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Corrupção política e atividade tributária

Corrupção política e atividade tributária

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RESUMO. O tema corrupção passou a ocupar assento central no debate acerca do poder público brasileiro. A novidade são os temas que colocam em evidência as condutas sutis qualificadas como corrupção política, bem como a íntima relação de interesses entre agentes políticos, públicos e privados. Encontra-se superada, então, a discussão meramente legal, para alcançar outras condutas não tipificadas em lei. Dentro deste contexto, emerge o tema da corrupção na atividade tributária, que por sua vulnerabilidade instrumental e relevância econômica mostra-se capaz de atrair as mais variadas condutas supressoras de recursos públicos, com severos desdobramentos político-sócio-econômicos. Assim, a presente monografia tem o objetivo de discorrer sobre mecanismos de prevenção da corrupção na atividade tributária. Deve ser ressaltado que a principal limitação encontrada na pesquisa refere-se à ausência de dados oficiais e séries históricas sobre a corrupção e seus desdobramentos. Evidente que a própria atuação estatal, através de políticas públicas de prevenção da corrupção, ressente-se da falta de dados e de série históricas. Os resultados da pesquisa indicam que a lei penal não consegue alcançar a totalidade das condutas danosas à Fazenda Pública (corrupção política). Sendo assim, a principal contribuição da pesquisa resulta na exposição de determinadas condutas de agentes políticos e públicos ainda toleradas socialmente. Cabe, então, à sociedade refletir e decidir se o sistema representativo deve ser utilizado para conduzir a um modelo de tributação que favoreça privilégios econômicos privados, em suma, se o modelo de poder baseado em interesses políticos e econômicos indevidos deve suplantar o interesse coletivo. As conclusões da pesquisa apontam que o problema da corrupção não se situa apenas na mera subtração de recursos públicos, mas atinge principalmente a coletividade que deixa de ser destinatária direta da promoção social através da aplicação de recursos públicos na sua manutenção, no seu desenvolvimento e no seu bem-estar. A participação das esferas mais graduadas do poder passa a ser uma preocupação, já que a corrupção encontra guarida na discricionariedade ou do acúmulo de poder. Neste sentido, é patente que a administração tributária encontra-se, atualmente, vulnerável a interferências políticas e econômicas, posto que se amolda a vontade do chefe do Poder Executivo. A corrupção na seara tributária não se encontra adstrita unicamente aos intestinos da administração tributária. Em outras esferas dos Poderes Judiciário e Legislativo também há comportamentos danosos ao Erário Público. Por exemplo, decisões judiciais sem qualquer fundamento, além de ofenderem o sistema normativo vigente e a sociedade, tutelam interesses privados escusos que resultam em prejuízos às receitas tributárias. Na mesma proporção, merecem a devida atenção os privilégios ilegítimos veiculados através da legislação tributária, que vão desde benefícios fiscais extravagantes até a extinção da punibilidade daqueles que cometem crimes contra a ordem tributária.

Palavras-chave: Estado, atividade tributária, corrupção.


1 INTRODUÇÃO

A corrupção é fenômeno antigo que afeta a todas as sociedades em maior ou menor grau, sendo comum a diversos povos e culturas a prática de atos que possibilitam a obtenção de vantagem financeira individual por meio da utilização de cargo ou função pública. Para Ramina (2002, p. 26):

A corrupção tem existido desde a Antigüidade como uma das piores e, ao mesmo tempo, mais difundidas formas de comportamento conflitantes à boa administração dos interesses públicos, quando praticadas por agentes e servidores públicos.

Klitgaard (apud BRÜNING, 1997, p. 14) afirma que "existe corrupção quando um indivíduo coloca ilicitamente interesses pessoais acima dos das pessoas e ideais que ele está comprometido a servir". Nesta mesma perspectiva, Brüning (1997, p. 15) define corrupção pública como o "ato ilícito que tenha por fim proporcionar um benefício privado à custa do patrimônio público".

Jesus (2003, p. 2) faz distinção entre a "corrupção ordinária" e a "corrupção macroeconômica". De acordo com o autor, a primeira "configura a delinqüência comum"; já a segunda "se expressa por um número indeterminado de escândalos que, por seu volume e por girar sempre ao redor de uma inadequada e fraca fiscalização fiscal e aduaneira estatal, afeta o desenvolvimento do país, com gravíssimos danos à sua economia". Com efeito, tal distinção é pertinente, em especial porque a sociedade se volta, em geral, para aqueles atos de corrupção que fazem parte do folclore estatal: a realização de pequenos favores ou facilidades em troca de uns poucos reais, de carteiras de cigarros ou de garrafas de bebidas alcoólicas. Claro que, apesar do restrito dano à coletividade, tais comportamentos também devem ser banidos da administração pública. Entretanto, o que mais interessa, na verdade, é a prevenção a "corrupção macroeconômica", em especial porque há uma potencialidade ofensiva maior e porque estão envolvidas as esferas mais elevadas do poder.

Diferentemente da previsão legal, que tutela apenas a administração pública, o entendimento atual acerca do fenômeno da corrupção indica, de forma clara, que as conseqüências são mais amplas do se possa imaginar. Para a Assembléia Geral das Nações Unidas (RAMINA, 2002, p. 36):

[...] corrupção traz sérios problemas que podem comprometer a estabilidade e a segurança das sociedades, enfraquecer os valores democráticos e morais e desafiar o desenvolvimento social, econômico e político.

Deve ser ressaltado que a corrupção é problema de Estado, posto que a corrupção não é mera conduta praticada apenas contra a administração pública, mas contra a soberania do Estado, a estabilidade democrática, a sociedade, a segurança pública, os direitos de propriedade, a estabilidade econômica, a concorrência de mercado e, em especial, a segurança social.

2.1 PARA ALÉM DOS ASPECTOS JURÍDICOS DA CORRUPÇÃO

O Estado ao produzir o direito emite comandos ou regras que permitem, impõem ou vedam determinadas condutas. Tais regras são produzidas pelo Estado, como no caso de leis, medidas provisórias, decretos, dentre outras espécies normativas; ou por ente não-estatal autorizado a produzi-las, como no caso de convenções coletivas e contratos. Como fato social, a lei deve ser vista como a vontade geral da sociedade expressa em uma norma positivada, com a finalidade última de possibilitar a convivência do ser humano em sociedade.

Em sentido contrário, a corrupção representa, na verdade, a negação do direito positivado, a partir práticas ofensivas às disposições normativas necessárias à existência humana em sociedade. Para Ramina (2002, p. 42) a "corrupção traz arbitrariedade e resulta na negação da norma legal".

O crime de corrupção encontra-se tipificado no Código Penal, conforme disposições a seguir transcritas:

Art. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

Pena – reclusão, de um a oito anos, e multa.

§ 1°. A pena é aumentada de um terço se, em conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.

§ 2°. Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:

Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.

[...]

Art. 333. Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:

Pena – reclusão, de um a oito anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o prática infringindo dever funcional.

No primeiro caso, tem-se a corrupção passiva e, no segundo caso, a corrupção ativa. Contudo, outros tipos legais podem ser encontrados no Código Penal, que também tipificam comportamentos danosos à administração pública, tal como o crime de concussão, tipificado no art. 316, do Código Penal:

Art. 316. Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida:

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa.

§ 1°. Se o funcionário exige tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido, ou, quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza:

Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa.

§ 2°. Se o funcionário desvia, em proveito próprio ou de outrem, o que recebeu indevidamente para recolher aos cofres públicos:

Pena – reclusão, de dois a doze anos, e multa.

Verifica-se a proximidade dos tipos penais previstos nos caput dos arts. 316 e 317, ambos do Código Penal. A diferença básica encontra-se especificada no tipo objetivo, cujo núcleo previsto, no primeiro caso, é ação de exigir vantagem indevida e, no segundo caso, as ações de solicitar, receber ou aceitar promessa de vantagem indevida.

Em relação à atividade tributária faz-se necessário um breve parêntese, já que a Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, reuniu os dois tipos penais, concussão e corrupção passiva, passando a prever um novo tipo penal específico, denominado de crime contra a ordem tributária praticado por funcionários públicos:

Art. 3º. Constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal (Título XI, Capítulo I):

[...]

II – exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela, vantagem indevida; ou aceitar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou contribuição social, ou cobrá-los parcialmente;

Pena – reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.

[...]

Deve-se ressaltar que o tipo penal previsto neste artigo restringe-se exclusivamente a comportamentos comissivos ou omissivos que resulte em não lançamento do tributo ou contribuição social [02]; ou em não cobrança, parcial ou total, de tributo.

No caso de outros comportamentos vedados, mesmos aqueles de interesse da administração tributária, que não guardem relação com o lançamento tributário ou a cobrança de tributos, apesar de praticados por autoridades fazendárias, não poderão ser tipificados como crime contra a ordem tributária, mas como crime de concussão ou corrupção passiva, dispostos nos artigos 316 e 317, do Código Penal.

Apesar da existência de tipos legais, o crime de corrupção apresenta uma particularidade: a imensa dificuldade de produção de provas. Na seara tributária esta natureza fica ainda mais evidente. Em adição à dificuldade de produção de provas que comprovem o cometimento dos crimes de concussão, corrupção passiva, corrupção ativa e outros crimes contra a ordem tributária, depara-se com outros problemas que o texto rígido da lei não pode alcançar, tais como a impossibilidade de rastreamento, uma vez que os recursos envolvidos ainda não integram o patrimônio estatal; ou a não vedação em lei de sutis comportamentos danosos à Fazenda Pública, denominados de interesses político-privado-econômicos.

É dentro deste último contexto, com a finalidade de alcançar aquelas condutas não tipificadas como crime, que emerge posicionamento doutrinário que amplia a concepção de corrupção, para atingir todos os atos danosos ao Estado, independentemente de previsão ou não em lei, conforme esclarece Brüning (1997):

Do ponto de vista político consideramos corrupção a conduta que, na concepção da sociedade, seja ilegítima por pretender um benefício privado à custa do interesse público, não importando se sancionada ou não pelo Direito.

Segundo Jordão (2000, p. 10):

Há autores que entendem corrupção como sendo os atos que ferem as normas de funcionamento da administração pública e privilegiam fins privados. Outros acham que corrupção é algo mais amplo: diz respeito aos atos que vão contra o interesse público de uma maneira mais geral [...]

A idéia de ampliar o conceito da corrupção decorre da visão mais pragmática do Direito, uma vez que a norma positivada não consegue alcançar a totalidade dos comportamentos danosos à administração pública. Ressalta-se, então, a impossibilidade de subsunção da ocorrência concreta ao tipo penal de algumas condutas, já que os comportamentos previstos nos núcleos dos tipos objetivos não coincidem com os realizados: exigir, solicitar ou receber vantagem indevida.

O exemplo mais consolidado vem da sempre problemática tênue separação entre "subordinação" decorrente da relação de trabalho e "atendimento" da vontade político-hierárquica, que resulta em atos de fazer, não fazer ou tolerar, tudo para concretizar, no seio da administração pública, interesses político-privado-econômicos escusos.

2.2 AGENTES DA CORRUPÇÃO

A corrupção não é comportamento exclusivo do setor público, mas de toda a sociedade. A separação dos ambientes públicos e privados é uma mera divisão didática. Em qualquer situação, os agentes que dirigem os espaços públicos e privados são seres humanos e, portanto, pertencentes a uma mesma sociedade.

Para Ramina (2002, p. 25) a "corrupção pode ser vista como um fenômeno da sociedade e, nesse sentido, o conceito ‘corrupção sistêmica’ emerge", de modo que não existe corrompido público se não houver corruptor privado. O Banco Mundial também partilha desta visão:

As causas da corrupção são complexas e podem ser traçadas de um colapso nas relações entre os setores público e privado. Corrupção é um sintoma da disfunção institucional, que prospera onde as medidas econômicas são ditadas inadequadamente, os níveis de educação e a responsabilidade das instituições públicas é fraca. (apud RAMINA, 2002, p. 35).

Na corrupção os interesses entre agentes públicos e privados são indissociáveis. Talvez aqui resida o cerne do problema: a prevenção da corrupção não poderá prever medidas que envolvam apenas o setor público. Faz-se necessário que o setor privado, principal agente fomentador da corrupção, seja igualmente tratado por seu comportamento danoso à sociedade. Neste sentido, Ramina (2002, p. 41) diz:

[...] mais recentemente a corrupção veio a cercar os comportamentos no âmbito exclusivamente privado. Por conseguinte, o setor privado tornou-se também um elemento na definição de corrupção. Isto é relevante, já que as distinções entre os setores público e privado foram obscurecidas pela privatização [...]

Embora não haja consenso em se incluir o setor privado na definição de corrupção, conceitualmente, no entanto, é geralmente aceito o fato de que no âmago do problema está alguma forma de abuso de poder ou improbidade no processo de decisão.

A visão publicista da corrupção é demasiadamente pequena, uma vez que restringe a análise detalhada do problema. A visão deturpada do fenômeno da corrupção tem produzido algumas aberrações, como, por exemplo, induzir a idéia de que a corrupção depende exclusivamente das esferas governamentais. Portanto, a premissa que fundamenta a visão pública do fenômeno induz a aceitar a corrupção apenas como sendo um comportamento de governo ou inerentes aos Poderes do Estado. Na verdade, a corrupção reproduz os valores de cada sociedade, sendo que a intolerância à mesma depende, única e exclusivamente, da aceitação social destes comportamentos infracionais.

Dessa forma, a iniciativa privada passa a ser agente prioritário nos programas de prevenção da corrupção: primeiro, porque é a grande fomentadora da corrupção; e segundo, porque é beneficiária direta dos efeitos da corrupção.

2.3 DANOS COLETIVOS CAUSADOS PELA CORRUPÇÃO

Um dos desdobramentos mais perversos do fenômeno da corrupção é aquele que afeta o desenvolvimento humano. Como fator determinante da qualidade de vida do ser humano, a corrupção tem íntima relação, dentre outras situações, com a ausência social do Estado, com a pobreza e com a má distribuição de renda, enfim com todas as formas de vulnerabilidade social. Neste sentido, a corrupção deixa de ser compreendida como mera conduta de subtração de recursos públicos, passando a ser elemento de fomento a injustiças sociais.

A expressão injustiça social se presta a indicar várias situações de privação e vulnerabilidade social. Como fenômeno multidimensional e dinâmico, a injustiça social advém, via de regra, do esgotamento das políticas públicas.

Entende-se como injustiça social todo acontecimento capaz de atingir a dignidade humana, dentre elas a pobreza, a concentração de renda e a exclusão social, o não acesso aos serviços públicos, como educação e saúde, e a impossibilidade de desenvolvimento social.

Dentro deste contexto, a Convenção Interamericana contra a corrupção, em seu preâmbulo, diz que a "corrupção solapa a legitimidade das instituições públicas e atenta contra a sociedade, a ordem moral e justiça, bem como contra o desenvolvimento integral dos povos".

A OEA (RAMINA, 2002, p.72) afirma que "as práticas corruptas distorcem o processo de desenvolvimento integral a partir do desvio de recursos que seriam necessários para o desenvolvimento das condições econômicas e sociais dos povos". Nessa mesma perspectiva, Carnaúba (2000, p. 22-23) assevera que:

O desfalque das verbas do erário reflete-se diretamente na prestação dos serviços estatais destinados à materialização de alguns dos princípios fundamentais, tutelados pela Constituição, como os referidos no art. 3º desse diploma legal. Em função desses princípios, o Estado tem não somente o poder de punir, mas, acima de tudo, o dever de fazê-lo.

Se o Estado não consegue prestar tais serviços conforme deveria, em função dos prejuízos causados às verbas públicas pelos crimes contra o erário, a população destinatária daqueles serviços estará sendo excluída em seu direito à assistência estatal.

Por sua vez, Jesus (2003, p. 2) aponta outros os inconvenientes coletivos produzidos pela corrupção:

1º) incremento da sonegação de impostos: os funcionários públicos, em face da corrupção, não escolhem os melhores contratos para seu país, mas sim os mais lucrativos para eles próprios; em conseqüência, o Governo arrecada menos impostos e gasta mais;

2º) a economia de mercado não funciona: conseguem melhores contratos, não as mais produtivas companhias, mas as que sabem negociar com as autoridades;

3º) o investimento externo é reduzido porque o suborno apresenta o mesmo efeito de um imposto: configura um custo a mais no balanço das companhias.

Enfim, o custo social da corrupção é enorme, em especial para aquelas nações em desenvolvimento, que ostentam ainda uma indesejável quantidade de pessoas à beira da pobreza e da miséria. De acordo com Gialanella (apud JESUS, 2003, p. 3), a "corrupção prejudica o progresso das nações e, a par da impunidade que a acompanha, debilita as instituições e a moral pública, gerando alto custo, responsável pelo empobrecimento do povo".

O fenômeno da pobreza pode ser compreendido dentro de duas acepções: a absoluta, que associa a pobreza "[...] ao não atendimento das necessidades vinculadas ao mínimo vital" (ROCHA, 2005, p. 11); e a relativa, não mais vinculada à sobrevivência do ser humano, mas ao não atendimento das necessidades individuais dentro de um determinado contexto social.

A pobreza também apresenta outros desdobramentos sociais, representando importante mecanismo de incremento da vulnerabilidade social. A face mais evidente da pobreza evidencia-se através da exclusão social.

A exclusão social é definida como "[...] produto do mundo contemporâneo e a baixa renda passa a ser um dentre um conjunto de outros elementos e condições que potencializam situações de risco e vulnerabilidades" (CARNEIRO; COSTA, 2003, p. 10).

Para Subirats (apud CARNEIRO; COSTA, 2003, p. 10), a exclusão social é:

[...] a impossibilidade ou dificuldade intensa de se ter acesso aos mecanismos de desenvolvimento pessoal e à inserção sócio comunitária e a sistemas pré-estabelecidos de proteção.

Segundo Campos et al (2003, p. 54), "[...] ao conjunto dos tradicionais ‘despossuídos’ do passado, agora se junta uma legião de ‘deserdados’, às vezes com níveis médios de instrução relativamente elevados [...]". Esse fenômeno é registrado nas regiões sul e sudeste do Brasil, onde "[...] um grande número de indivíduos, apesar de escolarizados, de terem experiência de assalariamento formal e possuírem famílias pouco numerosas, encontra-se em situação de desemprego e insuficiência de renda" (POCHMANN; AMORIM, 2003, p. 73).

De forma diversa, as regiões norte e nordeste apresentam um modelo de exclusão social mais amplo, que não se encontra vinculado apenas à ausência de renda. Neste caso, "[...] a vulnerabilidade social, de origem antiga, reflete-se hoje, entre outros aspectos, por um acesso muito restrito à educação, à alimentação, ao mercado de trabalho e ou outros mecanismos de geração de emprego e renda" (POCHMANN; AMORIM, 2003, p. 73).

A conceituação de exclusão social se relaciona, primordialmente, com o estado de pobreza e a ausência social do Estado. Neste sentido, Dupas (2001, p. 34) aponta:

[...] a pobreza como a principal dimensão da exclusão. O enfoque mais conveniente é a pobreza vista como dificuldade de acesso real aos bens e serviços mínimos adequados a uma sobrevivência digna. Nas sociedades contemporâneas, esse acesso é balizado por duas vertentes: a renda disponível, normalmente fruto do trabalho, e as oportunidades abertas pelos programas públicos de bem-estar social (welfare state).

Assim, é admitida a possibilidade de que determinado indivíduo, apesar de possuir renda, venha a ser excluído, por exemplo, da prestação de serviços públicos pelo Estado. Esse é, sem dúvida, na atualidade outro importante fator determinante da exclusão social: a presença pífia do Estado como ente indutor de progresso e bem-estar social, especialmente pela ausência de políticas públicas de combate à pobreza e à ausência de renda.

Existe uma manifesta relação (inversa) entre qualidade dos benefícios sociais ofertados pelo Estado e a corrupção. Neste caso, o Estado torna-se agente indutor de desigualdades sociais intransponíveis. Neste sentido, Jordão (2000, p.19) diz:

[...] a opinião pública parece já ter hoje a percepção de que a corrupção não envolve apenas questões morais ou éticas, mas prejuízos reais para a sociedade, que se traduzem em obras não realizadas, ou mal feitas, serviços públicos deficientes, entre outros problemas.

Com efeito, a subtração de recursos tributários tem o condão de fomentar a vulnerabilidade social, decorrente da impossibilidade financeira de o Estado ofertar à sociedade serviços e bens públicos necessários ao desenvolvimento social e ao bem-estar da coletividade.

Outro fator social relevante induzido pela corrupção é o incentivo à concorrência desleal entre as diversas unidades produtivas privadas, tendo em vista que aqueles agentes privados que corrompem conseguem vantagens indevidas que irão determinar sua permanência no mercado, provocando sérios problemas econômicos, tais como o fechamento de empresas e o desemprego.

2.4 CORRUPÇÃO E CRIME ORGANIZADO

É preocupante o vínculo que se estabelece entre corrupção e crime organizado. A corrupção, além de desviar recursos públicos, tem o condão de possibilitar a legalização de recursos advindos da atividade criminosa organizada. Ramina (2002, p.37) é incisiva ao afirma que a "corrupção é condição necessária para que o crime organizado opere".

Aliás, este não é um fenômeno local ou regional, mas mundial. Segundo Castells (2003, p. 305, v. 2):

A importância do fenômeno, seu alcance global, as dimensões de sua riqueza e influência e seus sólidos vínculos com o mercado financeiro internacional tornaram as relações entre o crime e a corrupção política uma característica que pode ser identificada em muitos dos principais países do mundo.

O tema crime organizado já traz preocupação à Organização das Nações Unidas (RAMINA, 2002, p. 37), que alerta:

O risco é que, devido ao imenso poder que alguns grupos dispõem, o crime organizado pode vir a adquirir poder tão amplo que eles comprometeriam completamente e destruiriam instituições, com conseqüências extremas para a democracia e para a norma legal.

Segundo Jordão (2000, p. 8), a Organização das Nações Unidas "decidiu classificar como delituosos os atos de corrupção vinculados ao crime organizado e redobrar os esforços para combater a corrupção no mundo".

Teixeira (2001) afirma que:

[...] a corrupção prejudica a todos, criando obstáculos às relações comerciais entre Estados e suas empresas, facilitando a prática de outros crimes, como o narcotráfico e a ‘lavagem’ de dinheiro.

A associação entre corrupção e crime organizado floresce em campo fértil e com parca legislação específica. Só agora se desperta para a gravidade da situação, posto que apenas medidas acanhadas são tomadas em sentido de coibir o uso indevido da máquina estatal para legalizar recursos escusos.

No Brasil o problema ganha contornos alarmantes, a tal ponto do crime organizado já disputar sua presença em pé de igualdade com o poder legalmente constituído. O braço assistencialista do crime organizado já atinge boa parte da população mais carente das grandes cidades brasileiras, provocando uma relação de aceitação entre população e crime organizado.

De tudo, o mais inusitado ainda é a aceitação social de determinados padrões de conduta de agentes públicos e/ou políticos que possibilitam a promoção de atividades ilegais que ofendam duplamente a sociedade: primeiro, por subtrair recursos públicos; segundo, por possibilitar que o crime organizado legalize os recursos advindos de suas atividades criminosas, que, posteriormente, serão utilizados contra a própria sociedade através do financiamento do tráfico de armas, de drogas, de seqüestros, assaltos e assassinatos, dentre outros.


3 A ATIVIDADE FINANCEIRA DO ESTADO

O Estado ainda é visto como ente insubstituível na prestação de algumas atividades que o indivíduo, isolada ou coletivamente organizado, não tem condições de realizar. Com a finalidade de atender as demandas coletivas, o Estado desenvolve inúmeras atividades.

As atividades estatais são classificadas em essenciais e complementares. Nas primeiras, segundo Nogueira (1980, p. 2), "O Estado tem de realizá-las sob pena de não ser Estado, como a defesa externa, a manutenção da ordem interna, a atividade financeira, a função de dizer o Direito e essas funções são indelegáveis em razão da indisponibilidade do interesse público [...]". Já as complementares representam os interesses secundários do Estado. Tais atividades podem ser desenvolvidas diretamente pelo Estado ou por terceiros, através de concessões, autorizações ou permissões estatais. No rol de atividades complementares encontram-se, por exemplo, a educação, saúde e o transporte coletivo.

Porém, ao lado das atividades estatais que objetivam a realização do bem comum, o Estado realiza outras de natureza instrumental, como a atividade financeira. Segundo Sousa (p. 4-5 apud BORGES, 1998, p. 27):

Simultaneamente com as atividades políticas, sociais, econômicas, administrativas, educacionais, policiais, etc., que constituem a sua finalidade própria, o Estado exerce também uma atividade financeira, visando a obtenção, a administração e o emprego de meios patrimoniais que lhe possibilitem o desempenho daquelas outras atividades que se referem à realização dos seus fins.

A atividade financeira do Estado pode ser disposta em três momentos distintos, a saber: gestão e planejamento financeiro (orçamento público); obtenção de ingressos públicos (receitas e créditos públicos); e dispêndio de recursos públicos (despesas públicas).

O primeiro momento relaciona-se, primordialmente, com as leis orçamentárias, nos termos do art. 165 da Constituição Federal: plano plurianual (PPA), lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e lei orçamentária anual (LOA); todas de iniciativa do Chefe do Poder Executivo. Para Oliveira (2006, p. 305):

[...] o orçamento se constitui em peça importante no mundo jurídico de hoje, na vida das nações. Deixa de ser mero documento financeiro ou contribui para passar a ser o instrumento de ação do Estado. Através dele é que se fixam os objetivos a serem atingidos. Por meio dele é que o Estado assume funções reais de intervenção no domínio econômico. Em suma, deixa de ser mero documento estático de privação de receitas e autorização de despesas para se constituir no documento dinâmico solene de atuação do Estado perante a sociedade, nela intervindo e dirigindo seus rumos.

Com efeito, as leis orçamentárias representam instrumento normativo de otimização dos recursos públicos, uma vez que é através delas que os entes federados indicam a origem de suas receitas, a destinação dos recursos públicos, bem como a previsão do endividamento público. As leis orçamentárias refletem, portanto, o plano de governo ao revelar as prioridades, em determinado lapso temporal, do Estado. Neste sentido, as leis orçamentárias irão indicar se determinado governo, por exemplo, privilegia o desenvolvimento social ou se seus esforços financeiros concentram-se no mero desenvolvimento econômico do país.

O segundo momento diz respeito à forma de financiamento estatal. O Estado, independentemente da exploração de seu próprio patrimônio, dispõe de fontes eventuais e não-eventuais que propiciam recursos públicos necessários a sua manutenção financeira. Tais recursos podem ser classificados em meros ingressos, ou entradas; e receitas públicas. Os meros ingressos representam entradas provisórias de recursos financeiros no caixa do Estado, sem representar, contudo, qualquer incremento no patrimônio estatal. Ressalte-se que esses recursos estão condicionados à restituição posterior, implicando em recuperação dos valores emprestados ou cedidos ao Estado. Os exemplos clássicos de meros ingressos são as cauções, as fianças, os depósitos recolhidos ao Tesouro e o crédito público, dentre outros. Já as receitas públicas representam ingressos definitivos no caixa do Estado, verificando-se a incorporação dos montantes financeiros ao patrimônio estatal.

Dentre as inúmeras classificações, as receitas públicas podem ser divididas em receitas originárias e derivadas. No primeiro caso, estão incluídas os ingressos de direito privado, tais como as receitas industriais e de serviços, resultantes da exploração do patrimônio do Estado. Aqui, depara-se com atividades estatais equiparável à atividade dos agentes privados. No caso das receitas derivadas, incluem-se os ingressos de direito público, tais como tributos e multas administrativas. Tais receitas resultam do poder de império do Estado, exigidas do patrimônio e rendas dos particulares, cuja aquisição é compulsória. Neste sentido, representam mecanismos estatais de interferência na riqueza privada.

No Estado moderno, as receitas tributárias representam quase a totalidade das receitas públicas, o que deixa transparecer o problema crucial da tributação: a escolha política dos agentes privados que irão suportar a manutenção financeira do Estado.

O terceiro momento da atividade financeira do Estado abarca as despesas públicas. O conceito de despesas públicas tem duas concepções: uma formal e outra material. No primeiro caso, a despesa pública representa uma mera previsão em lei dos dispêndios do Estado, ou de qualquer pessoa de direito público, com serviços públicos, obras públicas e outras atividades estatais. Nesta perspectiva, a despesa pública apenas integra o orçamento público, sendo, portanto, um ato político, uma autorização legislativa para gastos estatais. Já a segunda acepção representa uma aplicação de um determinado montante de recurso público pela autoridade competente, com um emprego concreto das receitas públicas para o custeio das diversas atribuições do Estado.

O dispêndio concreto com as despesas públicas necessita de procedimento administrativo específico, cujas etapas são: prévio empenho, liquidação, ordem de pagamento e efetivo pagamento. Esse procedimento na execução das despesas públicas cria no entorno da administração pública uma zona de confluência de interesses públicos e privados.

O Estado despende recursos públicos na manutenção institucional dos Poderes; gastos com a segurança nacional e na pública; na prestação dos diversos serviços públicos; no pagamento de salários do funcionalismo público; no pagamento da dívida pública e no serviço da mesma; na transferência de renda através de benefícios previdenciários e sociais; na aquisição de produtos, bens, mercadorias e serviço, dentre muito outros. Neste sentido, atualmente o Estado figura como ente de maior capacidade financeira destinada a investimentos; ao consumo de produtos, de bens, mercadorias e serviço; e à transferência de renda, dentre outros.

3.1 ATIVIDADE TRIBUTAÇÃO: RELEVÂNCIA E VULNERABILIDADE

Com o acréscimo de atribuições coletivas, surge para o Estado a necessidade de gerar receitas públicas além daquelas proporcionadas pela exploração do seu próprio patrimônio. A manutenção financeira do Estado passa, então, a ser suportada, prioritariamente, pelas receitas públicas tributárias.

O poder de tributar é inerente ao Estado e decorre do seu poder de império. Para Bastos (1998, p. 97), só Estado "[...] reúne poderes que lhe permitem arrecadar recursos financeiros de forma impositiva e coercitiva, é dizer, com uma força jurídica tal, que independe da vontade individual do contribuinte". O motivo pelo qual o Estado se imiscui na riqueza individual tem fundamento no bem-estar da coletividade, que, como sabemos, sobrepuja o interesse privado. Segundo esclarecimentos de Mello (1995, p.44):

O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é princípio geral de direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência. Assim, não se radica em dispositivo específico algum da Constituição [...] Afinal, o princípio em causa é um pressuposto lógico do convívio social.

Brüning (1997, p.9) ressalta, ainda, que a "supremacia do interesse público, segundo a qual o desejo social de um grupo, comunidade ou sociedade, deve prevalecer sobre o individual, é um princípio ético que, uma vez desrespeitado, abre as portas à corrupção".

Nos dias atuais, a atividade tributária assume relevante preeminência sobre diversos outros setores da administração pública, posto que sem receitas tributárias o Estado tem sua existência material prejudicada. Assim, a Constituição Federal de 1988 previu expressamente as competências e atribuições das administrações tributárias e das autoridades fazendárias, conforme disposições transcritas:

Art. 37. [...]

XVIII – a administração fazendária e seus servidores fiscais terão, dentro de suas áreas de competência e jurisdição, precedência sobre os demais setores administrativos, na forma da lei;

[...]

XXII – as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio;

[...]

Como vemos, a Carta Magna nada mais fez do que reconhecer explicitamente a relevância da administração tributária e, implicitamente, que a mesma é essencial à própria existência fática do Estado. Em outras palavras, mesmo diante da existência formal do Estado, sem as receitas tributárias inexiste, materialmente, o Estado.

Segundo Guadagni (apud BORDIN, 2002, p. 40), "Administração Tributária é a função de Estado que tem por missão otimizar a receita, a fim de viabilizar a satisfação das necessidades coletivas públicas".

O tema administração tributária tem merecido atenção de muitos estudiosos. Bordin e Lageman (apud BORDIN, 2002, p. 36), por exemplo, apontam como fatores de êxito consagrados em matéria de Administração tributária:

[...]

8 – Vontade política de arrecadar impostos para evitar que grupos de pressão importantes fujam à tributação.

9 – Despolitização do órgão fiscalizador, evitando nomeações políticas dos agentes fiscais.

10 – Fortalecimento do órgão fiscalizador: reorganização administrativa e combate à corrupção fiscal.

Diante da atual relevância das receitas tributárias, não é difícil associá-la ao interesse que pode despertar em determinados segmentos. Por isso, torna-se evidente que a responsabilidade financeira atribuída às administrações tributárias é exagerada para ficar sujeita apenas à vontade dos gestores do Poder Executivo. De fato, a falta de independência política da administração tributária a torna refém de interesses escusos pela ausência de mecanismos eficazes de controle das atividades de arrecadação e fiscalização tributária.

A regra é separar a tributação, que é atividade de Estado (permanente), das demais atividades de governo (transitórias). Neste sentido, surge a necessidade do afastamento dos problemas e interesses políticos do cotidiano das atividades de arrecadação e fiscalização tributária.

3.2 INTERFERÊNCIA DOS PODERES POLÍTICO E ECONÔMICO

Baleeiro (apud BORDIN, 2002, p. 15) aponta que o "exercício do poder de tributar é fenômeno de caráter essencialmente político [...]. A escolha dos instrumentos de imposição, na prática, tem obedecido menos a inspirações econômicas do que a considerações políticas".

Com muita felicidade, Teixeira (2001) diz que:

[...] os delitos cometidos contra a Administração Pública, invariavelmente são cometidos por aqueles que detém poder, em maior ou menor escala, o que faz com que disponham de mecanismos mais eficientes para atuar criminosamente, além de poderem mais facilmente apagarem qualquer vestígio de sua atuação.

Ramina (2002, p. 30), ao comentar a definição de corrupção dada pelo Grupo Multidisciplinar sobre Corrupção do Conselho da Europa, esclarece de forma precisa a relação entre poder e fragilidade da administração pública quando diz que "pode-se dizer que a corrupção constitui o efeito combinado do monopólio de poder e da discricionariedade no poder de decisão na ausência de responsabilidade".

Para Grondona (apud BRÜNING, 1997, p. 24) a corrupção política "é muito mais grave [...] Já não se trata de funcionários que cobram baixos salários e, quase como uma extensão da microcorrupção cotidiana, pedem propinas em troca de favores específicos. Neste segundo tipo de corrupção estão envolvidas as autoridades eleitas pelo povo [...]".

A ONU, segundo Ramina (2002, p. 45), "apontou que, quando a corrupção ocorre em altos escalões, é um problema para os subordinados a assunção de uma conduta diferente daquela dos superiores".

Como fenômeno associado ao exercício do poder, a tributação apresenta-se ainda mais vulnerável as indevidas relações entre poder político e atividade pública, já que através da indicação política para as principais funções diretivas é possível dar o viés de conduta das atividades fiscalizatórias. Assim, a administração tributária, muitas vezes, se vê presa ao dirigismo interno, concretizado pelo distanciamento de ações fiscalizatórias de determinada empresa ou setor empresarial. Com isso, uma simples decisão superior tem o condão de impedir, por exemplo, a emissão de ordem de serviço para a execução de auditoria fiscal-contábil destinada à apuração da legalidade dos lançamentos tributários.

Por outro lado, é pertinente supor que boa parte das atividades de coerção à fraude tributária se vê frustrada por iniciativas descabidas de incentivo à sonegação, sempre veiculada sob a forma de diplomas legais. É impossível apurar se a permissão legal para a fraude tributária é fruto da ignorância ou de vontade dirigida do legislador ou do administrador público, sendo que nada muda o resultado, pois as conseqüências são desastrosas para a sociedade.


4 A CORRUPÇÃO NA ATIVIDADE TRIBUTÁRIA

4.1 COMPORTAMENTOS DANOSOS

Os comportamentos danosos à atividade tributária são identificados em todos os três Poderes e percorrem todas as esferas de poder. Tanto no Executivo, no Judiciário, como no Legislativo, dentro do exercício de suas regulares atribuições, é possível encontrar comportamentos danosos à atividade tributária, tipificados como corrupção ou qualificados como corrupção política.

É importante salientar que nem todo comportamento danoso à atividade tributária corresponde a um tipo penal. São meros comportamentos, regulares e legais, que não provocarão nenhuma responsabilização penal, mas que resultarão em subtração, total ou parcial, de receitas tributárias.

São comportamentos inerentes à lógica do poder (Legislativo), à instrumentalização da legislação tributária (Judiciário) e aos comportamentos perante os administrados (Executivo). Não se questiona aqui se os atos emanados dentro da expressa tripartição do poder são ou não constitucionais e/ou legais. A questão central gira em torno de se saber se o modelo do exercício de poder (aspecto político) e sua correspondente positivação legal (aspecto jurídico) atendem as expectativas da sociedade atual.

De forma simplificada os comportamentos danosos à atividade tributária podem ser representados através da seguinte figura:

O quadro acima é meramente exemplificativo e não tem a pretensão de apontar todas as possibilidades de comportamentos danosos à atividade tributária. Presta-se, apenas, a enumerar algumas ocorrências danosas, que em determinadas situações correspondem a crimes tipificados na legislação penal e em outras não se verifica qualquer comportamento vedado. Neste último, estão incluídas aquelas situações políticas e jurídicas ainda aceitas em nossa sociedade, que decorrem do modelo de poder adotado no Brasil e da ordem jurídica imposta pela primeira.

4.1.1 Comportamentos externos

O presente texto não tem a pretensão de tratar da questão dos crimes de corrupção nos intestinos dos Poderes Legislativo e Judiciário. Passando ao largo deste importante problema, aqui serão privilegiados aqueles comportamentos externos à administração tributária, inerentes à tripartição constitucional de Poder, e que direta ou indiretamente atingem a atividade tributária.

4.1.1.1 No âmbito do Poder Legislativo

As disposições constitucionais e legais refletem o modelo político adotado no Brasil. A conotação dada ao vocábulo político relaciona-se com a própria organização social e a institucionalização do Estado. Neste sentido, político indica uma etapa da evolução da sociedade onde um determinado grupo social passa a dominar os demais grupos, prevalecendo, assim, a vontade de uma determinada minoria.

Como se sabe o Estado é um acontecimento artificial, onde o homem se agrupa socialmente sob a égide de um ente que se sobrepõe à autonomia individual. Com o Estado, o homem se organiza politicamente, ou seja, determinado grupo social passa a ter domínio sobre os demais.

Para Harvey (2003, p. 104):

O Estado, constituído como sistema coercitivo de autoridade que detém o monopólio da violência institucionalizada, forma um segundo princípio organizador por meio do qual a classe dominante pode tentar impor sua vontade [...] Os instrumentos vão da regulação do dinheiro e das garantias legais de contratos de mercado leais às intervenções fiscais, à criação do crédito e às redistribuições de impostos, passando pelo fornecimento de infra-estrutura sociais e físicas, controle direto das alocações de capital e de trabalho, bem como dos salários e dos preços, nacionalização de setores essenciais, restrições ao poder da classe trabalhadora [...]

É claro que a idéia de Estado se assenta no exercício do poder, já que o Estado é aquela "instituição social, que um grupo vitorioso impôs a um grupo vencido, com o único fim de organizar o domínio do primeiro sobre o segundo" (OPPENHEIMER,1954, p. 5 apud BONAVIDES, 1995, p. 64),

O Estado é, pois, uma associação de pessoas, uma forma de a "[...] humanidade organizar-se politicamente" (BASTOS, 1996, p. 4). A existência do Estado pressupõe o atingimento de certos fins coletivos, como o bem-estar social.

Desnuda-se, então, a tributação como instrumento do exercício de poder dos grupos político e econômico dominantes. Neste contexto, não é prudente olvidar que sempre "[...] una minoría poderosa se reserva en las sociedades democráticas [...] el monopolio de las grandes decisiones que afectan a millones de ciudadanos" (VARELA; ALVAREZ-URÍA, 1989, p. 22).

Contrapondo-se a vontade geral e em atendimento à vontade dominante, é possível ocorrer o direcionamento da política tributária com o fim de desonerar a atividade econômica privada e imputar o ônus tributário à sociedade. Por exemplo, o Estado pode impor maior carga de tributos sobre o consumo e os salários que sobre o capital, o lucro e o patrimônio, privilegiando, portanto, determinados grupos sociais:

A tributação como fato político está muito ligada à luta de classes por ser este elemento subjacente do fenômeno da conquista e manutenção do poder [...] Tributar – exigir dinheiro sob coação – é uma das manifestações do exercício do poder. A classe dirigente, em princípio, atira o sacrifício às classes subjugadas e procura obter o máximo de satisfação de suas conveniências com o produto das receitas. (BORDIN, 2002, p. 16).

Por outro lado, a política tributária pode privilegiar a tributação indireta e, ao mesmo tempo, desonerar o capital, o lucro e o patrimônio. Pode, também, criar um ambiente jurídico propício ao cometimento de infrações tributárias, seja através de uma legislação tributária complexa, seja através de mecanismos de amparo àqueles que cometem tais infrações, tal como ocorre com o disposto no art. 34, da Lei n° 9.249, de 26 de dezembro de 1995.

4.1.1.1.1 Poder político e política tributária

A tributação tanto possui natureza fiscal, cuja finalidade é obter receitas tributárias; como natureza extrafiscal, que tem como finalidade possibilitar a realização de outras atribuições estatais como, por exemplo, o fomento ao desenvolvimento econômico e social, o controle e o planejamento da economia, do comércio exterior e do câmbio, e a redistribuição da renda. Sendo assim, a tributação, como atividade estatal coordenada e dirigida, também se apresenta na forma de política pública, denominada de política tributária.

A política tributária possui aspectos subjetivos e objetivos. Os aspectos subjetivos dizem respeito à intenção estatal de tributar determinado grupo social, ou seja, dentro de inúmeras possibilidades de imputação tributária, o Estado elege aqueles agentes privados inseridos na sociedade, pessoas físicas ou jurídicas, que devem contribuir para a manutenção do ente estatal.

Os aspectos subjetivos da política tributária só implicitamente vêm expressos nas ações estatais relacionadas com o poder de tributar. Por serem subjetivos antecedem a própria formalização da política tributária, porém, a análise do sistema tributário nacional pode indicar as reais intenções de determinado grupo político dominante.

Os aspectos objetivos da política tributária se relacionam com o arcabouço jurídico-administrativo criado com a finalidade de fazer incidir e cobrar o tributo. Encontram-se aqui, dentre outros aspectos, as diversas espécies de tributos, as estruturas administrativas encarregadas de arrecadar o tributo, os instrumentos jurídicos de cobrança do tributo, sejam eles espontâneos ou coercitivos. É através dos aspectos objetivos da política tributária que a intenção de determinado grupo político dominante se concretiza socialmente.

4.1.1.1.2 Poder político e desoneração tributária

A desoneração tributária da atividade econômica privada pode ser efetuada através de uma política de incentivos fiscais, legalmente denominada de renúncia de receita. A Lei Complementar nº 101, de 04 de maio de 2000, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, dispõe:

Art. 14. [...]

§ 1º. A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

A preocupação com a renúncia de receita tributária [03] é justificável, em especial em atendimento ao Princípio Republicano aplicado à tributação, que determina tratamento tributário isonômico. Com muito zelo, apesar da inexpressiva efetividade, a Constituição Federal de 1988 determina:

Art. 165 [...]

[...]

§ 6º O projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia.

Em flagrante ofensa à disposição constitucional, o Estado brasileiro ainda não dispõe de mecanismos exatos de controle das renúncias fiscais concedidas à atividade econômica privada, via benefícios como isenções, anistias e remissões. É preocupante, também, a ofensa ao princípio da publicidade dos atos da administração tributária, em especial porque são inacessíveis à sociedade informações acerca dos recursos públicos renunciados.

A preocupação com as políticas de renúncia de receitas tributárias decorre da evidente ofensa à sociedade, à economia, à segurança pública, enfim, ao Estado. Só em casos especiais é socialmente aceitável a concessão de benefícios fiscais: primeiro, porque parte considerável da carga tributária brasileira recai sobre as pessoas físicas, através de tributos diretos e tributos indiretos; segundo, porque a concessão à atividade econômica privada de benefícios fiscais redunda em diminuição de disponibilidades financeiras do Estado para gastos sociais.

É interessante apontar que, via de regra, a concessão de benefícios fiscais à iniciativa econômica privada é efetuada de forma graciosa, sem nenhuma contrapartida que onere a pessoa jurídica, como a redução de preço dos bens, mercadorias e serviços, ou o aumento dos postos de trabalho. Representa, então, mera transferência de recursos da sociedade para a atividade privada.

Nesta situação, ocorre o fenômeno que pode ser denominado de privatização dos tributos – toda a coletividade contribui financeiramente com recursos individuais que serão destinados à atividade econômica privada, como se esta por si só não fosse capaz de gerar riquezas. Comportando-se assim o Estado tem contribuído para o aumento da lucratividade das empresas, sem estas, no entanto, despenderem qualquer esforço de gestão ou qualquer contrapartida social. Esse fenômeno representa, apenas, como anotou Chomsky (2002, p. 25), "[...] um subsídio do contribuinte fiscal para o lucro e o poder privados".

Ainda é pertinente dizer que a concessão de benefícios fiscais nos tributos indiretos representa ofensa ainda mais grave à sociedade, porque, neste caso, o ônus tributário não é atribuído à pessoa jurídica, mas àquele que consome. De concreto, a concessão de benefícios fiscais nos tributos indiretos é medida que, além de onerar a sociedade, uma vez que é esta que arca com o ônus tributário, ainda desvirtua a lógica da tributação, na medida em que introduz mecanismo de transferência de riqueza da sociedade para a atividade econômica privada.

No quesito do direcionamento das leis tributárias para atendimento de interesses privados, impera a total irresponsabilidade por danos sociais e financeiros causados pelos agentes políticos. É impossível comprovar se o descuido com a legislação tributária é decorrente da ignorância do legislador ou fruto da intenção deliberada de propiciar ferramental jurídico para ganhos privados indevidos e cometimentos de fraudes contra a Fazenda Pública.

Talvez a evidência mais concreta das relações de interesse entre poder político e atividade econômica venha à tona a partir do financiamento de campanhas eleitorais por empresas detentoras de benefícios fiscais, comportamento este, aliás, ainda não vedado em lei.

4.1.1.2 No âmbito do Poder Judiciário

Alguns comportamentos danosos à atividade tributária praticados no âmbito do Poder Judiciário estão relacionados, primordialmente, a concessão de medida liminar em ações cautelares e de mandado de segurança. Como ato de livre-arbítrio do magistrado, a concessão de liminares resulta do poder de cautela do mesmo.

Como instrumentos processuais que visam afastar temporariamente os efeitos dos atos administrativos impugnados pelo sujeito passivo, há evidente preocupação com as medidas liminares que suspendem a exigibilidade do crédito tributário, conforme art. 151, IV e V, do Código Tributário Nacional, ou que impedem o regular exercício da atividade tributária.

Em determinadas situações a atuação legal da administração tributária é obstaculada através de medidas liminares que impossibilitam a cobrança do tributo contemporaneamente à concretização do fato gerador ou ao cometimento da infração à legislação tributária. Em momento posterior, mesmo diante do lançamento tributário, inexistem instrumentos processuais para reaver os montantes subtraídos aos cofres públicos. É a situação denominada de periculum in mora inverso, que ocorre seja pelo desaparecimento do devedor tributário seja pela impossibilidade material de cumprimento da obrigação tributária. Nestas situações, concretamente o que interessa compreender é que o prejuízo à Fazenda Pública é objetivo e que este independe da subjetiva intenção do magistrado ao decidir o caso concreto. O fato é que, independentemente do dolo ou da culpa do magistrado, a execução fiscal torna-se inócua e nenhum montante do tributo será recuperado.

É necessário salientar que a tributação é atividade de Estado e não mera atividade de governo, que esta atividade é desempenhada dentro dos estreitos limites legais e que, em determinadas situações, uma vez dispensada a cobrança imediata do tributo, fórmulas mágicas, meramente processuais, não possuem o condão de reaver as receitas tributárias.

Não é o caso de se desprezar direitos certos e líquidos do sujeito passivo diante das arbitrariedades cometidas pela administração tributária. A própria Constituição Federal incluiu dentre os direitos e garantias fundamentais a certeza de que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Contudo, a tutela jurisdicional, claro, não poderá sobrepor-se ao interesse coletivo. Neste sentido, o livre convencimento do julgador não autoriza a sua irresponsabilidade pública. Faz-se, então, necessário inquirir se a tutela de direitos e garantias individuais sobrepuja o interesse público e os direitos sociais. A resposta mais imediata a tal questionamento, ao que tudo indica, é que a tutela de direito individual não pode se sobrepor ao direito do Estado obter receitas tributárias, tendo em vista a supremacia do interesse público sobre o interesse privado.

Dentro deste contexto, é possível indicar que a ordem jurídica já dispõe de mecanismo processual simples que tem o condão de afastar o periculum in mora inverso e, consequentemente, o prejuízo financeiro do Estado. É o caso, por exemplo, da contra-cautela, que se materializa com o simples depósito do montante do tributo devido ou estimado, a fim de evitar alteração no equilíbrio das partes, garantindo ao Estado a possibilidade material de lançar e cobrar o tributo em instante posterior à decisão [04]. Por outro lado, o depósito assegura ao sujeito passivo certa tranqüilidade na liquidação de débitos tributários. Para Cassone e Cassone (2000, p. 224):

[...] o depósito é sempre útil, não só ao processo, como também às partes, especialmente ao contribuinte, que se perdedor, poderá encontrar sérios problemas de capital de giro – salvo se procedeu a reserva financeira, o que nem sempre é fácil empreender.

A história recente da jurisprudência no Brasil tem demonstrado o dano irreparável de determinadas decisões liminares. Por exemplo, até a década de 1990 prevaleceu em parte considerável do Judiciário a tese da inconstitucionalidade e ilegalidade da substituição tributária progressiva. Bases econômicas relevantes foram desoneradas temporariamente, tal como as operações de combustíveis, até que a Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 1993, constitucionalizou a matéria. Posteriormente prevaleceu a tese da ofensa ao princípio da não-cumulatividade. Ao final, contudo, o Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, reconheceu à constitucionalidade do regime de substituição tributária, bem como a não ofensa ao princípio da não-cumulatividade (STF, RE 190317/SP, DJU 01/10/99, p.49).

Outro exemplo mais recente envolve as empresa de construção civil. Floresceu a inusitada tese, albergada por parte do Judiciário, de que as empresas de construção civil não se enquadravam dentre os contribuintes do ICMS, sendo, portanto, indevida a cobrança do diferencial de alíquota do imposto estadual nas aquisições interestaduais de insumos (material de consumo). No entanto, as empresas de construção civil pleiteavam, também, a manutenção de suas inscrições estaduais no cadastro de contribuintes do ICMS. É evidente o contra-senso: as empresas de construção civil necessitavam da inscrição estadual para aquisição de insumos com alíquota interestadual, mas para o pagamento do diferencial de alíquota deveriam ser reconhecidas como não contribuintes do ICMS. A intenção é, portanto, adquirir material de construção em operações interestaduais com alíquota de 7% ou 12%, a depender do Estado de origem, e não pagar o diferencial de alíquota devido ao Estado de destino.

Resolvidas as questões jurídicas, resta sempre ao Poder Público saber como recuperar os montantes devidos. Em muitos casos inexistem meios materiais para cobrança dos tributos devidos, restando apenas o prejuízo às Fazendas Públicas.

4.1.2 Comportamentos internos

A obrigação tributária nasce, única e exclusivamente, com a ocorrência concreta de um fato, ato ou situação jurídica tipificado de forma abstrata em lei tributária. Enquanto não se verificar a ocorrência concreta da hipótese prevista em lei, não há que se falar em obrigação tributária.

Não basta, no entanto, que a legislação tributária determine que o sujeito passivo cumpra monetariamente a obrigação tributária. Segundo Coêlho (2002, p. 421):

É necessário que um agente da Administração pratique atos de individualização da norma (ato administrativo de aplicação da lei), subsumindo o fato à norma, determinando os contribuintes e quantificando os que devem pagar, isto é, fixando quanto é devido por cada um a título de tributo (o crédito tributário), quando, como, onde e a quem pagar.

A administração tributária não dispõe de espaço para discricionariedades, pois o Direito Tributário obedece a fórmulas jurídicas rígidas, afastando a subjetividade da relação jurídico-obrigacional tributária. Para Machado (2002, p. 152-153):

A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória sob pena de responsabilidade funcional. Tomando conhecimento do fato gerador da obrigação tributária principal, ou do descumprimento de uma obrigação tributária acessória, que a este equivale porque faz nascer também uma obrigação tributária principal, no que concerne à penalidade pecuniária respectiva, a autoridade administrativa tem o dever indeclinável de proceder ao lançamento tributário. O Estado, como sujeito ativo da obrigação tributária, tem um direito ao tributo, expresso no direito potestativo de criar o crédito tributário, fazendo o lançamento. A posição do Estado não se confunde com a posição da autoridade administrativa. O Estado tem um direito, a autoridade tem um dever.

Como não são autorizados atos discricionários na atividade do lançamento tributário as práticas danosas se voltam para outras atividades, antecedentes ou posteriores à atividade do lançamento tributário. No entanto, a autoridade fazendária que pratica atos distintos daqueles previstos em lei tributária, ao invés de obedecer a vontade legal, cumpre sua vontade própria ou alheia. Neste sentido, Ramina (2002, p. 31) ressalta que:

[...] o elemento coerção ou ameaça de coerção que existe por trás do lançamento de tributos e o fato de que os agentes públicos lidam sempre com o dinheiro do povo trazem razões adicionais para que os agentes públicos sejam mais honestos e justos.

As condutas tipificadas de corrupção ou qualificadas de corrupção política praticadas no interior administração tributária são concretizadas através de mecanismos menos explícitos, já que a lei vincula os atos administrativos do lançamento tributário. Tais condutas seguem dois caminhos bem distintos: o primeiro, diz respeito aos atos mais gerais, posto que refletem o direcionamento da instituição Administração Tributária; já o segundo, representa aqueles atos praticados pelos autoridades fazendárias encarregadas da execução das atividades de fiscalização tributária.

4.1.2.1 Comportamentos institucionais

O entendimento atual acerca da tributação indica sua natureza de atividade de Estado, apartando-a das meras atividades de governo. Contudo, o modelo de administração tributária adotado no Brasil a vincula ao Poder Executivo. Nos Estados democráticos, onde o governo é transitório e as atividades de Estado não podem ser afetadas nos momentos de descontinuidades de governo, a evidente falta de autonomia da administração tributária pode resultar em sérios problemas de direcionamento da atividade tributária. Quando determinado grupo político e econômico democraticamente se instalar no poder, a administração tributária fica vulnerável a determinadas interferências externas. Por exemplo, os cargos que imprimem a direção a ser seguida serão preenchidos, prioritariamente, por aqueles que comungam o mesmo posicionamento político.

Dessa forma, cria-se uma relação estreita entre poder político-econômico e gestores tributários. É claro que cada grupo político dominante imprimirá à administração tributária sua fisionomia para conceder, por exemplo, privilégios não extensíveis aos demais grupos.

É prudente ressaltar que a instituição Administração Tributária não dispõe de vontade própria, sendo, apenas, a síntese da vontade dominante. Logo, por atos institucionais deve ser entendida a associação de vontades e condutas individuais com a finalidade de se chegar um fim comum. Por outro lado, os atos institucionais adquirem autonomia em relação aos atos individuais que o formaram. Passam a ter existência, natureza e força coercitiva distintas daqueles individuais que os originaram. Portanto, para que haja atos institucionais danosos à Fazenda Pública faz-se necessário que gestores tributários e autoridades fazendárias pratiquem, individualmente, atos tipificados de corrupção ou qualificados de corrupção política que, associados, exprimem a vontade dominante e resultem em privilégios não extensíveis aos demais membros da sociedade.

Na atividade tributária é possível apontar atos institucionais que reúnem condutas tipificadas de corrupção ou qualificadas de corrupção política, tais como as concessões de benefícios fiscais indevidos e o direcionamento da fiscalização tributária, dentre outros.

4.1.2.1.1 Concessão de benefícios fiscais indevidos

Na esteira da autorização constitucional para tratamento diferenciado encontram-se instrumentos permissivos de benefícios fiscais que, muitas vezes, denotam fragilidade lógica e jurídica. Muitos dos favores tributários veiculam não um mandamento justo para com a atividade produtiva, mas um encontro de vontades abjetas entre grupo político dominante e iniciativa privada.

Os benefícios fiscais alteram a dinâmica jurídica do tributo, de tal forma que o mesmo se conforme a necessidade empresarial, criando indevidamente espécies privilegiadas de sujeitos passivos que obtém vantagens tributárias que não são estendidas à grande maioria. Assim, ocorre, por exemplo, com a famigerada guerra fiscal entre os Estados, no qual os benefícios fiscais são veiculados através de "termos de acordo", elaborados de forma casuística para atender necessidades empresárias específicas.

O acordo de vontades na seara tributária, além de não autorizado por lei, possibilita a ocorrência de encontros entre gestores tributários, agentes políticos e representantes da iniciativa privada com a finalidade de discutir a carga tributária final, fórmulas de tributação e prazo de recolhimento, dentre outros aspectos, possibilitando um consenso quanto à forma tributação a ser aplicada a determinada empresa ou setor produtivo.

Ao dispensar tratamento tributário individualizado para atender a vontade dominante, a administração tributária desprezará o Princípio Republicano, bem como seu sub-princípio da isonomia. Este fato possibilita a ocorrência de dois fenômenos distintos: primeiro, os gestores tributários e as autoridades fazendárias, pessoas que são, sempre estarão sujeitos a ceder diante pressões ou vantagens de qualquer espécie; e segundo, nem todos os sujeitos passivos têm a facilidade de tramitação dentro do poder público, seja através da via política, seja através do poderio econômico, fazendo surgir uma zona de intermediação de interesses privados no entorno da administração tributária.

Portanto, a concessão de benefícios fiscais só se justifica se houver permissivo legal que estabeleça parâmetros objetivos e relevância social, como a geração de emprego ou redução final dos preços das mercadorias e serviços.

4.1.2.1.2 Direcionamento da fiscalização tributária

A administração tributária pode, indevidamente, direcionar as atividades de fiscalização através da exclusão de determinados sujeitos passivos dos controles e fiscalização tributários.

Diante da imperiosa necessidade de resguardar direitos do sujeito passivo, a lei não atribuiu à autoridade fazendária a competência de escolher quais sujeitos passivos deverão ser fiscalizados. Apenas o Estado, através da administração tributária, detém a prerrogativa de autorizar a autoridade fazendária a adentrar no ambiente privado do sujeito passivo para proceder as verificações necessárias à apuração do tributo devido. A autoridade fazendária carece, portanto, de autonomia, posto que esta não age por vontade própria, mas sob a tutela do Estado. Aliás, a autoridade fazendária, no exercício regular de suas funções, deverá mesmo ser privada de atos próprios, cabendo unicamente à administração tributária, autorizar a realização de qualquer atividade de fiscalização.

O problema não está na ausência de autonomia da autoridade fazendária, tendo em vista que este exerce suas funções constitucionais nos estreitos limites autorizados, mas na manipulação da fiscalização tributária pelo gestor tributário, uma vez que este ao cumprir vontade estranha ao interesse público, poderá afastar a fiscalização tributária de determinados sujeitos passivos.

4.1.2.2 Comportamentos individuais

4.1.2.2.1 Na execução de procedimentos de fiscalização

O Direito Tributário interessa-se pela verdade material ou real. Não se contenta apenas com a verdade formal, qual seja, aquela extraída de documentos e declarações.

As operações tributáveis sempre envolvem elementos monetários, quantitativos e qualitativos. No entanto, a verdade material de tais operações encontra-se restrita ao conhecimento das partes. Faz-se, então, necessária a declaração da existência da operação tributável em toda a sua extensão, passando este a ser formalmente descrito através, por exemplo, de uma nota fiscal, de um contrato ou de qualquer outro instrumento juridicamente aceito.

Os documentos que exteriorizam a verdade formal são meros instrumentos de prova da existência de uma operação tributável. O legislador entendeu que tais documentos não são títulos representativos de bens, produtos, mercadorias, serviços e operações tributáveis, já que é possível a não coincidência entre as verdades formal e material. Por exemplo, pode ocorrer a emissão de documento fiscal que efetivamente não represente uma operação tributável ou, ao contrário, a ocorrência de operação tributável sem a efetiva emissão do documento fiscal.

As informações extraídas de livros e documentos fiscais e contábeis expressam, apenas, a realidade formal das operações tributáveis. Apesar de a administração tributária fazer uso, inicialmente, dos elementos quantitativos das operações formalmente declaradas, não será prudente transformar os documentos fiscais em meio essencial à comprovação da ocorrência do fato gerador e, principalmente, à determinação da base de cálculo. Tais elementos da obrigação tributária poderão ser desvendados através de qualquer um dos meios de prova admitido em lei.

A legislação tributária, quando da descrição da base de cálculo, preocupou-se com o valor da operação, e não com a existência de documento fiscal, restringindo, assim, o elemento quantitativo da obrigação tributária à verdade material. Não que documentos fiscais sejam preteridos, mas diante da incerteza das informações declaradas, preferiu o legislador a realidade material, ou seja, o valor efetivo da operação tributável. Portanto, pouco importa para efeitos tributários a existência ou não de documento fiscal. O que determina o nascimento da obrigação tributária, bem como o montante devido à Fazenda Pública, é a ocorrência efetiva da hipótese de incidência e o valor real da operação tributável.

A simples existência de documento fiscal que acoberte operação tributável não tem o condão de encerrar a responsabilidade tributária. Tal documento, no máximo, comprova a existência da operação, podendo, se necessário, ser trazido à tona a extensão monetária da obrigação tributária através de outros meios de prova admitidos em lei.

O documento fiscal deve ser entendido como mero elemento de prova da existência de operações tributáveis, cabendo sempre a administração tributária, através do devido processo legal, a possibilidade de questionar os valores monetários, quantitativos e qualitativos ali declarados.

A fiscalização tributária se desenvolve, prioritariamente, através da auditoria de livros e documentos fiscais e contábeis. Do confronto da movimentação empresarial com as informações registradas em livros e documentos apura-se parte considerável das infrações tributárias.

O Código Tributário Nacional, em seu art. 194, prescreve que:

Art. 194. A legislação tributária, observando o disposto nesta Lei, regulará, em caráter geral, ou especificamente em função da natureza do tributo de que se trata, a competência e os poderes das autoridades administrativas em matéria de fiscalização da sua aplicação.

Com muita propriedade, Nogueira (1980, p. 242) diz que "conforme a natureza fática ou subjacência do fato gerador, também os métodos de fiscalização, especialmente de investigação, precisam ser adequados". Os procedimentos necessários ao lançamento tributário devem obedecer a esquemas rígidos através da aplicação de métodos contábeis e jurídicos aceitos, de forma a se garantir a segurança jurídica e a exatidão material do crédito tributário.

Dentre as condutas ilegais na execução dos procedimentos de fiscalização pode-se apontar: i) o desprezo aos procedimentos e técnicas de auditoria tributária; ii) a desconsideração ou a manipulação de valores declarados em livros e documentos fiscais e contábeis do sujeito passivo; ou, ainda, iii) o direcionamento dos procedimentos de fiscalização para determinadas contas ou grupos de contas.

No primeiro caso, verifica-se que o desprezo aos procedimentos e técnicas de auditoria é capaz de impedir que a verdade material se exteriorize em sua totalidade. Em qualquer tipo de auditoria, os procedimentos realizados, bem como as técnicas de auditoria, necessitam ter uma aproximação com o objeto auditado. No atual estágio do desenvolvimento da tecnologia da informação é possível aprofundar levantamentos fiscais e contábeis. Esta imensa disponibilidade de processamento de dados foi capaz, por exemplo, de tornar sem relevâncias as antigas técnicas de auditoria por amostragem, possibilitando procedimentos que dão tratamento a totalidade de documentos e operações dos sujeitos passivos. Por exemplo, é ineficaz a realização de levantamento quantitativo de mercadorias, escolhidas por amostragem, na fiscalização tributária de uma empresa varejista, que opera como milhares de mercadorias, já que tal procedimento e técnica apresentam-se inapropriados para alcançar a totalidade das operações tributáveis.

No segundo caso, os livros e documentos fiscais e contábeis podem indicar a existência de operações suspeitas, tais como empréstimos não registrados, vendas ou aquisições subfaturadas ou superfaturadas, ou seja, indícios que podem desvendar bases econômicas relevantes que não foram espontaneamente oferecidos à tributação.

No terceiro caso, ocorre porque mesmo obedecendo a métodos e técnicas fiscal-contábeis, procedimentos tributários podem indicar resultados materiais distintos. Por exemplo, a auditoria da conta Caixa pode apurar uma base de cálculo de R$ 10.000,00, enquanto a conta Fornecedores uma base de cálculo de R$ 1.000.000,00, ambos realizados dentro de parâmetros legais. Como ato-servo da lei, no lançamento não há espaço para discricionariedades com a finalidade de adequar o resultado à conveniência do sujeito passivo ou imputar um maior ônus tributário ao mesmo. Nestes casos, deve prevalecer aquela realidade que mais se aproxima da verdade real.

Dentro desta perspectiva, os procedimentos fiscalização devem ser claros e precisos, os autos devem conter os meios de prova necessários, tudo para assegurar amplas prerrogativas e garantias de defesa do sujeito passivo e permitir a administração tributária rever seus atos. Aliás, todos os atos das autoridades fazendárias devem sempre possibilitar a posterior verificação objetiva e segura dos procedimentos de fiscalização realizados, de forma que o Estado não seja subtraído de seus recursos públicos nem o sujeito passivo seja gravado além do expressamente previsto na lei tributária.

4.1.2.2.2 Na formalização do lançamento tributário

A obrigação tributária cria um vínculo jurídico-obrigacional entre os sujeitos ativo e passivo. Em sua gênese, a obrigação tributária é ainda incerta e ilíquida. Necessário se faz, então, desnudar os elementos da obrigação tributária, em especial seus aspectos quantitativos, de tal forma que o crédito tributário seja conhecido em toda sua extensão monetária.

É através do ato de lançamento tributário que a obrigação tributária se materializa. Por conseguinte, o ato declaratório do lançamento transforma o crédito tributário ilíquido e incerto em líquido e certo. Para Machado (2002, p. 152) lançamento tributário é:

[...] o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, identificar o seu sujeito passivo, determinar a matéria tributável e calcular ou por outra forma definir o montante do crédito tributável, aplicando, se for o caso, a penalidade cabível.

O lançamento tributário é vinculado à vontade da lei. Contudo, ao aplicar a norma tributária ao caso concreto a autoridade fazendária, em desvio de conduta, poderá cometer ilicitudes que vão desde a prevaricação até o excesso de exação.

Dentre as condutas ilegais na formalização do lançamento tributário pode-se apontar: i) erro na capitulação legal das infrações tributárias; e ii) erro na identificação do sujeito passivo. O primeiro, encontra guarida na possibilidade fática de divergências de interpretação da lei tributária e dos resultados dos procedimentos de fiscalização realizados. O lançamento tributário, então, estará eivado de vício na capitulação da infração, resultando em menor montante devido ou em uma multa tributária menor.

Já no segundo caso, o lançamento tributário é formalizado com a indicação equivocada do sujeito passivo ou sem a indicação daqueles agentes privados que deveriam figuram no pólo passivo da relação jurídico-obrigacional, especialmente os responsáveis tributários. O lançamento tributário ao identificar um estranho à relação tributária torna-se nulo ou, ainda, ineficaz, ao apontar como sujeito passivo agente privado incapaz de cumprir a obrigação tributária. Já ao deixar de indicar determinado sujeito passivo, a Fazenda Pública fica impossibilitada de executar a dívida tributária de todos os sujeitos passivos, seja contribuinte ou responsável tributário.


 

A prevenção da corrupção na atividade tributária não prescinde de mecanismos externos e internos de controle. O controle externo se expressa por uma série de medidas do Poder Público no sentido de resguardar a atividade tributária. São medidas que vão desde o incentivo ao controle social, à ampliação da responsabilização penal e financeira de agentes políticos e públicos e à atuação específica do Ministério Público.

O controle social deveria ser efetivado através da publicidade dos dados relativos à atividade tributária. Não basta apenas, por exemplo, dar publicidade ao conteúdo da lei. Faz-se discorrer sobre os privilégios que determinadas normas jurídicas tributárias veiculam, tais como os benefícios fiscais graciosos. Por outro lado, a indisposição do Estado brasileiro em reduzir o fenômeno da tributação a indicadores sócio-econômicos, disponível em séries históricas, demonstra a despreocupação com a coisa pública e a sociedade. Ao evitar a discussão do modelo tributário brasileiro, o próprio Estado impede o controle social da atividade tributária.

Por outro lado, verifica-se a inexistência concreta de mecanismos de responsabilização de agentes políticos e públicos. No âmbito da atividade tributária este problema se exterioriza com mais força ainda. Claro que a mera tipificação de condutas vedadas não altera a realidade financeira. O que se propõe é a criação de mecanismos objetivos de imputação a determinados agentes, independentemente do dolo ou da culpa. Por exemplo, gestores públicos que exorbitam suas competências, em flagrante ofensa à lei, para conceder benefícios tributários sem qualquer justificativa sócio-econômica [05]. Em outras situações, o Poder Judiciário tem afetado negativamente a obtenção de recursos públicos, quando, por exemplo, através de meras fórmulas processuais possibilita a não cobrança do tributo. O distanciamento dos ambientes formal e material é um problema que a norma processual não tem disposição de atacar. É neste sentido que a sociedade exige um maior controle da tutela jurisdicional, especialmente quando há evidente interesse público. Em respeito ao Estado democrático de direito, é de bom alvitre a responsabilização financeira do magistrado, independentemente de dolo ou culpa, quando este exerce imprudentemente seu poder de cautela para concede medidas liminares que, posteriormente, trarão prejuízos à Fazenda Pública.

É evidente que os mecanismos externos de prevenção da corrupção na atividade tributária também passam por uma atuação mais específica do Ministério Público. Diante do evidente interesse público indisponível, qual seja, a viabilidade financeira do Estado, a atividade tributária está a carecer da tutela institucional do Ministério Público, que, por determinação constitucional, compete promover a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

É neste ambiente que emerge a necessidade de curadoria com atribuições específicas de promover atos de proteção à Fazenda Pública, especialmente às receitas tributárias. No entanto, deve ser salientado que o controle externo que pode ser exercido pelo Ministério Público não resulta em interferência nos atos administrativos privativos das autoridades fazendárias, como, por exemplo, a constituição do crédito tributário através do lançamento, a inscrição na Dívida Ativa de débitos tributários e os julgamentos administrativos tributários. Em qualquer situação, devem prevalecer as prerrogativas constitucionais conferidas a cada Poder.

Como atividade de Estado desenvolvida no âmbito do Poder Executivo, compete à administração tributária promover o controle interno a fim de garantir a constituição do crédito tributário, a cobrança administrativa e judicial, o controle da arrecadação e o combate a infrações objetivas à legislação tributária, dentre outros.

Como todo acontecimento social, a tributação sofre evoluções necessárias à sua adequação a uma determinada realidade social específica. Neste sentido, por expressar o resultado da experiência particular de cada sociedade, a tributação não se apresenta una, mas percorre caminhos diversos para se adaptar as peculiaridades sociais de cada nação.

Nesse sentido, é pouco provável a unificação dos diversos sistemas tributários nacionais; porém, é perfeitamente possível detectar as medidas tributárias que são tomadas conjuntamente. Por exemplo, a CIAT (Centro Interamericano de Administraciones Tributarias), entidade que se propõe a modelar os diversos sistemas tributários nacionais, tem por missão "propiciar un ambiente de cooperación mutua, proveer un foro para el intercambio de experiencias entre sus países miembros y países miembros asociados, asistiéndolos en el mejoramiento de sus administraciones tributarias, com base en las necesidades por ellos manifestadas".

A CIAT, através do Manual para las Administraciones Tributarias (ALINK; KOMMER 2000, p. 4), aponta as tendências da tributação, dentre elas:

- meroramiento del cumplimiento – la filosofía del cumplimiento voluntario es el resultado de un enfoque contemporáneo hacia los contribuyentes (2000, p. 10);

- esfurzo por simplificar el sistema tributario – existe una tendencia en las Administraciones Tributarias hacia la simplificación tributaria a fin de mejorar el cumplimiento y reducir costos (2000, p. 8);

- la evolución tecnológica – el ritmo rápidamente creciente del cambio tecnológico tendrá un impacto significativo [...], directo e indirecto sobre las Administraciones Tributarias.

Dentro deste contexto, Bordin (2002, p. 44) aponta as recomendações feitas pela CIAT às administrações tributárias:

a)facilitar o pagamento voluntário [...]

b)ter um Sistema Tributário não complexo;

c)possuir um "Código Tributário Geral" que promova uma relação transparente, eqüitativa e justa entre o fisco e os contribuintes;

d)ter independência e capacidade de atuação para aplicar as leis;

e)tecnologia adequada que compreenda a utilização ampla da internet, da informática de ponta e de sistemas integrais e integrados que cubram todas as áreas funcionais do circuito tributário, proporcionando informação certa, oportuna e suficiente [...]

f)ter sistemas de controle interno;

g)ter recursos humanos suficientes, capacitados, motivados, éticos e comprometidos com a organização e com as necessidades da sociedade.

Diante atual relevância das receitas tributárias, emerge a necessidade de dotar a atividade tributária de mecanismos capazes de identificar, de forma preventiva e corretiva, eventuais mecanismos e comportamentos institucionais danosos ao erário público. Logo, não apenas os atos infracionais, como, por exemplo, a corrupção e a evasão fiscal, necessitam ser combatidas, mas também atos legais e comportamentos institucionais que afetam drasticamente a arrecadação de tributos.

5.1 AUTONOMIA DA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA

A obtenção de receitas tributárias, apesar de sua natureza instrumental, assume caráter relevante na medida em que todas as demais atribuições estatais carecem de recursos financeiros para o seu perfeito desempenho. Assim sendo, a tributação deve ser entendida como atividade de Estado e não de governo. Tal diferenciação passa a ser relevante à medida que os recursos tributários mantêm financeiramente todas as funções estatais desenvolvidas pelos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público. Saliente-se que apesar de a execução da atividade tributária, pelo modelo constitucional atual, ser da competência do Poder Executivo, interessa o seu resultado financeiro aos demais Poderes.

Nessa perspectiva, a independência político-administrativo-financeira é defendida em boa parte dos países, conforme se extrai das palavras de Jenkins (apud BORDIN, 2002, p. 37):

En algunos países se han creado Juntas de Administración Tributaria o ministerios independendientes al Ministerio de Finanzas, com su propio esquema de servicio e escalas salariares, com em objetivo de dotar a las administraciones tributarias de la independencia característica de los Bancos Centrales.

O Manual de Administracíon Tributaria da CIAT (ALINK; KOMMER 2000, p. 30) textualmente diz:

Una Administración Tributaria tiene un componente altamente técnico que debe mantenerse independientemente de los cambios políticos que se puedan producir en el gobierno. La autonomia es básica para el buen desempeno de una Administración Tributaria, especialmente por razones de efectividad y eficiencia en su operación y en la asignación de recursos. Otra razón por la que debe existir la autonomia es para eliminar la influencia política (particularmente en casos específicos e individuales).

Como vemos, a autonomia da administração tributária requer um mínimo de critérios para a sua efetivação. Em primeiro lugar, a autonomia política, já que a tributação é atividade de Estado e não de governo. Entretanto, o grau de autonomia política relaciona-se com o nível hierárquico da norma em que foi estabelecida. Sendo assim, diante da relevância da atividade tributária para a manutenção financeira do Estado, faz-se necessário que a autonomia da administração tributária tenha previsão constitucional, à semelhança daquela prevista para o Ministério Público.

Em segundo lugar, nenhuma autonomia é efetiva sem recursos financeiros. Logo, se faz necessária previsão orçamentária destinada à manutenção das atividades de fiscalização tributária, como, por exemplo, pagamento de pessoal, manutenção patrimonial, aquisição de bens imóveis e móveis e custeio inerentes à própria atividade de fiscalização.

Também é relevante a autonomia administrativa, com quadro próprio de autoridades fazendárias, incluindo atividade-fim (auditores fiscais) e atividade-meio (técnicos fazendários especializados).

Outra questão importante são as garantias mínimas atribuídas às autoridades fazendárias para o desenvolvimento das atividades de fiscalização tributária, que poderiam ser exteriorizadas por meio da garantias, como a inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos e demissão após decisão judicial transitada em julgado.

Contudo, a autonomia administrativa só será efetiva se a própria gestão tributária for autônoma, sem interferências externas. Como atividade de Estado, a tributação não deve ficar sujeita a interferência do chefe do Poder Executivo.

A preocupação com a profissionalização da gestão tributária é relevante na medida em que decisões administrativas podem inviabilizar a própria atividade tributária e, conseqüentemente, a arrecadação de tributos. De modo que é imperiosa a necessidade de que os cargos de gestores tributários sejam privativos do quadro de pessoal ativo fazendário, evitando, desta forma, a transposição de interesses privados para o interior da administração tributária.

Com as devidas cautelas que as analogias requerem, Godoy (2004, p. 9) trata do tema no Direito Tributário americano da seguinte forma:

Capta-se a crítica ao revolving doors, ao anfíbio, aquele que passa do público para o privado, transitando com informações e privilégios. É o vira-casaca, que em nome da liberdade do exercício de profissão vende prestígio e passado por alguns dinheiros. Volta para o serviço público quando seu partido vence as eleições e menos pela competência do que pelo servilismo faz nome, carreira, respeito.

De fato, as restrições aos postulantes ao cargo de gestor da administração tributária, como, por exemplo, ser do quadro ativo das autoridades fazendárias, ter qualificação mínima e tempo de exercício efetivo na função, possibilitarão a melhoria técnico-profissional permanente dos membros da administração tributária, além de impossibilitar que agentes com interesses privados possam se travestir de gestores tributários.

5.2 VALORIZAÇÃO E QUALIFICAÇÃO DAS AUTORIDADES FAZENDÁRIAS

Dentro de sua estrita competência, cada ente federado cria organismo próprio (administração tributária) necessário à verificação da ocorrência do fato gerador, à identificação do sujeito passivo, da base de cálculo e alíquota, bem com da apuração do cumprimento da obrigação tributária. Por suas peculiaridades, a atividade tributária necessita de agentes públicos específicos, cujas atribuições são especificadas na Constituição Federal. Como agentes públicos incumbidos das atividades da gestão tributária, da fiscalização e do controle da arrecadação, as autoridades fazendárias são elementos indispensáveis na prevenção da corrupção.

Nesse sentido, nenhum controle à corrupção na esfera tributária será efetivo se não tiver como princípio a valorização humana e profissional das autoridades fazendárias. Aliás, Bordin (2002, p. 33) aponta a existência de uma "relação direta entre a evasão e o nível de eficiência e efetividade da administração tributária".

A CIAT, em seu Manual de Administración Tributaria (ALINK; KOMMER, 2000, p. 134), esclarece que:

En toda gran organización pública o privada, la gestión dinámica de los recursos humanos es uno de los elementos claves para el funcionamiento óptimo y adecuado cumplimiento de lãs misiones asignadas. Las Administraciones Tributarias no se escapan de esta regla. Más que el mejoramiento de los procedimientos o las herramientas computarizadas, es la calidad de los funcionarios tributarios lo que permite a la Administración Tributaria simultaneamente responde a la creciente complejidad de las reglas tributarias y aumentar los logros de la autoridad pública.

Na 30º Assembléia Geral da CIAT (apud BORDIN, 2002, p. 57), foram aprovados os "Atributos mínimos necesarios para una sana y eficaz Administración Tributaria", que apontam como elementos necessários à integridade e imparcialidade das Administrações Tributárias os seguintes itens:

[...]

3. Normativa que establezca una precisa carrera administrativa regulando los requisitos para el reclutamiento, incorporación y promoción exclusivamente em base al mérito y por medio de consursos.

4. Remuneración del cuadro de funcionarios acorde con la ofrecida en el mercado para similares calificación técnica, deberes y responsabilidades, que posibilite atraer y retener a los indivíduos con la idoneidad necesaria para el desempeno de sus funciones.

A atividade empresarial tem se tornado cada vez mais especializada, com o desenvolvimento de atividades específicas e complexas. De fato, a empresa moderna não fica mais restrita à sua localidade, nem suas atividades são controladas por métodos arcaicos. Ao se inserir no cotidiano da empresa, a autoridade fazendária tem contato com a dinâmica privada, com novas tecnologias, com mecanismos de controle diferentes, com operações mercantis complexas e com profissionais extremamente especializados e qualificados. Dentro deste contexto, Bordin (2002, p. 29) aponta:

O ambiente em que a Administração Tributária atua, isto é, onde exerce a detração fiscal, consubstanciada na sujeição dos contribuintes às normas tributárias, é a economia privada. Esta íntima relação com a realidade econômica reveste a Administração Tributária de características que a singularizam dos outros segmentos da gestão estatal (especialização da atividade tributária).

Em uma atividade extremamente técnica, como a fiscalização tributária, é incisiva a necessidade de qualificação profissional, afastando atitudes voluntariosas, posto que uma decisão errada ou a demora em decidir pode trazer danos irreversíveis ao Estado, bem como ao sujeito passivo.

5.3 SIMPLIFICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO TRIBUTÁRIA

Torna-se pouco efetivo qualquer mecanismo de prevenção da corrupção com um sistema tributário complexo, extenso e que imputa uma onerosidade excessiva à sociedade através de tributos indiretos. A simplificação do sistema tributário, além de ser justa, irá desvendar aqueles empresários e profissionais que se utilizam da sonegação tributária como instrumento de sobrevivência econômica, limitando o esforço do poder público àqueles que cometem infrações tributárias.

O fundamento de uma administração tributária eficiente está em uma legislação tributária simples, de fácil acesso e coerente. Aqueles que se deparam com uma legislação tributária complexa têm grandes possibilidades de descumpri-la, não por vontade dirigida, mas por ignorância quanto ao alcance da norma tributária. Neste sentido, a CIAT (apud ALINK; KOMMER, 2002, p. 121) recomenda:

La legislación tributaria tambiém debe ser suficientemente constante em sus reglas generales de modo que puedan ser conocidas por todos los contribuyentes que tienen que aplicarlas, a la vez que pueden evolucionar para ajustarse al ambiente econónico [...]

Em resumen, una buena legislación es aquélla que sea capaz de ser aplicada e implantada.

Por outro lado, as tarefas executadas pelos membros da administração tributária também merecem tratamento no sentido de simplificá-las. Neste sentido, são as observações de Bordin (2002, p. 28):

As providências para aperfeiçoar e simplificar as tarefas da administração tributária tendem a tornar a política mais eficaz. Da mesma forma, a condução de uma política tributária calcada em sua estrutura fiscal simplificada tende a facilitar a administração dos tributos. As boas práticas internacionais em matérias de administração tributária demonstram efetivamente que medidas de simplificação da estrutura de impostos e de fortalecimento dos órgãos de fiscalização e controle contribuem para a redução da evasão fiscal e conseqüente elevação do nível de receita fiscal.

Na seara tributária, o poder executivo tem sido exemplo constante de afronta à boa técnica de elaboração normativa, através de criação de institutos extravagantes. De fato, aquele que elabora uma norma tributária complicada, inexeqüível ou ilegal deve ser questionado em todas as esferas possíveis, pelos prejuízos e constrangimentos indevidos causados à Fazenda Pública e aos sujeitos passivos.

5.4 PADONIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DOS PROCEDIMENTOS FISCAIS

A relação entre Estado e a sociedade é tutelada pelos parâmetros que a coletividade elegeu como aceitáveis socialmente. Dentro de suas competências, cabe à administração pública especificar como se comportará diante dos administrados, assegurando a toda a coletividade comportamentos adequados, proporcionais e isonômicos. Assim, a descrição detalhada das atividades desempenhadas pelo Estado tem o dever de prever, dentro das opções legalmente permitidas, aquelas que serão adotadas pela administração pública.

A grande necessidade de padronização dos procedimentos administrativos está relacionada com a previsibilidade dos comportamentos do poder público diante do caso concreto, permitindo à coletividade o conhecimento prévio das sistemáticas administrativas.

A conseqüência imediata da padronização das atividades administrativas será a maior harmonia entre poder público e coletividade, posto que a todos será dado saber o modelo de comportamento, desde que autorizado em lei, adotado pela administração pública e como esta se comportará diante dos administrados, evitando contendas desnecessárias.

Aquele que tem seu patrimônio individual afetado pelo tributo detém a prerrogativa de conhecer antecipadamente as atividades administrativas necessárias à interferência estatal. Não basta a lei pura e simples. Torna-se necessário que o Estado diga qual o seu posicionamento administrativo diante da lei em abstrato, afastando da relação jurídico-obrigacional-tributária comportamentos indesejáveis.

O detalhamento de como a administração tributária se comportará diante de sua missão pública, qual seja, a atividade de obtenção de receitas tributárias, harmonizará a relação cotidiana entre administração pública, autoridades fazendárias e sujeitos passivos. Assim, todos se comportarão dentro daqueles estreitos parâmetros estabelecidos pela própria administração pública, tendo como fundamento a Constituição Federal e as leis tributárias.

É claro que a normatização das atividades administrativas tributárias poderão ser objeto de contendas judiciais, posto que em nenhum momento a apreciação judicial poderá ser suprimida. Porém, reconhecida a legalidade das atividades administrativas de constituição, cobrança e controle dos créditos tributários, reguladas através de normas expedidas pela administração tributária, os sujeitos passivos podem se adequar à norma administrativa tributária.


6 CONCLUSÕES

O fenômeno da corrupção tem despertado interesse mundial. A novidade é o foco deste interesse, que se encontra menos direcionados aqueles atos infracionais cometidos por agentes públicos mal remunerados. Atualmente o que mais aflige os Estados, governos e sociedades são os comportamentos que colocam em risco a própria existência do Estado e, consequentemente, a convivência em sociedade, ou seja, aquelas condutas que vão além dos tipos legais previstos na legislação penal.

É que determinados atos do poder público, que albergam interesses privados ilegítimos, estão sob o manto da irresponsabilidade, tal como ocorre com o agente político quando direciona a legislação tributária para determinado fim ofensivo ao interesse coletivo. Ressalte-se que esses comportamentos possuem uma maior potencialidade ofensiva. Assim, o problema da corrupção não se situa apenas na mera subtração de recursos públicos, mas atinge principalmente a coletividade que deixa de ser destinatária direta da promoção social através da aplicação de recursos públicos na sua manutenção, no seu desenvolvimento e no seu bem-estar.

É improvável que recursos públicos elevados sejam subtraídos sem qualquer participação de esferas mais graduadas do poder. Dentro deste contexto, é possível afirmar que os comportamentos relacionados à corrupção encontram guarida na discricionariedade ou do acúmulo de poder ou, até mesmo, do livre convencimento dos agentes políticos e públicos.

Evidentemente que a relação entre poder político-econômico e administração pública tem indicado a insuficiência dos tipos penais. Aliás, a confluência de interesses entre grupos políticos e econômicos é um problema que a democracia, através do sistema representativo, ainda não apresentou solução plausível.

Por outro lado, há determinados comportamentos sutis que não se amoldam ao tipo penal, já que as vantagens individuais são, muitas vezes, custeadas pelo próprio Estado através do pagamento de gratificações, da distribuição de cargos comissionados e da projeção profissional para aqueles que transitam entre os espaços público e privado.

Deve ser ressaltada que a confluência de interesses públicos e privados, a princípio, não representa nenhum comportamento ilícito. Pelo contrário, o Estado, como ente de maior capacidade econômica, despende volumosos recursos na prestação de serviços públicos, tais como prestação jurisdicional, segurança pública, educação, saúde e saneamento; e na execução de outras atividades inerentes ao Estado, tais como segurança nacional, representação diplomática, obras públicas e distribuição de renda. Portanto, parte considerável dos recursos públicos será, obrigatoriamente, destinada ao setor privado, seja porque o Estado exercita seu poder de consumo, seja porque o Estado atua como agente fomentador do desenvolvimento econômico e social.

O problema da corrupção surge quando no entorno da atividade financeira do Estado aparecem interesses privados escusos. Na sua atividade financeira, o Estado desenvolve atos de gestão e planejamento, de obtenção de ingressos públicos e de realização das despesas públicas.

Diante do crescente atendimento das necessidades públicas, não restou ao Estado outra opção a não ser a receitas tributárias, que respondem, hoje em dia, pela quase totalidade das receitas públicas. Então, não é difícil relacionar interesses políticos e econômicos à atividade tributária.

É patente que a administração tributária encontra-se, atualmente, vulnerável a interferências políticas e econômicas, posto que se amolda a vontade do chefe do Poder Executivo. Como atividade de Estado, a tributação necessita de mecanismos de proteção específicos, que resultem na devida autonomia e imparcialidade. As receitas tributárias não atendem a apenas às necessidades do Executivo, mas de toda a estrutura de poder do Estado. Daí a imperiosa necessidade da autonomia político-financeiro-administrativa. Contudo, deve ser sempre ressaltado que a conduta de loteamento político dos cargos e empregos públicos (comissionados), que sempre coloca o subordinado em situação de vulnerabilidade perante o superior hierárquico, ainda é bastante aceita por parte considerável da sociedade brasileira, apesar do evidente déficit democrático e de seu caráter anti-republicano.

É evidente que o dirigismo administrativo, que afasta a fiscalização tributária de determinados sujeitos passivos, em nada coincide com a supremacia do interesse público. Pelo contrário, neste caso há supremacia do interesse privado, já que diante da certeza de não ser atingido o sujeito passivo poderá reduzir de forma ilegal o montante do tributo devido.

É importante, também, indicar que a prevenção da corrupção na administração tributária passa necessariamente pelo fortalecimento dos órgãos fazendários, com investimentos em novas tecnologias da informação, valorização das carreiras fazendárias, capacitação profissional permanente, uso sistematizado da inteligência fiscal e simplificação da legislação tributária. Afora a necessidade de nivelamento de conhecimentos técnicos das autoridades fazendárias, a administração tributária precisa mostrar explicitamente suas intenções na prevenção da corrupção e da interferência política.

Mas, não é só a interferência do Poder Executivo que afeta a administração tributária. A corrupção na seara tributária não se encontra adstrita unicamente aos intestinos da administração tributária. Em outras esferas dos Poderes Judiciário e Legislativo também há comportamentos danosos ao erário público.

Por exemplo, decisões judiciais sem qualquer fundamento ofendem o sistema normativo vigente e a sociedade ao dar guarida às ações fraudulentas na seara tributária. Não raro verifica-se a existência de liminares concedendo favores indevidos, fazendo lembrar a existência de uma verdadeira indústria de liminares.

É evidente que o Estado brasileiro se ressente de instrumentos legais de responsabilização financeira dos magistrados que, por ventura, provoquem danos irreparáveis às receitas públicas. Por isso, faz-se necessário aparelhar o Estado com regras processuais claras e precisas que garantam a satisfação do crédito tributário em momento futuro às decisões monocráticas e/ou cautelares. Neste ponto da evolução democrática, a própria sociedade terá de escolher, de forma amadurecida, se é preferível manter, diante de decisões judiciais que impossibilitem a obtenção de recursos públicos, as garantias dos magistrados ou a manutenção financeira do Estado, ou seja, se as garantias dos magistrados se sobrepõem aos interesses públicos.

Neste sentido, é salutar a criação de mecanismo legal que responsabilize objetivamente e impute ao magistrado, que imprudentemente exerce seu poder de cautela, trazendo danos à Fazenda Pública, o crime de responsabilidade e a responsabilidade tributária solidária, à semelhança do disposto no art. 100, § 6º, da Constituição Federal, e do art. 134 do CTN, respectivamente.

Por outro lado, a mera tipificação de novas condutas delituosas, por ato comissivo ou omissivo, a fim de responsabilizar penalmente os magistrados que causem danos à Fazenda Pública, não tem o condão de satisfazer a pretensão tributária do Estado. Neste sentido, a sociedade deve se socorrer de mecanismos de responsabilização financeira, juntamente com o devedor tributário, de todos aqueles que contribuíram para a subtração de recursos públicos, inclusive os magistrados.

Na mesma proporção, merece a devida atenção os privilégios ilegítimos veiculados através da legislação tributária, que vão desde benefícios fiscais extravagantes até a extinção da punibilidade daqueles que cometem crimes contra a ordem tributária.

Uma renuncia fiscal graciosa, onde o benefício fiscal não implica, por exemplo, em redução do preço da mercadoria, possibilita que a empresa reduza sua carga tributária e, conseqüentemente, obtenha um incremento na lucratividade sem qualquer esforço de gestão. Neste caso, inexistem mecanismos de responsabilização penal e financeira dos agentes políticos. Apenas o controle social poderá ser efetivado no sentido de prevenir e reprimir a edição de legislação tributária inconstitucional ou ilegal, controlar as renúncias fiscais e impedir o financiamento de campanha por empresas que detenham benefícios fiscais, dentre outros.

A supressão total da corrupção é algo improvável de acontecer, posto que diz respeito a elementos subjetivos da ética humana. Não há, então, outro caminho que projetar para o poder público mecanismos objetivos de controle de suas atividades, de tal forma que a sociedade, organizada ou não, possa dispor de meios de controle das atividades que lidam com recursos públicos. Contudo, apenas isto não é suficiente. Sem uma discussão exaustiva do problema será inócuo qualquer ação estatal visando prevenir a corrupção. A própria sociedade precisa agir em sentido contrário à corrupção, tornando-a moral e socialmente inaceitável. Cabe à sociedade refletir e decidir se o sistema representativo deve ser utilizado para conduzir a um modelo de tributação que favoreça privilégios econômicos privados em detrimento do interesse coletivo, em suma, se o modelo de poder baseado em interesses políticos e econômicos indevidos deve suplantar o interesse social.

Claro que o problema da corrupção na atividade tributária deixa transparecer ser mais amplo, já que culturalmente as questões tributárias não são privilegiadas socialmente. De fato, desde a colonização a tributação representou para a sociedade uma invasão indevida no patrimônio privado, representando mera subtração da riqueza. Uma sociedade cujo fundamento da existência é o individualismo privado terá, sem dúvida alguma, sérias dificuldades de absorver, na esfera pública, o princípio da solidariedade intrínseco à vida em sociedade [06].

Por fim, deve ser dito que prestam um desserviço à sociedade aquelas entidades não-governamentais que se propõe a enumerar um ranking de países mais ou menos corruptos, cuja finalidade aparente é reduzir o fenômeno da corrupção à esfera de governo. Além do problema de deturpação, tais "pesquisas" padecem de tratamento estatístico adequado que possam fundamentar qualquer conclusão científica. O modelo estatístico adotado nestas pesquisas de percepção, dirigidas exclusivamente a empresários e executivos de empresas, indica que as amostras não são representativas das populações e, portanto, as conclusões relativas a tais amostras não poderão ser estendida às sociedades locais. Em suma, a opinião de alguns agentes privados não tem o condão de representam, estatisticamente, a realidade sócio-econômico de um determinado país.

A realidade fática das pesquisas de opinião associadas à corrupção tem provocado algum receio em governos locais, uma vez que as entidades patrocinadoras dessas pesquisas, em geral, conseguem atrair a atenção de parte considerável da mídia. A exposição pública da corrupção, de seus agentes e das conseqüências financeiras e sociais, é extremamente importante na prevenção da mesma. Porém, não há qualquer sugestão de que a proposta das entidades não-governamentais seja esta. A exposição à mídia de seus dirigentes e a intenção deliberada de vincular à corrupção apenas ao ambiente público, descredenciam as entidades não-governamentais e as pesquisas de opinião realizadas por elas. Ao mirarem na esfera pública despistam a face mais cruel da corrupção: a aceitação social do fenômeno e a conseqüente participação da esfera privada.

Talvez a sociedade se ressinta de elementos mais concretos para a prevenção da corrupção. Por exemplo, até a presente data inexistem dados quantitativo oficiais que expressem a realidade sócio-econômica decorrente da corrupção. Com isso, a sociedade perde elementos histórico-comparativos do fenômeno da corrupção. A ausência de séries históricas de dados oficiais que expressem indicadores sócio-econômico e de opinião relacionados à corrupção fragiliza qualquer discurso oficial.

Por fim, é possível indicar mecanismos e, até mesmo, política pública de prevenção da corrupção na atividade tributária. Claro que toda e qualquer conduta estatal no sentido de prevenir a corrupção deverá ser objetivamente valorada de forma que os custos de planejamento, implantação e controle possam ser inferiores à subtração de recursos tributários. Neste sentido, é possível apontar as seguintes sugestões:

1. criação de indicadores sócio-econômicos relacionados à corrupção e de pesquisas de percepção sobre a corrupção, mensurados por instituto oficial de estatística, de forma a apreender a dimensão mensurável do fenômeno da corrupção.

2. incentivo estatal ao controle social da atividade tributária, a partir das concepções de educação e cidadania fiscais;

3. criação, em lei processual, de mecanismo de contra-cautela em medidas liminares que suspendem a exigibilidade do crédito tributário, possibilitando a satisfação da dívida tributária em instante processual posterior;

4. criação, pelo Ministério Público, de curadorias específicas para tutelar as receitas tributárias, com o fim de impedir, por exemplo, a concessão de benefícios fiscais indevidos pelo gestor público; e/ou controlar a constitucionalidade e legalidade da legislação tributária.


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Notas

  1. É importante salientar que os dados oficiais carregam, em si, uma preocupação ideológica que muitas vezes falseiam a realidade. A esse respeito, Demo (1995, p. 141) afirma que "[...] o dado é muito mais um produto do que um achado. Nos dados do IBGE não está pura e simplesmente a realidade brasileira, mas uma forma de interpretá-la, certamente mais "oficial" do que real. Isto explica por que do mesmo dado se pode fazer interpretações diferentes e mesmo contraditórias". Também é possível afirmar que dados não-oficiais padecem do mesmo mal: estão eivados de tendências ideológicas. Por isso, pesquisas empíricas devem optar, sempre, por indicar tendências estatísticas, nunca relações deterministas de causa e efeito.
  2. A uma redundância no presente dispositivo legal, posto que a discussão doutrinária acerca da natureza tributária das contribuições sociais há muito foi superada.
  3. Inexistem dados oficiais, isolados ou em séries históricas, que indiquem com precisão os montantes renunciados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
  4. Neste caso a extinção do crédito tributário ocorre através da mera conversão do depósito em renda pública, nos termos do art. 156, VI, do CTN.
  5. Neste caso, o benefício fiscal representa mecanismo estatal de transferência de recursos da sociedade para atividade econômica privada.
  6. Antes de representar uma obrigação, a contribuição individual na manutenção financeira do Estado representa um direito inerente aos agentes privados, pessoas físicas ou jurídicas, cuja contrapartida é a participação efetiva na vida política, econômica e social do país.

Autor

  • Alexandre Henrique Salema Ferreira

    Alexandre Henrique Salema Ferreira

    Professor de Direito Tributário e de Direito Financeiro do Curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Auditor Fiscal da Receita Estadual da Paraíba, Mestre em Ciências da Sociedade pela UEPB e Especialista em Auditoria Fiscal-contábil pela UFPB

    é autor dos livros: - Planejamento tributário no campo de incidência do ICMS.Editora: EDUEP e -Política tributária e justiça social: relações entre tributação e os fenômenos associados à pobreza.Editora: EDUEP

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Alexandre Henrique Salema. Corrupção política e atividade tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2413, 8 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14317. Acesso em: 18 abr. 2024.