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Justiça Militar: um órgão especializado do Judiciário, esquecido pelo Poder Legislativo

Justiça Militar: um órgão especializado do Judiciário, esquecido pelo Poder Legislativo

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Como costumeiramente vem acontecendo, entrou em vigor uma nova lei penal e, mais uma vez, o legislador não fez qualquer menção ao Código Penal Militar (CPM ). Refiro-me à recente lei 12.012/2009, que acrescentou o artigo 349-A ao Código Penal Brasileiro (CPB), tipificando condutas de ingressar, promover, intermediar ou facilitar a entrada de aparelho, de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento prisional (pena: detenção de 3 meses a 1 ano).

Desse modo, caso ocorra um episódio equivalente em presídio da Marinha, vale dizer, a entrega de um aparelho celular a um traficante preso, em razão de condenação por crime militar, o fato é atípico para o CPM, pois o legislador olvidou, como é de praxe, de incluir tipos penais, criados em leis extravagantes, à legislação penal militar.

Aliás, há tempos que as legislações penal/processual penal militar ressentem-se de reformas, ainda que parciais, como vem ocorrendo com os CPB e CPP brasileiros.

Vale ressaltar que, embora o código penal militar e código processual penal militar (CPPM) tenham vindo à lume em 1969, e os códigos penal e processual penal brasileiros em 1940 e 1941, respectivamente, há, pelos motivos acima apontados, um evidente retrocesso da legislação castrense em relação às ditas leis penais e processuais comuns.

Decorrente do esquecimento legislativo supracitado, a legislação penal militar encontra-se repleta de lacunas em relação a condutas como, por exemplo: fraude em licitações, assédio sexual, tortura (na extensão dada pela lei 9455/97), posse e comercialização de arma de fogo e outras consideradas como crimes hediondos. De igual forma, não houve na seara processual penal militar, os relevantes avanços do CPP, referentes aos capítulos das provas e procedimentos.

Quanto aos crimes hediondos e de tortura, impende destacar alguns exemplos que ressaltam as disparidades existentes entre as mencionadas legislações. Assim, caso venha a ocorrer um estupro, no interior da caserna, praticado por um militar contra uma militar, se condenado o infrator, sofrerá pena que varia de 3 a 8 anos. Na hipótese de o estupro configurar crime de natureza comum (hediondo), a pena é de 6 a 10 anos.

Em relação ao crime de tortura, delito tipificado com variedades de condutas pela lei 9455/97, chega as raias do ridículo as penas existentes, em abstrato, no CPM, em tímidos dispositivos similares, constantes no parágrafo primeiro do artigo 222 (constrangimento ilegal) e no artigo 213 (maus tratos ). Vale dizer, enquanto a lei de tortura sanciona o criminoso com penas de 2 a 8 anos de reclusão, o CPM estabelece punição máxima de até dois anos de detenção quando o constrangimento é exercido com abuso de autoridade para obtenção de confissão de autoria de crime ou declaração de testemunha (equivalente ao artigo 1º, inciso I, alínea "a", da lei 9455) e de um ano na hipótese de exposição a perigo de vida ou saúde de pessoa para o fim de educação e instrução, abusando dos meios de correção ou disciplina (semelhante ao artigo 1º, inciso II da lei em menção).

O caso mais gritante, entretanto, diz respeito ao tráfico de drogas. Pontue-se que a legislação penal militar sanciona, de forma abstrata, com a mesma pena, o usuário e o traficante de drogas, é dizer, penas que variam de 1 a 5 anos de reclusão. Ressalte-se ainda que ambas as condutas estão concentradas no mesmo tipo penal (art. 290 do CPM. Em outra senda, a nova lei de drogas, além de criar variadas modalidades de tipos para o crime de tráfico, prevê penas que variam entre 5 a 15 anos de reclusão, podendo alcançar o máximo de 20 anos, no caso de traficante profissional (art. 36 da lei 11343).

Aliado ao dito olvido legislativo, no que tange aos crimes impropriamente militares (que podem ter como sujeitos ativos militares e civis), forçoso é reconhecer, por outro lado, que o código penal militar ainda contempla em seu elenco, obsoletos delitos propriamente militares (aqueles que só podem ser praticados por militares), os quais se revelam em verdadeiras letras mortas. Pelo menos são essas as impressões que ficam, principalmente, levando-se em conta as estatísticas que registram os parcos números de processos instaurados, bem como as ausências de condenações envolvendo certos delitos.

À guisa de exemplo, vejamos alguns desses tipos penais, os quais o CPM estabelece, como pena principal, a suspensão do exercício do posto, graduação ou função e reforma. Senão vejamos:

Rigor excessivo

Art. 174. Exceder a faculdade de punir o subordinado, fazendo-o com rigor não permitido, ou ofendendo-o por palavra, ato ou escrito:

Pena - suspensão do exercício do pôsto, por dois a seis meses, se o fato não constitui crime mais grave.

Omissão de socorro

Art. 201. Deixar o comandante de socorrer, sem justa causa, navio de guerra ou mercante, nacional ou estrangeiro, ou aeronave, em perigo, ou náufragos que hajam pedido socorro:

Pena - suspensão do exercício do posto, de um a três anos ou reforma.

Exercício de comércio por oficial

Art. 204. Comerciar o oficial da ativa, ou tomar parte na administração ou gerência de sociedade comercial, ou dela ser sócio ou participar, exceto como acionista ou cotista em sociedade anônima, ou por cotas de responsabilidade limitada:

Pena - suspensão do exercício do posto, de seis meses a dois anos, ou reforma.

Inobservância de lei, regulamento ou instrução

Art. 324. Deixar, no exercício de função, de observar lei, regulamento ou instrução, dando causa direta à prática de ato prejudicial à administração militar:

Pena - se o fato foi praticado por tolerância, detenção até seis meses; se por negligência, suspensão do exercício do pôsto, graduação, cargo ou função, de três meses a um ano.

Parece-nos que o primeiro problema a ser solucionado, via reforma legislativa, diz respeito a pena de suspensão do exercício do posto ou graduação. Com efeito, tal modalidade de preceito secundário coloca o militar da ativa condenado em situação de agregado, recebendo proventos, sem trabalhar, durante o cumprimento da pena, conforme estabelecido no art. 64 do CPM. O sentenciado limita-se tão-somente a comparecer, para fins de controle, regularmente a sua organização militar. É verdade que o tempo de serviço do militar não é contado, entretanto, tal tipo de pena afigura-se-nos, data vênia , mais um "prêmio" do que um castigo, principalmente em razão da gravidade de determinados crimes, dentre os quais, merece destaque, o preceituado no art. 174 do CPM, o qual será objeto de nosso enfoque nas próximas linhas. Antes, porém, faz-se mister consignar que se o réu militar for para reserva ou reformado, durante o processo a que responde, por exemplo, pelo artigo em menção, sua pena é convertida em detenção (3 meses a 1 ano). Respeitando opiniões diversas, entendo ser contraproducente estabelecer sanção mais gravosa para o militar que já não mais figura no serviço ativo, ou seja, no convívio direto com o subordinado que puniu, de forma excessiva, e, por outro lado, amenizar a punição daquele que permanecerá na tropa ( pena não privativa de liberdade).

Voltando os olhos para o referido tipo penal supra, constata-se, até mesmo pelo rótulo contido em sua rubrica marginal (Rigor Excessivo), que este delito é o mais grave do elenco acima citado. Sucede que, não obstante as semelhanças existentes, constitui-se numa modalidade capenga do crime de abuso de autoridade, previsto na Lei 4.898/1965 (lei de abuso de autoridade), notadamente se compararmos as penas previstas por ambas as leis. É oportuno assinalar, ainda, que inexiste, até a presente data, condenação neste dispositivo penal na justiça castrense.

Vale salientar que a vida militar é fundamentalmente pautada por princípios basilares de hierarquia, obediência e disciplina. Os regulamentos disciplinares são rígidos e o seu não acatamento pode gerar sanções administrativas duras para o infrator. De observar-se que existem punições disciplinares que alcançam penas de até 30 dias de prisão, tornando-as, portanto, no seu plano concreto, mais danosas que as cominadas para alguns crimes militares, notadamente aqueles acima referidos e os contemplados com o sursis. Significa dizer, o infrator pode ficar efetivamente preso durante o tempo da punição disciplinar aplicada, enquanto o criminoso permanece em liberdade.

Decorrente dessa relação hierárquica administrativa, existente entre superior e inferior, torna- se factível a ocorrência de punições que exorbitem a faculdade de punir do superior, mesmo porque estamos tratando de relacionamentos entre seres humanos, portanto susceptíveis a falhas. É por essa razão que o fiscal da lei, no caso o Ministério Público Militar, deve atuar, de forma efetiva, sempre que se deparar com punições disciplinares graves e desproporcionais as violações administrativas cometidas pelos militares quer por ciência própria, quer por intermédio de notícia crime.

Ocorre que, neste seu mister, o promotor de justiça militar, com certa freqüência, vem se deparando com situações inusitadas. Melhor explicando, diante de alguns fatos, em tese, criminosos, que resultam em denúncia por parte do MPM, o suposto infrator, caso obtenha alguma medida judicial que lhe seja favorável, por exemplo, um habeas corpus, tem ingressado em juízo criminal próprio contra ato do promotor, por abuso de autoridade ou, em outra vereda, pleiteia no juízo cível indenização por dano moral.

Apenas para relatar alguns casos decorrentes de atuações do Parquet militar, que resultaram em ações penais e civis, em face do promotor de justiça militar, trago à colação dois episódios concretos, ocorridos em Recife e no Rio de Janeiro, respectivamente. No primeiro, houve denúncia de violência arbitrária em face de um oficial superior do Exército (art 333 do CPM). Sucede que o denunciado, após obter habeas corpus no STM, representou contra o membro do Ministério Público Militar por denunciação caluniosa e abuso de autoridade. No Rio de Janeiro, a exordial acusatória versou sobre o delito do art. 174 do CPM supra transcrito, em razão de uma punição disciplinar aplicada por um comandante de OM do Exército a um oficial intermediário.

A punição disciplinar, publicada em boletim interno, tinha o seguintes registro, in verbis:


Justiça e Disciplina

O Cap Tal, por ter permitido o acesso à sua esposa de documento oficial, facultando a esta ligar-se com o Poder Judiciário Militar, sobre assunto em tramitação na esfera administrativa militar, (Nr 2) do Art 13, Nr 7, 66 e 67 do Anexo I, com agravante de Nr 2, 3 e 4 letra C) do Nr 6 do Art 18, tudo do RDE, transgressão grave) fica preso por 15 dias.

Deixo de aplicar maior punição pelo que prescreve o Anexo III do RDE.

O acesso a documento oficial, mencionado no teor da punição, refere-se a uma parte especial produzida pelo capitão punido, relatando episódio criminoso ocorrido no bairro da Urca, envolvendo o oficial intermediário em questão e militares do Exército de serviço de patrulhamento de trânsito. Vale dizer, o documento levado pela esposa do capitão ao MPM equivalia a uma notícia crime, conforme autoriza o art. 33 do CPPM.

Assim sendo, o Ministério Publico Militar, após requisitar os elementos informativos que o caso exigia, ofereceu denúncia contra o comandante da OM que aplicou punição, em nítido abuso de autoridade, pelo delito do art. 174, que no CPM tem o nome iuris de exceder a faculdade de punir.

Recebida a peça inaugural acusatória pelo juiz-auditor, o denunciado, de imediato, impetrou um habeas corpus perante o STM, apontando o magistrado como autoridade coatora.

Obtendo êxito no aludido HC, que trancou o processo criminal, o denunciado ingressou no juízo cível federal, pleiteando indenização em face da União por dano moral e, por incrível que nos possa parecer, apontou, desta feita, o promotor como autoridade coatora, inclusive arrolando-o como testemunha no processo.

Ocorre que, a nosso aviso, o inesperado aconteceu. A união foi condenada em 360 salários mínimos em 1ª instância, decisão esta que sofreu apelação pela Advocacia Geral da União e, atualmente, encontra-se no Tribunal Regional Federal para apreciação do aludido recurso.

Embora tais fatos ainda não sejam motivos de preocupações, merecem, pelo menos, atenção por parte de todos os sujeitos processuais que atuam na área criminal, representando a União e os Estados, posto que, não tarda muito, poderão surgir avalanches de ações penais e civis em face de magistrados e promotores.

Concluindo nossas considerações acerca do tema, objeto do presente estudo, não vislumbro outra solução para o enfrentamento do atual problema (esquecimento do legislativo), senão aquela encapada pela atual Procuradora –Geral da Justiça Militar, Drª Claudia Márcia Moreira Luz, que ,em louvável iniciativa, além de promover divulgação, no site do MPM, das relevantes atividades do MPM e da Justiça Militar, busca aproximação com alguns parlamentares para, num primeiro momento, informá-los acerca da importância dessa justiça especializada, desconhecida por muitos, e, numa segunda oportunidade, sugerir reformas pontuais em alguns dispositivos arcaicos contidos em nossa legislação.

Tal procedimento reclama a adesão de todos os operadores de direito que militam na área militar.


Referências Bibliográficas

BRASIL. Presidência da República. Lei 12.012 de 06 de agosto de 2009. Acrescenta o art. 349-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal. Brasília, 07 ago 2006.

______Presidência da República. Decreto - Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. Código Penal Militar. Brasília, 21 out 1969.

______Presidência da República. Decreto – Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, 7 dez 1940.

______Presidência da República. Decreto – Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969. Código de Processo Penal Militar. Brasília, 21 out 1969.

______ Presidência da República. Decreto - Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Brasília, 13 out 1941.

______ Presidência da República. Lei nº 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências. Brasília, 8 abr 1997

______ Presidência da República. lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm, define crimes e dá outras providências. Brasília, 23 dez 2003.

______ Presidência da República. Lei nº 10.224, de 15 de maio de 2001. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para dispor sobre o crime de assédio sexual e dá outras providências. Brasília, 16 mai 2001.

______ Presidência da República. Lei nº 8.072, de 25 de junho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Brasília, 26 jul 1990.

______ Presidência da República. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Brasília, 24 ago 2006.

Brasil. Tribunal Regional Federal da 2º Região. Rio de Janeiro. Processo nº 2000.5101006373-9. Sentença publicada no dia 25/05/2009.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GORRILHAS, Luciano Moreira. Justiça Militar: um órgão especializado do Judiciário, esquecido pelo Poder Legislativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2264, 12 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13496. Acesso em: 19 abr. 2024.