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Entronizando a novíssima defesa social

Entronizando a novíssima defesa social

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O artigo propõe uma "novíssima defesa social" que visa proteger a sociedade através da mitigação de ameaças, não apenas do crime, mas de todas as formas de vulnerabilidade.

Sumário: 1. Introdução. 2. As Ameaças. 3. A Defesa Social. 4. A Nova Defesa Social. 5. As Ameaças Modernas. 6. A Defesa Social Hoje. 7. A Novíssima Defesa Social. 8. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

Conforme a interpretação filosófica da lei de Lavoisier, na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. A sociedade, como protagonista ativa dessa natureza, tem passado por várias transformações, em razão de influências e de aspirações, que têm origens em necessidades efetivas ou artificiais. Grande parte dessas mudanças ocorre em decorrência de revisões na forma de preenchimento específico das necessidades básicas. Essas modificações, buscadas permanentemente, variando em intensidade no tempo, sempre objetivaram melhorias na qualidade de vida, física e espiritual. Hoje, observa-se uma intensificação de formas de busca dessa qualidade. O ser humano, na substância, qualquer que seja sua coordenada social, quer usufruir da vida, quer viver em paz, em harmonia, de forma serena e confiante. Entendeu e acredita, embora, às vezes, não pratique, que somente na concórdia e no sossego alcançará a plena felicidade. Exatamente por compreender que, no caminho rumo a esse objetivo, há enormes vulnerabilidades por onde fluem inúmeras ameaças, naturais e humanas, as quais, além de barrar sua jornada, chegam a afetar a preservação e a perpetuação da própria espécie, é que os indivíduos se agrupam, buscando instrumentos de proteção adequados às respectivas ameaças. Os mecanismos que se antepõem a essas vulnerabilidades e ameaças têm recebido a denominação de "defesa". Sob a óptica doutrinária, são mecanismos aplicados na proteção de uma Nação (daí, a defesa nacional) e/ou na proteção de uma Sociedade (defesa social).

A expressão "defesa social" surgiu no Direito Penal e, ali, coerente com argumentações contextuais, passou por transformações semânticas, sem perder seus traços originários, basicamente contidos na relação entre "crime" e "proteção da sociedade", propugnando por repressão rigorosa e vigorosa, ainda que, desde o segundo pós-guerra mundial, se fale em "nova defesa social".

Pretende-se, com este trabalho, apresentar uma proposta de uma "novíssima defesa social", entendida como mecanismo de proteção da sociedade através de restrição de vulnerabilidades e da mitigação, não apenas da espécie-crime, mas do gênero-ameaças.


2. VULNERABILIDADES E AMEAÇAS

As vulnerabilidades e as ameaças à preservação e à perpetuação da espécie sempre existiram e o ser humano sempre conviveu com elas, sem grandes traumas permanentes, ainda que houvessem ocorrências traumáticas sazonais, até um passado bem recente. Possivel e minimamente por três razões: a primeira, porque a identificação de vulnerabilidades e a percepção de ameaças eram menores, em virtude de umas terem sua caracterização pouco consolidada e outras se constituirem em peculiares adversidades oriundas da natureza ou de antagonismos entre grupos rivais (mesmo que as guerras tenham tido número maior e a peste negra tenha devastado a terça parte da população europeia, sendo considerada uma das maiores ameaças à sobrevivência do homem já acontecidas); a segunda, porque as incidência, frequência e intensidade de ambas eram pouco pesquisadas, em razão de não terem muita relevância, ensejando que, paradoxalmente, o aspecto subjetivo do ambiente de insegurança não fosse considerado, ao contrário do que acontece hoje em relação à violência urbana; terceiro, porque a população recorria quase que unicamente a um instrumento de proteção, a uma realidade superior, observada a ênfase religiosa, como fonte e antídoto dos males. Assim, por falta de maior conhecimento, certas vulnerabilidades eram ignoradas ou, então, havia uma crença maior no controle e, até mesmo, na ausência de ameaças, o que permitia uma sensação de segurança maior do que nos tempos atuais.

Uma constatação inquietante, entretanto, é que referidas vulnerabilidades e ameaças são, hoje, motivo de grande preocupação – infelizmente, não tão grande ocupação – porque têm afetado o corpo e o espírito, vitimando pessoas, de forma ampla e profunda, como jamais se vira antes. Isso vem ocorrendo em virtude de formas, fórmulas e formatos que, sob a pseudo-inspiração de melhorar as condições e a qualidade de vida pansocial, têm provocado aumento da violência do homem contra o próprio homem, do homem contra a natureza e da natureza contra o homem.

Referidas mudanças nos têm conduzido a duas vertentes. Constata-se aumento vertiginoso do contingente atormentado pela sensação de insegurança, pela síndrome de violência urbana, pela síndrome de próxima vítima, pela ilusão de isotopia 1, quando o indivíduo tem a sensação ou de estar no local onde há uma vulnerabilidade e emerge a ameaça ou de que, no local onde se encontra, irá eclodir uma vulnerabilidade e emergirá ameaça idêntica àquela; em outra vertente, o maior conhecimento sobre vulnerabilidades e ameaças nos tem colocado diante de uma realidade fática que, por muito tempo, nos passou despercebida: vive-se, e sempre se viveu, em um ambiente de insegurança. Não apenas no Brasil, mas em qualquer quadrante do globo. Significa dizer que em nenhuma parte do mundo há o ambiente de segurança cabal, absoluta, advinda da proteção plena, total, tendo-se por fundamento dois fortes motivos: primeiro, porque segurança tem um aspecto objetivo (todas as ameaças devem estar sob efetivo controle) e um aspecto subjetivo (deve haver a crença de que todas estão sob controle, efetivamente), sendo que o ambiente de segurança se instala quando há concomitância desses dois aspectos. Lamentavelmente, isso é absolutamente impossível, exatamente em razão do segundo motivo, ou seja, do inopinado, do imponderável que envolvem determinadas vulnerabilidades e ameaças.

Esse fato não é inerente às ameaças incontroláveis, mas, também, às controláveis que não são controladas, por motivos que não serão aqui discutidos. É de se constatar que, em relação às vulnerabilidades e ameaças, hoje há uma percepção mais acentuada e diagnósticos mais precisos que, acompanhados por angustiante impotência, aumentam a sensação de insegurança. Em eras passadas, populações pouco esclarecidas, então dominadas, escravizadas até, refugiavam-se no misticismo e na resignação. Hoje, as populações são mais esclarecidas e, paradoxalmente, têm refúgios mais frágeis. Se o Estado não funciona, não há para onde fugir.

Pode-se afirmar que, definitivamente, é impossível eliminar todas as ameaças e vulnerabilidades, assim como, infelizmente, há a convicção de que muitas ocorrem, com maior intensidade e mais frequência, em razão de crescentes distopias sociais 2, vale dizer, do mau funcionamento de organismos de proteção social. Daí o surgimento de enormes vulnerabilidades no arranjo social, o que prejudica a prevenção e a sustinência de ameaças realizadas pelos instrumentos de proteção e seus respectivos mecanismos de defesa: da Nação (defesa nacional), da Sociedade (defesa social).


3. A DEFESA SOCIAL

A expressão "defesa social" é secular. Sobre esta secularidade, Marc Ancel 3 salienta que

é de se precisar que pelo menos entre os gregos, somente Platão na realidade distinguiu claramente as concepções que se tornariam as concepções da defesa social... Da mesma forma, Platão se apercebe da idéia de proteção da Sociedade contra os delinquentes perigosos... O direito chinês da antiguidade conteria também traços extremamente curiosos sobre noções de defesa social... O direito muçulmano... havia organizado para o adulto um sistema a que se poderia, de certa forma, chamar já um sistema de defesa social... O antigo direito penal europeu apresentaria, a partir do fim da Idade Média, certas ilustrações das idéias da defesa social... Coube a Adolphe Prins ser o primeiro a formular uma doutrina, senão completa, pelo menos autônoma, da defesa social... desde sua primeira grande obra, Science pénale et droit positif, editada em 1899; mas foi sobretudo em seu livro de 1910, intitulado La Défense Sociale et les transformations du droit pénal, que iria realmente formular a doutrina...; René Garraud já dizia, no início do século (1913), que a idéia da defesa social é muito antiga.

Marc Ancel elenca vários outros fatos e circunstâncias que nos permitem concluir que referida expressão não é recente, variando, ao longo do tempo, as interpretações de conteúdo, sua etimologia. São dele as citações sobre o entendimento preliminar do que seria a defesa social:

Uma primeira acepção bastante comum – se bem que hoje em dia totalmente ultrapassada – consiste em entender por defesa social a proteção da sociedade contra o crime, na medida em que procura obter essa proteção através de uma repressão vigorosa das infrações cometidas... Diversos autores continuaram assim a atribuir ao termo defesa social, unicamente pela comodidade de linguagem, este sentido sinônimo de severidade da repressão... para os positivistas, o termo ‘defesa social’ não explica outra coisa senão o novo objetivo que se deve atribuir à pena, desde que essa não mais se constitua na retribuição de uma falta, segundo os princípios da responsabilidade moral... O conceito de defesa social não implicaria portanto outra coisa senão a sistematização das medidas de segurança...

Jean Constant afirmou... que a escola da defesa social considera que a pena não é mais o único nem o melhor meio de lutar contra a criminalidade, e que preconiza, em consequência, a adoção de medidas de proteção social contra os delinquentes perigosos... Mesmo rejeitando os suplícios do Antigo direito, o direito penal clássico, que se constitui no final do século XVIII, estabelece também, por sua vez, um sistema de penas retributivas. Consiste mesmo, em grande parte, em organizar esse complexo anticriminal num estrito sistema de direito: é então esse sistema de direito encarregado de assegurar a proteção da sociedade contra o crime, isto é, ‘a defesa social’.


4. A NOVA DEFESA SOCIAL

É de se admitir que, efetivamente, a expressão "defesa social" ganhou visibilidade quando a ela se juntaram os vocábulos "nova e/ou moderna", notoriedade com o italiano Filippo Gramatica e o francês Marc Ancel, e publicidade, no Brasil, com o professor Heleno Cláudio Fragoso, em seu prefácio de apresentação, ao público de língua portuguesa, da 2ª edição do livro "A Nova Defesa Social", em que abordava o Movimento de Defesa Social Moderno.

Dentre outros tópicos, assinala que

surgiu na Itália, nos anos que se seguiram à 2ª Grande Guerra, quando Filippo Gramatica fundou, em Gênova, um Centro de Estudos de Defesa Social (1945)... idéias do próprio Gramatica (‘Pela transformação dos sistemas penais da atualidade em sistemas de educação e tratamento, em relação com a personalidade individual dos delinquentes’)... Em 1949, no segundo congresso (Internacional de Defesa Social), realizado em Liège (França), criou-se a Sociedade Internacional de Defesa Social... A doutrina de defesa social formulada e exposta por Gramatica (e que aparece em seu livro "Princípios de Defesa Social") pretendia excluir toda idéia de pena, bem como de delinquente e de infração, abandonando por completo o princípio da retribuição.

Sobre a Nova Defesa Social, o apresentador esclarece que

libertando-se de exageros insustentáveis, reformulou as idéias fundamentais do movimento, admitindo certos conceitos da teoria clássica do direito penal, que procura submeter, no entanto, a um novo enfoque... concebe a justiça criminal como ação social de proteção e prevenção, caracterizando-se pelo antidogmatismo. Reduz a técnica jurídica ao papel modesto de instrumento a serviço de uma política legislativa racional. Proclama a necessidade de ultrapassar a abordagem puramente jurídico-formal dos problemas, considerando o direito penal parte da política social do Estado.

Das várias lições de Marc Ancel, extraímos:

Percebemos assim que a ciência criminal moderna se compõe,... , de três ramificações essenciais: a Criminologia, que estuda, sob todos os seus aspectos, o fenômeno criminal; o Direito Penal, que consiste na explicação e na aplicação das regras positivas pelas quais a sociedade reage contra o fenômeno criminal; e enfim a Política Criminal, a um tempo ciência e arte, cujo objetivo prático é, em última instância, possibilitar uma melhor formulação dessas regras positivas, e dar diretrizes tanto ao legislador encarregado de redigir a lei como ao juiz encarregado de aplicá-la, ou à administração penitenciária incumbida de traduzir em realidade a decisão do juiz penal... ;... A exposição que se segue e que objetiva unicamente situar essa defesa social como movimento de Política Criminal...; a história das idéias nos apresenta duas concepções principais, fundamentalmente diferentes, da noção de "defesa social": a) a concepção antiga, defendida ainda por muitos, que a limita à proteção da Sociedade através da repressão do crime; b) a concepção moderna, que encontra sua expressão na excelente fórmula adotada pelas Nações Unidas quando da criação, em 1948, de sua Seção de Defesa Social: a prevenção do crime e o tratamento do delinquente. Prevenção e tratamento são,... , as duas dimensões que faltavam à concepção tradicional".

Uma síntese de "defesa social", buscando o resumo apresentado por Marc Ancel:

a expressão foi inicialmente empregada no Antigo direito, e sobretudo à época do direito clássico, como referência à proteção que a pena devia assegurar à Sociedade, seja pela expiação, seja pela intimidação coletiva;... ela ganhou, com os Positivistas, uma significação mais técnica: essa proteção, que se torna o objetivo essencial do sistema penal, devíamos procurar atingí-la deixando de lado toda e qualquer preocupação meramente retributiva e, em todo caso, através de novos métodos. A União Internacional de Direito Penal e os sistemas ecléticos do início do século XX proporcionaram um novo conteúdo a essa noção, destinada, desde então, a uma função preventiva mais definida. Basta agora confrontar a idéia de prevenção especial com a de proteção individual e coletiva, e de sistematizar a função social que se pretende atribuir à defesa social para que surja claramente a significação moderna;... necessário se faz compreender – e reter – que, em suas significações diversas e sucessivas, por defesa social se entende essencialmente o objetivo que se atribui à reação anticriminal, e a maneira como se pretende organizá-la, em função de imperativos deliberadamente aceitos:.. pisamos indiscutivelmente o terreno da política criminal. Mas deve-se igualmente compreender e reter que essa política criminal sócio-humanista deve-se construir ou, se preferem, estruturar-se distinguindo-se dessas duas posições extremas que consistem, uma, em basear a reação anticriminal num instinto primitivo de defesa; a outra, em situá-la, deixando de lado o homem, ser racional, e à margem do sistema legal, expressão de toda sociedade civilizada. É neste sentido que a defesa social, para cumprir a missão que lhe compete na reconstrução do mundo – e do seu direito –, deve saber se separar resolutamente das doutrinas vizinhas para se tornar, na plenitude da significação do termo, uma nova defesa social.


5. AS AMEAÇAS MODERNAS

Passaram-se mais de sessenta anos que teve início o Movimento da Moderna Defesa Social. O mundo transformou-se, o sistema de vida modificou-se! Valores e regras sociais se alteraram (e continuam a se alterar). Desde antes da regra de ouro cristã, passando pelo imperativo categórico kantiano, desaguando no ideal civilista e na pregação de Martin Luther King "o homem deve ser avaliado pelo conteúdo do seu caráter", se os propósitos sociais têm fácil compreensão, hoje têm efetivação cada vez mais difícil. As ameaças, nos afetando fisicamente e nos amedrontando, numa terrível exponencial, adquiriram novos contornos e matizes. Em atenção a essa avassaladora expansão das ameaças, surge a Policiologia (ciência cujo objeto material é o homem e cujo objeto formal são os instrumentos de proteção e os mecanismos de defesa), que entendeu razoável distribuir as ameaças em cinco grandes grupos, as ameaças-tronco: a exclusão social, a criminalidade, os desastres, a interrupção de serviços essenciais e as comoções sociais. Observe-se que as ameaças-tronco têm um caráter de permanência, de inerência ao ambiente em que se vive, sendo variável sua ocorrência sazonal, que dá clareza à frequência e à intensidade com que ocorrem.

A mais premente ameaça ao organismo social brasileiro é, sem dúvida, a violência, bipartida em violência da EXCLUSÃO SOCIAL e em violência da CRIMINALIDADE, sem controles efetivos, em cujo embate o governo brasileiro, de há muito, vem sendo o perdedor. Os produtos são marginalizados e marginais, como resultados da marginalização e marginalidade4, que não são, necessariamente, interdependentes ou intercomplementares, mas são questões que, certamente, fluem de duas enormes vulnerabilidades brasileiras: a vulnerabilidade socioeconômica e a vulnerabilidade civil,, respectivamente. O número de miseráveis diminui lentamente e os índices de violência têm apresentado números extremamente preocupantes.

Em relação à EXCLUSÃO SOCIAL, observa-se que, em razão de sua própria existência, o Estado, através de órgãos específicos, está permanentemente desenvolvendo esforços, visando a instalação de um clima de convivência harmoniosa e pacífica. Para tanto, realiza trabalhos de inserção social (preparação para o convívio social) e reinserção social (correção de desvios).

A inserção, através da difusão e estímulo à prática, seja da compreensão e protagonismo de direitos sociais, seja do acatamento e obediência aos deveres sociais

A reinserção social abrange atividades destinadas a minimizar ou eliminar situações que levam um grande contingente a viver à margem social. Esse contingente é representado pelos marginalizados e por marginais. Insiste-se: marginalizados são indivíduos à margem dos direitos sociais e todo trabalho, de que são destinatários, tem como foco o moral e visa à reinclusão social; marginais são indivíduos à margem de deveres sociais e o trabalho realizado com eles e para eles, pela sociedade política ou pela sociedade civil organizada, ou por comunidades isoladas, tem como foco a Moral e visa à reintegração social.

Se há uma grande massa de excluídos, se há um grande contingente de desintegrados sociais

Tende-se a um consenso de que o intranquilizador quadro da exclusão social, que agrava o fenômeno da marginalização, é um dos vetores da marginalidade. Uma das razões, ratifica-se, seria a distopia social ou funcionamento anômalo de órgãos de proteção social, com destaque para os vinculados à educação, verdadeiro calcanhar de Aquiles. Os programas de inclusão social, visivelmente assentados em fundamentos assistencialistas deficientes ou ineficientes ou insuficientes, não conseguem reverter a situação, com a velocidade e intensidade desejáveis, visto que preenchem necessidades pontuais. Os fatores geradores da exclusão social não são considerados, não são corrigidos, isto é, as causas e os efeitos, físicos e emocionais, que deveriam ter tratamento macro, são tratados mais no varejo, aumentando a área da causalidade, a área da criminalidade. Reconheça-se que os "bolsa-qualquer coisa" e benefícios previdenciários efetivamente transferem renda, porém em patamar mínimo, enquanto os serviços prestados são terrivelmente ruins.

No Brasil, a injustiça na distribuição de renda e o descompasso entre a justiça social e fiscal, conforme Yves Gandra Martins, podem levar à rejeição social, ou algo do gênero, o que, sem dúvida, é potencialmente perigoso.

Quanto à CRIMINALIDADE, num giro pelo mundo, um desfile de fatos que atestam o recrudescimento da luta do homem contra o homem e o devaneio da segurança absoluta: os assassinatos de John Kennedy, de Isaac Rabin, de Martin Luther King e de John Lennon; as tentativas contra o Papa João Paulo II e Ronald Reagan; as guerras na Coreia e no Vietnam; a "limpeza étnica" nos Balcãs; os trágicos conflitos em Darfur; as invasões no Kwait e no Iraque; os ataques às torres gêmeas e às estações de metrô de Paris, Tóquio e Londres. São situações não muito diferentes, e, circunstancialmente, tão escabrosas quanto as duas grandes guerras, o genocídio dos armênios, o assassinato de Abraham Lincoln, os atentados anarquistas contra a família real russa, os assassinos (hashishim) que cometiam atentados na época das cruzadas, o assassinato do arquiduque Francisco Fernando (por Gravilo Princip), que deu origem à 1ª Guerra Mundial.

Não se discutem números, mas o bem maior, a vida. Esses acontecimentos se diferenciam, apenas, na atual transmissão da notícia pela imprensa, por vezes em tempo real, que, pela repetição, tendem para a banalização. São crimes comuns, crimes do colarinho branco, crimes políticos, crimes de responsabilidade, crime organizado. No Brasil, constata-se a ascensão do nostálgico (que disparate!) ladrão de varais a "integrante do crime organizado".

A estatística criminal mostra números que têm ultrapassado patamares toleravelmente aceitos, porque há um ingrediente que funciona como estímulo para o usuário contumaz e encorajamento para o covarde eventual: a droga. Os índices de violência já atingem pontos inimagináveis, trazendo inquietação e angústia, que seriam maiores se se considerasse, hoje, isoladamente, o índice de homicídios. É que um dos indicativos mais confiáveis na mensuração da violência criminal é o número de homicídios, porque reflete os fatos verdadeiramente. Ocultação de cadáveres é um caso raríssimo e, quase sempre, descoberto, porém, a estatística das representações (queixas, no popular), das ocorrências de vítimas de violência doméstica ou de casos de pequenos furtos e roubos pode mostrar uma frequência irreal, pela omissão em denunciá-los. Ela pode estar afetada por fatores como vergonha, medo, vingança ou, pior ainda, a falta de confiança na atividade pública vinculada, pela incerteza de efetividade nas ações das respectivas autoridades.

Voltando a Marc Ancel e à concepção da moderna defesa social "Prevenção e tratamento são... as duas dimensões que faltavam à concepção tradicional", constata-se que há muita teoria e pouca prática. O sistema prisional, erroneamente invocado como sistema penitenciário, é uma balela. Há muitos órgãos e entidades que não têm interligação, seus esforços não são harmônicos, principalmente no que seria o final da linha, a administração prisional (hoje, administração penitenciária). Prevenção e tratamento continuam faltando em nossos dias.

Quanto aos DESASTRES, um rol que, ultimamente, tem chocado o mundo! Em Nova Orleans, EUA, o furacão Katrina provocou uma catástrofe de grandes proporções, fato que foi considerado pelas autoridades americanas como um dos maiores desastres naturais da história daquele país. No balanço geral, um caos: mais da metade da população sofreu com perdas materiais (casas, principalmente) e com perdas humanas (em torno de 1.000 vidas de parentes e amigos). Segundo a revista VEJA 5, dias após o desastre "mais de 100.000 pessoas permaneciam encurraladas pelas águas, esperando resgate, alimentos e socorro médico em abrigos improvisados".

O que se viu nos dias seguintes, mais parecia o cenário de uma catástrofe em um país subdesenvolvido do que na nação mais requisitada para ajudar em situações de emergência em outras partes do mundo. Saqueadores começaram a pilhar lojas em busca não apenas de itens essenciais de sobrevivência – água, alimentos e roupas – mas também bebidas alcoólicas, tênis de marca, eletrodomésticos e até armas. Alguns dos policiais designados para impor ordem no que restou da cidade acabaram entrando no jogo e foram vistos saindo das lojas carregando televisores... nas partes alagadas, a procura por sobreviventes durou dias... as equipes de resgate ignoravam os corpos que boiavam em volta e dentro das casas. Enquanto houvesse pessoas vivas, era preciso deixar a identificação dos mortos para depois.

O despreparo americano não se deve à falta de avisos. Os meteorologistas sabiam com pelo menos dois dias de antecedência que o furacão poderia atingir com grande potência o litoral dos estados da Louisiana, do Mississipi e do Alabama. Os efeitos devastadores que o fenômeno teria sobre Nova Orleans, que sumiu quase que por completo sob uma lâmina de água salgada, eram previsíveis.

Ruth Costas e Rosana Zakabi concluem: "É espantoso que milhões de americanos tenham escolhido viver em áreas tão ameaçadas por inundações".

Em síntese, pressupõe-se e/ou constata-se que ocorreram imprevidência, desorganização, negligência, destruição, desordem, crimes, prejuízos materiais enormes, além de lamentáveis perdas de vidas humanas. Pessoas, mais indignadas, dentre inúmeras reclamações, chegaram a falar que houve desídia, que os responsáveis subestimaram informações e estimativas, que o descaso ocorreu em virtude de a população local constituir-se de maioria negra e pobre, ou seja, os infortunados de quase sempre. Sem entrar no mérito das queixas, verifica-se que ficou evidente a falta de preparo, pelo menos inicialmente, das autoridades daquele país para enfrentamento do problema. O fato, porém, não deve ser considerado um "privilégio" dos EUA. Pode ocorrer em qualquer país, em qualquer parte do mundo. Em verdade não funcionou o princípio da antecipação – preceito fundamental para se minimizar efeitos de ameaças incontroláveis (o que não é sinônimo de incontroladas), decorrentes de fatores abióticos, como os furacões, os vulcões, os terremotos, as secas, inundações, os deslizamentos de terra, o derretimento de geleiras e congêneres – cujo procedimento fundamental está na divulgação oportuna de informações sobre estes fenômenos, para que as populações se precavenham. Para não se estender, citam-se tragédias, mais ou menos recentes, que afetaram o tecido social de certos países, tais como o Tsunami no oceano índico (os países atingidos não teriam sido avisados imediatamente após detecção do fenômeno, porque não teriam firmado um acordo comercial de adesão ao peculiar programa de prevenção); o furacão Stan, na Guatemala (mais de 3.000 pessoas podem ter ficado soterradas por uma avalanche de lama de 12 metros de altura, que cobriu a aldeia de Panabaj); os terremotos na região da Caxemira, no Paquistão (mortos podem ter chegado a 30.000); o discutível tratamento que certas nações vêm dando às medidas de redução do efeito estufa, que está alterando a temperatura da terra, de acordo com o Paradoxo, digo, o Protocolo de Quioto. Importante ressaltar outro grupamento de ameaças, o que se refere àquelas controláveis, decorrentes de fatores bióticos, ora controladas ali, ora não controladas adequadamente acolá, como a síndrome de imunodeficiência adquirida (Aids), a dengue, o ebola, a febre aftosa, a gripe aviária, os gafanhotos na África, a síndrome respiratória aguda severa (SARS), o mal da vaca louca, etc.

Porque as ameaças de origem abiótica são de previsibilidade mais difícil que as de origem biótica, é extremamente importante que permanentemente se analise se o surgimento de focos, epidemias, endemias e pandemias (e, até mesmo, para a ocorrência de delitos) é decorrente de falhas no planejamento e na execução, seja de medidas preventivas que evitariam sua eclosão, seja de medidas sustinentes que conteriam sua expansão, ou, ainda, de medidas corretivas que impediriam ou retardariam seu ressurgimento.

Quanto às ameaças sazonais, advindas de fatores bióticos e abióticos, como a seca, inundações, queimadas, febre amarela e febre aftosa, dentre outras, os governos brasileiros sempre optaram por administrar o surto (ou o susto?). É que as ações de redução de desastres (que envolvem a administração e a operação) abrangem aspectos globais de prevenção, preparação para emergências, resposta aos desastres e reconstrução. Mas, após criação do embasamento teórico, doutrinário (que é muito bom) as respectivas autoridades não têm planos e, talvez, nem coragem para enfrentamento da ameaça peculiar sob sua responsabilidade. Em não os havendo, a prevenção inexiste, a preparação é insuficiente, a resposta é ineficiente e a reconstrução é deficiente, o que provoca reinício de mais um perverso ciclo vicioso. A danosa degradação ambiental em nosso país é uma ameaça que, finalmente, parece, começa a ser enfrentada.

Dois casos raros de sucesso: o Programa Nacional de Controle da Dengue que, a par de permanente ação operacional efetiva, engaja a sociedade no esforço sinérgico, inteligentemente, além de divulgar informações bem esclarecedoras, que permitem prática de ações preventivas pela própria população. Conforme estatística divulgada, constata-se que se conseguiu uma "redução de 73,3% dos casos da doença no primeiro semestre de 2004 em relação ao mesmo período do ano anterior. Dados da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde mostram que, nos primeiros seis meses de 2004, 84.535 pessoas tiveram dengue, enquanto que, em 2003, as notificações chegaram a 299.764". Em números absolutos, houve grande redução de casos, que deve ser maior, se se considerar o aumento percentual da população. Outro fato positivo diz respeito ao Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS). O sucesso do programa brasileiro é atestado pelo fato de estar sendo considerado referência para outros países, que têm seu corpo social ameaçado por estas doenças. Nele, é interessante destacar o Sistema de Monitoramento de Indicadores do Programa (MONITORAIDS), que tem o objetivo "de fornecer aos parceiros e à sociedade como um todo, informações úteis que possibilitem acompanhar a resposta brasileira para o controle da Aids e outras DST".

Já se falou que o ambiente de segurança deixará de ser uma utopia quando todas as ameaças estiverem controladas e, concomitantemente, houver a crença de que assim estão. Como nem todas as ameaças são passíveis de controle, pelo menos devemos trabalhar, as que são possíveis, em duas indissociáveis frentes: a objetiva e a subjetiva. É provável que o sucesso desses dois programas se deva a isto: os trabalhos de controle são, objetivamente, muito bem realizados e as informações repassadas à população levam-na, subjetivamente, a acreditar naqueles. O resultado é que a sensação de insegurança, sob estes prismas, quase que desaparece, prevalecendo o aspecto da tranquilidade social, no que se refere a essas ameaças.

Aliás, por mais contraditório que possa parecer, a tranquilidade começa a instalar-se quando o indivíduo tem consciência do que sejam as ameaças e da probabilidade de ser vítima de vulnerabilidades que o cercam mais diretamente (a população que mora no sopé de morros íngremes está mais sujeita a ser vítima de deslizamentos; quem mora no nível do mar está sujeito a um tsunami; a população ribeirinha ou que mora em partes baixas sofrerá mais com os efeitos de inundações; o indivíduo que mora num local, ou nas adjacências, onde há brigas de quadrilhas por domínio de "pontos", tem maior probabilidade de ser vítima de uma bala perdida; quem mora em prováveis regiões de abalos sísmicos está mais passível de sofrer, por exemplo, com terremotos, bem como quem mora em áreas de ocorrência de vulcões, ciclones, de secas e outras ameaças.

De passagem, lembra-se que a organização da proteção da população brasileira (Defesa Civil) contra os desastres – preliminarmente chamados de "calamidades" – teve origem com a criação, em 1942, do Serviço de Defesa Passiva Antiaérea, transformado em Serviço de Defesa Civil. Efetivamente, a Defesa Civil começou a destacar-se e a tomar corpo em 1967. Naquele ano foi criado o Ministério do Interior, com a competência de assistir as populações atingidas por calamidade pública em todo território nacional, cometendo responsabilidades aos Estados. Em 1969 foi instituído, no Ministério do Interior, o Fundo Especial para Calamidades Públicas – FUNCAP, sendo regulamentado em 1970. Ainda em 1970 foi criado, no Ministério do Interior, o Grupo Especial para Assuntos de Calamidades Públicas – GEACAP, visando prestar assistência à defesa permanente contra as calamidades públicas. Em 1988 foi criado o Sistema Nacional de Defesa Civil – SINDEC – organizando a defesa civil no Brasil (o estado-membro tem Comissão Estadual de Defesa Civil – CEDEC – e os municípios têm, ou devem ter, as Comissões Municipais de Defesa Civil – COMDEC –), reestruturado em fevereiro de 2005. Em 1999 foi elaborado, por comissão designada pelo Conselho Nacional de Defesa Civil, o "Manual para a Decretação de Situação de Emergência ou de Calamidade Pública", que apresenta, dentre outros, os conceitos e classificação de "Desastres, Danos e Vulnerabilidades".

Quanto à INTERRUPÇÃO DE SERVIÇOS ESSENCIAIS, é uma ameaça advinda de fenômenos naturais ou provocada pelo próprio homem, que varia de pequenos transtornos a situações em que há grandes prejuízos materiais e perdas de vida, em razão de paralisação de atividades de utilidade pública, que preenchem necessidades inadiáveis e indispensáveis à manutenção da vida e dos direitos. Verifica-se que é uma ameaça contemporânea, em que atividades vitais para uma comunidade ou para uma sociedade são suspensas, trazendo inquietações para a vida social, que vão de pequenos contratempos até situações em que há grandes prejuízos materiais e perdas de vida.

Quando provocada pelo próprio homem – numa análise pouco profunda – há três visíveis particularidades: a interrupção acontece por erro; a paralisação decorre de sabotagem, caracterizando um tipo de ameaça-crime; finalmente, decorre de lockout ou ocorre em razão de exercício legal do "Direito de Greve", vale dizer, a paralisação, que não pode ser total, deve transcorrer conforme regras estabelecidas pela Lei 7783, de 28 de junho 1989, a denominada "Lei de Greve", da qual se extrai:

Artigo 10 - São considerados serviços ou atividades essenciais:

I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;

II - assistência médica e hospitalar;

III - distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;

IV- funerários;

V- transporte coletivo;

VI - captação e tratamento de esgoto e lixo;

VII - telecomunicações;

VIII-guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;

IX- processamento de dados ligados a serviços essenciais;

X- controle de tráfego aéreo;

XI- compensação bancária.

Essa lei estabelece que em serviços ou atividades essenciais, de comum acordo, empregados e empregadores ficam obrigados a garantir a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. E complementa: "São necessidades inadiáveis da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população".

É interessante observar que, em caso contrário, pode ficar caracterizada uma desordem social e a interrupção, conforme evoluir, pode ser considerada outra ameaça – a comoção intestina, uma grave perturbação da ordem social, ou ainda, poderá enquadrar-se na ameaça-crime, por desobediência àquela lei e a outras regras de convívio social. A ocorrência pode verificar-se em várias áreas e locais, dentre outros: área da saúde (hospitais, postos de saúde, INSS); do abastecimento (água, luz, telefone, combustíveis, mercadorias); do ensino (de universidades a grupos escolares); do transporte (aeroviário, ferroviário, rodoviário e aquático); do comércio, da indústria, da prestação de serviços e congêneres. No caso, a autoridade judiciária estabelece o percentual de funcionamento da atividade (a denominada "escala mínima") porque é necessário compatibilizar interesses do particular segmento de trabalhadores com o interesse geral da sociedade. Percebe-se que, às vezes, há relutância ou desobediência à decisão judicial, o que é inadmissível, visto que o Judiciário é a última barreira social, e que deve manter-se invicta. Percebe-se também que, somente agora e timidamente, alguns Ministérios, algumas Secretarias e outros órgãos públicos específicos apressam-se em elaborar planos de apresto peculiares, para suas áreas próprias. A operacionalização pode ser prejudicada, pois, inexoravelmente, irá exigir empenho de outros órgãos e não há clara definição de quem comandará, liderará o enfrentamento a uma situação que se enquadre nesta ameaça-tronco (o caos provocado por um "apagão aéreo" prolongado pode ser um bom exemplo de administração por surto, ou por susto). Preventivamente, o Estado não está preparado – volta-se ao "princípio da antecipação" – para lidar com os vários tipos desta ameaça. Interessante lembrar, ainda, que pode ocorrer um evento que reúna, simultaneamente, situações que se enquadrem nas duas ou até nas três ameaças-tronco. É fundamental que fique claro, explícito quem cuidará da administração e da operacionalização do problema.


6. A DEFESA SOCIAL HOJE

Como se viu, o conceito de "Defesa Social" atendeu a várias interpretações: uma, em que o sentido era de proteção da sociedade contra o crime através de uma repressão vigorosa das infrações cometidas; outra, em que não implicaria outra coisa senão a sistematização das medidas de segurança; e mais uma, em que inova como movimento de Política Criminal, numa reação contra o sistema unicamente retributivo.

No Brasil, o lançamento do livro de Marc Ancel não impediu que a expressão perdesse brilho do final da década de 70 até 1985. Voltou a ter trânsito na área jurídica, na segunda metade da década de 90, em razão de fatores conjunturais, tais que a discussão do direito penal mínimo, criação de juizados especiais, superlotação e rebeliões em penitenciárias, presídios e cadeias, estímulo à aplicação de penas alternativas, dentre outros.

Bem antes, porém, o início da década de 80 já dava sinais de que seria esplendorosa para a consolidação de uma doutrina própria para as Forças Estaduais (as polícias militares) do Brasil, tal qual um furacão técnico-profissional, cujo epicentro estava no estado de Minas Gerais. Nas discussões sobre o planejamento e execução da atividade-fim, ficou claro que essa tarefa não se restringia, apenas, ao policiamento ostensivo, corrigindo um equívoco que se afigurava, incluindo-se outras operações de proteção e de socorro, como, por exemplo, as operações em casos de desastres e de comoções sociais. Fato relevante, também, é que a Polícia Militar iniciou discussão, interna corporis, de que as ameaças ao corpo social não se restringiam apenas às infrações anotadas no Código Penal. Iam além, aceitas as vertentes das ameaças físicas, representadas pelos riscos e os perigos, e das ameaças psicológicas, representadas pelos receios e medos, e que precisavam ser mais bem estudadas, compreendidas e entendidas, bem como seus reflexos e repercussões. Hoje, na linha de autores modernos, assimilou-se a necessidade de se pesquisar uma nova vertente, derivada do medo: a angústia, que se apresenta sob as formas de inquietude, ansiedade ou de melancolia.

Avançando no passado, ficou patente a oportunidade de se firmar o caráter de Força Estadual da Corporação, a serviço do Estado, da sociedade e, não mais, exércitos estaduais à disposição do Governador. Conforme já nos manifestamos em artigo anterior 6, Força Estadual que garante a ordem social, desenvolvendo atividades ora de Força Pública, garantindo os poderes constituídos, ora de Força de Defesa Social, atuando de iniciativa ou garantindo o poder de polícia dos órgãos que atuam na proteção social.

Quanto às ameaças-crime, se, até então, eram virtualmente amenas, observou-se que já se transformavam numa realidade extremamente preocupante, em variedade, intensidade, frequência e letalidade. As providências visando a sistematizar a proteção da sociedade contra as "calamidades" (como se viu, atualmente a expressão genérica, abrangente é "desastres") devem ter influenciado e acelerado as discussões sobre o leque da proteção social. Situação semelhante ocorreu em relação à intensificação de movimentos grevistas, em serviços essenciais, que exigiam, no mínimo, duas providências. Estrutura: ao Estado, provedor da proteção, caberia aumentar, qualificar e sistematizar órgãos encarregados de operacionalizar específicos mecanismos de defesa. Metodologia de controle: com destaque, em 80, para a parlamentação, nova tática de tropas de choque, que priorizou o diálogo e reduziu confrontos.

Surge a ideia de um sistema que reunisse os mecanismos de defesa da sociedade, órgãos estatais e entidades da sociedade civil com capacidade de atuar (antecipar, restringir, atenuar, controlar, minimizar, eliminar) sobre causas e efeitos de uma ameaça específica. Em 1986, a PM mineira apresenta proposta, ao Governador, de criação de um Conselho Estadual de Defesa Social, tendo início, oficialmente, a tentativa de reconhecimento governamental da necessidade de um esforço sinérgico, de órgãos estatais e de entidades da sociedade civil, para planejar a prevenção e o enfrentamento das ameaças como um todo, distribuídas nas cinco ameaças-tronco.

Desenhava-se, nos primórdios de citada década, o surgimento de uma novíssima defesa social, não necessariamente concorrente ou divergente do entendimento de juristas e de cientistas sociais, mas. em atendimento à novel doutrina de emprego das forças estaduais. Assim, a PMMG sugeriu uma abrangência maior para a axiomática defesa social, até então restrita a caracteres penais sugeridos pelo neofensivismo.

Partindo da premissa de que cabe ao Estado realizar o provimento da proteção social e a regulação e a regulamentação da promoção do desenvolvimento social, a Novíssima Defesa Social reuniria as várias ações de defesa da sociedade, contra toda e qualquer ameaça, distribuídas em: defesa da evolução social (defesa do abastecimento, transporte, meio-ambiente, comércio e indústria, educação, habitação, lazer, tecnologia), defesa da seguridade social (defesa da saúde, assistência e previdência), defesa antiinfrações sociais (defesa antiinfrações administrativas e penais), defesa antiadversidades sociais (defesa antidesastres) e defesa anticomoções sociais (defesa antidistúrbios, sabotagem, terrorismo e outras situações de grave perturbação da ordem social).

Com a instalação da Constituinte, a expressão defesa social passou a adquirir maior visibilidade, em razão de haver sido levada para Brasília, junto aos constituintes, por uma equipe de oficiais da força estadual mineira, que lhes prestava assessoria técnico-doutrinária. A intenção era inserir, no título "Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas", um capítulo específico "Da Defesa Social". Porém, em virtude do intenso clamor, à época, por mais providências contra a assustadora ameaça da criminalidade, principalmente a violenta – do que se aproveitaram instituições e órgãos, através de intenso lobby para figurarem na Carta Magna – e a não percepção e inobservância, pelos constituintes, da profundidade e da relevância da proposta, o capítulo restringiu-se a uma parte da defesa social, no equivocado rótulo "Segurança Pública" que, em nosso país, é sinônimo de "proteção da sociedade contra infrações", ao invés de "ambiente livre de ameaças, proporcionado pelo Estado".

Algumas Constituições Estaduais cometem erro relativamente menor quando abordam o assunto. Ora inovam, abrindo uma Subseção para a Defesa Social, ora se equivocam, abrindo outra Subseção para a "Segurança Pública" (espécie, em relação às ameaças). Deveria haver uma Seção para a Defesa Social (gênero) e, se fosse o caso, Subseções respectivas para as ameaças-tronco. Além do mais, repetem o erro conceitual de "A segurança pública... é exercida... ", visto que se caminha para o consenso de que a segurança é um ambiente, em que predominam a paz e a harmonia, alcançado por ações de defesa respectivas. Segurança não se exerce, segurança é um ambiente que resulta do exercício de ações de defesa.

Parcialmente arranjada, ainda que conceitualmente mal compreendida, verifica-se uma tendência de sistematização da novíssima defesa social.

Alguns Estados já criaram "Secretaria de Defesa Social", para substituir antigas Secretarias de Segurança e/ou de Justiça, que continuam, porém, cuidando apenas da ameaça-crime. Conhecido o enunciado da missão destas Secretarias, constata-se que elas não participam da administração das duas outras ameaças-tronco. As ações de redução de desastres ficam a cargo de CEDEC’s e das Comissões Municipais (COMDEC). No caso de interrupção de serviços essenciais, secretarias respectivas administram o susto.

É uma tentativa válida, sem dúvida, mas, equivocada, com vício de origem, visto que, se efetivamente cuidassem da defesa social como um todo, aceito o leque de atividades conceituais, constituir-se-iam em uma hipersecretaria de provimento da proteção. Isto, evidentemente, dispensaria as demais, exceto as que cuidam do outro pilar, a promoção do desenvolvimento. Por outro lado, se enfocam apenas a defesa antiinfracional, deveriam denominar-se Secretaria de Defesa Antiinfracional ou Secretaria de Polícia Criminal, mas, nunca Secretaria de Defesa Social.

Sob nossa ótica, um Conselho Estadual de Defesa Social (que já existe em MG), presidido pelo Vice-Governador, com reuniões periódicas, e respectivas Secretarias de Estado, para fazer frente à ameaça peculiar no dia-a-dia, é um bom arranjo. Referido Conselho deve ser uma agência estatal de macro-planejamento, uma agência de fazer-fazer, de cobrar-acontecer, de analisar resultados, contando com representantes dos demais poderes, da sociedade civil organizada e do próprio povo.

No fechamento deste capítulo, caberia aqui uma pergunta. No que diz respeito ao planejamento, à organização, à direção, ao controle e à execução (que é mais técnica que administrativa) dos mecanismos de defesa, nossos Estados estão em condições efetivas de oferecer a proteção adequada contra quaisquer ameaças, isto é, reduzir umas a níveis toleráveis, controlar outras em níveis satisfatórios? Estão em condições de prever e/ou enfrentar, minimizar o rompimento de uma barragem – que poderia causar situações semelhantes àquelas provocadas por um Katrina ou um Tsunami – ou o surgimento da gripe aviária, ou um "apagão" prolongado, ou um colapso no sistema de transportes ou no de abastecimento, ou – a grande inquietação atual – o crescimento da criminalidade violenta? Têm uma estrutura, de recursos humanos e de logística, adequada e planos de apresto, administrativos e operacionais, que permitam monitorar citadas ameaças e congêneres, antecipar-se às causas, atuar na causalidade com efetividade, restringir e reduzir efeitos? Provavelmente, a resposta será não, vistas as informações que estão disponíveis e os fatos que são noticiados diariamente, enfim, em razão do que chega a nosso conhecimento, no dia-a-dia. É a questão que se coloca, para todo o país, com os olhos voltados somente para fatos ocorridos em Minas Gerais, visto que se compilaram apenas informações sobre a defesa social mineira, bem razoável, se confrontada com o embasamento doutrinário original sobre o tema.

A expressão a novíssima defesa social pretende despertar e remeter o leitor à reflexão de como estão concebidos, articulados e operacionalizados os mecanismos específicos, que compõem a defesa da sociedade em nosso país. Mais ainda, se estão ajustados a uma conjuntural demanda social ou se é oportuno (conveniente e necessário) que se façam adequações, principalmente em relação à fundamental atuação preventiva.


7. A NOVÍSSIMA DEFESA SOCIAL: UMA PROPOSTA

É fundamental, para o acertado cumprimento de determinada missão, que ela esteja bem definida e, consequentemente, bem compreendida, internalizada e assimilada. Convém que se observem aspectos doutrinários, que regem a atividade, ou, em não os havendo, que se busque, que se trabalhe para consolidação de uma doutrina peculiar. E, para que se consolide referida doutrina, é fundamental que os discursos estejam sintonizados, não necessariamente em conteúdo, mas, no mínimo, na mesma frequência, isto é, que "se fale a mesma língua". Para tanto, pressupõe-se essencial uma terminologia-padrão, uma conceituação uniforme, que não significa imutável.

Convém lembrar que, pelo enfoque habermasiano, como se infere da Teoria da Ação Comunicativa desse moderno filósofo, os conceitos devem ser utilizados de forma consensual, com o escopo de propiciar o entendimento entre os sujeitos sobre determinado assunto. Com efeito, conforme HABERMAS, Jürgen:

Chamo ação comunicativa àquela forma de interação social em que os planos de ação dos diversos atores ficam coordenados pelo intercâmbio de atos comunicativos, fazendo, para isso, uma utilização da linguagem (ou das correspondentes manifestações extraverbais) orientada ao entendimento". À medida que a comunicação serve ao entendimento (e não só ao exercício das influências recíprocas) pode adotar para as interações o papel de um mecanismo de coordenação da ação e com isso fazer a ação comunicativa.

No tocante à "novíssima defesa social", verifica-se que isso começa a acontecer, de forma ainda muito frágil, quando, ainda que sem o vigor e o conhecimento necessários, pessoas, instituições, entidades começam a discutir a atividade, abrangendo seu raio de ação, seu conteúdo, suas conexões e sua capilaridade. Mas, infelizmente, ainda não há consenso sobre alguns verbetes. É provável que, dessa emergente discussão, frutifique uma terminologia própria que auxiliará na consolidação de uma doutrina de defesa social. Se, anteriormente, havia uma ligeira noção, uma tênue percepção do que sejam vulnerabilidades e ameaças, hoje, certamente, a grande contribuição de geógrafos, operadores de direito, comunicadores, cientistas sociais, assistentes sociais, religiosos, médicos, biólogos, policiólogos, psicólogos, antropólogos e outros, tem sido a análise minuciosa, a caracterização de vulnerabilidades e de ameaças.

Deve ficar claro que os envolvidos diretamente com a Defesa Social, no país, ainda não falam "a mesma língua", ou seja, não há uma terminologia padrão, não há consenso em matéria de conceitos e, em decorrência, não há homogeneidade na comunicação de tal tema. Tem-se como certo, portanto, que a administração da defesa social, conforme a ótica policiológica, ainda não está estruturada, nem posicionada hierarquicamente, para coordenar a plena proteção do corpo social, porque está formatada estanquemente, sem considerar uma sistematização ampla.

O que se pretende alcançar com eliminação, minimização de vulnerabilidades e controle das ameaças? Objetivamente, a tranquilidade social. Que seria, em tese, um estágio em que a sociedade se encontraria, serena e confiante, num clima de convivência harmoniosa e pacífica, representando, assim, uma situação de bem-estar social.

Arrisca-se, aqui, a oferecer uma proposta de conceituação da novíssima defesa social. Ratifica-se que a extensão, a ampliação do conceito da nova defesa social, do Direito Penal, é decorrente da percepção policiológica de que as ameaças não se resumem apenas a ataques do homem ao próprio homem, ou de que a proteção da sociedade não é apenas contra o crime (espécie) e, sim, contra as ameaças (gênero), consideradas suas origens, que são fatores bióticos e abióticos. Estes é que dão causa às agressões, além do homem contra o homem, do homem contra a natureza, da natureza contra o homem, do homem contra a sociedade. Interessante reiterar, ainda, que, em nossos dias, as ameaças não são apenas as de ordem física, material, que são os riscos e os perigos. A estas se juntam, com bastante intensidade, as de ordem psicológica, emocional, que são os receios e os medos.

Isso posto, apresenta-se o conceito de Novíssima Defesa Social:

"Conjunto de atividades de restrição de vulnerabilidades e de mitigação de ameaças à sociedade, visando a tranqüilidade social. "

A seguir, algumas premissas para a novíssima defesa social, que, após discutidas e analisadas, podem dar origem – talvez, nem todas – a princípios, conjunturalmente aceitos, fundamentais para consolidação de doutrina pertinente ao tema que se propõe:

I - Cabe ao Estado prover a proteção social e promover o desenvolvimento social.

II - A proteção visa a preservar e perpetuar, finalisticamente, a espécie humana e, subsidiariamente, bens e interesses enquanto eleitos pela própria sociedade. É, portanto, um dever do Estado e um direito e responsabilidade de todos.

III - O provimento da proteção é realizado através de instrumentos específicos, que detêm mecanismos de defesa nacional e de defesa social, contra vulnerabilidades e ameaças, à nação ou ao corpo social. A participação do Estado na promoção do desenvolvimento, fundamentalmente, deve ocorrer através da regulação e da regulamentação da atividade.

IV - Vulnerabilidade é a resultante do desequilíbrio entre ameaça e proteção. É o espaço vazio por onde fluem as ameaças.

V - Ameaças são adversidades, reais ou potenciais, advindas de forças da natureza, de antagonismos surgidos entre integrantes do próprio grupo ou entre grupos rivais, e de pressões, internas ou externas, que afetam diretamente a preservação ou a perpetuação da espécie humana ou que perturbam a vida social ou a vida nacional. Riscos, perigos, receios e medos são categorias indissociáveis das ameaças.

VI - As cinco ameaças-tronco ao corpo social são a exclusão social, o crime, o desastre, a interrupção de serviços essenciais e a comoção social:

A exclusão social é uma ameaça decorrente de vulnerabilidade socioeconômica, visível nas crises de moradia, seguridade, fome, miséria, educação, transporte, saneamento, desemprego, desocupação, remuneração, concentração de renda.

Crime é violação de norma moral; é uma violação à lei penal; é uma ofensa a um bem jurídico individual ou coletivo; é a ação ou omissão típica, ilícita e culpável.

Desastre é o resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ecossistema (vulnerável), causando danos humanos, materiais e/ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais. São quantificados em função dos danos e prejuízos, em termos de intensidade, enquanto que os eventos adversos são quantificados em termos de magnitude. A intensidade de um desastre depende da interação entre a magnitude do evento adverso e o grau de vulnerabilidade do sistema receptor afetado. Normalmente o fator preponderante para intensificação de um desastre é o grau de vulnerabilidade do sistema receptor.

Interrupção de serviços essenciais advém de fenômenos naturais ou é provocada pelo próprio homem, variando de pequenos transtornos a situações em que há grandes prejuízos materiais e perdas de vida, em razão de paralisação de atividades de utilidade pública, que preenchem necessidades inadiáveis e indispensáveis à manutenção da vida e dos direitos.

Comoção Social são atos e fatos caracterizados como grave perturbação da ordem social, tangenciando a perturbação à ordem nacional.

VII - Restrição de vulnerabilidades e mitigação de ameaças são de responsabilidade do organismo social, como um todo, integrado pela sociedade política (a autoridade estatal), a sociedade civil organizada (a elite dirigente privada) e o povo em geral.

VIII - A defesa compreende o conjunto de ações metódicas, através adoção de medidas e instalação de dispositivos de minimização de vulnerabilidades e controle de ameaças, visando reduzir a insegurança. Ainda, o conjunto de mecanismos destinados a proteger efetivamente os bens e interesses nacionais e sociais ameaçados ou passíveis de sê-lo. A primeira hipótese – bens e interesses nacionais – se circunscreve à Defesa Nacional, enquanto a segunda hipótese – bens e interesses sociais – fica restrita à Defesa Social.

IX - A Defesa Social, sob a óptica policiológica, visa proteger o corpo social contra ameaças que coloquem em risco a preservação e a perpetuação da espécie humana, congregando os mecanismos preventivos, repressivos e sustinentes para restringir vulnerabilidades e mitigar as ameaças genéricas que impedem a instalação do ambiente de segurança social, seja minimizando, restringindo ou eliminando-as.

X - A Defesa Social pressupõe uma variedade muito grande de atividades de inserção e de reinserção sociais, distribuídas em duas grandes vertentes: defesa da inteiração social e defesa da salvaguarda social. A defesa da inteiração social compreende ações de inclusão e de reinclusão sociais distribuídas em defesa da evolução social e em defesa da seguridade social. A defesa da salvaguarda social compreende ações de integração e de reintegração sociais distribuídas em defesa antiinfracional, defesa antidesastres e defesa antidesordens sociais.

XI - Defesa Social não é sinônimo de prevenção e controle de criminalidade, nem muito menos de segurança pública.

XII - Em paralelo ao estímulo de exercício de cidadania (gozo de direitos civis e políticos), para que a defesa social atinja seu objetivo, é imperioso que se estimulem atividades que conduzam à consolidação da societania (conhecimento e prática de deveres e direitos de integrantes de uma sociedade).

XIII - Segurança, em seu sentido amplo, é um ambiente, é um estado em que objetivamente as ameaças estão relativamente controladas e há a crença subjetiva de que estão efetivamente controladas, concomitantemente.

XIV - Segurança Social é um ambiente em que o organismo social está objetivamente protegido, face o controle relativo de ameaças, realizado por entidades estatais e particulares, e confiante neste controle, concomitantemente. É o somatório de Segurança Pública e de Segurança Privada.

XV - Segurança Pública é a fração do ambiente de segurança social cuja responsabilidade de instalação é de entidades estatais.

XVI - Segurança Privada, fração do ambiente de segurança social cuja responsabilidade de instalação é de entidades particulares e de pessoas físicas, ainda que terceirizada.

XVII -Restrição de vulnerabilidades e mitigação de ameaças são de responsabilidade do organismo social, como um todo, integrado pela sociedade política (a autoridade estatal), a sociedade civil organizada (a elite dirigente privada) e o povo em geral.

XVIII - Insegurança é um clima, ambiente, estado, situação em que vulnerabilidades e ameaças permanecem sob precário controle e há a percepção da precariedade desse controle. Ou, ainda, uma situação em que objetivamente as ameaças estão sob relativo controle, mas não há, concomitantemente, a crença subjetiva de que estão controladas, e vice-versa. Insegurança, portanto, é decorrente da inexistência e/ou insuficiência e/ou deficiência e/ou ineficiência de proteção física e/ou emocional.

XIX - Tranquilidade Social seria o estágio em que a sociedade se encontraria, serena e confiante, num clima de convivência harmoniosa e pacífica, representando uma situação de bem-estar social.

XX - Marginalização, à margem social, e marginalidade, à margem da lei, são fenômenos sociais distintos que, excepcional e eventualmente, guardam interligação. Marginalizado raramente é marginal e nem todo marginal é marginalizado. Marginais são aqueles que violaram, com intensidade, regras sociais, com os quais deve ser trabalhada a Moral, cujo esforço de reinserção social é realizado através da reintegração social. Não devem ser confundidos com marginalizados, aqueles que estão ou foram colocados em oposição a valores sociais, com os quais deve ser trabalhado o Moral, cujo esforço de reinserção social é realizado através da reinclusão social.

XXI - Autoridade é a capacidade de o Estado atuar/interferir na vontade das pessoas;

Poder é a capacidade de o Estado influenciar/alterar a vontade das pessoas;

Força é a capacidade de o Estado impor sua vontade sobre pessoas e grupos.

XXII - Polícia é a instituição ou atividade estatal de proteção social, desenvolvida através de estruturas de poder e de força, garantidora da ordem social. As Polícias Administrativas, Judiciária e Penal detêm o poder de polícia. A Força Estadual detém a força de polícia. No Executivo estadual, o ciclo completo de polícia tem cinco fases, que correspondem às eventuais intervenções, não obrigatoriamente nesta ordem:

A Polícia Administrativa, com a maior ramificação, como as de meio-ambiente, alfandegária, fazendária, sanitária, de viação, de trânsito e tráfego, de edificações, do meio-circulante e outras.

A Força de Polícia, com o inconveniente cognome de Polícia Militar, realiza atividades de Força de Defesa Social, ora de iniciativa, ora garantindo o poder de polícia de outros órgãos, e de Força Pública, garantindo os poderes estaduais.

A Polícia Judiciária Estadual, com inadequado cognome antagônico ao da força, Polícia Civil, auxilia o Poder Judiciário, seja através de trabalho cartorial, seja através da investigação de autoria e materialidade de delitos.

O Corpo de Bombeiros, que é a intrépida polícia de desastres.

A Polícia Penal, incipiente, sob a denominação restritiva de Administração Penitenciária, que participa da reinserção social, através da reintegração social de marginais.

Força Federal são as Forças Armadas.

Polícia Federal é a Polícia Judiciária da União. Às vezes, realiza trabalhos de força federal de defesa social, pela inexistência desta instituição.

Força Nacional é a recém-criada pseudo-força federal de defesa social. Por não ter caráter de instituição permanente, não tem sedimentadas identidade e credibilidade.


8. CONCLUSÃO

Conforme Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU, no Dia Internacional para Redução das Catástrofes Naturais, comemorado em todo o mundo no dia 10 de outubro de 2005, "as catástrofes naturais... fizeram centenas de milhares de mortos e deixaram milhões de pessoas sem recursos. "Ainda, no discurso de Kofi Annan, encontra-se "A lição que temos de retirar de todos estes acontecimentos está resumida no tema escolhido este ano para o Dia Internacional para a Redução das Catástrofes Naturais: ‘Investir na prevenção das catástrofes’. Não podemos impedir as catástrofes naturais, mas podemos e devemos preparar melhor as pessoas e as comunidades para as enfrentarem". Suas pragmáticas palavras referem-se às catástrofes, aos desastres, a apenas uma das ameaças, mas, aplicam-se, certamente, a todas as ameaças-tronco. Sem dúvida, elas são o permanente e eterno desafio a ser enfrentado, conhecida a peculiaridade, por todos os países.

Portanto, as sociedades, e particularmente os governos, devem estar preparados, respectivamente, para enfrentar aquelas ameaças que são peculiares a seu corpo social, isto é, onde o alvo, a vítima é ou está em sua sociedade, cuja intervenção governamental basicamente se processa através da instrumentalização de sua polícia, entendido este vocábulo, em seu sentido lato, como atividade estatal de proteção social. Grosso modo, verifica-se que, em nosso país, a atividade de defesa social não está sistematizada; que o enfrentamento das ameaças-tronco está cometido a pulverizadas secretarias respectivas, que atuam estanquemente; não há definição de coordenação e controle, em caso de ocorrência simultânea de ameaças bióticas e abióticas; esta hipótese não é despropositada, em razão de as ameaças terem características próprias, tais como o inopinado e o imponderável; ainda que os órgãos estivessem individualmente preparados, é de se considerar que uma determinada ameaça não tem incidência e efeito sobre uma atividade apenas, e, mais ainda, a ausência de coordenador impede a aplicação do princípio da antecipação.

Em Nova Orleans, ficou claro que a superpotência EUA foi surpreendida com a eclosão simultânea das três ameaças-tronco, o que agravou sua extensão.

No Brasil, apenas uma, a ameaça-criminalidade, vem surpreendendo e superando o Governo. Se ocorrem duas simultâneas, um caos. Três? Nem pensar! Ouve-se falar muito em cidadania, o que é muito bom. A novíssima defesa social, conhecida, entendida, internalizada, praticada e difundida, entronizando a societania, restringindo vulnerabilidades e mitigando as ameaças à sociedade, certamente em muito contribuirá no esforço de proteção social, para a redução da insegurança em nosso exacerbado ambiente de insegurança. Que pode ser aplacado, com vontade e sinergia.


Notas

1 2 As expressões estão contidas no livro "Entendendo a nossa insegurança" (2003), de Lúcio Emílio Espírito Santo e Amauri Meireles.

3 Ancel, Marc (1979), A Nova Defesa Social. Rio de Janeiro: Editora Forense.

4 Abordadas em "Entendendo a nossa insegurança" (2003).

5 Revista Veja, Edição 1.921, 07 Set 2005

6 "As Vísceras da Violência", Jus Navigandi, edição nº802 (13.9.2005). Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/7286/as-visceras-da-violencia>.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEIRELES, Amauri. Entronizando a novíssima defesa social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2305, 23 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13728. Acesso em: 19 abr. 2024.