 15 de diciembre de 2000. Disponível em: http://www.mre.gov.py/dependencias/tratados/mercosur/registro%20mercosur/mercosurprincipal.htm. Acesso em 31 de julho de 2009.
  23. LAFER, Celso. Mudam-se os tempos. Diplomacia Brasileira – 2001/2002. Brasília: FUNAG, IPRI, 2002. p. 68.

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LUPI, André Lipp Pinto Basto. Comentários à lei da anistia aos estrangeiros em situação irregular no território brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2261, 9 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13473. Acesso em: 17 abr. 2024.