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Comunidades tradicionais, plurinacionalidade e democracia étnica e cultural.

Considerações acerca da proteção territorial das comunidades de remanescentes de quilombos brasileiras a partir da ADI nº 3.239

Comunidades tradicionais, plurinacionalidade e democracia étnica e cultural. Considerações acerca da proteção territorial das comunidades de remanescentes de quilombos brasileiras a partir da ADI nº 3.239

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RESUMO:

Sabe-se que o estado brasileiro ficou marcado em seu período colonial pela adoção do sistema de trabalho escravocrata. Desconstruído formalmente em 1888, mantiveram-se após esse período algumas peculiaridades pela adoção deste sistema. Nesse sentido, formaram-se as chamadas comunidades de remanescentes de quilombos, que se mantiveram até os dias atuais, internacionalmente tratadas como comunidades tradicionais, povos tribais ou povos aborígenes. A Organização Internacional do Trabalho cuidou de regulamentar direcionamentos gerais para o trato com tais comunidades, através da Convenção n° 169/OIT. O estado brasileiro, signatário da citada Convenção, cuidou interna e minimamente da questão através do art. 68 do ADCT, dos artigos 215 e 216 da Constituição da República e do Decreto 4.887/2003. Recentemente a constitucionalidade de tal decreto fora questionada perante o Supremo Tribunal Federal através da Ação Direta de Constitucionalidade n° 3.239, de autoria do Partido da Frente Liberal. Buscou-se no presente artigo analisar o posicionamento do autor da citada ADI, assim como verificar os impactos da declaração da inconstitucionalidade ou constitucionalidade do decreto perante a normativa internacional de proteção dos direitos humanos. Conclui-se que o Decreto 4.887/2003 coaduna-se com a Convenção n.° 169 da OIT, sendo a declaração de inconstitucionalidade e posterior revogação um significativo retrocesso do estado brasileiro quanto à proteção de comunidades tradicionais. Para demonstrar o retrocesso, vamos procurar entender como a Constituição de 1988 incorpora a diversidade cultural e reconhece as raízes diferentes de grupos sociais e étnicos que devem ter sua forma de viver respeitada. Estes grupos, além de manterem sua diversidade, suas formas familiares e de propriedade respeitadas, devem participar da construção de espaços plurais não uniformizadores no estado brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE:

Comunidades Tradicionais, Plurinacionalidade, Quilombolas, Proteção Territorial.


1.INTRODUÇÃO

Algo de novo e democrático vem acontecendo nas Américas, e podemos dizer que este processo tem início nas inovações importantes da Constituição brasileira de 1988. A nossa Constituição Federal trouxe inovações que influenciaram claramente o processo constituinte democrático em outros países americanos. Assim, o reconhecimento da autonomia do Ministério Público na CF de 1988, que garante a esta instituição uma posição de "poder" do estado, foi influência para a Constituição da Venezuela, que ao criar cinco poderes, estabeleceu o importantíssimo poder de fiscalização exercido, naquele país, pelo Poder Cidadão, composto pelo Ministério Público, Defensoria Publica e Tribunais de Contas.

Da mesma forma, a existência de uma Justiça Eleitoral para garantir a lisura dos pleitos democráticos no Brasil influenciou a criação de poder eleitoral na Venezuela.

A Constituição brasileira, além de trazer um leque importante de direitos fundamentais indivisíveis, criou mecanismos de proteção ao meio ambiente.

O respeito à diversidade cultural de nosso país é mais um elemento inovador de nossa constituição, que, se não rompe ainda totalmente com o paradigma uniformizador do estado nacional europeu, oferece claros espaços para mudanças interpretativas de nosso texto neste sentido. Por exemplo, as importantes contribuições das reflexões no âmbito do direito de família que ocorrem na lides diárias e nas reflexões dos membros do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) já apontam neste sentido. O respeito à diversidade cultural e as formas familiares e de propriedade dos povos originários (chamados pelo invasor europeu de "indígenas") também apontam para a possibilidade de superação do paradigma do estado nacional de matriz jurídica européia.

O reconhecimento das formas de propriedade e de organização social e familiar dos "quilombolas" também é um importante passo neste sentido.

Outros países "americanos", por terem populações majoritariamente originárias, avançaram muito no sentido da ruptura com a uniformização típica dos estados nacionais formados na Europa, modelo que foi copiado nos processos de independência das metrópoles pelos nascentes estados nacionais "americanos".

Para entendermos a lógica da formação de estados "etnicamente" democráticos e plurinacionais, vamos trilhar um caminho histórico, estudando a formação do estado nacional, para depois construir uma teoria do estado plurinacional, para finalmente estudarmos a situação dos quilombolas no Brasil e a necessidade do reconhecimento do seu direito constitucional à diversidade, em nossa democracia multidimensional (política, social, étnica e econômica)

As novas constituições da Bolívia e Equador do ano de 2009 são uma grande novidade para o direito constitucional, ao representar uma potencial ruptura com o paradigma do estado nacional e sua uniformização de valores típica deste paradigma moderno.

Além de uma novidade para o constitucionalismo e, logo, para o direito, a proposição teórica do estado plurinacional pode representar também um novo paradigma para a construção de uma ordem jurídico-institucional internacional.

O estado nacional construído na realidade européia a partir do século XV procura uniformizar o direito de família e de propriedade, criando assim as condições do exercício de um poder centralizado e hierarquizado.

Vamos entender esta nova construção jurídica capaz de romper com a hegemonia européia que começa a chegar ao fim. Para isto procuramos conhecer o estado plurinacional como um modelo de ordem jurídica plural, diversa, democrática e tolerante, que seja capaz de criar espaços de diálogo permanente, onde as partes envolvidas possam comparecer em condições de igualdade de fala, sem se submeterem a pseudo-imperativos valorativos construídos por qualquer cultura, e, desta forma, possam efetivamente estabelecer uma agenda mundial de direitos que possam ser universalizados.

Outra novidade da proposta "plurinacional" é o fato de que esta não se enquadra nas tradicionais visões culturalistas ou universalistas. De um lado, uma visão culturalista não servirá para encobrir violações de direitos e o autoritarismo, uma vez que estes grupos se comprometem a discutir permanentemene. Sentar-se em uma mesa (de forma simbólica) e discutir tudo é a melhor forma de superar intolerâncias e violências. Enquanto houver debate não haverá violência. Sem dúvida, esta estratégia é muito mais eficaz do que intervenções armadas com supostas razões humanitárias, todas sempre muito trágicas. Neste ponto, podemos dizer que um direito que efetivamente deve ser universalizado é a existência de espaços permanentes de discussão.

De outro lado, afastamos um discurso que soa hipócrita, de um universalismo que nunca foi universal, mas europeu. A imposição de valores e direitos se mostrou como uma forma eficaz de dominação e imposição dos interesses de potências hegemônicas quase sempre européias, mesmo que não se encontrassem no continente europeu. Mesmo as mais legítimas intervenções humanitárias encobrem ou encobriram outros interesses hegemônicos.

Para demonstrarmos o potencial da idéia do estado plurinacional na construção de alternativas aos importantes debates da diversidade étnica, social, política e econômica, em nosso país, vamos neste texto explicar primeiramente a formação do estado nacional, entender seu significado e importância, para então depois compreendermos as bases do estado plurinacional. Finalmente, vamos estudar um caso concreto que envolve o direito dos povos quilombolas, procurando compreender como o novo paradigma plurinacional pode apresentar soluções democráticas para a questão. Pretendemos demonstrar como o novo paradigma pode ser importante para o respeito aos direitos humanos democraticamente construídos.


O ESTADO NACIONAL

A formação do Estado moderno, a partir do século XV, ocorre após lutas internas nas quais o poder do Rei se afirma perante os poderes dos senhores feudais, unificando o poder interno, os exércitos e a economia, para então afirmar este mesmo poder perante os poderes externos, os impérios e a Igreja. Trata-se de um poder unificador numa esfera intermediária, pois cria um poder organizado e hierarquizado internamente, sobre os conflitos regionais, as identidades existentes anteriormente à formação do Reino e do Estado nacional que surge neste momento e, de outro lado, afirma-se perante o poder da Igreja e dos Impérios. Este é o processo que ocorre em Portugal, Espanha, França e Inglaterra. [01]

Destes fatos históricos decorre o surgimento do conceito de uma soberania em duplo sentido: a soberania interna a partir da unificação do Reino sobre os grupos de poder representados pelos nobres (senhores feudais), com a adoção de um único exército subordinado a uma única vontade; a soberania externa a partir da não submissão automática à vontade do papa e ao poder imperial (multiétnico e descentralizado).

Um problema importante surge neste momento, fundamental para o reconhecimento do poder do Estado, pelos súditos inicialmente, mas que permanece para os cidadãos no futuro estado constitucional: para que o poder do Rei (ou do Estado) seja reconhecido, este Rei não pode se identificar particularmente com nenhum grupo étnico interno. Os diversos grupos de identificação pré-existentes ao Estado nacional não podem criar conflitos ou barreiras intransponíveis de comunicação, pois ameaçarão a continuidade do reconhecimento do poder e do território deste novo Estado soberano. Assim, a construção de uma identidade nacional torna-se fundamental para o exercício do poder soberano.

Desta forma, se o Rei pertence a uma região do Estado, que tem uma cultura própria, identificações comuns com a qual ele claramente se identifica, dificilmente um outro grupo, com outras identificações, reconhecerá o seu poder. Assim, a tarefa principal deste novo Estado é criar uma nacionalidade (conjunto de valores de identidade) por sobre as identidades (ou podemos falar mesmo em nacionalidades) preexistentes. [02] A unidade da Espanha ainda hoje está, entre outras razões, na capacidade do poder do Estado em manter uma nacionalidade espanhola por sobre as nacionalidades pré-existentes (galegos, bascos, catalães, andaluzes, castelhanos, entre outros). No dia que estas identidades regionais prevalecerem sobre a identidade espanhola, o Estado espanhol estará condenado à dissolução. Como exemplo recente, podemos citar a fragmentação da Iugoslávia entre vários pequenos estados independentes (estados étnicos), como a Macedônia, Sérvia, Croácia, Montenegro, Bósnia, Eslovênia, e, em 2008, o impasse em Kosovo. Portanto, a tarefa de construção do Estado nacional (do Estado moderno) dependia da construção de uma identidade nacional, ou em outras palavras, da imposição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos sociais para que assim todos reconhecessem o poder do Estado, do soberano. Assim, na Espanha, o rei castelhano agora era espanhol, e todos os grupos internos também deveriam se sentir espanhóis, reconhecendo assim a autoridade do soberano.

Este processo de criação de uma nacionalidade dependia da imposição de valores comuns e sua aceitação pela população. Quais foram inicialmente estes valores? Um inimigo comum (na Espanha do século XV, os mouros, o império estrangeiro), uma luta comum, um projeto comum, e naquele momento, o fator fundamental unificador: uma religião comum. Assim a Espanha nasce com a expulsão dos muçulmanos e, posteriormente, dos judeus. É criada na época uma polícia da nacionalidade: a santa inquisição. Ser espanhol era ser católico e quem não se comportasse como um bom católico era excluído.

A formação do Estado moderno está, portanto, intimamente relacionado com a intolerância religiosa, cultural, a negação da diversidade fora de determinados padrões e limites. O Estado moderno nasce da intolerância com o diferente, e dependia de políticas de intolerância para sua afirmação. Até hoje assistimos o fundamental papel da religião nos conflitos internacionais, a intolerância com o diferente. Mesmo estados que constitucionalmente aceitam a condição de estados laicos têm na religião uma base forte de seu poder. O caso mais assustador é o dos Estados Unidos, divididos entre evangélicos fundamentalistas de um lado e protestantes liberais de outro lado. Isto repercute diretamente na política do Estado, nas relações internacionais e nas eleições internas. A mesma vinculação religiosa com a política dos Estados podemos perceber em uma União Européia cristã que resiste à aceitação da Turquia e convive com o crescimento da população muçulmana européia.

O Estado moderno foi a grande criação da modernidade, somada mais tarde, no século XVIII, com a afirmação do Estado constitucional.

Na América Latina os Estados nacionais se formam a partir das lutas pela independência no decorrer do século XIX. Um fator comum nestes Estados é o fato de que, quase invariavelmente, foram Estados construídos para uma parcela minoritária da população, onde não interessava para as elites econômicas e militares que a maior parte da população se sentisse integrante, parte do Estado. Desta forma, em proporções diferentes em toda a América, milhões de povos originários (de grupos indígenas os mais distintos), assim como milhões de imigrantes forçados africanos, foram radicalmente excluídos de qualquer idéia de nacionalidade. O direito não era para estas maiorias, a nacionalidade não era para estas pessoas. Não interessava às elites que indígenas e africanos se sentissem nacionais.

De forma diferente da Europa, onde foram construídos estados nacionais para todos que se enquadrassem ao comportamento religioso imposto pelos estados, na América não se esperava que os indígenas e negros se comportassem como iguais; era melhor que permanecessem à margem, ou mesmo, no caso dos povos originários (chamados indígenas pelo invasor europeu), que não existissem: milhões foram mortos.

Neste sentido, as revoluções da Bolívia e do Equador, seus poderes constituintes democráticos, fundam um novo Estado, capaz de superar a brutalidade dos estados nacionais nas Américas: o Estado plurinacional, democrático e popular.

Nunca na América tivemos tantos governos democráticos populares como neste surpreendente século XXI. O importante é que estes governos não são apenas democráticos representativos, mas, fortemente participativos, dialógicos.

Uma idéia nova neste processo chama a atenção: o Estado Plurinacional das Constituições do Equador e da Bolívia.


O ESTADO PLURINACIONAL

A América Latina vem sofrendo um importante e surpreendente processo de transformação social democrática. Da Argentina ao México, os movimentos sociais vêm se mobilizando e conquistando importantes vitórias eleitorais. Direitos historicamente negados aos povos originários da terra chamada "América" pelo invasor europeu agora são reconhecidos. Em meio a estes variados processos de transformação social, percebemos que cada país, diante de suas peculiaridades históricas, vem trilhando caminhos diferentes, mas nenhum abandonou o caminho institucional da democracia representativa, somando a esta uma forte democracia dialógica participativa.

Assim, em 2009, assistimos o Uruguai de Tabaré Vasquez buscar a reconstrução dos direitos sociais; a Argentina de Cristina Kirchner reformar as forças armadas introduzindo o ensino dos Direitos Humanos; o Paraguai de Lugo na busca de um resgate de uma divida centenária de humilhação e exclusão dos pobres e dos povos originários; o Chile de Michelle Bachelet tentando quebrar a resistência de uma classe média conservadora e machista; a Venezuela de Hugo Chavez caminhando para o socialismo; o povo de El Salvador elegendo um governo comprometido com os direitos democráticos e sociais; e especialmente a Bolívia e o Equador apoiando governos eleitos com o forte apoio popular que promulgaram novas Constituições, trazendo um conceito totalmente inovador para o mundo jurídico: o Estado plurinacional.

Vamos apenas introduzir este conceito como fruto de um processo democrático que se iniciou com revoluções pacíficas, onde os povos originários (chamados pelo invasor de indígenas), finalmente, após 500 anos de exclusão radical, reconquistam gradualmente sua liberdade e dignidade.

A idéia de Estado Plurinacional pode superar as bases uniformizadoras e intolerantes do Estado nacional, onde todos os grupos sociais devem se conformar aos valores determinados na constituição nacional em termos de direito de família, direito de propriedade e sistema econômico, entre outros aspectos importantes da vida social. Como vimos anteriormente, o Estado nacional nasce a partir da uniformização de valores com a intolerância religiosa.

A partir da constitucionalização e sua lenta democratização (em geral, ainda de bases liberais meramente representativas), não se poderia mais admitir a construção da identidade nacional com base em uma única religião que uniformizasse o comportamento no plano econômico (direito de propriedade) e no plano familiar. Tornou-se necessário construir uma outra justificativa e um outro fator agregador que permitisse que os diversos grupos sociais presentes no Estado moderno pudessem se reconhecer e a partir daí reconhecer o poder do Estado como legítimo.

A Constituição irá cumprir essa função. Inicialmente não democrático, o constitucionalismo irá uniformizar (junto com o direito civil) as bases valorativas dessa sociedade nacional, criando um único direito de família e um único regime de propriedade que sustentaria o sistema econômico. Isso ocorreu em qualquer dos tipos constitucionais: liberal, social ou socialista.

A uniformização de valores e comportamentos, especialmente na família e na forma de propriedade, exclui radicalmente grupos sociais (étnicos e culturais) distintos que ou se enquadram ou são jogados, aos milhões, para fora desta sociedade constitucionalizada (uniformizada). O destino destes povos é a alienação, o aculturamento e perda de raízes, ou então a miséria, os presídios ou ainda os manicômios.

A lógica do Estado nacional, agora constitucionalizado e mesmo "democratizado", sustenta esta uniformização. A ideologia que justifica tudo isto é a existência de um suposto "pacto social" ou "contrato social", ou qualquer outra idéia que procura identificar nas bases destas sociedades americanas um suposto acordo uniformizador, como se as populações originárias tivessem aberto mão de sua história e cultura para assumir o direito de família e o direito de propriedade do invasor europeu, que continuou no poder com seus descendentes brancos a partir dos processos de independência no século XIX. A grande revolução do Estado Plurinacional é o fato que este Estado constitucional, democrático participativo e dialógico pode finalmente romper com as bases teóricas e sociais do Estado nacional constitucional e democrático representativo (pouco democrático e nada representativo dos grupos não uniformizados), uniformizador de valores e logo radicalmente excludente. O Estado plurinacional reconhece a democracia participativa como base da democracia representativa e garante a existência de formas de constituição da família e da economia segundo os valores tradicionais dos diversos grupos sociais (étnicos e culturais) existentes.

Nas palavras de Ileana Almeida [03] sobre o processo de construção do Estado Plurinacional no Equador:

"Sin embargo, no se toma en cuenta que los gruos étnicos no luchan simplemente por parcelas de tierras cultivables, sino por un derecho histórico. Por lo mismo se defienden las tierras comunales y se trata de preservar las zonas de significado ecológico-cultural."

Certamente este Estado joga por terra o projeto uniformizador do Estado moderno, que sustenta a sociedade capitalista como sistema único fundado na falsa naturalização da família e da propriedade e mais tarde da economia liberal. Nas palavras de Ileana Almeida:

"Al funcionar el Estado como representación de uma nacion única cumple también su papel en el plano ideológico. La privación de derechos políticos a las nacionalidades no hispanizadas lleva al desconocimiento de la existência misma de otros pueblos y convierte al indígena em vitima del racismo. La ideología de la discriminación, aunque no es oficial, de hecho está generalizada em los diferentes estratos étnicos. Esto empuja a muchos indígenas a abandonar su identidad y pasar a forma filas de la nación ecuatoriana aunque, pó lo general, en su sectores más explotados." [04]

A Constituição da Bolívia, na mesma linha de criação de um Estado Plurinacional, dispõe sobre a questão indígena em cerca de 80 dos 411 artigos. Pelo texto, os 36 "povos originários" (aqueles que viviam na Bolívia antes da invasão dos europeus) passam a ter participação ampla efetiva em todos os níveis do poder estatal e na economia. Com a aprovação da nova Constituição, a Bolívia passou a ter uma cota para parlamentares oriundos dos povos indígenas, que também passarão a ter propriedade exclusiva sobre os recursos florestais e direitos sobre a terra e os recursos hídricos de suas comunidades. A Constituição estabelece a equivalência entre a justiça tradicional indígena e a justiça ordinária do país. Cada comunidade indígena poderá ter seu próprio "tribunal", com juízes eleitos entre os moradores. As decisões desses tribunais não poderão ser revisadas pela Justiça comum. Outro aspecto importante é o fato da descentralização das normas eleitorais. Assim, os representantes dos povos indígenas poderão ser eleitos a partir das normas eleitorais de suas comunidades. A Constituição ainda prevê a criação de um Tribunal Constitucional plurinacional, com membros eleitos pelo sistema ordinário e pelo sistema indígena. A nova Constituição democrática transforma a organização territorial do país. O novo texto prevê a divisão em quatro níveis de autonomia: o departamental (equivalente aos Estados brasileiros), o regional, o municipal e o indígena. Pelo projeto, cada uma dessas regiões autônomas poderá promover eleições diretas de seus governantes e administrar seus recursos econômicos. O projeto constitucional avança ainda na construção do Estado Plurinacional, ao acabar com a vinculação do estado com a religião (a religião católica ainda era oficial) transformando a Bolívia em um Estado laico (o que o Brasil é desde 1891).

Outro aspecto importante é o reconhecimento de várias formas de constituição da família.

Além de importante instrumento de transformação social, garantia de direitos democráticos, sociais, econômicos plurais, e pessoais diversos, a Constituição da Bolívia é um modelo de construção de uma nova ordem política, econômica e social internacional. É o caminho para se pensar em um Estado democrático e social de direito internacional.

Citando novamente Ileana Almeida:

"En contra de los que podría pensarse, el reconocimiento de la especificidad étinica no fracciona la unidad de las fuerzas democráticas que se alinean en contra del imperialismo. Todo lo contrario, mientras más se robustezca la conciencia nacional de los diferentes grupos, más firme será la resitencia al imperialismo bajo cualquiera de sus formas (genocídio, imposición política,, religiosa o cultural) y, sobre todo, la explotación econômica". [05]

A América Latina (melhor agora a América Plural), que nasce renovada nestas democracias dialógicas populares, se redescobre também "negra" e "indígena", democrática, economicamente igualitária e socialmente e culturalmente diversa, plural. Em meio à crise econômica e ambiental global, que anuncia o fim de uma época de violências, fundada no egoísmo e na competição, a nossa América anuncia finalmente algo de novo, democrático e tolerante, capaz de romper com a intolerância unificadora e violenta de quinhentos anos de Estado nacional.


O DIREITO DOS POVOS QUILOMBOLAS - A ADI 3.239

Passemos, pois, já de posse da discussão teórica anteriormente realizada, a enfrentar uma questão de nossa realidade social, cultural e jurídica. Comecemos pela análise da ADI 3.239.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade cumulada com pedido de concessão de medida cautelar inaudita altera pars – ADI 3.239 – foi proposta pelo Partido da Frente Liberal, PFL, partido político brasileiro, em 24 de junho de 2003. Conforme se verifica na petição inicial, a citada ADI busca a manifestação do Supremo Tribunal Federal quanto à inconstitucionalidade do Decreto n° 4.887/2003.

Após indicar o ato normativo que busca impugnar e sua legitimidade, o autor apresenta quatro teses como embasamento de seu pedido. São elas: o "uso indevido da via regulamentar", a "desapropriação inconstitucional", a "configuração inconstitucional dos titulares do direito à propriedade definitiva" e, por fim a "configuração inconstitucional das terras em que se localizavam quilombos".

Inicialmente, o primeiro argumento apresentado pelo autor trata do uso indevido da via regulamentar. Neste, o Presidente da República ao editar o Decreto 4.887/2003 estaria invadindo esfera reservada à lei, uma vez que o citado decreto estaria regulando direitos e deveres entre particulares e a administração pública. Ademais, estaria onerando o erário público ao definir a indenização aos proprietários de terras onde se localizam os quilombos.

A leitura do art. 84 da Constituição da República Federativa do Brasil, artigo esse que delimita a competência privativa do Presidente da República, deve ser cuidadosa em seus incisos IV e VI:

Art. 84 – Compete privativamente ao Presidente da República:

[...]

IV – sancionar, publicar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;

[...]

VI – dispor, mediante decreto, sobre:

a)organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar em aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;

b)extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;

A análise desses dois incisos desconstrói o argumento apresentado pelo autor. Segundo o inciso IV, os decretos cabem para desdobrar as leis, explicitar a lei diante de condições fáticas específica para a fiel execução das leis. Nesse sentido, percebe-se a formação de duas unidades normativas: originariamente, existiriam as leis e, posteriormente, os decretos, como meio para a fiel execução das leis. Como bem apresenta o autor, o decreto seria "instrumento normativo secundário, que tem sua validade dependente de lei formal". Deve-se ressaltar que o próprio autor apresenta os instrumentos originários em sentido lato, ou seja, lei formal. Não trata, nesse sentido, de lei específica; cabendo desta feita disposições constitucionais ou qualquer outro instrumento normativo originário.

Ora, se cabe aos decretos a necessária regulamentação para execução de leis, esquece o autor da existência da Convenção n° 169 da OIT. Conforme dissemos anteriormente, tal Convenção, cujo conteúdo é de proteção aos de direitos humanos, foi assinada pelo Presidente da República e ratificada pelo Congresso Nacional. Dessa forma, a Convenção, conforme o art. 5°, §3 da Constituição da República, adquire força de emenda constitucional.

Conforme apresenta Flávia Piovesan, a natureza jurídica interna das normas internacionais protetivas de direitos humanos podem ser agrupadas em quatro teorias: normas internacionais supra-legais, constitucionais, infraconstitucionais superiores a lei ordinária e lei ordinária. Segundo a autora:

[...] além da concepção que confere aos tratados de direitos humanos natureza constitucional (concepção defendida por este trabalho) e da concepção, que, ao revés, confere aos tratados status paritário ao da lei federal (posição majoritária do STF), destacam-se outras duas correntes doutrinárias. Uma delas sustenta que os tratados de direitos humanos têm hierarquia supraconstitucional, enquanto a outra corrente defende a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal, dos tratados de direitos humanos.

A discussão ganha novos contornos com a inserção do parágrafo §3° no artigo 5° da Constituição da República Federativa do Brasil. Segundo esse artigo, acrescentado pela Emenda Constitucional n° 45/2004

Art. 5° - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

§3° - Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Em 3 de dezembro de 2008, o Ministro Celso Mello modificou sua compreensão anterior, passando a considerar as normas dos tratados internacionais de direitos humanos como normas de nível constitucional (RE 466.343-SP, sobre a impossibilidade de aplicação da prisão civil pela aplicação do Pacto de San José). Entretanto, a posição do Ministro foi vencida. A maioria dos Ministros acompanhou o voto-vista do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, que considerou as normas dos tratados de direitos humanos como sendo normas de nível supralegal, ou seja, abaixo da Constituição, mas acima de toda legislação infraconstitucional.

Entretanto, para a discussão do caso agora estudado (ADI 3.239), não importa se a Convenção n° 169 da OIT, instrumento internacional normativo de proteção dos direitos humanos, possui natureza jurídica de norma constitucional ou supralegal. A partir do reconhecimento desta norma de direitos humanos, não há de se falar de invasão da esfera privativa a lei pela edição do Decreto 4.887/2003. Esse veio a regulamentar a existência de lei formal originária – no caso em voga, norma constitucional (segundo a doutrina majoritária de direito internacional) ou norma supralegal (segundo posicionamento majoritário do STF). Seguindo a construção do próprio autor, percebe-se a existência de uma originária unidade normativa, a lei – aqui, no caso, a Convenção n° 169 da OIT como norma brasileira – e de uma unidade normativa secundária – o Decreto n° 4.887/2003 que veio regulamentar a lei originária.

Como segundo argumento, o autor traz uma pretensa "desapropriação inconstitucional". Propõe o autor que:

"não há que se falar em propriedade alheia a ser desapropriada para ser transferida aos remanescentes de quilombos, muito menos em promover despesas públicas para fazer frente às futuras indenizações. As terras são, desde logo, por força da Lei Maior, dos remanescentes das comunidades quilombolas que lá fixam residência desde 5 de outubro de 1988."

Ainda,

"sendo a propriedade, desde a promulgação da Constituição, dos remanescentes, incorre em vício de inconstitucionalidade qualquer norma que determine a expropriação das áreas, bem como o uso de recursos públicos, para a transferência posterior aos titulares do direito originário de propriedade definitiva. Ademais a pretensa desapropriação a que se refere o dispositivo regulamentar não se enquadra em nenhuma das modalidades a que se refere o art. 5°, XXIV, do texto constitucional, bem como não se enquadra em nenhuma das leis que a regem.

O pensamento pela desapropriação inconstitucional remete a dois principais pontos, conforme transcrito. Em um primeiro momento, defende o autor que não seria possível desapropriar terras, promovendo despesas públicas, pois estas já seriam propriedade das comunidades quilombolas. Em outro ponto, argumenta que seria impossível a desapropriação, visto inexistir no caso em voga situações de necessidade ou utilidade pública, ou interesse social, conforme disposto pelo art. 5° XXIV da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Ora, resta infundado o segundo ponto argumentativo. Sabe-se que as hipóteses de necessidade ou utilidade pública e interesse social são oferecidos pela legislação federal na Lei 4.132/62 e no Decreto-Lei 3.365/41. Nesse sentido, observa-se a Lei 4.132, de 10 de setembro de 1962. Em seu segundo artigo, a referida lei estabelece os casos de interesse social, cujos incisos I e III prevêem:

I - o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve ou possa suprir por seu destino econômico;

[...]

III - o estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola.

Percebe-se, nesses dois incisos, pleno cabimento da desapropriação motivada por interesse social. Considerando a existência de uma propriedade notoriamente pertencente aos territórios quilombolas, hoje, sob a posse de particulares, configura-se a hipótese de um bem explorado sem a correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população que possa suprir por seu destino econômico. Plenamente cabível é a desapropriação por interesse social embasada no estabelecimento de colônia de povoamento e trabalho agrícola. [06]

Retornando ao primeiro ponto, manifesta-se o autor da ADIN pela impossibilidade de promover despesas públicas, desapropriando terras que já seriam de propriedade das comunidades quilombolas. Por esse pensamento, entende o autor que as terras ocupadas pelas comunidades de remanescentes de quilombos no momento da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil já seriam propriedade das comunidades, cabendo apenas ao estado emitir os respectivos títulos.

Trata-se de uma tese de difícil sustentação. Ora, todas as terras imprescindíveis para a manutenção física, social e cultural das comunidades de remanescentes de quilombos que, porventura, às vésperas da promulgação da Constituição fossem invadidas por agentes externos às comunidades, seriam retiradas de seu domínio? A análise da Convenção n° 169 da OIT ratificada pelo estado brasileiro demonstra a clara divergência entre a busca do legislador e o argumento do autor. É claro o artigo 14, item 1, da referida Convenção:

"Artigo 14

1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes."

É incabível o argumento que apenas as terras que estivessem ocupadas em 5 de outubro de 1988 sejam de propriedade das comunidades de remanescentes de quilombos. A Convenção n° 169, conforme apresentado, amplia o conceito de terras e define claramente que os territórios devem ser compreendidos com "a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma forma". Nesse sentido, exclui-se do critério de interpretação da extensão territorial das comunidades de remanescentes de quilombos a data de promulgação da Lei Maior. Faz-se necessário considerar o caráter sistêmico do ordenamento pátrio, onde deve-se analisar a proteção dos bens culturais imateriais formadores da identidade brasileira e as diversas normativas de proteção dos direitos humanos.

Como terceiro argumento, apresenta o autor uma configuração inconstitucional dos titulares do direito à propriedade definitiva. Merece transcrição a linha de raciocínio utilizada:

" O Decreto n.° 4887/2003 elege como critério essencial para a identificação dos remanescentes titulares do direito a que se refere o art. 68 do ADCT a auto-atribuição. Em outras palavras, o texto regulamentar resume a rara característica de remanescente das comunidades quilombolas numa mera manifestação de vontade do interessado. É o que disciplina o seu art. 2°. [...]. A Toda Evidência, submeter a qualificação constitucional a uma declaração do próprio interessado nas terras importa radical subversão da lógica constitucional. Segunda a letra da Constituição, seria necessário e indispensável comprovar a remanescência – e não a descendência – das comunidades dos quilombos para que fossem emitidos os títulos. [...]. Ainda que se admitisse a extensão do direito aos descendentes – e não aos remanescentes -, não seria razoável determiná-los mediante critérios de auto-sugestão, sob pena de reconhecer o direito a mais pessoas do que aqueles efetivamente beneficiados pelo art. 68 da ADCT e realizar, por vias oblíquas uma reforma agrária sui generis. Ademais, somente fazem jus ao direito, os remanescentes que estivessem na posse das terras em que se localizavam os quilombos no período da promulgação da Constituição. De outra parte, somente tem direito ao reconhecimento – critério que não encontra respaldo no Decreto – o remanescente que tinha e demonstrava (sic), á época da promulgação do texto constitucional, real intenção de dono. Tal aspecto ressalta da expressão constitucional "suas terras" constante do art. 68 do ADCT. Esta a lúcida manifestação de Cláudio Teixeira da Silva, [...]. Não restam dúvidas, portanto, que resumir a identificação dos remanescentes a critérios de auto-determinação frustra o real objetivo da norma constitucional, instituindo a provável hipótese de se atribuir a titularidade dessas terras a pessoas que efetivamente não tem relação com os habitantes das comunidades formadas por escravos fugidos, ao tempo da escravidão no país."

Anteriormente a qualquer consideração a ser feita sobre a argumentação criada pelo autor, deve-se ressaltar grave erro histórico. As comunidades formadas, chamadas de quilombos, não compreendiam apenas escravos fugidos. Faziam parte das comunidades escravos que buscavam afastar-se dos desmandos dos senhores de engenho. Porém, as comunidades quilombolas buscavam, acima de qualquer outro ponto, manter as características culturais, econômicas, sociais e religiosas que, à época, eram proibidas pelo governo português.

Feita essa consideração, passamos a analisar a argumentação utilizada pelo autor. Percebe-se total falta de conhecimento deste ao tratar das comunidades tradicionais. Sob uma perspectiva positivista, poderíamos considerar a clara disposição da Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho. O primeiro artigo da citada Convenção, ao tratar da aplicabilidade, define que a "consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção". A ratificação realizada pelo estado brasileiro já desconstruiria o argumento utilizado pelo autor.

Porém, afastando-nos da simplória defesa positivista, merece o tema uma análise sócio-jurídica. O artigo 216 da Constituição da República constitui como "patrimônio cultural brasileiro os bens de cultura material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira". Dentro desse gênero, incluem-se, nos dois primeiros incisos, as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver. Compreende tal artigo da Constituição uma clara proteção aos diversos grupos étnicos que auxiliaram na construção da identidade brasileira hoje existente. Ora, sabido que todos somos iguais, respeitadas as diferenças, inexiste melhor forma de compreender o sentimento de pertença a um grupo de a auto-atribuição. Ademais, de forma simplista e equívoca, o autor exclui (ou ignora), na construção de seus argumentos, as outras áreas do saber. Na seara da antropologia, ciência de vital importância para a compreensão do homem, é inequívoca a afirmação que a auto-atribuição é traço imprescindível para identificar a pertença a um grupo.

Como último argumento, o autor trata da configuração inconstitucional das terras em que se localizavam os quilombos. Ataca, nesse sentido, os §§ 2° e 3° do artigo 2° do decreto n° 4.887/2003, acreditando haver uma "excessiva amplitude e sujeição aos indicativos fornecidos pelos respectivos interessados". Merece a transcrição do argumento utilizado pelo autor:

"Descabe, primeiramente, qualificar as terras a serem titularizadas pelo Poder Público como aquelas em que os remanescentes tiveram sua reprodução física, social, econômica e cultural. As atividades econômicas, bem assim a reprodução física da comunidade não ocorreram necessariamente nas áreas onde efetivamente se localizaram os quilombos. Atividades econômicas como a caça e a pesca eram comuns entre os quilombolas, o que demonstra que o desenvolvimento da comunidade também se deu fora dos limites do próprio quilombo."

Acerta o autor ao afirmar que as áreas de reprodução física da comunidade não ocorreram necessariamente onde localizaram os quilombos. Porém, esquece-se de considerar o respeito à diversidade, condão norteador da normativa internacional de proteção dos direitos humanos. Fora vencida a concepção que comunidades tradicionais, como ameríndios, quilombolas, ribeirinhos, caiçaras e outros tantos, precisam se integrar da "sociedade pasteurizada" hoje vivenciada. Tais grupos não precisam se integrar, haja visto que é no mínimo uma pretensão egoística acreditar que as práticas e concepções culturais dessa sociedade uniformizada e europeizadas são em alguma medida mais corretas que as práticas das comunidades tradicionais.

A pretensão do estado brasileiro, com o Decreto 4.887/2003, reside em propiciar a necessária proteção das comunidades quilombolas. Tal proteção só é possível garantindo o espaço necessário para a reprodução física da comunidade. Não há como se falar nessa proteção mantendo os grupos em espaços restritos, onde suas atividades básicas de alimentação, práticas religiosas, culturais não podem ser realizadas já que não estão em seu espaço físico.

É estranha a postura do autor, na medida em que defende essa dicotomia entre terras ocupadas e necessárias para a reprodução física. Como seria possível a manutenção de uma comunidade se não serão respeitadas suas características mais básicas, como religião, alimentação própria, práticas culturais?


A CONVENÇÃO N° 169 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO

A Organização Internacional do Trabalho sempre manifestou em sua existência especial preocupação com a situação das comunidades tradicionais. A Convenção n° 107, sobre as Populações Indígenas e Tribais, de 1957, possuía como cerne a necessidade de proteção e integração das populações indígenas, tribais e semi-tribais em países independentes.

Ocorre que, apesar da importância dessa Convenção, as revoluções sociais da década de 60 e 70 do século passado demonstraram seus traços obsoletos à época. O próprio Comitê de Peritos da Organização Internacional do Trabalho reconheceu, em 1986, a necessidade de sua alteração.

Nesse sentido, na 76ª Conferência Internacional do Trabalho, em 1989, adotou-se a Convenção n° 169, sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, único instrumento internacional que trata de forma específica das comunidades tradicionais.

Essa Convenção reconhece a existência de povos tribais cujas condições econômicas, culturais, sociais as diferenciem de outros segmentos da população nacional. Também são considerados povos indígenas que descendem dos habitantes de um espaço geográfico colonizado à época de conquista e colonização, que conservam suas instituições sociais, econômicas e culturais.

Dois importantes traços emergem desse instrumento internacional. Em um primeiro momento, vemos a presença do critério da auto-identificação. A Convenção adota como critério primordial para o reconhecimento da existência de um povo sua auto-identificação como singular perante outros segmentos populacionais. Deve-se ressaltar a importância da adoção desse critério, preceituado como vital para a Antropologia. Ademais, deve-se ressaltar a importância das consultas e participação livres adotada na Convenção n° 169. Esse traço marca a derrota do paternalismo existente na Convenção n° 107, corretamente criticado. Em um novo paradigma, não cabe ao segmento populacional dominante definir os temas de maior relevância para as comunidades indígenas e tribais. Essas, tratadas de forma equânime e tendo suas diferenças reconhecidas, possuem total capacidade e legitimidade para apresentarem quais são suas prioridades e interesses. Sob a faticidade, qualquer medida estatal que venha a influenciar as comunidades indígenas e tribais deve ser precedida de consultas amplas, livres e prévias, por meio das quais tais povos tenham participação na construção das citadas medidas.

De forma específica, trata o instrumento internacional aqui discutido da política geral; terras; contratação e condições de emprego; indústrias rurais; seguridade social e saúde; educação e meios de comunicação; contatos e cooperação através das fronteiras e administração. Apesar da importância de cada temática, trataremos da proteção territorial apresentada pelo instrumento internacional.

Em seus primeiros artigos relativos ao tema, a Convenção já demonstra as peculiaridades na relação terra e comunidades tradicionais. Apresenta que os governos deverão atentar para a especial importância que a terra possui para as comunidades. Ademais, insere-se no termo "terra" não só aquelas regiões habitadas pelos povos indígenas e tribais, mas a totalidade do habitat utilizada e necessária para a manutenção física, social, cultural e econômica da comunidade.

Avançando, garante a Convenção o direito a propriedade e posse das terras dos povos tratados pela Convenção. De forma resumida, entende-se que a principal preocupação da Convenção é considerar a relação peculiar mantida entre as comunidades tradicionais e suas terras.

Nesse aspecto, merece especial atenção a desconstrução do imaginário de propriedade privada amplamente difundido pelo Ocidente. Não há, em grande parte das comunidades, a concepção de um bem natural de propriedade de uma só pessoa. Para essas, inexiste propriedade única daqueles bens que beneficiam toda uma coletividade.


O DECRETO 4.887/2003

O Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, busca regulamentar o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes de comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Com sua edição, revogou-se o Decreto 3.912/2001, que tratava da mesma matéria. Esse somente reconhecia a propriedade daquelas comunidades que eram ocupadas por quilombos em 1888 e restavam também ocupadas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição da República vigente no Brasil. A competência do processo administrativo de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras era da Fundação Cultural Palmares. Caberia a essa Fundação elaborar relatório técnico contendo a identificação de aspectos étnicos, histórico, cultural e sócio-econômico do grupo; estudos complementares de natureza cartográfica e ambiental; levantamento dos títulos e registros incidentes sobre as terras ocupadas e a respectiva cadeia dominial, perante o cartório de registro de imóveis competente; delimitação das terras consideradas suscetíveis de reconhecimento e demarcação e parecer jurídico. Elaborado, esse relatório técnico seria encaminhado para o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, Secretaria do Patrimônio da União, Fundação Nacional do Índio e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária para manifestações em prazo máximo de 30 dias. Após essas, a Fundação Cultural Palmares elaboraria parecer conclusivo no prazo de 90 dias, publicado por três dias consecutivos no Diário Oficial da União e da unidade da federação onde se localiza a área a ser demarcada.

Desse momento, conta-se o prazo de 30 dias para impugnações de terceiros interessados. Então, o presidente da Federação Cultural Palmares decidirá a questão, cabendo recurso, no prazo máximo de 15 dias ao Ministro de Estado de Cultura. Inexistindo impugnações por terceiros interessados, o Presidente da Fundação Cultural Palmares encaminhará o parecer conclusivo e os autos do processo administrativo ao Ministro de Estado de Cultura. Esse, em até 30 dias após recebimento dos autos, decidirá pela declaração, mediante portaria dos limites da terra; pela solicitação de diligências que se fizerem necessária, ou pela desaprovação da identificação, retornando os autos a Fundação Cultural Palmares, juntamente com decisão fundamentada que explicite o não atendimento do caso ao art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Desta feita, em até 30 dias de publicado o decreto de homologação, a Fundação Cultural Palmares conferiria a titulação de terras à comunidade e promoveria o respectivo registro no cartório de imóveis correspondente.

Diversas são as modificações observadas no decreto 4.887/2003. O primeiro ponto a ser apresentado é a modificação quanto à identificação das comunidades de remanescentes de quilombos. Com o novo Decreto, comunidades de remanescentes de quilombos serão aqueles grupos "étnicos-raciais", segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas e com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Compete ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades de quilombos. Poderá o INCRA iniciar de ofício o procedimento ou mediante manifestação de qualquer interessado.

Conforme apresentado anteriormente, a auto-definição é considerada pilar para a identificação inicial da comunidade. Os trabalhos a serem desenvolvidos pelo INCRA se iniciarão mediante essa auto-definição, que será formalizada de inscrição da comunidade no Cadastro Geral junto a Fundação Cultural Palmares, responsável por emitir certidão sobre o tema. Findos os trabalhos de campo, que tratam da identificação, delimitação, levantamento territorial e cartorial da área o INCRA publicará no Diário Oficial da União e da unidade da federação em que se localiza a área de estudo, por duas vezes consecutivas, edital contendo a denominação do imóvel ocupado pelos remanescentes das comunidades dos quilombos; circunscrição judiciária ou administrativa onde se situa o imóvel; limites, confrontações e dimensões do memorial descritivo das terras a serem tituladas e; títulos, registro e matrículas eventualmente incidentes sobre as terras suscetíveis de reconhecimento e demarcação.

Após esses trabalhos, o INCRA enviará o relatório técnico ao Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional, Instituto Brasileiro do meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis; Secretaria do Patrimônio da União, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; Fundação Nacional do Índio; Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional e Fundação Cultural Palmares, no prazo comum de 30 dias. Esses terão o prazo de 90 dias para oferecer contestações ao relatório, juntando provas que se fizerem pertinentes. Inexistindo contestações considerará como tácita a concordância do conteúdo do relatório técnico. Ainda, se essas forem rejeitadas o INCRA concluirá o trabalho de titulação da terra ocupada pelos remanescentes das comunidades de quilombos.

No caso de as áreas ocupadas incidirem sob propriedades particulares, cujo título não seja invalidado por nulidade prescrição ou comisso, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, adotando atos necessários a sua desapropriação.

A titulação de que trata o Decreto será reconhecida mediante outorga de título coletivo e pro indiviso às comunidades, sendo obrigatória a inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade. Trata-se de um mecanismo de afirmação e defesa utilizado pelo estado brasileiro. A afirmação decorre no reconhecimento da peculiaridade da noção de propriedade existente para as comunidades. Essas, diferentemente do imaginário ocidental comum, não reconhecem a terra como um bem individual. Ainda, o estado brasileiro, quando obrigou a inserção de cláusulas de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade, garantiu minimamente que as terras tituladas e registradas não fosse utilizadas para outro fim, senão aqueles necessários ao desenvolvimento social, cultural, físico e econômico da comunidade.

Ainda há três pontos que merecem destaque quanto ao Decreto. Inicialmente, a caracterização das comunidades residirá na auto-definição. Não só: consideram-se as terras ocupadas como aquelas utilizadas para a sua reprodução física, social, econômica e cultural. Por fim, todo o instrumento ressalta a importância e necessidade de promover a participação do principal interessado, ou seja, a própria comunidade durante o procedimento.

Percebe-se, dessa forma, que o Decreto coaduna-se de forma clara e inequívoca com a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho. Essa ressalta a necessidade de participação das comunidades em qualquer procedimento que venha afetá-las, indica o caráter abrangente de territórios e reafirma a importância da auto-definição como critério básico para a delimitação de uma comunidade tribal ou indígena.


CONCLUSÃO

Buscou-se no presente artigo analisar o Decreto n° 4.887/2003 face à Convenção n.° 169 da Organização Internacional do Trabalho. Considerando tal Convenção como núcleo aglutinador da normativa internacional de proteção dos direitos humanos relativo às comunidades tradicionais, analisou-se se o Decreto do estado brasileiro é compatível com tais normas internacionais. Dessa forma, verificaram-se os argumentos contrários ao citado Decreto alinhados na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3.239, proposta pelo Partido da Frente Liberal.

Conclui-se que o Decreto ora utilizado pelo estado brasileiro está de acordo com a normativa internacional de proteção dos direitos humanos. Não só, tal legislação é claramente alinhada com a concepção atual e necessária de proteção das comunidades quilombolas.

O julgamento da questão pelo Supremo Tribunal Federal é de vital importância para toda a sociedade brasileira. Não encontramos nenhum embasamento jurídico nos argumentos utilizados pelo autor para a declaração de inconstitucionalidade do Decreto n° 4.887/2003. Vencido está o argumento da necessidade do estado brasileiro ter que pagar uma dívida histórica com o povo negro. Nunca haverá pagamento, nunca será possível mensurar todo o sofrimento humano ao reduzir um homem à condição de objeto. Ações que visem amenizar isso são claramente paliativas e paternalistas. A cidadania efetiva embasa o estado democrático e social de direito, plural, diverso, plurinacional. Cabe a qualquer estado, nesse paradigma, possibilitar que seus cidadãos tenham reais condições de participar da esfera pública e, além dessa participação, coordenar suas ações sob o balizamento da participação popular. Imprescindível para esse fim é o reconhecimento à diferença. Mesmo que, aparentemente, consciente ou não, 90% da população brasileira comungue da noção de uma propriedade individualizada, as concepções de propriedade e de família diferentes devem ser respeitadas.

As recentes crises mundiais demonstram a necessidade uma mudança de paradigmas. Resta criar um novo modelo social, embasado no reconhecimento do outro. Não cabem ações que visem inserir forçosamente o outro, descaracterizando-o, não podem mais ser aceitas. As peculiaridades, as diferenças devem ser respeitadas. Conforme aduzido por Boaventura de Souza Santos, todos têm "o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza"; não pode o estado afastar-se dessa responsabilidade.

Para a compreensão da grande contribuição da lógica do "Estado Plurinacional" para a construção de um novo paradigma democrático de Estado que supere os 500 anos de estado nacional uniformizador, precisamos pontuar algumas questões:

a)Vimos que o estado moderno surge a partir da afirmação de uma esfera territorial intermediária de poder: o poder dos reis entre o poder dos impérios (multi-étnico e descentralizado) e o poder dos senhores feudais (local e fragmentado);

b)Para que o poder deste novo estado fosse reconhecido, foi necessário construir uma nacionalidade por sobre as nacionalidades pré-existentes. Assim foi inventado, por exemplo, o espanhol como uma identidade por sobre as identidades anteriores de castelhanos, galegos, bascos, catalães e outros, processo que se repetiu em escalas diferentes na França, em Portugal, no Reino Unido e em vários outros estados nacionais que se formaram nos últimos quinhentos anos;

c)Este estado nacional uniformiza valores por meio, inicialmente, da religião. A partir daí é gradualmente construído todo um aparato burocrático que permitirá o desenvolvimento do capitalismo: o povo nacional, a moeda nacional, os bancos nacionais, os exércitos nacionais (fundamental para a expansão européia a busca de recursos para o desenvolvimento de sua economia) e a polícia (fundamental para o controle e repressão dos pobres excluídos do sistema econômico desigual);

d)Desde então, este modelo uniformizador vem se reproduzindo, até mesmo nas novas formas descentralizadas de estado como os estados federais, os estados regionais e o estado autonômico espanhol. Nestes estados, mesmo reconhecendo a diversidade cultural e lingüística, a base uniformizadora do direito de propriedade (que sustenta um sistema econômico único) e o direito de família (que sustenta os valores deste sistema econômico) permanecem mais ou menos intactas, mas sólidas;

e)A uniformização econômica fundada na uniformização do direito de família e do direito de propriedade permanece também em novas formas jurídicas como, por exemplo, o direito comunitário europeu;

f)Nas Américas, os estados nacionais tiveram um processo de formação diferenciado:. Enquanto na Europa os mais diferentes foram excluídos fisicamente (muçulmanos e judeus) e os menos diferentes foram uniformizados (os grupos étnicos internos), na América os estados que se tornaram independentes nos séculos XVIII e XIX foram construídos pelos descendentes dos europeus para os homens brancos descendentes dos europeus. Os povos originários, chamados de índios pelos invasores europeus, foram radicalmente excluídos da ordem jurídica constitucional nascente, assim como os imigrantes forçados da África que tiveram suas vidas escravizadas;

g)Assim surgiram nas Américas estados nacionais para 20% (este é um número simbólico, uma vez que encontramos estados em que até hoje a exclusão supera este número). Nos Estados Unidos, a população carcerária já atinge 2.750.000 pessoas (dois milhões setecentos e cinqüenta mil pessoas), além de mais 5.000.000 (cinco milhões) envolvidos de alguma forma com o sistema penal, sendo que, destes, 80% são negros e hispânicos. Só de homens negros são 800 mil presos, mais 75 mil mulheres negras presas. [07] Este fenômeno se repete em toda a América. No Brasil quase que exclusivamente os pobres são presos. A maioria dos povos originários na Bolívia e Equador (como exemplo uma vez que em escalas diferentes isto se reproduz em toda a América) foram radicalmente excluídos e só agora com governos democráticos finalmente eleitos (Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador) a situação começa a mudar;

h)A onda democrática na América Latina trouxe uma importante novidade: a previsão de um estado plurinacional, onde cada grupo étnico poderá manter o seu próprio direito de família e o seu próprio direito de propriedade, mantendo ainda tribunais para resolver as questões nestas esferas;

i)Esta novidade pode finalmente representar uma ruptura com 500 anos de hegemonia do paradigma do estado nacional que representa a hegemonia européia;

j)Este novo constitucionalismo plurinacional pode fundamentar uma nova ordem internacional democrática e logo igualitária. Isto exige a coragem de se romper com o universalismo europeu [08] que gerou os direitos humanos "universais" europeus e uma ordem desigual cultural, econômica e social favorável aos estados do norte (Europa ocidental, EUA e Canadá) reproduzidos nos textos preconceituosos de suposta superioridade européia presentes no Tratado de Versalhes e com fortes resquícios na Carta das Nações Unidas (como, por exemplo, no sistema de tutela).

k)No Brasil, o reconhecimento constitucional dos direitos do povos quilombolas e dos povos indígenas é um passo importante para a construção em nosso pais de espaços de democracia étinica, cultural, social e econômica efetiva. Este é um movimento que envolve todos: cidadãos; movimentos sociais; órgão estatais e o pode judiciário, que pode de forma corajosa fazer avançar o nosso texto constitucional em direção a democracia tolerante, diversa e plurinacional.

Um novo estado constitucional democrático plurinacional é possível, assim como uma nova ordem mundial e a construção de um direito internacional (talvez mundial) democrático deve partir da superação das pretensões hegemônicas; das falsas declarações ou suposições disfarçadas de superioridade cultural. Uma nova ordem constitucional pode fundamentar a construção de uma nova ordem mundial democrática o que exige a construção de espaços permanentes de diálogo em condições reais de igualdade de manifestação, de igualdade de fala e de igualdade de voto nas deliberações. Este novo constitucionalismo latino-americano deve fundamentar uma nova ordem mundial democrática o que exige o reconhecimento dos novos atores das relações mundiais; de novos sujeitos de um direito internacional que, talvez, a partir daí, seja finalmente democrático e deixe de ser meramente internacional, mas efetivamente mundial: um constitucionalismo mundial.

No Brasil, para a solução justa do caso citado, não é necessária uma ruptura paradigmática, basta a interpretação sistêmica do nosso texto constitucional, que, para além de uma democracia meramente representativa e uniformizadora, prevê uma democracia social, étnica, econômica e política, dialógica, participativa e emancipadora. A leitura sistêmica do texto nos mostra de forma inequívoca a pretensão constitucional de construção de uma democracia radical, uma vez que busca o respeito à diversidade, a pluralidade das formas de viver e buscar a felicidade e a paz.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Editora Abya Yala, Quito, Ecuador, 2008.

CREVELD, Martin van Creveld. Ascensão e declínio do Estado, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004.

CUEVA, Mario de la. La idea del Estado, Fondo de Cultura Econômica, Universidad Autônoma de México, Quinta Edição, México, D.F., 1996.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional Tomo II, Editora Mandamentos, Belo Horizonte, 2002.

WALLERNSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu, Editora Boitempo, 2007, São Paulo.

WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto, Editora Boitempo, São Paulo, 2008.


Notas

  1. CREVELD, Martin van Creveld. Ascensão e declínio do Estado, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004 e CUEVA, Mario de la. La idea del Estado, Fondo de Cultura Econômica, Universidad Autônoma de México, Quinta Edição, México, D.F., 1996.
  2. Utilizamos neste texto as palavras identidade e identificações quase com sinônimos, ou seja, uma identidade se constrói a partir da identificação de um grupo com determinados valores. Importante lembrar que o sentido destas palavras é múltiplo em autores diferentes. Podemos adotar o sentido de identidade como um conjunto de características que uma pessoa tem e que permitem múltiplas identificações sendo dinâmicas e mutáveis. Já a idéia de identificação se refere ao conjunto de valores, características e práticas culturais com as quais um grupo social se identifica. Nesse sentido não poderíamos falar em uma identidade nacional ou uma identidade constitucional mas sim em identificações que permitem a coesão de um grupo. Identificação com um sistema de valores ou com um sistema de direitos e valores que o sustentam, por exemplo.
  3. ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Editora Abya Yala, Quito, Ecuador, 2008, pág.21.
  4. ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Ob. Cit., pág.19. 20
  5. ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Ob. Cit., pág.19. 20
  6. Deve-se atentar para a relação do art. 2°, III da Lei 4.132/62 e as particularidades das comunidades de remanescentes de quilombos. A interpretação pura de ‘colônias ou cooperativas’ remeteriam a impossibilidade de aplicação do texto legal ao caso concreto ora discutido. Ocorre que, os traços culturais, sociais, econômicos e religiosos das comunidades tradicionais apontam claramente para um afastamento de conceitos e institutos ocidentais. Como exemplo, vemos integrantes das comunidades não compreenderem o sentido de ‘propriedade individualizada’, da forma que hoje o Ocidente encara. Faz-se necessário, nesse sentido, uma interpretação amplamente extensiva e culturalmente responsável do 2°, III da Lei 4.132/62.
  7. WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto, Editora Boitempo, São Paulo, 2008.
  8. WALLERNSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu – a retórica do poder, Editora Boitempo, São Paulo, 2007.

Autores

  • José Luiz Quadros de Magalhães

    Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

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  • Reinaldo Silva Pimentel Santos

    Reinaldo Silva Pimentel Santos

    Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Diretor de Apoio a Conselhos Estaduais de Direito e Articulação com Movimentos Sociais da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social – SEDESE/MG.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de; SANTOS, Reinaldo Silva Pimentel. Comunidades tradicionais, plurinacionalidade e democracia étnica e cultural. Considerações acerca da proteção territorial das comunidades de remanescentes de quilombos brasileiras a partir da ADI nº 3.239. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2381, 7 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14141. Acesso em: 18 abr. 2024.