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Autonomia privada e liberdade contratual

Autonomia privada e liberdade contratual

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Este trabalho trata de ser uma reflexão crítica sobre o princípio de autonomia da vontade em matéria contratual, sua interpretação doutrinal, seu conteúdo e seus limites.

Sumario: Introdução.- 1. Autonomia da vontade e força obrigatória do contrato.- 2. O princípio constitucional da livre iniciativa econômica.- 3. Livre iniciativa e autonomia privada.- 4. Alcance do princípio de autonomia privada em matéria contratual.- 5. Limites da autonomia privada.- 6. A liberdade contratual no Direito brasileiro.- 7. Igualdade das partes e vinculo contratual.- 8. Contrato e solidariedade social.- 9. Decadência do principio da força obrigatória do contrato.- 10. Globalização econômica e autonomia privada; Conclusão; Referências

Resumo: Este trabalho trata de ser uma reflexão crítica sobre o princípio de autonomia da vontade em matéria contratual, sua interpretação doutrinal, seu conteúdo e seus limites. Igualmente aborda a análise das transformações sofridas na atualidade e intenta alguns dados para sua reconstrução à luz do novo Código Civil brasileiro e dos vigentes princípios constitucionais.

Palavras chave: contrato; autonomia da vontade; autonomia privada; liberdade contratual; livre iniciativa; função social do contrato


Introdução

Qualquer leigo em Direito sabe que goza de uma liberdade natural para celebrar pactos com outras pessoas e que, uma vez alcançado o acordo, nasce para cada uma das partes um compromisso de mútuo cumprimento, não só por respeito à palavra dada, mas também pela expectativa de que a outra parte cumprirá o trato e pela necessidade de gerar uma confiança no entorno para celebrar novos convênios. Por isso não cria estranheza aos acadêmicos que ocupam os bancos dos Cursos de Direito aquele solene e categórico brocardo latino pacta sunt servanda, tão sonoro e tão fácil de aprender; nem aquela sentença lapidária de que "o contrato é lei entre as partes", proclamada pelo Código Napoleão, hoje bicentenário; nem saber que os doutos pandectistas alemães, depois de proclamar o princípio de autonomia da vontade, colocaram-no como princípio cardeal no frontispício do Direito privado [01].

Em relação com o tema central deste trabalho, o que se observa é que todas as forças criadoras do Direito (a lei, o costume, a jurisprudência e a doutrina) aceitam com total naturalidade, ainda que existam algumas reticências, que a autonomia da vontade ou autonomia privada é uma das fontes produtora de obrigações jurídicas entre as pessoas. Por isso, qualquer reflexão teórica sobre o princípio da autonomia privada não pode esquecer esta complexa realidade. Só assim se podem explicar não só as profundas transformações que a ideia da autonomia da vontade sofreu nos últimos tempos, mas também as fortes tensões e contradições que atualmente experimentam os princípios do Direito contratual brasileiro, onde o princípio da liberdade de contratar ou liberdade de contratação continua sendo uma das peças mais importantes, senão a essencial.


1.Autonomia da vontade e força obrigatória do contrato

Embora a afirmação possa parecer surpreendente, nem o Código do Napoleão se preocupou de consagrar expressamente o princípio de autonomia da vontade, nem o Código Civil brasileiro de 1916 afirmou expressamente o princípio da força obrigatória do contrato.

Como já colocara de manifesto J. Gesthin [02], até princípios de século XX as obras de Direito civil francês não usavam o conceito de autonomia da vontade, completamente alheio ao Code civil e a seus primeiros comentaristas. A ideia que o Direito contratual codificado está presidido pelo princípio de autonomia da vontade começou a ser utilizada por alguns autores franceses para fundamentar suas critica aos excessos individualistas à que conduziam certas interpretações usuais dos preceitos sobre o contrato contidos no Código Civil de 1804.

Por outra parte, o velho Código Civil brasileiro de 1916 pressupunha a força obrigatória do contrato, é certo, mas evitou qualquer afirmação pomposa e grandiloquente nesse sentido. Não afirmava em nenhum de seus preceitos, como fizeram outros Códigos civis anteriores, que as obrigações nascidas do contrato são lei entre as partes. Ainda mais, nem sequer aludia expressamente à ideia de que os contratos obrigam ou que são fonte das obrigações. Limitou-se a determinar simplesmente, no artigo 1.056, que o descumprimento das obrigações (sem distinguir entre obrigações contratuais ou obrigações de outra natureza) gera responsabilidade por perdas e danos [03]. Entretanto, e apesar do silêncio da lei, a doutrina brasileira dominante sempre aceitou como óbvio, de forma absolutamente geral e indiscriminada, que a força obrigatória do contrato era um dos princípios reitores do Direito civil brasileiro [04]. Por que se afirma, com entusiasmo e sem reserva, que a força obrigatória do contrato é um princípio legal, como recolhido expressamente no Código Civil? Por que se deduz desse princípio a intangibilidade absoluta do conteúdo contratual? A resposta deve buscar-se na forte influencia exercida pela doutrina europeia no pensamento jurídico brasileiro, pois embora em matéria de atos jurídicos e de contratos o Código do Brasil de 1916 seja devedor do BGB, a literatura jurídica de inspiração francesa é a que fornece os maiores subsídios para sua interpretação e explicação.

Seja como for, durante muito tempo nem a doutrina, nem a prática dos Tribunais brasileiros tiveram a menor duvida sobre os efeitos absolutos do princípio da autonomia da vontade, resumido na regra pacta sunt servanda, que impunha a obrigatoriedade contratual e a total força vinculadora do contrato, sem exceção. Conseguintemente, a partir deste princípio era defendida uma vinculação rígida das partes ao estipulado, ficando elas subjugadas ao respectivo cumprimento, sob pena de sofrer as sanções previstas tanto nas cláusulas contratuais como na lei. Dessa forma, a declaração de vontade fixada no contrato afasta as normas jurídicas dispositivas e, em certo sentido, torna-se superior à lei. Em suma, o principio de obrigatoriedade contratual traduz a ideia de intangibilidade do pactuado, isto é da impossibilidade teórica de qualquer uma das partes alterar o pactuado, como também a impossibilidade de o conteúdo do contrato ser objeto de revisão judicial [05]. Assim sendo, o principio de liberdade contratual e o principio de obrigatoriedade do vínculo são vistos como corolários do principio de autonomia da vontade espontânea, livre e soberanamente expressada, segundo o qual a pessoa fica vinculada pelas obrigações que ela, de forma completamente voluntária, assumiu.


2.O princípio constitucional da livre iniciativa econômica

É necessário lembrar aqui que o próprio poder constituinte, para construir a norma Constitucional, não duvidou em pressupor ou tomar emprestados muitos conceitos do Direito privado, tentando construir, a partir deles, um novo sistema de valores, de princípios e de normas.

Com certeza, a Constituição Federal de 1988 se converteu, por vontade majoritária dos cidadãos brasileiros, na norma suprema do ordenamento jurídico, e portanto todas as restantes normas de Direito público ou privado devem respeitá-la. Porém, não se tem que perder de vista que, via de regra, a Constituição não define os direitos e princípios fundamentais que consagra; limita-se a reconhecê-los e a enunciá-los. Por isso, paradoxalmente, em não poucas ocasiões, o intérprete tem que ajudar-se, para definir o conceito e o conteúdo essencial dos direitos constitucionais, de dados que estão fora da própria Constituição.

Alguns dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais, garantidos como invioláveis na Lei Maior, só podem dotar-se de conteúdo e de sentido pleno por referência ao conceito que desses princípios e direitos preexistia na cultura jurídica brasileira antes da promulgação da vigente Constituição Federal. As leis, mas também a doutrina, a jurisprudência e a praxe jurídica dotaram de forma e conteúdo cada um desses princípios e direitos com antecedência a sua consagração no texto constitucional. Portanto, para sua reconstrução em chave constitucional, além das próprias referências constitucionais e do conteúdo normativo que lhes tenha outorgado ou lhes possa outorgar no futuro o legislador pós-constitucional, não se pode perder de vista esse importante dado.

Deste modo, quando a Constituição da Republica Federativa do Brasil faz uso reiterado no seu corpo das noções de contrato ou de empresa privada; quando acolhe, ao lado do trabalho humano, o valor social da livre iniciativa, colocando-o como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1, IV), ou quando reafirma o principio da livre iniciativa como fundamento da ordem econômica (art. 170, caput), não determina expressamente que temos que entender por contrato, nem por empresa privada, nem por livre iniciativa, nem por liberdade econômica, e também não determina qual é o conteúdo constitucional desses conceitos. Portanto, para determinar esses conceitos, seu âmbito de aplicação e seu alcance, o interprete deve acudir não só à própria Constituição, mas também a outros dados da experiência jurídica e às restantes fontes produtoras do Direito.

Por outra parte, não podem esquecer-se várias coisas.

A primeira, que o princípio constitucional da livre iniciativa econômica só pode ser concebido como uma concreção de outro princípio constitucional mais geral: o princípio da liberdade. A liberdade é um dos valores supremos da sociedade brasileira e irradia seus efeitos na ordem econômica como carro chefe, por isso é aludido no Preâmbulo da Constituição e reiterado ao longo de seu corpo. Além disso, a liberdade se garante como direito fundamental individual de caráter subjetivo junto à propriedade, no caput do artigo quinto. Mas a liberdade em abstrato é um conceito jurídico vazio, que não significa grande coisa. O que existem realmente são diversas manifestações da liberdade. A liberdade de fazer ou não fazer, de trabalhar ou de escolher profissão, de manifestação do pensamento, etc. A liberdade de iniciativa econômica, a liberdade contratual só são algumas dessas liberdades. Portanto, para que a liberdade de iniciativa seja tutelada, não tem que interferir com nenhuma das restantes liberdades fundamentais.

Por isso, em contrapartida, a definição correta do princípio de livre iniciativa só pode fazer-se, de conformidade com seu valor social, dentro do absoluto respeito a outros princípios e direitos constitucionais, procurando o equilíbrio com eles. Assim, hão de ser respeitados, na construção teórica do princípio de livre iniciativa: os princípios de justiça e igualdade; a dignidade da pessoa humana, que inspira todo o edifício constitucional; a solidariedade social, a função social da propriedade e o desenvolvimento sustentável; a defesa dos consumidores e do meio ambiente; ou, enfim, o respeito dos direitos sociais citados no artigo sexto do texto constitucional. Também a livre iniciativa esta condicionada à "construção de uma sociedade justa, livre e solidária".

Por último, deve salientar-se que, conforme o artigo 170, parágrafo único, da própria Constituição brasileira: "É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica" [06]. Assim sendo, o principio da livre iniciativa tem que ser concretizado no âmbito da atividade econômica, desdobrando-se nos princípios da liberdade de empresa e da livre concorrência (art. 170, 4 CF), que nortearam a ordem econômica do país; no princípio de liberdade de contratar, pois ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer uma coisa a não ser em virtude de lei (art. 5, II CF); e, quando se já se exercitou a livre iniciativa através da celebração voluntária de um contrato, no respeito aos direitos adquiridos e aos "atos jurídicos perfeitos" (art. 5, XXXVI CF), ideia esta claramente inspirada no princípio da força obrigatória dos atos e negócios jurídicos.

O princípio da livre iniciativa econômica encontra seu fundamento último na própria ideia de pessoa e no respeito de seus direitos fundamentais. Portanto, é um princípio que é reflexo, no campo econômico, dos princípios da dignidade humana e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade [07]. Com o reconhecimento da livre iniciativa econômica se garante aos indivíduos um poder de autogoverno, dirigido a fornecer-lhes um instrumento que permita alcançar os próprios fins e interesses pessoais no campo econômico. Supõe, portanto, um poder de auto-regulamentação das próprias relações jurídicas [08], uma possibilidade legal de auto-regulamentação dos interesses jurídicos das pessoas que é denominado pela doutrina "autonomia privada" ou "autonomia da vontade".

Assim sendo, o reconhecimento constitucional da livre iniciativa tem que entender-se estendido às pessoas jurídicas, mas não como fim em se mesmo, e sim como meio de assegurar a liberdade e a dignidade da pessoa humana, e sempre dentro do marco constitucional de referência. Portanto, o texto constitucional segue, nesta matéria, o caminho esboçado por outras normas constitucionais contemporâneas, como a Constituição italiana de 1947 [09], a Constituição portuguesa de 1976 [10], ou a Constituição espanhola de 1978 [11]. Quer dizer, a iniciativa econômica privada se garante constitucionalmente em função do valor social que representa, e não pode desenvolver-se em contraste com certos condicionantes negativos definidos pelo interesse geral, a utilidade social, a liberdade e a segurança das pessoas, a dignidade humana e outros direitos fundamentais constitucionalmente tutelados. Igualmente, o sistema econômico constitucional impõe à iniciativa privada certos limites ativos ou de caráter positivo, pois a atividade econômica deve estar sempre subordinada aos controles e às intervenções públicas que exijam a programação, a coordenação e o planejamento integral do aproveitamento dos recursos naturais e da economia nacional.


3.Livre iniciativa e autonomia privada

É indubitável que o desenvolvimento do princípio de livre iniciativa econômica, garantido na Constituição brasileira, precisa para sua efetividade de um suporte técnico jurídico como o contrato ou, melhor, a liberdade contratual. O contrato é um dos meios de realização econômica da pessoa na vida social e tem "seu fundamento mais profundo no princípio de autonomia privada" [12]. Entretanto, o primeiro que se observa é que, em que pese a sua importância teórica e prática, o reconhecimento do direito dos cidadãos a celebrar contratos não está aludido expressamente no texto constitucional, como estão outras instituições capitais do Direito privado: o direito de propriedade, o direito à reparação do dano sofrido (incluído o dano moral), o direito à herança ou o direito a formar uma família. Portanto, a ideia de contrato e o princípio de autonomia da vontade, autonomia privada ou, se preferir, o princípio de liberdade contratual, tem que ser procurados diretamente no Direito privado, em cujo seio a ciência jurídica os construiu paciente e trabalhosamente ao longo dos séculos. Ao fim e ao cabo, não cabe dúvida de que o reconhecimento da livre iniciativa no âmbito patrimonial pressupõe necessariamente um reconhecimento da autonomia privada e da liberdade de contratação, já que o contrato é o mais importante dos meios usados pelos sujeitos de direito para exercitar o princípio constitucional da livre iniciativa econômica.

A história ensina que o princípio da autonomia contratual não é novo, e que não foi uma criação exclusiva do liberalismo econômico, nem do individualismo possessivo. No Ordenamento de Alcalá de Henares, promulgado na Espanha do S. XIV (1340), a Lei Única, do Título XVI, determinava: "Sea valedera la obligación o el contrato que fueren fechos en cualquier manera que parezca que alguno se quiso obligar a otro a fazer contrato con él", disposição que a doutrina espanhola da época resumia dizendo: "de qualquier modo que el hombre quiera obligarse, queda obligado".

Além disso, resulta paradoxal que muitas das críticas atuais ao conceito moderno de contrato, a que se tem ligado as críticas ao princípio da autonomia da vontade, tratem, no fundo, de recuperar as motivações éticas que inspiravam a ideia de contrato, e que foram abandonadas nos momentos de maior auge do liberalismo. Os deveres de veracidade e de fidelidade à palavra dada, a boa fé e a equidade contratual não foram preocupações alheias à construção teórica da figura do contrato no Direito codificado [13]. É certo – e ninguém se atreveria a negar – que no Código Napoleão ressonam com força os ecos do individualismo jurídico. Nesse texto legal se exaltam a liberdade do indivíduo, a igualdade formal dos contratantes e a força obrigatória da vontade contratual livremente manifestada [14]. Entretanto, também é certo que a vontade do indivíduo encontra contrapesos no próprio Código Civil francês, ao estar emoldurada por ideias como a equidade, a moral, os bons costumes, a ordem pública [15] e, inclusive, com a exigência de causa [16] para a validez do contrato.

Outra coisa bem distinta é que a praxe econômica do liberalismo e a ascensão econômica da burguesia urbana, que conviveram primeiro com as elaborações doutrinais da Escola da Exegese e depois com a abstração exagerada das doutrinas pandectistas, terminassem por fazer aparecer o chamado princípio da autonomia da vontade como um princípio contratual "odioso". Não podia ser de outro modo em um momento histórico como o atual, no qual a ideia de solidariedade social preside a ordem jurídica. Por conseguinte, segundo esta forma solidarista de ver as coisas, não se pode admitir que, se se comprovar que um contratante fica prejudicado pela mudança das condições objetivas nas que realizou o negócio, ou pela própria atuação interessada do outro contratante, se pretenda manter rigidamente a obrigatoriedade do contrato ainda que celebrado livre e espontaneamente. Por isso, ante essa nova forma de ver as coisas, o princípio absoluto da autonomia da vontade precisava ser submetido a crítica e a revisão.

Mas se se tomar como exemplo o Código Civil espanhol de 1889, ainda vigente, pode ser comprovado que a autonomia da vontade dos contratantes como fonte das obrigações não carece de controle por parte do ordenamento jurídico. Dá para comprovar como nele o legislador não consagrou um princípio geral da autonomia da vontade em matéria contratual absoluto e completamente abstrato. Com efeito, embora proclama contundentemente que "las obligaciones que nacen de los contratos tienen fuerza de ley entre las partes contratantes y deben cumplirse al tenor de los mismos" (art. 1091), como afirmação expressiva da influência da Estado liberal onde a lei é a máxima expressão do jurídico, cabe também assinalar que a força vinculativa derivada do contrato e nascida da autonomia da vontade dos contratantes só opera no marco de ordem jurídica previamente delimitada. Destarte, "los contratantes pueden establecer los pactos, cláusulas y condiciones que tengan por conveniente", mas isso "siempre que no sean contrarios a las leyes, la moral, ni al orden público" (art. 1255). Assim sendo, a legalidade formal, mas também as considerações éticas, constituem um claro limite da autonomia da vontade. Consagra-se assim o princípio de liberdade contratual, mas também se estabelecem os limites dentro dos quais opera.

Em primeiro lugar, está a própria lei, quando não é dispositiva, senão proibitiva ou imperativa, e como tal não pode ser excluída pela vontade dos contratantes. Em segundo lugar, encontramos a moral, entendida como conjunto de convicções de ética social geralmente admitidas pela comunidade jurídica em cada momento histórico. Em terceiro lugar, a ordem pública, entendida como o conjunto de princípios fundamentais reitores da organização geral da comunidade (agora, dignidade da pessoa, direitos fundamentais, liberdades básicas, igualdade e não discriminação, solidariedade social, etc.).

Mas se isso não fora suficiente, junto aos elementos voluntários do contrato, aquilo a que as partes se obrigam porque expressamente querem, o Código Civil espanhol admite a existência de um conteúdo necessário do contrato, que é totalmente independente da vontade das partes, pois "los contratos se perfeccionan por el mero consentimiento, y desde entonces obligan, no sólo al cumplimiento de lo expresamente pactado, sino también a todas las consecuencias que según su naturaleza sean conformes a la buena fe, al uso y a la ley" [17] (art. 1278). Quer dizer, as partes não só estão obrigadas a cumprir aquilo que pactuam expressamente, mas também aquilo que, segundo a natureza do pactuado, seja conforme a boa fé objetiva, aos usos da pratica e do tráfico jurídico, aos costumes e, claro está, às leis proibitivas e imperativas.

Para completar o panorama, tem-se que salientar outras duas ideias. Em primeiro lugar, o Código espanhol não admite os contratos abstratos apoiados exclusivamente na manifestação do consentimento das partes. Do mesmo modo que o Código do Napoleão exige, para que um contrato seja válido, que "exista causa de la obligación que se establezca" (art. 1261,3), e assim "los contratos sin causa, o con causa ilícita ["Es ilícita la causa cuando se opone a las leyes o a la moral"], no producen efecto alguno" (art. 1275) [18]. Não é este momento para analisar um assunto tão debatido e complexo como a causa do contrato [19], mas entenda-se que a causa está conectada com os motivos das partes para celebrar o contrato, ou se entenda que se refere à função socioeconômica que desempenha o contrato celebrado, esse elemento do contrato funcionaliza de algum modo o princípio de autonomia da vontade.

Em segundo lugar, nem todos os contratos têm a mesma causa. Existem contratos comutativos ou sinalagmáticos, como a compra-venda, mas também existem outros, como a doação, gratuitos e de pura beneficência. Existem contratos de câmbio, a maioria, mas também existem contratos associativos, nos quais o interesse particular de cada parte só se obtém por meio da realização prévia de um fim comum a todas elas, como o contrato de sociedade civil. É óbvio que, em cada caso, a causa do contrato fará que o princípio de autonomia privada tenha um papel muito diferente [20].

Não cabe dúvida, portanto, que o modelo teórico de funcionamento do princípio da autonomia privada, convenientemente corrigido através da definição mais precisa de seus limites, segue sendo válido em linhas gerais. Por isso, com independência da denominação que se escolha para enunciá-lo, este princípio continua sendo a fonte principal da regulação contratual, embora seja convenientemente demarcado pelas limitações impostas pela ordem jurídica para restabelecer os princípios de liberdade, de igualdade (substantiva) entre as partes e de equilíbrio contratual, que originariamente davam sustento ao princípio da liberdade de contratação sustentado pela livre vontade dos indivíduos.

Como assinalara o professor espanhol Lacruz Berdejo [21], o contrato é, então, o resultado de uma interação entre a vontade privada supostamente egoísta e a lei que cuida dos interesses comuns. O contrato realiza uma multiplicidade de interesses e, paralelamente, não se acha formado só pelo conteúdo de vontade que colocaram nele os contratantes, senão também por determinações que derivam da lei e da equidade. Não é, portanto, um instrumento privilegiado de exteriorização do poder da vontade privada. Pelo contrário, é uma estrutura aberta que está em situação de realizar não só os interesses dos contratantes, mas também interesse externos (expressados pela coletividade): certamente o poder de pactuar o usam as partes em interesse próprio, mas a lei pode limitar a satisfação dos interesses egoístas de modo que se respeite e favoreça o bem comum. Portanto, a intervenção do legislador não é algo excepcional, mas sim aparece simplesmente como um modo normal de manifestar o concurso de fontes (a privada e a legal) na disciplina do contrato, correspondendo à diversidade de interesses que nele confluem.


4.Alcance do princípio de autonomia privada em matéria contratual

Como já indicado, tradicionalmente se considerou que o contrato era um instrumento deixado à exclusiva vontade dos particulares, e disso a doutrina jurídica deduziu o princípio da autonomia da vontade, autonomia privada ou, mais propriamente, autonomia contratual. Autonomia significa, etimologicamente, dar-se a si próprio normas de comportamento, autoregular-se. Por conseguinte, o princípio da autonomia privada é uma expressão sintética que serve para ressaltar que o ordenamento jurídico reconhece aos particulares um amplo poder de auto determinação da pessoa e de auto-regulação de suas relações patrimoniais.

Mediante a afirmação do princípio da autonomia privada se significa que, via de regra, o ordenamento jurídico reconhece às pessoas as seguintes possibilidades no âmbito contratual [22]:

a)A liberdade de celebração do contrato ou liberdade de contratar propriamente dita. Quer dizer, a possibilidade de decidir se contratar ou não contratar, o livre arbítrio para decidir, segundo os interesses e conveniências de cada um, se estabelecerá ou não uma relação contratual com outro, e quando a estabelecerá. Como adverte Almeida Costa, essa faculdade tem um duplo sentido [23]. Em princípio, a ninguém podem ser impostos contratos contra sua vontade, ou aplicadas sanções como consequência de negar-se a contratar; do mesmo modo não se pode impedir que uma pessoa celebre contratos, nem puni-la, caso contrate.

b)Liberdade de escolher livremente a pessoa com quem se vai contratar, salvo as exceções legalmente previstas [24]. Via de regra, quem quer celebrar um contrato pode determinar quem será a outra parte, escolhendo a pessoa com quem quer contratar. Quer dizer, se o proprietário de uma casa decide destiná-la ao aluguel não tem nenhuma obrigação de cedê-la à pessoa que necessite moradia com mais urgência, nem tampouco àquela que lhe ofereça maior preço.

c)A liberdade de seleção do tipo contratual que melhor sirva a seus interesses. Isto é, a possibilidade de escolher livremente o modelo de contrato que quer celebrar de entre todos aqueles que estão tipificados na lei. Além disso, no Direito de contratos não se estabelecem tipos fechados de negócios permitidos, à diferença do Direito de coisas. Os intervenientes podem celebrar contratos que não correspondam absolutamente com os modelos legalmente previstos. Realmente esses modelos cobrem a maioria das necessidades econômicas e sociais, por isso se podem reconduzir quase todos os contratos a meras combinações deles. Portanto, se os contratantes querem servir-se de um contrato misto, mesclando em um só contrato regras de dois ou mais contratos típicos, podem fazê-lo. Do mesmo modo, as partes podem criar novas formas contratuais para satisfazer às novas necessidades que exijam o trafico jurídico, criando voluntariamente contratos atípicos ou inominados [25].

d)A liberdade de estipulação, isto é a possibilidade de fixar livremente o conteúdo do contrato, incluindo as clausulas que tenha por conveniente e dando-lhes a redação que lhe pareça mais adequada aos interesses das partes [26]. Quer dizer, embora os contratantes recorram aos tipos legais preestabelecidos, conservam a possibilidade de combinar separar-se da regulação legal, substituindo as normas dispositivas ditadas pelo legislador, por outras normas diferentes nascidas do interesse comum e expressas através da manifestação de sua livre vontade. Poderia objetar-se que a liberdade de fixar o conteúdo do contrato sofre hoje amplas restrições, pois muitos contratos são verdadeiros contratos de adesão cujas cláusulas são predispostas por uma das partes sem que o aderente tenha a menor oportunidade de negociá-las, e portanto impostas a toda pessoa que queira contratar, ou, em outros casos, o conteúdo do contrato depende de aprovação prévia de organismos governamentais. Tal objeção esquece que a vontade exigida para formar o contrato é a vontade comum, consciente, concorde e livremente manifestada de ambas as partes sobre o objeto e o conteúdo do contrato. Mas nos contratos de adesão nunca existe vontade comum, já que a adesão ao contrato só pode ser considerada pura manifestação formal de assentimento a contratar. Por isso pode se dizer que nos contratos de adesão o mútuo consenso que pressupõe o princípio de autonomia privada foi sequestrado, transitando-se de "um mutuo consenso sobre um conteúdo para um consenso na celebração do negocio, e não propriamente sobre as cláusulas constitutivas deste" [27].

e)O último aspecto da liberdade contratual é a liberdade de forma. Caso não se estabeleça outra coisa pelo ordenamento jurídico, os contratantes podem concluir contratos da forma que estimem conveniente, manifestando livremente seu consentimento, inclusive verbalmente.

Como todo principio geral, e em boa medida, abstrato, a autonomia privada é uma verdadeira realidade, mas também um tópico muitas vezes tergiversado. Entretanto, nada justifica omitir a existência desse princípio, nem obscurecer seu papel conformador da realidade contratual, pois nela a vontade das pessoas tem um papel protagonista, ao servir para adaptar o instrumental jurídico às necessidades e interesses das partes.

Agora bem, a relevância que a vontade das partes assume no âmbito contratual requer precisar o alcance efetivo da autonomia privada. Em primeiro lugar, é evidente que a autonomia contratual não pode ser contemplada à margem do ordenamento jurídico, que a reconhece e protege. Portanto, não atribui ao particular uma liberdade absoluta de atentar contra o ordenamento jurídico, já que este constitui o fundamento da autonomia privada, outorgando ao contrato uma força vinculativa e às pessoas possibilidades de atuação prática. Em particular, a autonomia da vontade encontra seu primeiro e mais importante limite nas normas de caráter imperativo que emanam da ordem pública, mas também nas normas morais aceitas pelo próprio ordenamento jurídico e em outros princípios inspiradores do moderno Direito contratual como a função social do contrato, a lealdade contratual, a probidade, a boa fé objetiva ou o equilíbrio contratual.

Precisamente por causa da consagração pelo ordenamento jurídico do princípio de autonomia privada, a maior parte das normas legais referentes ao contrato têm caráter dispositivo e, por conseguinte, as partes podem substituí-las ou excluir sua aplicação. Porém, a legislação relativa aos contratos também contém normas de ius cogens ou de Direito necesario ou imperativo, que têm primazia sobre a autonomia privada, que a elas tem que subordinar-se.

Por outra parte, não deve chegar-se a uma hipervaloração conceptual da vontade das partes que conclua em afirmar que o contrato é, simplesmente, um acordo de vontades, com esquecimento do substrato social e econômico do mesmo. Historicamente isso somente serviu para autocomplacencia do liberalismo econômico e para que os pandectistas alemães, através de um sofisticado processo de generalização e abstração, pudessem explicar a teoria geral do negócio jurídico como molde geral para encaixar qualquer acordo de vontades suscetível de ser contemplado pelo Direito.


5.Limites da autonomia privada

Como se viu, já os primeiros Códigos civis fixaram instrumentos jurídicos dirigidos a limitar a autonomia da vontade. Particularmente as leis imperativas, a moral e a ordem pública. Porém, durante o século XIX e boa parte do século XX, generalizou-se uma interpretação reducionista desses limites até fazê-los quase invisíveis.

Nos últimos tempos, as coisas mudaram. As normas imperativas, restritivas da vontade individual e dirigidas a conseguir a realização de interesses supraindividuais, aumentaram grandemente, tanto quantitativamente como qualitativamente. As limitações impostas pela ética à autonomia privada ganharam posições e concretizam o reconhecimento explícito dos princípios da probidade, da lealdade contratual, da boa fé objetiva e da justiça e o equilíbrio contratuais. A noção de ordem pública se traduz na percepção geral de uma supremacia da coletividade sobre o indivíduo, em uma ordem pública econômica de natureza promocional e intervencionista. Como assinalara o jurista francês Jean Carbonnier [28], no Direito civil do Século XXI, a noção de ordem pública econômica se tem que construir a partir de dois elementos distintos. A ordem pública de proteção, que tem como finalidade amparar, nos diversos contratos, a parte hipossuficiente ou mais débil, e a ordem pública de direção, ligada ao dirigismo econômico, que trata de orientar em uma certa direção a economia nacional, eliminando dos contratos privados tudo o que poderia ser contrário a ela.

Respeitados os limites institucionais da autonomia privada, o conteúdo dos contratos depende da própria vontade das partes, a quais podem dotar o conjunto de direitos e obrigações gerado pelo contrato do conteúdo e alcance que lhes convenha. Portanto, em todos os contratos cumpridos voluntariamente, a satisfação de ambas partes mostra-se a expressão mais nítida do principio da autonomia da vontade. Entretanto, não se deve pensar que isso só significa que as normas imperativas têm um papel meramente negativo em relação ao pacto contratual, proibindo determinadas condutas. Com efeito, o ordenamento jurídico pode dotar ao acordo contratual de um significado e de um alcance distinto ao estabelecido pelas partes no pacto contratual. Através de um processo de heterointegração o ordenamento também cumpre um papel de caráter positivo em relação com o conteúdo do contrato, inclusive contraditório com a vontade das partes, fazendo que sua vontade, em que pese ser pressuposto inelutável do contrato, não possa ser considerada onímoda e todo-poderosa. Destarte, a través do reconhecimento do principio da boa-fe objetiva formam parte do contrato diversos deveres anexos, que como salientara Clovis de Couto e Silva [29] "consistem em indicações, atos de proteção, como o dever de afastar danos, atos de vigilância, de guarda de cooperação, de assistência".

O intervencionismo público também se manifesta através de outras normas que não se dirigem diretamente à determinação do conteúdo contratual, senão a fazer recuperar o equilíbrio entre as partes de determinados contratos, dando cobertura àquele contratante impedido de formar e expressar livremente sua vontade ao adquirir bens e serviços no mercado. Por uma parte, estabelecem-se normas para garantir uma correta formação do contrato mediante o controle da publicidade e da informação subministrada ao contratante débil pelo profissional, por outra parte se sanciona a incorporação ao contrato de cláusulas abusivas, e, por derradeiro, se debilita o princípio do consentimento impondo ao contrato determinadas formalidades que o legislador estima necessárias para reconhecer sua válida existência.

Quer dizer, a autonomia privada contratual segue sendo um princípio fundamental do Direito dos contratos, reconhecendo-se com isso aos particulares a possibilidade de autorregulamentar seus interesses, conformando-os sob sua própria responsabilidade, para que possam desenvolver sua personalidade e afirmar-se como pessoas. Porém, a liberdade contratual deve estar submetida a certos limites, só se justificando a sua utilização em compatibilidade com outros princípios como a lealdade contratual, a boa fé objetiva, a justiça contratual e o justo equilíbrio entre as prestações que traduz "a idéia de razoável equilíbrio que deve haver entre direitos e deveres das partes, nos contratos comutativos" [30].


6. A liberdade contratual no Direito brasileiro

Até faz pouco tempo, o Direito brasileiro da contratação tinha sua fonte principal e básica no Código Civil de 1916. Certamente, desde essa data, o Direito dos contratos sofreu alguns reajustes legislativos de caráter menor, quase sempre produzidos por leis especiais ditadas à margem do Código para atender necessidades emergentes de alguma classe particular de contratantes [31]. Por isso, a influência sobre o Direito das obrigações da normas aludidas foi bastante restringida e se limitou, basicamente, a arbitrar mecanismos encaminhados a proteger e garantir os direitos de certas categorias de pessoas, como, por exemplo, os trabalhadores e os arrendatários rurais e urbanos.

Evidentemente, a regulação legal dos contratos no antigo Código Civil, enfrentava o envelhecimento natural do próprio texto legal, produzido pelo inexorável passo do tempo. Enfrentava, também, uma forte erosão em seu conteúdo devida às profundas mudanças econômicas, sociais e tecnológicos produzidas no Brasil nas últimas décadas do século XX [32]. Não é estranho, portanto, que a doutrina mais atenta advertisse a erosão que se estava produzindo nos conceitos e nas categorias jurídicas do Direito contratual liberal, abstrato e individualista cristalizado no Código. Tampouco surpreende a lógica contribuição da jurisprudência que, de modo silencioso, mas eficaz, criou mecanismos valiosos para adaptar as velhas normas às novas realidades sociais.

No Código Civil brasileiro de 1916, como nos modelos que lhe serviram de inspiração e referência, o Direito dos contratos se caracterizava por dar grande importância à autonomia da vontade das pessoas, à igualdade formal das partes e ao princípio da força obrigatória do contrato como elemento garante da segurança jurídica. Entretanto, nos tempos atuais, por causa da utilização maciça das técnicas contratuais pelos fornecedores profissionais de bens e serviços, a igualdade das partes no contrato terminou por converter-se em uma mera ficção jurídica. O princípio da autonomia de autonomia da vontade está desprestigiado e em franca decadência. Assiste-se também a uma clara e marcada debilitação do principio da força obrigatória do contrato, que não é alheia a influência das concepções monetaristas próprias da economia capitalista. Pode-se dizer, portanto, que nos últimos anos os princípios tradicionais do contrato, de marcado caráter individualista, entraram em uma crise sem precedentes.

Entretanto, é após a promulgação da Constituição Federal de 1988 que se produzem as mudanças mas importantes e aceleradas. Particularmente, a partir de 1990, com a aprovação do Lei nº 8.078, de 11 de setembro (Código Brasileiro da Defesa do Consumidor), inicia-se uma nova fase do Direito de contratos que ainda, embora os notáveis esforços da doutrina e da jurisprudência, não conseguiu consolidar-se completamente.

É preciso recordar, para não incorrer em um grave equívoco, que todas estas disposições legais não negam, senão pressupõem o princípio da autonomia privada reinstituído com novos perfis pelo Código Civil de 2002. Com efeito, o princípio da defesa do consumidor e as normas decorrentes dele, embora possa parecer um paradoxo, só têm justificação e explicação se são concebidas como um conjunto de cautelas arbitradas pelo poder legislativo, frente às deficiências observadas pelo funcionamento real dos princípios gerais de autonomia da vontade e de liberdade contratual em determinadas relações contratuais de massa, que estão caracterizadas pela debilidade relativa, a desproteção ou a hipossuficiência de uma das partes do contrato. Em geral se trata de garantir e assegurar "a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações", e de conseguir que nos contratos de consumo fique assegurado "ou justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes".

O novo Código Civil, especialmente no parágrafo único do artigo 2.035 [33] e nos artigos 421 e 422 [34], incluídos entre as disposições gerais que abrem o Título "Dos Contratos em Geral", confirma a consagração legal da liberdade de contratar. Com efeito, embora não declara expressamente em nenhum preceito a força obrigatória do contrato, consagra claramente o princípio da liberdade contratual. Paralelamente, concretiza os limites de esse principio geral, em particular, os preceitos de ordem pública "estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos", isto é, as leis e normas imperativas. Além disso, coloca a função social do contrato como fundamento e princípio reitor da liberdade de contratar. E, enfim, estabelece, como instrumentos de heterointegración do conteúdo contratual, atribuindo ao contrato um conteúdo objetivamente necessário e superior à vontade das partes, os princípios de probidade e de boa fé (objetiva) [35], seguindo o caminho que para as relações de consumo ja havia estabelecido o Código de Defesa do Consumidor [36].

O novo Código colocou as bases de uma importante transformação no regime jurídico do contrato, trazendo a função social do contrato e os princípios de probidade e de boa-fé, destinadas a criar relações contratuais mais equânimes e justas.

Para completar o quadro se introduzem no Código Civil de 2002 três novidades substanciais de caráter técnico, que estão dirigidas a promover a equidade contratual e a garantir o equilíbrio das prestações nos contratos comutativos.

Em primeiro lugar, "positivando o que a jurisprudência já consagrara" [37], o novo Código aceita plenamente a relevância jurídica da alteração das circunstancias o clausula rebus sic stantibus, que se concreta na Seção IV, titulada "Da Resolução por Onerosidade Excesiva". Em dito dispositivo se aceita decididamente a teoria da imprevisão de forma semelhante ao Códice civile italiano de 1942, pois "nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato" (art. 478), resolução que poderá ser evitada, "oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato" (art. 479).

Em segundo lugar, contempla-se a possibilidade da rescisão por lesão, que recupera um velho mecanismo ético, inspirado na tradição aristotélica e escolástica, que tem por finalidade estabelecer a justiça contratual e a equivalência material das prestações. Com efeito, o artigo 157 do Código Civil determina que «ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional [38] ao valor da prestação oposta», mas permitem às partes conservar o negócio «se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito". Portanto, a lesão, que não precisa ser enorme, há de apurar-se objetivamente « na desproporção evidente e anormal das prestações, quando um dos contratantes aufere ou tem possibilidade de auferir do contrato um lucro desabusadamente maior do que a contraprestação a que se obrigou» [39].

Em terceiro lugar, e embora com um certo grau de indecisão, estabelece-se um mecanismo corretor da supremacia do predisponente nos contratos de adesão. Neste sentido, o Código Civil determina que "quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente" (art. 423), e que "nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio" (art. 424). Certamente, este regime geral dos contratos de adesão pressupõe a igualdade entre as partes do contrato, por isso não tem uma incidência tão grande e incisiva na conformação do princípio de autonomia privada como o regime das clausulas abusivas nos contratos de consumo.

"Assim - como resume Arnoldo Wald [40] -, em vez do contrato irrevogável, fixo, estático e cristalizado de ontem, conhecemos um contrato dinâmico e flexível, que as partes devem adaptar para que ele possa sobreviver, superando, pelo eventual sacrifício de alguns interesses das partes, as dificuldades encontradas no decorrer da sua existência. A plasticidade do contrato transforma sua própria natureza, fazendo com que os interesses divergentes do passado sejam agora convertidos em uma verdadeira parceria, na qual todos os esforços são válidos e necessários para fazer subsistir o vínculo entre os contratantes, respeitados, evidentemente, os direitos individuais ».


7. Igualdade das partes e vinculo contratual

O sistema individualista e liberal levou a criar um modelo abstrato de contratante: o indivíduo, a pessoa física, o bom pai de família. Essa era a principal consequência do princípio de igualdade teórica entre os contratantes, alheio completamente às particularidades próprias de cada caso. E se essa ficção de igualdade entre os contratantes era possível em uma sociedade agrária que, apesar de não ser alheia às desigualdades econômicas e sociais, era-o porque as desigualdades não eram tão acentuadas como as que existem na atualidade por causa das concentrações financeiras e industriais próprias do mundo contemporâneo. Além disso, era uma ficção sustentável porque o arquétipo contratual do Código Civil francês de 1804, apoiado na liberdade individual e a igualdade jurídica dos cidadãos, estava inserido em um sistema de contratos negociados que ainda não admitia com naturalidade a participação das pessoas jurídicas ou morais no tráfico jurídico privado e que deixava fora do Código Civil os contratos celebrados pelos comerciantes.

Atualmente é preciso render-se à evidência: a maior parte dos contratos, nem são contratos negociados, nem se celebram já entre indivíduos, entre pessoas físicas. Existe um grande número de contratos nos quais tem uma parte débil e uma parte forte, geralmente uma pessoa jurídica, de tal modo que querer manter intocado o princípio da igualdade entre as partes do contrato é aceitar sem majores reserva a lei do mais forte. Esta desigualdade é particularmente flagrante nas relações comerciais celebradas com os consumidores, pois, em muitos casos, as empresas fornecedoras são entes abstratos [41] dotados de poder claramente desigual e desproporcionado. Assim, poderia-se dizer, que o desequilíbrio e as relações de dominação são a essência do Direito contratual moderno, que se apoia no reconhecimento incondicional e quase indiscriminado das pessoas jurídicas, na existência do mercado e nos princípios econômicos da livre empresa, a livre concorrência e a busca do maior benefício econômico.

Por isso, o legislador, acompanhando o signo dos tempos, tentou organizar a defesa da parte mais fraca em diversos campos da atividade econômica. Assim surgiram, fora do Código Civil, novos ramos do Direito cuja finalidade exclusiva era consagrar o amparo do contratante débil.

Por este mesmo caminho transitou a jurisprudência brasileira que, com o beneplácito e o apoio da melhor doutrina, não duvidou, seguindo outros precedentes do Direito comparado, em aceitar a existência de obrigações contratuais acessórias a cargo da parte predominante, como as obrigações de informação, ou propondo uma interpretação sistemática e integrada do contrato favorável à parte mais débil e desprotegida.

Por isso, nada mais natural que o próprio Código Civil de 2002, como produto de seu tempo e em coerência com os princípios constitucionais, continue por este mesmo caminho. Particularmente, ao introduzir novas disposições gerais em matéria contratual que tratam de redefinir e reforçar os novos princípios gerais inspiradores do contrato, tais como a função social do contrato, a probidade e a boa fé, e ao ocupar-se expressamente, embora com alguma tibieza, dos contratos de adesão. Com isso se abre a possibilidade, através de cláusulas gerais [42], de que o juiz acuda em auxílio do contratante mais desprotegido ou do contratante que tenha podido ser vitima dos abusos da outra parte. Na verdade, uma das funções destes princípios é facilitar ao juiz uma diretriz geral que permita extrair regras aplicáveis ao caso concreto, sem o apoio de um tipo normativo autônomo previamente definido.

Um exame superficial poderia levar a acreditar que com estas normas e atitudes se trata efetivar o princípio de igualdade substancial em matéria contratual. Por isso é frequente encontrar opiniões doutrinais e pronunciamentos jurisprudenciais que entendem que, através da restauração do equilíbrio contratual entre as partes que celebram um contrato, está-se consagrando, a fim de contas, uma verdadeira igualdade substancial. Entretanto, a realidade é muito mais complexa.

Com efeito, não pode dizer-se que todas essas normas citadas assegurem uma completa efetividade do princípio constitucional da igualdade jurídica em seu aspecto substancial. Unicamente permitem restabelecer a igualdade e o equilíbrio no marco de uma relação contratual existente e concreta. O Direito do trabalho é, com certeza, benéfico para o trabalhador ou para o funcionário empregado, mas nem sempre é tão benéfico para as pessoas desempregadas que estão fora do mercado de trabalho ou que participam da economia informal. As leis de inquilinato, com efeito, serviram em muitos momentos para beneficiar ao arrendatário frente ao proprietário, pois lhe proporcionava segurança e estabilidade na posse do imóvel arrendado; mas em outras ocasiões produziram consequências prejudiciais como o empobrecimento dos pequenos arrendadores, ou consequências perversas para os futuros arrendatários e a sociedade em geral, como a falta de incentivos para produzir imóveis destinados a locação, a retirada do mercado de bens suscetíveis de ser arrendados ou o próprio deterioramento do patrimônio imobiliário. Quanto ao amparo contratual dos consumidores, tão em voga atualmente, e deixando à margem as enormes dificuldades de determinar com precisão que tem que entender-se por consumidor, não devemos esquecer que somente beneficia, restaurando o equilíbrio contratual entre o fornecedor e o consumidor, às pessoas que têm suficiente renda para participar ativamente das relações de consumo, podendo adquirir bens e serviços no mercado, mas em nada afeta ao ingente número dos excluídos sociais.


8

Na atualidade, os doutrinadores mais atentos acostumam afirmar que o contrato não é uma simples relação de interesses contrapostos, senão também um instrumento de cooperação social, portanto nos últimos tempos deixou-se de conceber o contrato como um instrumento necessariamente decorrente ou representativo de interesses antagônicos, "em vez de adversários os contratantes passaram, num número cada vez maior de contratos, a ser caracterizados como parceiros, que pretendem ter, um com o outro, uma relação equilibrada e eqüitativa, considerando até os ideais de fraternidade e justiça" [43]. Paulo Nalim salienta que o contrato hoje é uma "relação complexa e solidária" [44]. Com efeito, é muito positivo que o Direito contemporâneo tenha sabido perceber com claridade os limite da vontade individual. O contrato, embora nasça da conjunção das vontades individuais, também é um ato social que deve ser respeitoso com os interesses gerais ou coletivos. Por isso, como já visto, em certas condições, o indivíduo pode ser obrigado pelo ordenamento jurídico a assumir involuntariamente compromissos que não tinha previsto inicialmente ou que, inclusive, tinha querido evitar. É assim como aparecem no conteúdo do contrato, junto às obrigações assumidas voluntariamente pelas partes, obrigações similares às que recaiam tradicionalmente sobre a pessoa enriquecida injustamente em prejuízo de outro.

Evidentemente, é normal, e a ninguém pode pensar outra coisa, que os contratantes dêem sempre preferência a seus interesses, porém, enfrente do natural interesse particular que o ordenamento jurídico reconhece e tutela, sempre está presente uma aspiração geral do sistema jurídico dirigida a que cada contratante se esforce por atender o melhor possível os interesses do outro contratante e, inclusive, os interesses gerais da própria comunidade. Portanto, é legitimo que a coletividade, a través do ordenamento jurídico, exija que cada um dos contratantes tenha em consideração outros interesses, sobre tudo se isso não lhe cria nenhum prejuízo.

A meu ver esta tendência, claramente expressa na Constituição e também no vigente Código Civil brasileiro, através da ideia da função social do contrato, é uma recuperação da velha figura romanista da causa do contrato [45]. Uma causa, que não tem que ser entendida como um elemento puramente abstrato, desprovido de função prática, mas sim como um instrumento de que dispõe o juiz para assegurar que os compromissos contratuais assinados pelas partes não estejam desprovidos de contrapartida, e inclusive, para garantir que a contrapartida proporcionada era aquela esperada pelo outro contratante. Uma causa que não se confunde com a função econômica e social de cada concreto tipo contratual. A causa, pois, é a razão de ser das obrigações contratuais, o que permite tomar em consideração a economia do contrato, a finalidade do contrato procurada pelas partes e o móbil determinante da prestação do consentimento contratual.

Ainda mais, a função social do contrato não se projeta só entre as partes do contrato, já que também tem uma eficácia social, um conteúdo genérico "ultra partes" que significa uma quebra de outro dos princípios tradicionais do Direito contratual: o principio da relatividade do contrato [46].

O solidarismo contratual aparece também de maneira manifesta através da interpretação do contrato pelos juizes e tribunais, e encontra amplo eco na doutrina. Durante os últimos tempos, e com apoio no Código de Defesa do Consumidor, a jurisprudência brasileira admite que o contratante em posição dominante tem obrigações secundárias ou acessórias, não previstas expressamente no convenio, que têm como objeto garantir à outra parte a obtenção da utilidade que esperava de contrato (obrigações de informação ou de cooperação), tanto na fase da formação, como na fase de execução do contrato. Por exemplo, dar valor contratual às promessas publicitárias [47], vai muito além de uma simples interpretação contratual. Quer dizer, a aparência de que uma parte assumiu um compromisso com sua atuação, tem a mesma natureza obrigatória que o compromisso verdadeiro, pois a vontade social supre, em certos casos, a ausência de vontade do contratante. Em definitiva, para determinar os efeitos do contrato se toma em consideração, não só o que uma parte expressa no contrato, mas também o que parece ter querido expressar ou os compromissos que usualmente acostuma assumir.

Este solidarismo contratual se manifesta, portanto, na exigência de que ambos os contratantes atuem com probidade e com boa fé objetiva. Quer dizer, com lealdade contratual. A ideia não é nova. A partir de uma re-interpretação de velhas normas constantes no Direito codificado, a doutrina e a jurisprudência comparadas já tinham dado à equidade contratual ou, se preferir, ao princípio da boa fé objetiva, uma amplitude considerável na execução do contrato. Seguindo esta tendência, primeiro o Código de Defesa do Consumidor, e logo o novo Código Civil do Brasil elevaram a ideia à categoria de princípio legal. Por isso, não basta que cada contratantes evite atitudes reticentes que podam induzir a engano à outra parte, mas também cada contratante está obrigado por um princípio geral de lealdade e de coerência contratual. Disso se deriva que ninguém pode exigir compromissos contratuais de outro, se ele mesmo não se comprometer a fazer o necessário para alcançar os objetivos comuns procurados e esperados por ambos.

Entretanto, a ideia da função social do contrato é uma ideia enigmática que não está isenta de ambiguidades e de problemas. Não só por ser um conceito válvula ou conceito indeterminado que possibilita a intervenção discricionária do juiz no âmbito do contrato, alterando o equilíbrio contratual alcançado pelas partes, mas também pela própria indeterminação do próprio conceito. Com efeito, não está nada claro, quando o legislador se refere à função social do contrato como causa e como limite da liberdade de contratar, se está pensando na função do contrato como categoria jurídica general ou função social da instituição contratual, na função social que tem que ter cada tipo contratual ou cada relação contratual em particular ou, ainda, na função social das obrigações que surgem do contrato para cada uma das partes. Do mesmo modo, também há outras incógnitas difíceis de esclarecer que, dada a originalidade da fórmula, não encontram muito auxílio no Direito comparado. Por exemplo, não se deduz da norma que fala da função social do contrato qual dos poderes públicos, o poder legislativo ou o poder judicial, está legitimado para definir em que consiste essa função social e qual é seu conteúdo material concreto. Tampouco é fácil saber se a função social do contrato tem que estar definida antes do momento genético ou criador da relação contratual, ou tem que ser concretizada na fase de interpretação do contrato, uma vez celebrado, com vistas a seu correto adimplemento [48].


9. Decadência do principio da força obrigatória do contrato

A codificação civil fez da segurança jurídica uma prioridade, e o princípio da força de obrigar do contrato foi um de seus instrumentos principais e mais eficazes. Atualmente a segurança jurídica segue sendo um princípio constitucional [49] e uma exigência primitiva da ordem jurídica, mas no Direito brasileiro atual, tanto o legislador, como o juiz, como a doutrina majoritária insistem em dar maior importância à ideia de equidade ou equilíbrio contratual, a pesar da ambiguidade em que muitas vezes se movem essas opiniões.

O brocardo pacta sunt servanda, foi considerado durante muito tempo paradigma do Direito civil contratual, de tal sorte que, salvo impossibilidade sobrevinda (caso fortuito, força maior), o credor sempre podia exigir a execução forçosa da obrigação contratual. Entretanto, hoje existe uma forte tendência a pôr em questão a irrevocabilidade do vinculo contratual. Em efeito, não só se aceitaram legalmente as teorias, extremamente razoáveis, da lesão e da imprevisão, senão que se geralmente se aceita, usualmente e sem maiores indagações, que a pessoa que se comprometeu contratualmente, pode retratar-se livre e unilateralmente das obrigações contratuais mediante o pagamento dos danos e prejuízos ocasionados. De outra parte, o próprio legislador veio a debilitar ainda mais este princípio, instaurando em alguns contratos especiais uma faculdade de desistência ou de retratação unilateral durante um certo prazo (7 dias em geral) [50]. Assim sendo, que fica então do principio geral da força obrigatória do contrato? Que fica do pacta sunt servanda?

Esta decadência da força obrigatória do contrato é uma consequência indireta da quebra do princípio da autonomia da vontade. Desde que o contrato já não é considerado o resultado exclusivo de um acordo de vontades livres e iguais, senão um processo social complexo no qual intervêm pessoas desiguais e interdependentes, a noção de força obrigatória do contrato é relativa e o Direito das obrigações se transforma. Aparentemente essa transformação deixa passo à equidade e à justiça contratual, que avançam paulatinamente, mas a evolução do Direito contratual a que conduz, no momento, está-se produzindo a costa da segurança contratual em seu conjunto.

Não são alheias a esta transformação as influências que experimenta o sistema jurídico brasileiro procedentes dos sistemas do common law. O poder político e a vitalidade econômica dos países anglo-saxões submetidos ao common law exerce, na vida jurídica, uma influência que se reflete em matéria contratual. Como consequência dessa influência o vinculo contratual já não tem o mesmo significado que no passado, pois em caso de descumprimento contratual a reparação por equivalente tende a substituir à execução in natura. Esta ampliação da noção e do âmbito da reparação pecuniária, em detrimento daquela tradicional da execução forçosa da obrigação, leva a ideia de que o descumprimento contratual não é outra coisa que uma fonte de responsabilidade patrimonial.

Portanto, a colocação no centro da atenção do ordenamento jurídico da justiça do conteúdo contratual, nos situa hoje muito longe do absolutismo do pacta sunt servanda. Porém, esse principio continua sendo, junto à autonomia privada, um principio essencial, desde que não se almejem princípios absolutos. As transformações em curso neste setor levam a uma autonomia marcada por uma proporção, por um equilíbrio, por uma justiça substantiva. Como salienta o professor lisboeta José de Oliveira Ascensão, "o resultado é substancial e enriquecedor. Não matamos o pacta sunt servanda, conjugámo-lo com o rebus sic stantibus. Os factos devem ser observados (principio fundamental de autonomia) rebus sic stantibus (principio fundamental de justiça e de respeito da vinculação realmente assumida)" [51].


10. Globalização econômica, contrato e autonomia privada.

O Estado moderno trouxe a exclusividade ou o monopólio da produção do Direito, como superação dos localismos jurídicos da cultura medieval, do Direito local, dos privilégios. Esse é um dos mais importantes traços da modernidade, no campo jurídico. A globalização coloca as bases de um grande mercado, sem fronteiras definidas e sem diferenças nacionais. Os Estados estão perdendo o controle sobre boa parte dos contratos que realizam seus cidadãos. Todo o aparato legal que se constituiu em torno ao poder legislativo do Estado moderno tem sido desafiado pela globalização econômica, pelas novas formas de contratação, pelo enfraquecimento do Direito nacional, que se torna impotente ante estes fatos [52].

O crescimento da rede global de computadores está gerando novos problemas jurídicos. Tende-se a uma padronização e uniformização de condutas sem precedentes. As fronteiras sofrem um processo de evaporação. O ciberespaço rompe as demarcações territoriais uma vez que o custo e a velocidade da transmissão na Grande Rede são quase que totalmente independentes de localização física. A Internet propicia a realização de inúmeros atos jurídicos, de inúmeros contratos, sem contato pessoal, à distância, para os quais os Estados e suas ordens jurídicas diferenciadas constituem estorvo. As pessoas adquirem produtos e serviços oriundos de outros países, desconsiderando as normas contratuais e tributárias deles.

A globalização econômica cria novas formas de contratação que subvertem radicalmente os ordenamentos jurídicos nacionais de base territorial. No plano jurídico significa um declínio do papel do Estado na produção de Direito e, em particular da lei. De fato, como adverte o professor Paulo Grossi, a globalização significa para o jurista "a ruptura do monopólio e do rígido controle estatal sobre o Direito" [53]. Representa a superação da política pela praxe econômica. O novo Direito globalizado nasce dos fatos e com estes se mistura. E um Direito contratualista e privatizado que tende à efetividade. Uma das consequência é "o deslocamento da produção jurídica em direção aos poderes privados econômicos" [54], passando a competirem com o Estado os códigos de conduta privados e a desenvolver-se um novo Direito negocial, um Direito privado de novo cunho produzido pelos particulares. Ao lado do Estado e do Direito positivo oficial se colocam outros canais de produção e de escoamento do Direito "ligados não mais a vontades políticas soberanas, más a conspícuas forças econômicas, sociais e culturais" [55]. A produção do Direito privado já não é exclusividade do Estado, pois a regulação de condutas contratuais pode derivar de várias fontes sociais concorrentes, que produzem normas jurídicas voluntariamente aceitas por seus destinatários, que tem una eficácia organizadora tão importante como a produzida pelas normas legais.

A realidade virtual que impõe a globalização econômica está criando situações novas, minando o poder de controle do Estado sobre muitas transações contratuais, fragilizando os esforços dos Estados na aplicação das próprias normas protetoras dos consumidores. A Web viabiliza o relacionamento contratual entre pessoas que nem conhecem a localização física da outra parte, nem sua natureza jurídica, nem as normas jurídicas que são aplicáveis à transação. Reina uma completa incerteza sobre que legislação é aplicável ao comércio eletrônico transnacional.

Portanto, nos contratos celebrados à distancia na economia globalizada, prepondera o informalismo, uma nova lex mercatoria que ganha mais força cada dia. As novas formas de contratação exigem renovar permanentemente a confiança entre as partes, pressupõem a cooperação e a lealdade contratual, a continuidade das relações contratuais, o estabelecimento de um sistema de códigos de conduta certificados e de garantias privadas efetivas oferecidas pelas partes e, como complemento, um sistema arbitral ágil, barato, fácil e confiável para resolver os conflitos. Produz-se, portanto, uma tendência à contratualização do Direito. O contrato deixa de ser "lei entre as partes" para converter-se em "consenso", e o princípio de autonomia privada ou autonomia contratual cobra uma nova dimensão, ainda por descobrir e concretizar.


Conclusão

Este panorama, esboçado apressadamente, mostra grandes contrastes com a imagem tradicional do princípio de autonomia da vontade e com sua história recente. As rápidas e importantes transformações que está sofrendo o Direito contratual constituem um fator de desestabilização. Porém, se algumas podem ser consideradas indesejáveis, outras são positivas. O solidarismo contratual é legitimo, a condição de não rompa o frágil equilíbrio entre justiça social e segurança jurídica. O mesmo se pode dizer da quebra da força obrigatória do contrato, que se debate entre a busca da equidade contratual e a necessidade de preservar a liberdade e a vontade dos contratantes. Tanto o legislador como os operadores jurídicos seriam imprudentes esquecendo que um contrato é celebrado, acima de tudo, para ser cumprido e que a insegurança contratual coloca em perigo a ordem econômica e jurídica.

É necessário, portanto, uma reformulação da dogmática contratual, porém e necessário também tomar precauções para que não se rompam esses difíceis equilíbrios entre dois valores fundamentais e complementares: a ordem social e a liberdade individual. Como salienta Arnoldo Wald "trata-se de passar do absoluto para o relativo, respeitando os princípios éticos e sem perder um mínimo de segurança, que é indispensável ao desenvolvimento da sociedade" [56].

Durante o século XIX e boa parte do século XX, o princípio da autonomia privada, apoiado na liberdade individual, tinha tendência a ser considerado como princípio absoluto do Direito contratual e toda regra ou toda obrigação parecia ilegítima se não era livremente aceita. Qualquer interferência do Juiz ou do legislador era impensável, já que dizer contratual era dizer justo. Hodiernamente são a ordem jurídica imperativa, as normas legais de Direito necessário impostas pela autoridade do legislador para tratar de conseguir alcançar a justiça social, as que tomam conta de todo o edifício do Direito contratual, quase asfixiando a autonomia contratual. Dá para pressentir e adivinhar novas mudanças no Direito contratual da sociedade globalizada.

As reflexões aqui esboçadas são fiel reflexo da sociedade hodierna (que luta para superar a modernidade) e de suas aspirações, mas também são reflexo de suas próprias contradições. As novas orientações na teoría do contrato podem significar a criação de uma nova ordem contratual, inspirada nos valores, nos princípios e nas regras constitucionais, mas também podem colocar em risco e desestruturar definitivamente um sistema contratual cuidadosa e pacientemente construído pela reflexão jurídica secular, que ainda hoje está condensado no Código Civil. A erosão do princípio de autonomia privada, embora coloque os juristas ante numerosas incertezas, também lhes situa ante novas provocações e novas expectativas, pois leva consigo o fermento de uma transformação justa e positiva de todo o Direito dos contratos.


Notas

  1. Cf. Clovis de Couto e Silva, A obrigação como proceso, José Bushatsky, São Paulo, 1976, p. 26
  2. Ghestin, J., Traité de Droit Civil. Les obligations. Le contrat: formation, LGDJ, Paris, 1988 (2ª ed), p. 26.
  3. Cf. Humberto Teodoro Junior, O Contrato e Seus Principios, Aide, Rio de Janeiro, 1993, p. 25. Este autor percebe claramente esta ideia. Por isso afirma, falando do Código Civil de 1916, que não faz nenhuma declaração sobre a força obrigatória do contrato, embora proteja «o direito subjetivo nascido do contrato com as mesmas sanções que tutelam as obrigações provenientes da lei (art. 1.056)».
  4. Como exemplo significativo Orlando Gomes, Contratos, Forense, Rio de Janeiro, 1998 (18ª ed.), p. 36. «O principio da força obrigatoria consubstancia-se na regra de que o contrato é lei entre as partes». Mais modernamente Venosa, S., Teoría geral dos Contratos, Atlas, São Paulo, 1997 (3ª ed), p. 26, repete esta mesma ideia: «Un contrato válido e eficaz deve ser cumprido pelas partes : pacta sunt servanda. O acordo de vontades faz lei entre as partes».
  5. Noronha, Fernando, O direito dos contratos e seus principios fundamentais : autonomia privada, boa-fé, justiça contratual, São Paulo, Saraiva, 1994, p. 42
  6. Princípio que a própria Constituição Federal concretiza também em âmbitos socialmente sensíveis como a saúde (art. 199: « A assistência à saúde é livre à iniciativa privada ») e a educação (art. 209 : « O ensino é livre à iniciativa privada »)
  7. Diez Picazo, L., Fundamentos de Derecho Civil Patrimonial, I, Civitas, Madrid, 1996 5ª ed), p. 127.
  8. Como salienta Nalin, P., Do contrato : Conceito Pós-Moderno. Em busca de sua formulação na Perspectiva Civil-constitucional, Jurúa, Curitiba, 2001, p. 169, a expressão volitiva dos sujeitos contratantes « tem sempre um significado essencial para o contrato ».
  9. Art. 41: "L''iniziativa economica privata è libera. Non può svolgersi in contrasto con l''utilità sociale o in modo da recare danno alla sicurezza, alla libertà, alla dignità umana. La legge determina i programmi e i controlli opportuni perché l''attività economica pubblica e privata possa essere indirizzata e coordinata a fini sociali".
  10. Art. 61,1: "A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral".
  11. Art. 38 : « Se reconoce la libertad de empresa en el marco de la economía de mercado. Los poderes públicos garantizan y protegen su ejercicio y la defensa de la productividad, de acuerdo con las exigencias de la economía general y, en su caso, de la planificación ».
  12. Diez-Picazo, Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial, I, cit., p. 126.
  13. Ghestin, J., Traité de Droit Civil, cit., p. 33, põe de manifesto que a liberdade contratual afirmada como princípio, está frequentemente subordinada à ordem pública e à justiça. Também ressalta que, de modo geral, os trabalhos preparatórios do Code civil francês se referiam constantemente à moral, à equidade, à probidade e não aos princípios da filosofia individualista. A mesma atitude pode advertir-se, igualmente, nos primeiros comentaristas do Code civil. Inclusive Cambacérès, no artigo CXLVIII do projeto de Código Civil apresentado em 1794 al Comitê de Legislação determinava: "Les conventions sont susceptibles de toutes les dispositions que la loi ne prohibe pas. Celles qui blessent l’honêteté publique et l’ordre social sont nulles".
  14. O artigo 1134 dispõe: «Les conventions légalement formées tiennent lieu de loi à ceux qui les ont fai. Elles ne peuvent être revoquées que de leur consentement mutuel, ou por les causes que la loi autorise. Elles doivent être exécutées de bonné foi».
  15. Inspirado em Domat, o articulo 6º do Code civil, determinava: « On ne peut déroger, par des conventions particulières, aux lois qui intéressent l’ordre public et les bonnes moeurs»
  16. A ideia de causa aparece no Direito comum na doutrina romanista, especialmente entre os canonistas. A obrigação nasce da vontade do obrigado sempre que existir uma causa que a explique e a justifique. Só o intercâmbio de prestações lícitas e úteis constitui a justificação da validade do pactuado, já que o contrato é um ato humano inserido em um sistema ético e, portanto, algo mais que um simples intercâmbio de consentimentos. Portanto, para a doutrina medieval o contrato só vincula quando reúne condições de veracidade, de moralidade, de reciprocidade e interdependência, de equivalência das prestações.
  17. Inspirado no art. 1135 do Code francês (« Les conventions obligent non-seulement à ce qui est exprimé, mais ancore à toutes les suites que l’équité, l’usage ou la loi donnet a l’obligation d’après sa nature ») substituindo simplesmente o termo equidade, pelo termo boa-fé.
  18. Seu modelo, o Código francês, exige, para a validez do contrato, « une cause licite dans l’obligation » (art. 1108). Por sua parte, o artigo 1131 determina que a obrigação sem causa, ou com causa ilícita não tem efeito; e, o art. 1133, estabelece que a causa é ilícita quando estiver « prohibée par la loi », ou quando for contrária « aux bonnes moeures ou à l’ordem public ».
  19. A ideia de causa como requisito do contrato que acolhe o Código Napoleão se deve especialmente à obra de Domat, no século XVII, já que este autor chega à conclusão de que ninguém se obriga meramente por vincular-se, se não existir uma razão para isso. As críticas à teoria da causa fazem que o BGB e os Códigos civis influídos por ele prescindam desse requisito contratual. A literatura sobre a causa nos paises latinos é farta, e as teorias sobre ela são muito variadas e até contraditórias. Para uma aproximação ao problema da causa vid. De los Mozos, J.L., «La causa en el negocio jurídico », Revista de Derecho Notarial, 1961, pp. 274 y ss ; Id., « Causa y tipo en la teoría del negocio jurídico », Revista de Derecho Privado, 1970, pp. 739 y ss ; Diez Picazo, L., « El concepto de causa en el negocio jurídico », Anuario de Derecho Civil, 1963, pp. 3 y ss.
  20. Isso por não mencionar o papel da autonomía da vontade na determinação do regime económico matrimonial o nas disposições testamentarias.
  21. Lacruz Berdejo, J. L., Derecho de Obligaciones, Teoría General del Contrato, Bosch, Barcelona, 1987, p. 27
  22. Com independência das regras concretas que as reconhecem (por exemplo, o art. 405,1 do DC português de 1966 ao dispor: « Dentro dos límites de la lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver »), essas possibilidades são destacadas em todo o Direito comparado, cf. Dieter Medicus, Tratado de las relaciones obligacionales, I (trad. espanhola de Martinez Sarrión), Bosch, Barcelona, 1995.
  23. Almeida Costa, J., Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 1991 (5ª ed), p. 197.
  24. Por exemplo, os direitos de preempção em interesse publico. Vid., Lobato Gómez, J. M., «Direito de preempção e política urbana », Revista de Direito Imobiliario, 2004 (no prelo).
  25. Conforme o art. 425 do novo CCB : « É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código ».
  26. Conforme propõe o projeto preliminar do Code Europeen des Contrats, elaborado pela Accademia dei Giurisprivatisti europei, no art. 2,1, sob a rubrica Autonomie contractuelle: «Les parties peuvent libremente detérminer le contenu du contract, dans les limites imposées par les règles impératives, les bonnes moeurs et l’ordre public, comme elles sont fixés dans le présent code, dans le droit communautaire ou dans les lois nationales del Etats membres de l’Union européenne, pourvu que par là même les parties ne poursuivent pas uniquement le but de nuire à autrui », Giuffrè, Milano, 2000, p. 3. Um resumo sobre a justificativa de essa regra a cargo do coordenador do projeto, Prof. Giuseppe Gandolfi, nas pp. 120 e ss.
  27. Ascensão, José de Oliveira, «Cláusulas Contratuais Gerais, Cláusulas Abusivas e o Novo Código Civil », Revista de EMERJ, 26, 2004, p. 80.
  28. Carbonnier, J., Droit civil, T. 4,. Les obligations (21ª ed.), PUF, Paris, 1998, p. 137.
  29. Couto e Silva, A obrigação como processo, cit., p. 113.
  30. Noronha, F., O direito dos contratos e seus principios fundamentais.., cit., p. 182.
  31. Lei de Usura de 7 de abril de 1933; Estatuto dá Terra de 30 de novembro de 1964, regulador do arrendamento rural e da parceria agrícola; Lei nº 4.864, de 29 de novembro de 1965, sobre contratos que tiverem por objeto a construção de habitações com pagamento a prazo, ou, em fim a variada legislação de inquilinatos.
  32. Um exemplo paradigmático o constitui o permanente processo inflacionário que exigiu dos poderes públicos a promulgação de diversas normas sobre correção monetária, para fazer frente às consequências negativas dela.
  33. "Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos".
  34. Art. 421 : « A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato »; Art. 422 : « Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé ».
  35. Não deixa de causar certa surpresa que nesse texto legal do S. XXI se recuperem ideias que, a finais do século XVIII, utilizou Cambacérès em seu Relatorio sobre o Código Civil em nome do Comitê de Legislação, o 23 frutidor, do anno II, da Republica Francesa (nove de setembro de 1794). Nesse discurso, depois de declarar o respeito devido ao contrato, em tanto consequência de uma vontade livre e consciente ("libre et éclairée"), continua a dizer: «A lei faz dele uma obrigação e a probidade um dever. Está permitido procurar o interesse próprio, mas não se pode procurar em prejuízo do interesse do outro. Não se pode desprezar o fundamento de todas as obrigações: a boa-fé».
  36. O art. 4º, III CDC inclui, entre os princípios inspiradores das relações de consumo, a "harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores"; o art. 51º, IV, CDC considera nulas de pleno direito as clausulas contractuais que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade ».
  37. Como põe de manifesto Sylvio Capanema de Souza, «O Código Napoleão e sua influência no Direito Brasileiro», Revista da EMERJ, 26, 2004, p. 49, «Coube à doutrina pátria, e, principalmente, à corajosa atuação dos juízes, adotá-la, temperando, em nome da equidade, o insuportável desequilíbrio do contrato, verificando um fato superveniente e imprevisível, que rompesse, de maneira manifesta, a sua equação econômica".
  38. Conforme o § 1º «Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico ».
  39. Pereira, Caio Mario da Silva, Lesão nos contratos, Forense, Rio de Janeiro, 1999, p. 187.
  40. Wald, A., « A evolução da Responsabilidade Civil e dos Contratos no Direito Francês e no Brasileiro », Revista da EMERJ, 26, 2004, p. 111.
  41. Utiliza-se aqui de forma deliberada esta expressão, pois os operadores econômicos atuais não só se ocultam trás a pessoa jurídica para limitar sua responsabilidade ante os possíveis credores, mas também se servem dela criando complexos grupos de empresas, não só para obter economias de escala nos gastos publicitários, senão também para obter maiores benefícios econômicos em prejuízo dos interesses dos consumidores que, em muitas ocasiões, não têm a menor ideia de qual é a pessoa (jurídica) com a que estão contratando.
  42. Martins-Costa, J., « O direito privado como um sistema em construção : as cláusulas gerais no projecto de Código Civil brasileiro », Revista dos Tribunais, 753, 1998, p. 28.
  43. Wald, A., «A evolução da Responsabilidade Civil e dos Contratos...cit, p. 109.
  44. Nalin, P., Do contrato., cit., p. 255.
  45. As teorias objetiva modernas sobre a causa inclinam a identificá-la com a função prática, a função econômico-social e, inclusive, a função social do contrato. Como assevera Orlando Gomes, Contratos, cit., p. 54, «O conceito de causa como função ou fim economico-social do contrato está mais difundido, por ter recebido consagração legal no Código italiano».
  46. Claudio Luis Bueno de Godoy, Funçao social do contrato, Saraiva, São Paulo, 2004, pp. 131 y ss.
  47. O art. 30 do CDC, de forma contundente, dispõe : « Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado ».
  48. Face aos esforços da doutrina, não existem ainda respostas a muitas destas questões e, quando existem, as respostas não são unívocas. Para um excelente resumo do estado da questão Godoy, Funçao social do contrato, cit., pp. 95 y ss.
  49. Ainda que a CF do Brasil não aluda expressamente ao princípio de segurança jurídica, pois as manifestações à « segurança » efetuadas no Preâmbulo e no caput do art. 5º são muito ambíguas, garante a tutela dos direitos adquiridos e dos atos jurídicos perfeitos.
  50. Art. 49 CDC : « O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio ».
  51. Ascensão, José de Oliveira, « Alteração das circunstâncias e justiça contratual no novo Código Civil », cit., p. 190.
  52. Conforme pondera LÔBO, Paulo Luiz Netto. «Direito do estado federado ante a globalização econômica », Jus Navigandi, n. 51, out. 2001, http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=2243: "O meio mais eficiente de desconsideração do direito nacional é o da utilização massificada de condições gerais dos contratos. Sob a aparência de contrato, esconde-se um impressionante poder normativo, dificilmente revelável, que ostenta características assemelhadas às da lei. ..... A globalização econômica potencializou esse poder normativo, que ultrapassa fronteiras, pois as empresas transnacionais utilizam as mesmas condições gerais, emanadas de suas sedes, em todos os países onde fornecem produtos e serviços, apenas vertendo-as ao idioma local, quando o fazem. De modo geral, tangenciam ou desconsideram os sistemas de garantias dos direitos locais, ou pressionam fortemente para mudá-los".
  53. Grossi, P., "Globalización, Derecho y Ciencia jurídica", Materiais do Seminário Mitologias jurídicas da modernidade, CEJUR, UFSC, maio, 2004, p (4).
  54. André-Jean Arnaud, O Direito entre Modernidade e Globalização, trad. de Patrice Charles Wuillaume, Rio de Janeiro, Renovar, 1999, p. 157
  55. Grossi, P., "Globalização e pluralismo jurídico" (a propósito da obra de Maria Rosaria Ferrarese, Le instituzioni della globalizzazione – Diritto e diritti nella società trans-nazionale, Il Mulino, Bologna, 2000), Materiais do Seminário Mitologias jurídicas da modernidade, CEJUR, UFSC, maio, 2004, p (3).
  56. Wald, A., «A evolução da Responsabilidade Civil e dos Contratos...cit, p. 113.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GÓMEZ, J. Miguel Lobato. Autonomia privada e liberdade contratual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2397, 23 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14238. Acesso em: 18 abr. 2024.