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Lei de recuperação de empresas: uma lei que deu certo

Lei de recuperação de empresas: uma lei que deu certo

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No domingo de 12 de dezembro o jornal O Estado de São Paulo trouxe um artigo de fundo denominado UMA LEI QUE DEU CERTO, referindo-se à Lei de Recuperação de Empresas. Em seguida tece encômios aos resultados que essa lei tem obtido em quatro anos e meio de aplicação.

Hosana! Até que enfim se ergue uma voz de reconhecimento da excelência de uma lei que era reclamada há décadas e cujo atraso acarretou enormes prejuízos ao Brasil. Vamos historiar então os acontecimentos que marcaram a elaboração e o inicio da luta por essa lei. O projeto da lei foi apresentado ao Congresso Nacional no início do Governo Collor. Desencadeou-se contra esse projeto uma bateria de críticas, reparos, ataques e condenações. Os diversos órgãos de comunicação de massa, como os jornais, incluindo-se entre eles o próprio jornal que agora enaltece a lei, trouxeram declarações de mestres de direito e os costumeiros advogados prestadores de informações sobre qualquer assunto jurídico.

O autor deste artigo enviou a todos os órgãos de comunicação vários artigos esclarecendo os aspectos positivos da lei e os aspectos negativos da lei então em vigor, que era o Decreto-lei 7.661, de 1945. Nenhum desses artigos foi publicado, como também nada foi publicado em defesa do projeto; somente contra. Foi bastante estranho: por que tanta celeuma a respeito de um assunto até então desprezado? Por que foram ouvidos apenas juristas contra o projeto e nenhum a favor? Ante a violenta e inesperada reação em combate ao projeto, o Governo Federal retirou-o do Congresso, alegando que fora para revisão.

O Governo que apresentara o projeto caiu e com ele seu ministério. Pensou-se que a questão morreria e fosse esquecida, mas não foi o que aconteceu. Assumiu novo Governo e o Ministro da Justiça interessou-se pelo projeto e encarregou um advogado de seu escritório no Rio de Janeiro para que fizesse sua revisão. Foi bem enxugado o projeto e simplificado, eliminados alguns pontos criticados, mas conservando a mesma estrutura e seguindo idênticos princípios. O novo projeto foi enviado ao Congresso Nacional, que o aceitou sem alarde.

Doze anos decorreram no exame, discussão, substitutivos e percalços inúmeros desses projeto, até que ele se transformou na Lei 11.101 em janeiro de 2005. Saiu a lei e recomeçou o bombardeio contra ela. Foram apontados inúmeros defeitos, muitas restrições e incongruências. Foram entrevistados vários "especialistas" em Direito Falimentar, todos condenando o novo diploma legal. Nenhuma palavra de defesa foi revelada; em momento algum houve referência a alguma disposição louvável.

O ranço comunista esteve presente: a principal acusação à Lei de Recuperação de Empresas era a de que seu intento seria a proteção dos interesses dos banqueiros contra os dos trabalhadores. Os jornais, os canais de televisão e outros órgãos de comunicação de massa bateram nessa tecla durante mais de um ano, até que a campanha orquestrada começou a cansar os espíritos. Por outro lado, os efeitos da lei fizeram-se notar no cenário jurídico e econômico. Pouco a pouco, as virtudes da lei foram-se revelando e causando benefícios e alívio às empresas honestas, mas que revelaram sintomas de debilidade.

Aspecto interessante da campanha difamatória é o de que todos apontavam defeitos da nova lei, mas ninguém se atreveu a apontar virtudes da antiga. Não houve qualquer quadro comparativo entre a lei que chegou e a que se foi. Também não houve quem se mostrasse favorável ao retorno do antigo sistema falimentar, isto é, ao adotado pelo Decreto-lei 7.66/45.

Três anos se passaram com o esquecimento do combate e agora começamos a ver o reconhecimento da excelência da Lei de Recuperação de Empresas, a Lei 11.101/2005, que completará em janeiro próximo cinco anos de sua promulgação. E partiu exatamente de um jornal de elevado conceito e participante da reação contra o novo sistema falimentar. As razões da mudança é a indicação dos males do antigo sistema, que o novo eliminou.

Das razões apontadas, em primeiro lugar o antigo regime era o de liquidação de empresas, e cumpriu o seu papel. Baseado no princípio de quem não tem competência não se estabelece, a antiga lei falimentar adotou o sentido de marginalizar do mundo empresarial a empresa que revelou não ter condições para nele permanecer. A nova lei obedece a outros princípios que o próprio nome revela: RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS. Reconhece que a falência é uma chaga social; elimina um empregador, deixando seus empregados sem receber; tira do mercado bancário e fornecedor um cliente e um comprador. Para o Governo é um contribuinte a menos. Urge, portanto, preservá-la. E a nova lei resultou, segundo o articulista: "na sobrevivência dos negócios, na renegociação dos direitos dos credores; na preservação de marcas e, principalmente, na manutenção de empregos".

Centenas de empresas encontraram sua salvação na LRE. Para os funcionários, a recuperação da sua empresa torna possível, além de manter-se ocupados e remunerados salvar seus direitos trabalhistas. Para os credores, especialmente os fornecedores de insumos e suprimentos, isso permite preservar seus mercados.

Há um ponto polêmico levantado pelo artigo jornalístico. É o tocante aos débitos fiscais, que precisam estar em dia para que a empresa obtenha a recuperação. Ao requerer a recuperação judicial, a empresa terá que apresentar certidão negativa dos débitos fiscais. Essa obrigação foi contestada desde a tramitação do projeto e agora é levantada pelo artigo publicado.

Entretanto, as autoridades fiscais e a Advocacia Geral da União apresentaram razões plausíveis para essa exigência, que foram aceitas pela comissão parlamentar do projeto da LRE, presidida pelo Deputado Osvaldo Biolchi. Alega o Governo que o débito fiscal ocorre normalmente da apropriação indébita que os dirigentes da empresa fazem de valores que não lhes pertencem. A empresa desconta do salário de seus empregados 10% para recolher ao INSS, como contribuição deles para formar o pecúlio que lhes garanta o futuro; e, no entanto, o empregador não recolhe esse desconto, apropriando-se dele em seu benefício e incorporando-o ao seu patrimônio. Essa prática é considerada, pela lei, como crime de apropriação indébita e os empresários deveriam responder civil e criminalmente por esse ato ilícito.

Além disso, o INSS concede facilidades para o pagamento desse débito acumulado. Ao formar débito vultoso, aumentado mensalmente pela retenção do desconto do salário dos empregados, o empregador faz acordo para saldar o débito em suaves prestações mensais, com juros subsidiados, inferiores ao do mercado financeiro. Uma obrigação descumprida transformou-se destarte em financiamento da atividade do empregador faltoso. Ainda mais, fazendo esse acordo, a empresa fica em dia com a Seguridade Social e poderá obter a certidão negativa de débito fiscal, pois não há dívida (compromisso vencido). Fazendo acordo para pagar compromissos antigos, na hora do pagamento a empresa requer a recuperação judicial, querendo assim adiar esse pagamento, que já era atrasado.

No que tange aos impostos, aplica-se o mesmo princípio. Quem paga os impostos é o consumidor e não a empresa. Ao vender um produto, o fornecedor lança na Nota Fiscal o valor dos impostos, que se incorpora ao preço do produto. A empresa é a intermediária no recolhimento dos impostos: cobra do consumidor para recolher ao Fisco. Contudo, ao invés de recolher os impostos ao Erário, a empresa se apropria dele, acumulando por mês ou até anos, formando vultoso débito. Depois faz acordo para pagar esse débito fiscal em longo prazo; na hora de pagá-lo pede os benefícios da recuperação judicial para alongar ainda mais. Foi até invocado para a condenação desse procedimento empresarial um ditado citado pelo insigne comercialista italiano Francesco Messineo: Quanto più facilità si fa a quello che non paga, più si fa ingiustizia a quello che paga = Quanto mais facilidades se faz àquele que não paga, mais se faz injustiça àquele que paga.

Qual teoria está certa, deixamos ao critério dos intérpretes. Porém, o importante que o momento nos revela é que a Lei de Recuperação de Empresas já está sedimentada no direito brasileiro e prestando serviços à coletividade, conforme agora está sendo reconhecido.


Autor

  • Sebastião José Roque

    Sebastião José Roque

    advogado, professor da Universidade São Francisco - campi de São Paulo e Bragança Paulista, mestre e doutor em direito pela Universidade de São Paulo, especialista em Direito Empresarial pela Universidade Panthéon-Sorbonne (Paris) e pelas Universidades de Bolonha, Roma e Milão, presidente do Instituto de Direito Brasileiro de Direito Comercial Visconde de Cairu

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROQUE, Sebastião José. Lei de recuperação de empresas: uma lei que deu certo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2358, 15 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14021. Acesso em: 19 abr. 2024.