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A mulher sob o casamento.

Fidelidade e débito conjugal: uma abordagem jus-histórica

A mulher sob o casamento. Fidelidade e débito conjugal: uma abordagem jus-histórica

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Ao usar da chave do divórcio, as mulheres estarão libertas de deveres que apenas fazem sentido quando fundados no amor e no desejo imperativo de estar com o seu eleito, quais sejam: os de fidelidade e débito conjugal.

Nuptiae sunt conjunction maris et feminae et consortium omnis vitae; divini et humani juris comunicatio.

Modestino apud Digesto [01].

A vida humana não cabe no ordenamento jurídico. Ela se esparrama, irrompe sulcos, desafoga-se em enchente e transborda sobre si mesma. Inventa novos planos e abismos com a sua força liquefeita para ser novamente compartimentalizada em sistemas normativos herméticos, de alta seguridade. E quando menos se espera, ela brota como um gêiser livrando-se das amarras da terra, desenhando as suas formas e o seu balé no palco dos ares. Mas a vida humana, ao menos até o estágio em que estamos, não seria possível sem regras, sem normas. A natureza intrínseca ao ser humano reclama por uma ordem que se arremeta ao seu caos tão distante que se afigura dos seres angelicais. Não somos anjos nem demônios; e os somos contraditoriamente tantas vezes na vida. Somos carne, luz e sombra e para que os sejamos, plenamente, precisamos submetermo-nos aos pôlderes, às piscinas das águas, à contenção, ao direito.

E assim perpetua-se a coreografia desta dialética entre a ordem jurídica e a dinâmica da vida. Esta última sempre imprevisível, com seus próximos passos em gestação, tentando ser alcançada e domada pelo ordenamento, incomodado com seu estado constante de subversão, irritado muitas vezes, mas incansável na tentativa de domesticá-la e acomodá-la na casa de seu sistema.

E onde mais forte se consubstancia a vida humana, massa e fôrma do direito?

-Não importa em que tempos, o inconsciente coletivo sempre apontou as formas do corpo feminino como berço da vida, e não apenas da vida humana. Não importando se como um fruto seu, ou um seu pressuposto. Como saber quem veio antes, o mundo ou Vênus? Já existíamos antes dos deuses? O que nos responderia o pintor renascentista Boticcelli ao nos apresentar a sua deusa do amor evadindo-se das conchas, pudica de seu sexo para não intimidar o que já havia no mundo com a sua força? Não somos todos nós filhos do amor? Como negar a nossa natureza venuziana, aquática, se assim o é bem mais da metade de nossa constituição física?

Portanto, eis o maior desafio das normas, enquadrar o que lhe preexiste, um requisito seu: a sexualidade feminina. Encarcerar-lhe na caixa de pandora de seus códigos e de suas constituições no afã de harmonizar o sistema, neutralizar poderes e submeter o seu próprio sopro criador. Controlá-la em todos os seus aspectos, desde as suas primeiras expressões de desejo e sedução, passando por seu desvirginamento, a concepção de outras vidas em seu ventre, a escolha de seus amores e as horas de seu tempo de trazer em si outra carne, de ser aguada e semeada pelo jardineiro.

Porque eis o que é a sexualidade feminina: a vida humana em essência, razão e pressuposto de existência do direito. Esta que com ele se digladia, interpenetra-se, sucumbe-se e impõe-se.

Mas diante deste fluxo-refluxo incessante, simbiótico e multicor não se extinguem as esperanças de que um dia possam ambos apenas sorrirem e, como amantes amadurecidos, compartilharem seus passos tranqüilamente, messando seus espaços e suas verves de mãos dadas, em arco-íris.


I A Horda Primitiva e o Estado de Natureza. As Leis do Matriarcado.

A condição humana está inexoravelmente envolvida por um manto de mistério inconsútil que retroalimenta todas as ciências e toda a arte. Quem somos, da onde viemos e para onde vamos, são as proposições básicas colocadas por esse ser que pensa, cria e se emociona. Talvez a inalcançabilidade desses marcos teóricos seja um pressuposto para que continuemos a evoluir, a quebrarmos as pedras, a fragmentá-las até o pó na busca incessante da essência do sonho humano. Já dizia o Mestre Jurista Virgílio de Sá Pereira [02] "A ciência é como o amor, que se alimenta mais do desejo que da posse. Mais do que a posse da verdade científica, é a necessidade incoercível de investigá-la o mais aguçado aguilhão do nosso aperfeiçoamento". E assim o fazemos em relação ao nosso alvorecer no mundo. Há um consenso entre os estudiosos tais como Friedrich Engels (2005) de que é inconcebível uma concepção unívoca dos primórdios da trajetória humana sobre o planeta, mais ainda, nas palavras de Batalha (1986), é impossível formular uma lei de evolução retilínea das instituições jurídicas, sendo que no Direito de Família a pesquisa dessa linha evolutiva seria inócua. No entanto, sejamos como os gregos, inconformados com o não saber, e partamos de uma suposição, lancemos o nosso fio de Ariadne por dentre o labirinto da verdade indevassável. Essa suposição seria a de que, no início, vivíamos em hordas selvagens, de forma nômade, ao sabor das contingências na luta pela sobrevivência. Esse estado de natureza alcunhado por Thomas Hobbes (2002), seria a situação em que teríamos vivido durante todo o paleolítico, a era da pedra lascada, em torno de 50.000 anos a.C até 10.000 anos a.C, quando então teria se dado o início da era neolítica, ou seja, da pedra polida. Mas voltemos à horda primitiva e nos engendremos por dentre os seres humanos que vagueiam por sobre florestas, atravessando rios, sobrepondo desertos, estabelecendo relações sexuais fortuitas e aleatórias. Em termos de capacidade física estamos em desvantagem em relação aos demais animais, não nadamos como os peixes, não voamos como os pássaros, não temos a força bruta de outros mamíferos, mas raciocinamos, intuímos, emocionamo-nos de forma complexa e, desse modo, suplantamos as nossas vulnerabilidades, manipulando até onde for possível o nosso entorno para que continuemos vivos. Nas palavras românticas do sábio chinês Chuang Tzu [03] "as pessoas eram livres como o cervo selvagem e todas as coisas eram produzidas, cada uma para a sua própria esfera. Pássaros e feras se multiplicavam, árvores e arbustos cresciam. O homem e a mulher viviam como pássaros e feras e toda a criação era única". Pelo que podemos observar da natureza humana, a prática da violência estava, também, presente, e se os machos protegiam os integrantes do grupo, também estupravam e matavam, entre si e entre pessoas de outros grupos nômades. Logo, não há o que se falar em família, em pai, mãe e filhos, até porque há uma linha de pensamento que argúi que os homens desconheceriam a sua participação na perpetuação da espécie. Como o que havia era a promiscuidade e o hiato entre a relação sexual e o nascimento da criança era bastante longo, sendo observados na natureza, animais que se autoreproduziam, há essa possibilidade do desconhecimento do macho, para os quais as fêmeas humanas seriam semelhantes a deusas. O sentido da divindade, o sentimento da existência de um ser superior, sempre teria se feito presente devido ao estado de fragilidade do ser humano diante da natureza, e o feminino integraria esse imaginário do sobrenatural [04]. Para Engels, esse estágio iniciático precederia à instituição da propriedade privada cujo advento viria após a descoberta da agricultura. Segundo Alvin Toffler (1984), a humanidade passou por três revoluções fundamentais que deram início a toda uma era e modificaram integralmente a nossa forma de vida e de relação entre nós mesmos e com o planeta. A essas revoluções Toffler (1984) chamou-as de "ondas". A primeira onda teria sido a descoberta da agricultura, a segunda, a revolução industrial e, finalmente, a terceira onda seria a revolução cibernética. A agricultura mudou radicalmente a forma de ser e viver dos humanos. Deixamos de ser nômades e passamos a ser sedentários. A partir desse sedentarismo, travamos relações mais efetivas e afetivas com os nossos semelhantes. É a partir do sedentarismo que desponta a família e as funções atinentes aos papéis desempenhados dentro dela. Para Engels (2005), o conjunto dessas famílias teria formado os clãs que, inicialmente usariam de seus meios de produção, principalmente a terra, de forma coletiva. A essa propriedade coletiva própria do Direito das Coisas, estaria relacionado o matrimônio comunitário no Direito de Família. O casamento comunitário ou "communal mariage" é uma idéia que foi sustentada por John Lubbock (2005) que via o jus primae noctis, direito do senhor feudal de passar a noite de núpcias com a noiva de seus súditos e o uso de entregar as esposas aos hóspedes, como reminiscências dessa espécie de casamento. Darwin [1974] também admite a existência do "communal mariage" onde todos os homens e todas as mulheres da tribo são reciprocamente maridos e mulheres. A questão para o nosso atual estudo e que nos preocupa é: A partir de quando a sexualidade feminina passou a ser objeto de regramento, ou seja, normatizada pela ordem local? Caso tenha ocorrido o preceituado por Lubbock (2005), o matrimônio coletivo em concomitância com a propriedade coletiva, desta assertiva depreenderíamos que nessa sociedade comunista, a sexualidade das mulheres não sofreria limitações tais como a obrigação de fidelidade e do débito conjugal, o dever da conjunção carnal, já que a um homem caberiam várias mulheres e vice-versa. O dever de fidelidade e de débito conjugal caberia apenas às mulheres raptadas de outras tribos ou clãs, mulheres as quais não poderiam ter acesso os demais membros do grupo e tão apenas aquele que a raptou. E por que diante de tamanha oferta de mulheres os homens procurariam raptar "estrangeiras"? Para Darwin (1974), os homens são movidos por um sentimento de exclusivismo atávico, através do qual podem assegurar a perpetuação da espécie pela transmissão de sua carga genética. Mesmo se um homem tivesse várias mulheres, ele as defenderia ciumentamente dos demais, como forma da preponderância de seus gens. Logo, o casamento comunitário apenas ocorreria em sociedades onde existissem menos mulheres do que homens, sobretudo em razão do infanticídio das crianças do sexo feminino. Apenas nessas condições a poliandria seria suportada pelos homens que, dessa forma, agiriam em desacordo com os seus próprios instintos que é o da exclusividade sobre as fêmeas [05]. Indaga-se se, ao revés, nas comunidades onde havia mais mulheres do que homens, o que ocorreria seria uma simples poliginia, um homem com várias mulheres ou o maior número de mulheres seria um pressuposto para uma ginecocracia, ou seja, uma comunidade chefiada por mulheres? A existência em vários grupos primitivos da designação do parentesco apenas pela linha feminina, deu ensejo ao sociólogo Bachofen (2007) escrever o seu célebre livro Das Mutterecht, "O Matriarcado". Para Bachofen, esse fato decorreria da incerteza da paternidade diante da promiscuidade, logo o parentesco era determinado pela maternidade e a subordinação dos filhos às mães teria dado origem à ginecocracia. Esta apenas teria dado lugar à androcracia a partir do rapto de mulheres de outras tribos que passou a ser mais e mais significativo em quantidade. Para o sociólogo Gumplowicz [06], o casamento mediante rapto constituiu o ponto de partida da emancipação dos homens, já que as mulheres nativas não puderam conservar seus privilégios em face da concorrência estrangeira. No entanto, outros estudiosos como Westermarck [07] dão ao vocábulo matriarcado um outro sentido no qual, em face do princípio do pater incertus, prevaleceria o parentesco por linha materna, não obstante o chefe da família fosse o tio materno. Do que não restam dúvidas é de que à medida que um homem, mais forte do que os demais, passa a ser proprietário de uma maior extensão de terras e a possuir um número maior de mulheres, a sexualidade feminina passa a submeter-se de forma cada vez mais servil à vontade e aos instintos desse macho que ao consolidar a propriedade privada e o controle sobre mulheres, crianças e escravos, institui a era do patriarcado, base da organização jurídica e política das sociedades até a contemporaneidade.


II A Mulher sob o Casamento na Antiguidade.

Muito se tem criticado o fato de os textos jurídicos iniciarem a análise do Direito Positivo a partir da codificação da Mesopotâmia. Entretanto, por mais que se queira inovar, é inelutável a circunstância de que a História seguiu-se à pré-História, tendo por marco a invenção da escrita e essa História junto à escrita foi inaugurada entre os rios Tigre e o Eufrates em torno de 3.000 anos antes de Cristo. Se onde está a sociedade está o Direito, este já teria os seus germens no paleolítico e no neolítico como já consideramos, sendo essas regras elaboradas e impostas pelos mais fortes, mas um Código escrito que tenha chegado até nós, a menos que a paleontologia nos presenteie com novas descobertas, esse é um legado do povo amorrita, vindo do deserto da Arábia e que se estabeleceu na cidade da Babilônia, sendo conhecido como os antigos babilônios. O mais importante de seus reis foi Hamurabi que viveu entre 1728 e 1686 a.C. Hamurabi expandiu os domínios babilônicos por toda a Mesopotâmia, do golfo Pérsico até o norte da Assíria [08]. Tendo por base o direito sumério, Hamurabi ordenou que fosse elaborado esse, então, que teria sido um dos primeiros códigos jurídicos, com leis escritas, registradas pela História. O Código de Hamurabi consagrava o princípio do talião, o olho por olho, dente por dente, segundo o qual o castigo do criminoso deveria ser exatamente proporcional ao crime por ele cometido. Além das penas severas, o Código procura garantir firmemente o regime de propriedade privada da terra. Se onde está a propriedade privada, está o patriarcado, lá também estará a subjugação da sexualidade feminina. Por este documento jurídico, o adultério feminino era rigidamente punido. O cônjuge adúltero (a mulher) e o companheiro eram ligados e jogados à água (§129), mas o adultério seria lícito caso o marido viesse a abandonar o lar, não deixando alimentos, ficando claro aí o papel de provedor do homem nas sociedades patriarcais. Todavia, em retornando o marido, a mulher deveria voltar a coabitar com ele (§135). Se a mulher, em razão de um outro homem, fizesse matar o seu marido, sofreria pena de empalamento (§153). A mulher que não tinha filhos poderia ser repudiada (§138), mediante a restituição do dote e do terhatum (soma entregue, no regime babilônico, pelo pai da noiva à família do noivo). Este parágrafo da Lei faz restar evidenciado o caráter primordial da função reprodutora feminina dentro do casamento. Não obstante, se um homem se casasse com uma mulher que se tornasse enferma, este não poderia repudiá-la, mas lhe seria lícito casar novamente, devendo manter a primeira mulher até a morte (§148).

II.II A Mulher sob o Casamento no Direito dos Assírios.

A Assíria era uma região do norte da Mesopotâmia utilizada como passagem natural entre a Ásia e o Mediterrâneo [09]. Assíria é uma palavra derivada de assur que significa "lugar de passagem". Os assírios fizeram grandes conquistas militares e construíram um dos maiores impérios da Antigüidade. Do século VIII ao século VI a.C. dominaram uma extensa região que incluía toda a Mesopotâmia, o Egito e a Síria. Suas principais cidades eram Assur, Jarrán e a sua capital Nínive. Com avançada técnica militar, os assírios eram guerreiros extremamente cruéis. Não se contentavam com a simples vitória, massacravam e torturavam terrivelmente os vencidos, incendiavam e destruíam as cidades conquistadas. Mas as suas mulheres eram melhor tratadas do que as do povo babilônio. O terhatum era entregue à noiva e não à sua família, visando garantir a mulher contra a arbitrariedade do repúdio. Quanto ao débito conjugal, o casamento não obrigava a mulher a coabitar com o marido, podendo permanecer na casa paterna, onde o receberia. Se a mulher passasse a habitar com o marido, deveria levar um sirku ou dote. Com o falecimento do marido, seu irmão deveria desposar a viúva, tal como ocorria no levirato dos hebreus. Portanto, eram cruéis com os inimigos, mas procuravam proteger, ao máximo, as suas mulheres.

II.III O Deuteronômio.

Os hebreus tinham por base jurídica positivada as leis recebidas de Jeová por Moisés, o Deuteronômio. O deuteronômio integra o pentateuco, os cinco primeiros livros bíblicos. O nome "deuteronômio" é de origem grega e significa "segunda lei" ou "repetição da lei". Teria sido escrito nas planícies de Moabe em torno de 1.473 a.C. . A estrutura dessa legislação atende aos interesses do patriarcado, protegendo a propriedade privada e a família e punindo severamente a mulher que não se submeter às suas regras. O casamento era monogâmico e a morte, a punição pelo adultério da mulher. Caso a mulher não fosse virgem ao casar-se, deveria ser punida com o apedrejamento (§22). O repúdio era lícito, salvo se o marido houvesse deflorado a mulher antes do casamento. Caso o marido viesse a falecer, um seu irmão deveria desposar a viúva, tal instituição recebeu o nome de levirato e era minuciosamente disciplinada no Deuteronômio [10].

II.IV A Mulher sob o Casamento no Direito Romano.

Se Juno era a deusa das deusas, Minerva a deusa da inteligência e Vênus a deusa do amor, a mulher romana era objeto de contrato de compra e venda entre homens. Pois as formas antigas do matrimônio romano relembram a compra da mulher pelo homem. A Lei das XII Tábuas previa três formas de a mulher ficar sujeita ao poder ou manus do marido: a confarreatio, a coemptio e o usus (BATALHA, 1986). A expressão manus designa o poder marital. Primitivamente, designava o poder doméstico do chefe da família sobre as pessoas e as coisas que a integravam. Manus e familia eram, originariamente, termos correlatos. Familia designava o domínio do poder enquanto que o manus seria o símbolo do poder ou o próprio poder. A mulher poderia, também, contrair casamento sine manus, ou seja sem manus, mas não se animem, o casamento sine manus não significa que a mulher ficaria sob o próprio domínio e sim que continuaria sob o poder do pai.

Etimologicamente, matrimônio significa "encargo, ofício ou dever da mãe", pois que advém do latim mater que significa mãe, e munus que é encargo (CAPPARELLI, 1999). O matrimônio é, então, na essência do seu logos, um tributo pago pela mulher-mãe de uma família, um encargo ou carga a ser transportada e suportada por ela. Mas a etimologia também revela não ser menos exigente em relação aos homens, impondo-lhes, também, um árduo encargo, pois vejamos: a palavra patrimônio vem do latim pater, ou seja, pai, e munus, encargo ou ofício, logo, cabe ao homem-pai prover o núcleo familiar com os bens necessários para a sua sobrevivência, dedicar a sua vida ao acúmulo desses bens para que, em caso de privação, haja um considerável excedente para que os membros da família não pereçam. Apesar desses encargos poderem ser considerados naturais e justos para a sobrevivência humana, o grande desafio é vivê-los sem perder a poesia e a base da família como lócus do afeto. A língua portuguesa procurou construir um termo que indicasse teleologicamente um outro sentido à união entre homem e mulher. A palavra "casa"-mento significa a constituição de uma nova casa ou lar, ou seja, de uma vida a dois, com deveres e obrigações, mas também como espaço de trocas e vivências no trilhar de um caminho que constrói um mesmo destino para os seus integrantes. Mas voltemos ao casamento dos romanos.

O usus consistia na convivência sob o mesmo teto entre marido e mulher pelo período de um ano sem interrupção, após o qual o marido, desde que não satisfeito, poderia devolver a mulher à sua família, devolvendo-lhe o dote. A coemptio era uma venda simulada, em que o comprador punha a mão sobre a mulher adquirida e mediante a entrega de um dote, levava-a para o seu domínio. Já a confarreatio consubstanciava-se na forma solene do matrimônio do patriciado, da elite romana, tendo conteúdo religioso, sendo celebrado pelo sacerdote da família, era as justas núpcias. Não é sem fundamento que o Direito Romano é a base do direito privado por excelência. A família romana constituía um pequeno Estado sob as ordens de seu soberano, o chefe da família. O governo da família era independente e autônomo em relação a qualquer poder exterior. Todas as dissensões internas eram dirimidas pelo chefe da família que desempenhava a função de domesticus magistratus. Este tinha o direito de vida e de morte (jus vitae necisque) sobre os seus integrantes, logo sobre a esposa no casamento com manus. No casamento sine manus, o marido também detinha esse poder com a diferença que a mulher não estava sob a dependência patrimonial do marido e sim, na dependência financeira de seu pai ou tutor. Logo, entre os romanos, o chefe de família tinha poder absoluto, recebendo a denominação de pater familiae. Excepcionalmente, este poderia, inclusive, vender a mulher e os filhos como escravos. O adultério feminino poderia ser punido com a morte e o não cumprimento do débito conjugal poderia levar ao repúdio da mulher com a sua conseqüente devolução à família de origem.

Sempre houve o divórcio no direito romano. O casamento durava enquanto houvesse a affectio maritalis, terminando de mútuo consenso através do divortium bona gratia. O divórcio também poderia ocorrer como fruto da vontade unilateral do marido, que deveria manifestar a sua intenção perante a esposa à vista de sete testemunhas.

No casamento solene, o contrato de núpcias era aperfeiçoado com o beijo dos noivos, tradição absorvida pela Igreja Católica e praticada universalmente até os nossos dias. Portanto, o beijo, originariamente, não significa o amor entre os cônjuges, mas o marco do nascimento de direitos e obrigações entre eles [11].


III A Mulher sob o Casamento na Idade Média. O Direito Canônico.

"Crescei e Multiplicai-vos. Eis a questão". E essa questão foi fortemente respondida pela Igreja Católica no decorrer de sua História, ao tornar o matrimônio um dos sacramentos religiosos e ao incentivar a reprodução como o principal fundamento da união entre um homem e uma mulher. Senão vejamos o que dispõe o atual Código Canônico no Cânone 1055, IN VERBIS:

§ 1 A aliança matrimonial, pela qual o homem e a mulher constituem entre si uma comunhão da vida toda, é ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, e foi elevada, entre os batizados, à dignidade de sacramento.

O Jus in Corpus, direito de cada cônjuge sobre o corpo um do outro e o "Dois em uma só Carne", são dogmas canônicos que se impõem através dos tempos (ARRIETA et alli, 1991). Para esse Direito, o matrimônio apenas se consuma com o ato conjugal. A jurisprudência canônica entende por ato conjugal a penetração do membro viril, com ejaculação no interior da vagina (HORTAL, 1979). Logo, a cópula é alçada à posição da mais suprema relevância e, não há que se olvidar a exigência da ejaculação do verum semen, sem a qual, se configura, também, a impotência masculina in casu. Se o matrimônio é indissolúvel, até que a morte os separe, assim não o mais era se não fosse cumprida a obrigação da prestação do débito conjugal nos tempos medievais. Hodiernamente, a impotência para a cópula, quer por parte da noiva, quer por parte do noivo será causa de anulação do matrimônio apenas caso o mesmo não tenha sido consumado.

Logo, a impotência do homem ou da mulher para o transcurso sexual (impotência coendi) constituía injúria grave e causa para a anulação do casamento religioso no direito canônico medieval. Inclusive, a negativa para a conjunção carnal, por si só já constituía injúria grave. Na Idade Média, sequer as justificativas como dor de cabeça ou dor de dente da mulher eram desculpas para a recusa, assim como a própria mulher poderia queixar-se ao padre ou ao seu pai, caso o marido praticasse coito interrompido ou também não estivesse cumprindo os seus deveres carnais matrimoniais. A sodomia era, como ainda o é, injúria gravíssima e causa de anulação do sagrado sacramento matrimonial, já que o coito deveria ter por finalidade precípua tão somente o incremento do número de fiéis para a Igreja.

O matrimônio não é tido apenas como lícito, para os que tenham sido batizados, como o é, ademais, celebrado por "Cristo", depreendendo-se, daí, o seu caráter sagrado. Santo Agostinho fundamenta a idéia do matrimônio enquanto sacramento nos seus três fins precípuos: bonum prolis, fidei et sacramentis (reprodução, fidelidade e sacramento). Portanto, a fidelidade e o débito conjugal são intrínsecos ao próprio sacramento. Como já o dissemos, apesar do caráter de indissolubilidade do casamento católico, já que é um sacramento, a importância do exercício do Jus in Corpus é tanta que a sua não consumação enseja a dissolução total do vínculo. O tema foi abordado no cânone 1142, cujo texto é o que se segue:

O matrimônio não consumado entre batizados, ou entre uma parte batizada e outra não-batizada, pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice com justa causa, a pedido de ambas as partes ou de uma delas, mesmo que a outra se oponha.

O impedimento por impotência é, atualmente, regulamentado pelo cânone 1084, com sentido similar ao que lhe dava o Código Canônico de 1917. São três os requisitos para que a impotência constitua impedimento: antecedência, perpetuidade e certeza. Quanto à perpetuidade, o Direito Canônico considera aqueles casos que são incuráveis por meios ordinários, lícitos e não perigosos para a vida ou gravemente prejudiciais à saúde (ARRIETA et alli, 1991).

A impotência antecedente e perpétua, tanto do homem como da mulher, do mesmo modo se é conhecida do outro cônjuge como se não o é, quer absoluta, quer relativa, torna nulo o matrimônio em virtude do próprio direito natural [12].

Saliente-se que se trata de impotência para o intercurso carnal e não a impotência generandi, qual seja, a impotência para gerar. O atual Direito Canônico, tal como previsto no Código Canônico de 1917, não prevê a possibilidade de anulação do casamento por impotência coendi (para o coito) durante o matrimônio, como o previa os cânones medievais, constituindo, o mesmo, injúria grave, mas tão somente a possibilidade de anulação do casamento caso o mesmo não possa ser consumado, ou seja, caso nunca tenha sido exercido o direito sobre o corpo do outro Jus in Corpus. Para tanto o Código Canônico atual em seu cânone 1020 prevê o exame das partes dos noivos a ser realizado pelo pároco a quem compete assistir ao matrimônio (HORTAL,1979). Dispensável avisar que tais exames não têm ocorrido na prática, não obstante constar do processo de habilitação matrimonial e integrar-lhe a instrução.

Quanto ao adultério, esta é a única causa que na legislação canônica, justifica a separação perpétua. Para que o adultério ocorra deve haver a "cópula perfeita" entre duas pessoas das quais, ao menos uma, seja casada. Insuficientes são, portanto, os atos libidinosos, como carícias, beijos e demais contatos físicos por mais íntimos que sejam. A doutrina e a jurisprudência canônica entendem como cópula perfeita, a união sexual natural, com ejaculação no interior da vagina da mulher, ou seja, a presença do verum semen no lócus intravaginal, rumo ao útero [13]. Logo, mesmo havendo discussão fragorosa em contrário dos estudiosos do Direito Canônico, a relação sexual onanística, assim como a cópula sodomítica com pessoa do mesmo sexo ou não, inclusive a bestialidade (relação sexual com animais) não constituem adultério positivado. Valioso considerar que, para o direito canônico, o adultério não é crime, mas, em ocorrendo, é uma faculdade reconhecida ao cônjuge inocente de dissolver perpetuamente o vínculo matrimonial, logo, um facultas agendi.

Caso o cônjuge traído sexualmente, haja consentido a esta traição, ou lhe tenha provocado, como, por exemplo, pelo abandono do cônjuge, mesmo que temporária, não mais com ele coabitando a fim de facilitar-lhe o congresso carnal com outro, ou pela recusa sistemática em pagar o débito conjugal com a intenção que o outro o traia, ou ao deixar-lhe em uma situação de carência e desamparo com vistas ao adultério, ou mesmo ao incitá-lo ao ato adulterino por coação ou indução. Note-se que a ação em caso de provocação deva ser positiva, com vistas à prática adulterina, logo o simples abandono temporário em si, assim como a recusa esporádica no cumprimento do débito conjugal, não gera direito ao adultério por parte do outro cônjuge. Não será, in casu, o adultério causa para a dissolução do casamento se ocorrer o perdão.

Resta evidente, que ao restringir o conceito de adultério, o Direito Canônico cuida da permanência da organização familiar, dificultando-lhe o esfacelamento, mesmo que à custa de almas e corações despedaçados.


IV A Mulher sob o Casamento no Código Civil de Napoleão.

...Enfim, minha incomparável mãezinha, dir-lhe-ei meu segredo: zombe de mim, fique em Paris, tenha seus amantes, que todo o mundo o saiba, não me escreva, nunca mais, e olha o que acontece! Eu lhe amarei dez vezes mais. "..." Estaremos amanhã em Livourne, e, o mais cedo que eu puder, nos teus braços, aos teus pés, sobre o teu seio. Napoleão Bonaparte. [14]

Essas são as palavras epistoladas de um Napoleão apaixonado, em campanha de guerras e conquistas à sua amada esposa Josefina. Napoleão integrava o exército francês e teve em Josefina uma grande aliada para ascender politicamente. Bem articulada entre os generais, Josefina introduziu Napoleão à elite parisiense. Napoleão casou-se com a bela e lépida viúva, fazendo-a imperatriz de França e de sua alma. No entanto, como as campanhas de guerra levavam meses, os boatos sobre a intrepidez carnal de Josefina grassava os salões e era a esses boatos que Napoleão respondia em carta, nos campos de batalha a sua efusiva amada. E foi esse mesmo Napoleão que ordenou fosse elaborado o primeiro Código Civil da modernidade, o Código Civil de Napoleão de 1804. Napoleão tinha como umas de suas grandes preocupações, além da separação do Estado e da Igreja através da elaboração de um Código laico, a limitação dos privilégios da nobreza detentora de terras, herdeira do absolutismo e a proteção dos direitos e dos interesses da burguesia ascendente. Partiu dos princípios da secularização do matrimônio e da independência da lei e da religião, tendo em vista a liberdade de consciência. Os formuladores do Codex deveriam seguir à risca a tradução dos textos romanos, o Corpus Juris Civilis e o Digesto, de forma que pouco restasse à exegese. A propriedade e a família são as instituições basilares de um Direito Civil pós-Revolução Francesa, onde os interesses individuais são preponderantes. Protege-se a família burguesa e a propriedade nos limites dessa família. O Código de Napoleão é rígido quanto à prestação do débito conjugal, os deveres de coabitação e a fidelidade. O jurista francês Planiol (1926) chega a afirmar Au fond, lê mariage n’est pas autre chose que l’ union sexuelle de l’ homme e de la femme. Ou seja, chega-se, inclusive a reduzir-se o escopo do casamento para tão somente o cumprimento do débito conjugal.

Durante a cerimônia matrimonial entre Napoleão e Josefina, Napoleão impede que o papa coroe Josefina, tirando-lhe a coroa das mãos, fazendo-o ele mesmo, demonstrando, assim, a separação entre o poder temporal e o poder espiritual, sendo que o temporal emanaria dele e não do poder divino. Este ato "napoleônico" pode ser contemplado na tela do pintor Jacques-Louis David "A Sagração de Napoleão". Por Josefina não mais poder ter filhos, havendo se casado com Napoleão já viúva, Napoleão dela se separa vindo a contrair segundas núpcias com Maria Luísa de Áustria, irmã da Imperatriz do Brasil, Maria Leopoldina. O que ocorreu depois, todos sabem, Napoleão teve um filho com Maria Luísa e Josefina retirou-se para uma vida reclusa no campo.

O que estava previsto no Código de Napoleão é o que até hoje influencia os diplomas civis ocidentais, neles incluídos os deveres de débito conjugal e de fidelidade no casamento. O que estava na boca de Napoleão ao pronunciar as últimas palavras em seu leito de morte na Ilha de Santa Helena, era o nome de sua amada infiel: "Josefina, Josefina...".


V A Mulher sob o Casamento no Direito Luso-Brasileiro: Ordenações Portuguesas, Código Civil de 1916 e atual Código Civil Brasileiro de 2002. A Questão da Honra.

Ao folhearmos o Código Civil brasileiro, publicado no dia 10 de janeiro de 2002 e que entrou em vigor no dia 10 de janeiro de 2003, logo nos deparamos com uma sorte de inovações no que tange aos sujeitos de direito, que são legitimados pelo atual Diploma não apenas como titular de direitos de propriedade, mas também de direitos subjetivos como os da personalidade, que incluem a imagem, a honra e a privacidade. Esses direitos de fundamentos humanísticos sempre foram tutelados pelo Direito Penal, restringindo-se a essa esfera a resolução das contendas provenientes do ferimento de quaisquer deles. Caberia, então, ao Direito Penal, o humano, demasiado humano, como nos falou Nietzsche, e ao Direito Civil, o patrimonial, demasiado, patrimonial, parodiando o Mestre alemão. No entanto, mesmo no Direito Penal, no que concerne à honra masculina que é correspondente não ao comportamento do homem, mas ao das mulheres que com ele estabeleçam uma relação jurídica (esposas e filhas), este atributo da personalidade não é isonômico em relação aos sujeitos de direito, dele titulares. Esta assertiva evidencia-se no famoso livro V das Ordenações Filipinas [15], promulgado em 1603 e vigente até 1830 no Brasil. Neste Diploma Legal, quanto mais alto o nível social do titular do direito à honra, maior a sua faculdade de, inclusive, praticar crimes em defesa desta, portanto, a própria honra como conceito filosófico muda de acordo com o patrimônio e o status social de quem a detém. Debrucemo-nos sobre o seu artigo 38:

38. DO QUE MATOU SUA MULHER POR A ACHAR EM ADULTÉRIO

Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim ela como o adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero fidalgo ou nosso desembargador, ou pessoa de maior qualidade. Porém, quando matar alguma das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adultério, não morrerá por isso, mas será degredado para África com pregão na audiência pelo tempo que aos julgadores bem parecer, segundo a pessoa que matar, não passando de três anos. (grifos nossos)

1 – E não somente poderá o marido matar a sua mulher e o adúltero que se achar com ela em adultério, mas ainda os pode licitamente matar sendo certo que lhe cometeram adultério; e entendendo assim provar, e provando depois o adultério por prova lícita e bastante conforme o direito, será livre sem pena alguma, salvo nos casos sobreditos, onde serão punidos segundo acima dito é. (PIERANGELI, 2004)

Logo, a honra, como direito da personalidade não é universal, mas restrito aos seres do sexo masculino e, ainda mais, aos que mais forem privilegiados e detiverem a propriedade privada. E o que é mais interessante, a honra de um homem não estaria na personalidade do homem, mas na da sua esposa e filhas.

A asserção de que o Direito Continental Europeu é essencialmente patrimonialista, inclusive no que toca ao casamento é válida pelo que já narramos neste presente trabalho ao examinarmos a família romana, base de nosso Direito de Família. Imperioso salientar, que tendo por base o direito romano-germânico, o direito continental traz, consideravelmente, em seu bojo a influência dos institutos jurídicos germânicos. O matrimônio legítimo entre os germanos era o matrimônio com mundium. Mundium, entre os germanos é o equivalente a manus entre os romanos e simboliza o poder (IHERING, 1999). Segundo Brunner-Schwerin [16], o matrimônio com mundium realizava-se uno actu, mediante a prestação do preço pelo noivo e a entrega da noiva. Posteriormente, a celebração do matrimônio foi separada em dois atos: os esponsais (verlobung, desponsatio) e a traditio (traditio puellae). A desponsatio era contrato de alienação, concluído em forma de contrato real entre o noivo e a Sippe ou o tutor da noiva, mediante o qual esta era vendida em matrimônio, pouco importando a vontade da noiva. O preço de compra (Wittum, wittemo, wetma, weotuma, widemo, meta; em latim: pretium nupciale, pretium emtionis, dos) era rigorosamente disciplinado. Com o tempo, o preço era pago mediante arras e, mais tarde, tornou-se simbólico. A evolução transformou o objeto da compra: já não era mais a mulher. O mundium e a própria idéia de compra desapareceu, transformando-se o preço em dote (wittum). O patrimônio aperfeiçoava-se com a traditio, ato simbólico que transferia o mundium ao marido. Ou seja, mais uma vez explicitamos que remonta às origens do nosso Direito ser a mulher uma propriedade privada de seu marido e não um sujeito de vontades. Mas, voltemos e continuemos a abordar a honra como um direito da personalidade.

Com a Constituição Brasileira de 1988, Constituição democrática, cidadã, pós-ditadura militar brasileira e, porque não dizer, pós-ditadura em quase todos os países latino-americanos, consolidaram-se os direitos e as garantias individuais no artigo 5º e nos seus, inicialmente, 77 [17] incisos. No inciso X, vislumbramos ali, protegidos, tutelados e garantidos os direitos da personalidade: a honra, a imagem e a privacidade, IN VERBIS:

(...)

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

(...) (grifo nosso)

Eugenio Cuello Calón (1975), classifica a honra como um bem jurídico que apresenta dois aspectos, um subjetivo e outro objetivo. O aspecto subjetivo designaria o sentimento da própria dignidade moral, nascido da consciência de nossas virtudes ou de nosso valor moral, ou seja, a honra stricto sensu. Já o aspecto objetivo representar-se-ia pela estimação que outrem faria de nossas qualidades morais e de nosso valor social, indicando a boa reputação moral e profissional, que pode ser afetada pela injúria (ofensa à dignidade ou ao decoro), calúnia (falsa imputação ou denúncia de fato definido como crime), ou difamação (imputação de fato ofensivo à reputação de pessoa física ou jurídica, atingindo-a no conceito ou na consideração a que tem direito). O que nos salta aos olhos é que este bem jurídico transitou da esfera penal para a esfera civil, no sentido de que ao ofensor caberá não apenas uma sanção penal de ordem pública, mas uma indenização pecuniária, ou seja, de ordem privada. Pois bem, o que há pouco tempo poderia ser um escândalo: mensurar a honra em dinheiro, hoje o é através da lei positivada e pela sua consagração pelos usos e costumes. No entanto, no que tange à honra feminina, o Código Civil de 1916, já reparava o seu ferimento com compensações pecuniárias nos casos em que a mulher fosse virgem e menor e houvesse sido deflorada; no caso de ser mulher "honesta", fosse ameaçada ou violentada; caso fosse seduzida com promessas de casamento e, finalmente, se fosse raptada. (Código Civil de 1916, art. 1.548, I a IV). O objetivo da norma era a reinserção social da mulher ferida em sua honra, e não apenas dela, mas também a do seu genitor. No caso de desvirginamento de menor, a responsabilidade do ofensor era objetiva, independente de culpa. Vemos, então, que o instituto da responsabilidade civil, mesmo que de forma tímida e assistemática, já rondava as nossas leis civis. Não obstante, na prática, a maculação da honra masculina em casos de adultério ou de violação de suas filhas e esposas era sancionada com sangue.

Diversamente do Direito Anglo-Saxônico, o nosso Direito Civil de fundamentos romano-germânicos, não tinha a tradição de tutelar os danos não patrimoniais na esfera civil, ou seja, os danos morais, esses intangíveis e de difícil mensuração pecuniária. Até bem recentemente, as ações de Responsabilidade Civil apresentavam caráter fortemente patrimonialista, o que se contabilizava era unicamente as perdas materiais e não as imateriais de fundo moral. Portanto, a honra, a imagem, direitos protegidos tão apenas no âmbito filosófico-penal, vai para a nossa nova Constituição Federal e desembarca em um Capítulo próprio em nosso Código Civil de 2002 (Livro I, Título I, Capítulo II), assim como nas decisões de nossos tribunais. O dano moral, onde se incluiria o dano à honra, ocorre quando se trata apenas da reparação da dor causada à vítima, sem reflexo em seu patrimônio. É a dor, a mágoa, a tristeza infligida injustamente a outrem (Rodrigues, 2002). No entanto, já que se preza tanto a honra em nosso Documento Civil, onde está aquele artigo, aquele que tratava da anulação do casamento no prazo de dez dias ao descobrir-se a mulher, anteriormente ao matrimônio, já deflorada? Foi revogado. Mais adiante, seguimos rumo às regras do Direito de Família, essas tão arraigadas nos porões e nas salas de visita sociais. De tão difíceis modificações, essas que envolvem as crenças, as vontades e os desejos mais profundos dos entes sociais, os seres humanos. É apenas lembrarmo-nos do esforço hercúleo daqueles que lutaram pela aprovação da Lei do Divórcio (Lei 6.515/1977) e pelo Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62) . É preciso lembrarmo-nos que a mulher casada, antes dessa nova Lei, era considerada como relativamente incapaz para a prática de determinados atos da vida civil. Relativamente incapaz como os pródigos e os silvícolas. Relativamente incapaz como no atual Código Civil o são os ébrios. Portanto, se solteira e maior, seria absolutamente capaz; se casada e maior, relativamente incapaz. O casamento, então, levava a uma diminuição da capacidade jurídica, mas aumentava o status social feminino. Por conseqüência, trocava-se a autonomia e a capacidade plena pelo casamento para que a mulher não se tornasse um "aleijão" social. Mas a situação poderia ser pior, pois, se por acaso a mulher fosse dignosticada como histérica, então seria a possibilidade de interditá-la e diminuir a sua capacidade jurídica para a incapacidade absoluta, podendo ser enquadrada no que previa o inciso II do art. 5º do Código Civil de 1916, IN VERBIS:

Art. 5º . São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:

...

II – os loucos de todo o gênero.

...

No entanto, ao deitarmos os olhos sobre as normas civis publicadas em 10 de janeiro de 2002, podemos verificar grandes mudanças no que tange às relações de gênero. Este galgar foi iniciado com, como já o dissemos, a Constituição Federal de 1988, no seu art. 5º , I, IN VERBIS:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

No que tange à fidelidade recíproca, esta continua a constituir um dos deveres matrimoniais arrolados no Código Civil de 2002, art. 1.566, juntamente à vida em comum no domicílio conjugal, mútua assistência, sustento, guarda e educação dos filhos, respeito e consideração mútuos. A honra dos cônjuges continua depositada no comportamento de seu consorte tanto que, como nos ensina a civilista Maria Helena Diniz (2002), o adultério constitui uma ofensa à honra conjugal [18]. A mudança (e esta é de interesse tanto para o Direito como para a Sociologia Jurídica) é que a honra ao passar a ser tutelada pelo Direito Privado, em sendo ferida, esta violação é considerada um ilícito civil. Logo, ao ser o titular desse bem desonrado, no caso de adultério, terá este o direito subjetivo de demandar por uma indenização pecuniária por dano moral. Se o adultério constitui delito contra a honestidade, a ofensa conjugal é, então, ato ilícito civil, como preceitua o Código Civil de 2002 em seu Livro III, Título III:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Portanto, o adultério, assim como a honra do cônjuge ofendido, passeia da esfera penal para a esfera da Responsabilidade Civil sistematizada no mesmo Diploma Legal pré-falado, senão vejamos:

Art.927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

O direito à indenização pela violação da honra, que é um direito da personalidade está positivado tanto no artigo supra como no art. 12 do Livro I, Capítulo II, do mesmo Código:

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

E este direito subjetivo se refere não apenas ao marido ofendido, mas também, à esposa traída.

Enquanto isso, o Direito Penal, descriminou o adultério. O que pode parecer um contra-senso, afinal, mais do que nunca a honra é tutelada pelo Direito Civil, na verdade trata-se tão apenas de um deslocamento da honra, principalmente, a dos homens da esfera penal para a esfera civil. Infelizmente a honra dos maridos, para o Direito, continua à mercê do comportamento sexual e amoroso de suas esposas, ou seja, mesmo sendo um direito personalíssimo e intransmissível, a honra não diz respeito tão apenas ao homem em si, assim como a sua imagem. O que se constata é, inclusive, que, apesar de todas as mudanças sociais e legais, não há um movimento de independência dos homens em relação às mulheres, já que, tal como nos tempos em que a honra masculina era lavada com sangue, a própria inserção positiva ou negativa do homem em sociedade continua sendo diretamente proporcional à preservação de sua honra, não por ele mesmo, mas por suas esposas e filhas. Apesar do adultério, legalmente, ofender a honra de ambos os cônjuges, socialmente e historicamente, sempre foi o homem que se sentiu mais ofendido. Quantas e quantas filhas foram enviadas para conventos ou, pior, expulsas do lar por terem maculado a honra de seus pais? A desonra trazida pelo adultério das mulheres era tamanha que levava até mesmo à exclusão social e humilhação eterna do marido traído. Vide o caso do personagem histórico brasileiro Antônio Conselheiro, um marido traído e marginalizado socialmente e que, apenas, conseguiu reinserir-se na sociedade ao comandar a Revolta de Canudos [19]. Portanto, não há como se fazer uma análise dogmática pura quanto às alterações históricas dadas ao instituto do casamento como temos visto até aqui neste pequeno trabalho.

No caso brasileiro, imperativo se faz perscrutar os motivos psico-sociológicos e econômicos que levaram às transformações no tratamento dado ao adultério e à honra nos diplomas legais que estão em vigor no Brasil, se acaso foram esses fatores que influenciaram a dinâmica normativa. Pois, como nos ensina Batalha (1986) "O Direito é abstração e concreticidade. Como abstração, o Direito é forma eterna. Como real-concreto, o Direito é substância mutável."

O pai da psicanálise, Sigmund Freud em seu Moral sexual civilizada e doença moderna (1980), comentou que a moral sexual civilizada necessitava de reformas, visto que o cumprimento de seus preceitos, freqüentemente, produzia sérias neuroses. As mulheres, mais que os homens, seriam vítimas potenciais do estado neurótico pela admissão de uma dupla moral social. As sanções impostas às mulheres, portanto eram (e são) muito mais severas que as impostas ao sexo masculino:

Essa moral dupla que é válida em nossa sociedade para os homens é a melhor confissão de que a própria sociedade não acredita que os seus preceitos possam ser obedecidos. (Freud, 1980)

Segundo o psicanalista Luiz Alberto Pinheiro de Freitas (2001), a lei existe exatamente para reprimir aquilo que o ser humano deseja fazer e, como tal, surgem as contestações, as quais são, naturalmente, mais aceitas no universo masculino. Já para o psicanalista austríaco Wilhelm Reich (2002), as leis patriarcais pertencentes à religião, à cultura e ao casamento são leis predominantemente contra a sexualidade como forma de insistir-se na obediência cega dos indivíduos às normas do patriarcalismo econômico, ou seja, preservação do modelo patrimonialista privado. Os aspectos econômicos também são abordados, tendo em vista que uma observação mais atenta do ordenamento jurídico brasileiro nos revela a sua função primeira: a defesa da propriedade. Para a terapeuta mexicana Sukie Colegrave (1994), a consciência hierárquica, individualista e separatista (bases da propriedade privada) estaria ligada ao arquétipo masculino, enquanto a consciência holística, coletiva e integradora (bases do matriarcado), ao arquétipo feminino. Logo, a propriedade privada surgiria com a ascensão do arquétipo masculino sobre o arquétipo feminino, inaugurando a era do Patriarcado social e psicológico.

As transformações em qualquer domínio institucional da sociedade tendem a afetar outros domínios e, em conseqüência, toda a sociedade (Vila Nova, 1991). No que tange às mudanças sociais, tem sido verificado que as áreas institucionais às quais pertencem os valores básicos e as normas sagradas – os mores – da sociedade são precisamente as de maior resistência à mudança (Vila Nova, 1991). No entanto, apesar dessa resistência, sociólogos observam que alterações na tecnologia e na economia tendem a, também, afetar a instituição familiar [20]. Ao analisarmos a ordem jurídica atual no que tange aos deveres de fidelidade e débito conjugal, resta evidente a complexização no tratamento dado à mulher como sujeito de direitos em uma relação jurídica como o é o casamento.

No Código Penal modificado em 1973 - o legislador, o então Ministro da Justiça, Luis Antônio da Gama e Silva, afirma em sua Exposição de Motivos:

Conservam-se os atuais crimes contra o casamento, inclusive o adultério(...). (...) à comissão revisora pareceu errônea manter-se a incriminação da simples simulação de casamento e descriminar-se o mais grave fato contra o casamento: o adultério (grifo nosso). A ausência de condenações criminais pelo delito de adultério deve-se mais à permanência da mentalidade que nos vem das velhas Ordenações, de o ofendido "fazer justiça"(aspas nossas) pelas próprias mãos quando toma conhecimento do adultério de seu cônjuge. (...) Mantendo-se a incriminação do adultério, procura-se " educar", (aspas nossas) (...) o nosso povo a buscar, no processo criminal uma solução mais humana para os seus propósitos de vindita (vingança).

De um Código Penal que criminalizava o adultério, em mais das vezes tendo a mulher como réu, passamos a um Código Penal que o descrimina e a um Direito Civil que confere ação de indenização ao cônjuge traído. Sai o sangue e as algemas e entra a pecúnia. Já dizia o jusfilósofo alemão Rudolf von Ihering [21]: " O Direito é o conjunto das condições de vida da sociedade (considerado o vocábulo no sentido mais amplo), asseguradas pelo poder público mediante coerção exterior".

Para Ihering (1999), todo direito estabelecido é a expressão de um interesse que o legislador reconhece como merecendo e exigindo proteção: os direitos transformam-se à medida que se alteram os interesses da vida; interesses e direitos seriam, então, de alguma maneira, historicamente paralelos. Para Ihering (1999), portanto, o Direito destina-se à satisfação dos interesses variáveis, mediante a coerção do poder público. Além da base teórica de Ihering para explicar tantas mudanças no tratamento dado ao adultério, sub oculi, guiemo-nos pelas considerações do jusfilósofo soviético P. I. Stucka [22]. Stucka pondera que o conceito eterno de Direito se acha vinculado à concepção do Direito burguês, ou seja, vinculado a um ponto de vista de classe. Assim, para ele, característica do Direito é uma certa ordem, um sistema de relações sociais garantido pela classe dominante por meio de um poder organizado, cujo principal (senão o único) objetivo é tutelar esse ordenamento na medida em que corresponde aos interesses e os garante à classe dominante. Ou seja, segundo Stucka, onde quer que exista a divisão da humanidade em classes e o domínio de uma classe sobre a outra, e qualquer que seja a forma desse domínio, ali encontraremos o Direito ou algo análogo. A variabilidade no tratamento normativo não pode olvidar os usos e costumes, repousando-se no fato de que, apesar de, no plano normativo, inexistir uso e costume contrário à lei, no plano ontológico dos fatos e das situações, o direito legislado, sem perder sua validade (normativa), pode perder sua eficácia (ontológica), permanecendo tão apenas "no papel".

A coabitação continua a ser um dever entre os cônjuges no Código Civil de 2002, estando subentendido neste dever a prestação do débito conjugal, ou seja, o congresso sexual. A familiarista Maria Berenice Dias, Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, é veementemente contra, em seus escritos, assim como em suas falas em Congressos, à positivação desses dois deveres conjugais (fidelidade e débito conjugal). Para a douta Desembargadora, essas são questões que devem ser de domínio único e exclusivo das partes privadas interessadas, quais sejam, dos cônjuges. Inclusive, em um de seus artigos, Dias (2000) propugna pela eliminação da designação "cônjuge" dada aos esposos, alertando que etimologicamente jugum era o termo utilizado pelos romanos para nominar a canga que prendia as bestas à carruagem e, que conjugere, portanto, seriam duas pessoas sob o mesmo jugo, logo, sob a mesma canga. Dias [23] nos chama a atenção de que ao ser o débito conjugal, base para uma ação de indenização por dano moral, estamos na perigosa senda que leva ao entendimento que o seu cumprimento pode ser, inclusive, à força, descaracterizando-se o crime de estupro quando o autor é o marido e a vítima é a esposa. Dias chama essa exigibilidade de verdadeiro "terrorismo sexual". O descumprimento desses deveres,continua a Desembargadora, geraria uma sentença de obrigação de fazer quanto ao débito conjugal e de não-fazer quanto ao adultério... e o que fazer com essa sentença? Nas palavras de Dias, durante a sua fala no IV Congresso Brasileiro de Direito de Família em Belo Horizonte no ano de 2003: "pendurá-las no espelho do leito conjugal".

A impotência coeundi continua sendo causa de anulação de casamento por vício da vontade, em ocorrendo erro essencial quanto à pessoa do outro no Código Civil Brasileiro de 2002, tal como dispõe o seu art. 1556. O inciso III do art. 1557 considera erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge "a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável...", neste defeito físico irremediável inclui-se a impotência para a conjunção carnal tanto por parte do homem como por parte da mulher (vaginismo, infantilismo e demais patologias do órgão sexual feminino que impeçam o coito natural). Mister salientar que a coabitação nesse caso, havendo ciência do vício não valida o ato do casamento, como dispõe o art. 1.559. O prazo para ser intentada ação de anulação do casamento, a contar da data da celebração será de três anos in casu (art. 1.560, III). Lembrando que esta anulação não incorrerá na desobrigação do cônjuge "culpado" de cumprir as promessas que fez ao outro no contrato antenupcial, assim como não prejudicará a aquisição de direitos, a título oneroso, por terceiros de boa-fé, nem a resultante de sentença transitada em julgado (arts. 1.563 e 1.564, II).

Caso o descumprimento do débito conjugal for no decorrer da união matrimonial, tendo sido, anteriormente, normalmente, prestada, será o caso da aplicação do art. 1.573, III, que trata da dissolução do vínculo conjugal tendo por motivo a impossibilidade da comunhão de vida pela ocorrência de injúria grave. A não prestação do débito conjugal constitui caso de injúria grave e, sendo um ilícito civil, cabendo, ainda, indenização por perdas e danos morais.

O adultério é também ilícito civil, já que se trata, também, de descumprimento de dever conjugal (art. 1.566, I), no entanto, não é causa de anulação de casamento tal como ocorre no Direito Canônico, mas de sua dissolução (art. 1.573, I). Como ilícito civil, caberá, portanto, Ação de Responsabilidade Civil contra o cônjuge adúltero com Pedido de Indenização por Perdas e Danos morais. Tais ações têm sido ajuizadas nos tribunais pátrios, sendo, geralmente, por parte do cônjuge varão, ou seja paga-se o ferimento da honra não com sangue, mas com pecúnia... Bem, menos mau.

A boa notícia é que, mesmo que a mulher seja condenada em uma Ação de Separação, sendo culpada pelo adultério, esta decisão não vinculará o juiz no seu convencimento quanto à guarda dos filhos menores. A mulher adúltera, sob a égide da Lei Civil de 1916, muito dificilmente ficaria com a guarda dos filhos, além de perder o direito a alimentos. Sob o sol do século XXI, a mulher adúltera, assim como o homem adúltero, claro, poderão ficar com a guarda dos filhos, independentemente de terem sido culpados pelo divórcio motivado por adultério já que os filhos ficarão sob a guarda daquele que melhores condições apresentar para consigo mantê-los, conforme a dicção do art. 1.584. Quanto ao direito a alimentos, o cônjuge culpado pelo adultério, a eles fará jus, não obstante, apenas àqueles necessários para a sua sobrevivência. Para muitos doutrinadores modernos, o direito a alimentos restritos à subsistência seria como uma "pena de morte" ao cônjuge adúltero, que teria ferido o seu direito constitucional à "vida", enfatizando que se essa necessidade for posterior à dissolução do vínculo, nenhuma espécie de alimentos será devida ao cônjuge culpado (arts. 1.694, 2º e 1.704, caput), a menos que esteja em petição de miséria, ou seja, sem parentes em condições de prestá-los e nem aptidão para o trabalho (art. 1.704, parágrafo único), prevalecendo-se aí o princípio constitucional da solidariedade. A questão é: "quem é culpado pelo fim do amor?" e " quem traiu quem"? O compositor Francisco Buarque de Holanda, tão sabiamente em um de seus versos da canção "Mil Perdões" [24] afirma: "Te perdôo por te trair". Até mesmo para o atual direito civil positivado brasileiro, a resposta a essas indagações não importa, caso os cônjuges já separados judicialmente e ainda não divorciados queiram esquecer todas as traições, dívidas, ações de indenização e, a qualquer tempo, queiram dar-se as mãos e voltar juntos para casa, voltando a serem cônjuges sem necessitarem casar-se novamente, como se sempre estivessem, mesmo no turbilhão do mar dos sentimentos, estado sempre juntos [25]: "Quando não diremos nada, nada aconteceu, apenas seguirei como encantado ao lado teu". [26]

Mas para aqueles, especialmente às mulheres que são o foco desse trabalho e que historicamente foram vítimas do jugo familiar, para aquelas que se sintam oprimidas, subjugadas, infelizes de dor mortífera, cerceadas em sua própria identidade, ao estarem não mais no casa-mento, mas sob o casa-mento. Quando a casa não mais for um lar, mas uma gaiola de ferro, quando os encargos de mãe (matrimônio) em relação a seu cônjuge, tornar-se um fardo, um caminho inarredável rumo ao sofrer, a lei civil brasileira deu-lhes a chave da redenção através da Lei do Divórcio de 1977 [27]. Portanto, ao usar dessa chave, as mulheres estarão libertas de deveres que apenas fazem sentido quando fundados no amor e no desejo imperativo de estar com o seu eleito, quais sejam: os de fidelidade e débito conjugal [28]. Ao atingir-se o ponto de não-retorno, talvez seja a hora de optar pela vida, sair da gaiola e voar em busca dos sonhos que haviam sido deixados para trás.


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Notas

  1. Citado in CAPPARELLI (1999).
  2. Citado in CAMPOS (1987).
  3. Citado in COLEGRAVE (1994).
  4. Ver CAMPOS (2003).
  5. "La disettes des femmes, conséquence de L´infanticide dont les enfants de ce sexe sont l`objet, entraina à une autre coutume, la polyandrie, qui est encore répandue dans bien des parties du globe, et qui selon M. Mac Lennan, a universellement prévalue autrefois". Darwin, ob. Cit., pg. 648.
  6. Citado in Batalha (1986).
  7. Idem.
  8. Ver COTRIM (1994).
  9. Ver COTRIM (1994).
  10. Ver BATALHA (1986).
  11. Ver CAMPOS (1987).
  12. Ver HORTAL (1979).
  13. Ver CAPPARELLI (1999).
  14. BONAPARTE, Napoléon (1998).
  15. PIERANGELI (2004).
  16. Citado in Batalha (1986).
  17. A Emenda Constitucional no 45 de 08 de dezembro de 2004, inseriu um novo inciso ao art. 5º, perfazendo-se, atualmente 78 incisos.
  18. Salientemos que esta é uma visão estritamente jurídica.
  19. Citado pelo professor Fábio Konder Comparato em aula da disciplina Ética e Direito no curso de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em março de 2002.
  20. Ver Foster (1964).
  21. Citado in Batalha (1986).
  22. idem
  23. In Casamento ou Terrorismo Sexual?
  24. Canção de 1983.
  25. Conforme o art. 1.577 do atual Código Civil Brasileiro, In Verbis: "Seja qual for a causa da separação judicial e o modo como esta se faça, é lícito aos cônjuges restabelecer, a todo tempo, a sociedade conjugal, por ato regular em juízo".
  26. Canção de Francisco Buarque de Holanda, "Todo Sentimento", 1988.
  27. Lei 6.515 de 26 de dezembro de 1977.
  28. Segundo o art. 1.576 do atual Código Civil Brasileiro, os deveres de coabitação (débito conjugal) e de fidelidade recíproca cessam com a separação judicial.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Andrea Almeida. A mulher sob o casamento. Fidelidade e débito conjugal: uma abordagem jus-histórica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2337, 24 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13890. Acesso em: 18 abr. 2024.