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O devido processo legal substantivo no direito penal sob o prisma das teorias de John Rawls e de Jürgen Habermas

O devido processo legal substantivo no direito penal sob o prisma das teorias de John Rawls e de Jürgen Habermas

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Sumário:1. Introdução. 2. Definição e função do Direito Penal. 2.1. Conceito de Direito Penal. 2.2. Função de Direito Penal. 3. Evolução histórica do devido processo legal. 3.1. Origens no Direito Alemão feudal. 3.2. A evolução no Direito Britânico. 3.3. A Magna Carta de 1215. 3.4. A V e XIV Emendas à Constituição dos Estados Unidos. 4. O devido processo legal substantivo entre as teorias de Rawls e Habermas. 4.1. Fundamento constitucional. 4.2. Interpretação rawlsiana do devido processo legal. 4.2.1. O primeiro princípio do Direito Penal segundo a teoria de John Rawls. 4.2.2. O segundo princípio do Direito Penal segundo a teoria de John Rawls. 4.2.2.1. A desigualdade compensatória no Direito Penal. 4.3. Habermas contra a racionalidade instrumental do Direito. 4.4. Razão comunicativa e devido processo legal substantivo. 4.5. Proporcionalidade e respeito à dignidade humana. 5. Considerações finais. 6. Bibliografia.


1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho versa a respeito do princípio do devido processo legal substantivo sob uma perspectiva das teorias de John Rawls (1921-2002) e de Jürgen Habermas (1929 - ), no intuito de demonstrar que o Direito, especialmente o Direito Penal, não pode visto e aplicado de modo meramente formal, dissociado da realidade material, como se os seres humanos fossem sujeitos do "puro dever ser". O princípio do devido processo legal substantivo não é somente um limite à arbitrariedade do Executivo e do Judiciário, mas também do Legislativo. Isto é, a faceta substantiva do devido processo legal é uma garantia do ser humano contra Leis irracionais que mais fustigam do que protegem aqueles que essas mesmas Leis deveriam proteger. Assim, como a própria jurisprudência brasileira [01] reconhece, o devido processo legal não possui uma faceta meramente procedimental, mas também material, constituindo verdadeira garantia dos Direitos Fundamentais no Estado Social e Democrático de Direito.

John Rawls, em sua "Teoria da Justiça", escreveu que existem Direitos inalienáveis, que não podem ser derrogados nem em nome do interesse público ou barganhas de qualquer tipo. Há uma dimensão do ser humano que não pode sofrer interferência do Direito, ou, ainda, que deve ser protegida pelo próprio Direito contra sua intromissão indevida. "Cada pessoa possui uma inviolabilidadade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto, numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais." [02] Como visto nesta citação, pretende-se demonstrar, posteriormente, que a teoria rawlsiana é compatível com o princípio do devido processo legal substantivo.

É uma noção parecida com o chamado "mínimo de liberdade", de Hans Kelsen, que também prescreve limitações ao Poder Legislativo. "No entanto, esta esfera de liberdade apenas pode ser considerada como juridicamente garantida – conforme já pusemos em relevo – na medida em que a ordem jurídica proíba intrusões nela. Sob este aspecto, têm uma especial importância política as chamadas liberdades constitucionalmente garantidas. Trata-se de preceitos de Direito Constitucional através dos quais a competência do órgão legislativo é limitada por forma a não lhe ser permitido – ou apenas o ser sob condições muito especiais – editar normas que prescrevam ou proíbam aos indivíduos uma conduta de determinada espécie, como a prática da religião, a expressão de opiniões e outras condutas análogas." [03]

Jürgen Habermas, herdeiro da tradição da Escola de Frankfurt, repensa o Direito, principalmente no tocante ao formalismo kelseniano. O Direito, para Habermas, não é totalmente separado da Moral. Ambos são complementares. Essa legitimação do Direito [04], através da reconstrução pela teoria da ação comunicativa, impede que certas atrocidades sejam cometidas com legitimidade numa pretensa legalidade. Jamais seria permitido que um ordenamento jurídico como o do Estado Nazista se validasse em nome de uma suposta superioridade e pureza de uma raça em detrimento das outras ao cometer genocídio.

Se a Lei é um parâmetro de objetividade, o princípio do devido processo legal substantivo é um guia da objetividade segundo critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Inicialmente, pode-se dizer que a razoabilidade da Lei elaborada, tal como sua aplicação, não pode afrontar o bom-senso, nem a pena imputada pode ser desproporcional ao ato cometido (por comissão ou omissão). Essa seria a função desse princípio, tal como se pode verificar no texto "O devido processo legal substantivo e o direito penal", de autoria do desembargador Celso Limongi. [05]

Para Limongi [06], o princípio do devido processo legal, processual e substantivo, é a gênese dos demais princípios, abrindo uma nova perspectiva na seara do Direito Penal, no qual, a doutrina predominante dispõe que o princípio da legalidade seria o princípio dos princípios. Os princípios são vetores da ordem jurídica. Portanto, há de se conceituar, inicialmente, o Direito Penal, tal como discorrer sobre as suas funções e características, antes de se adentrar na temática deste texto em interlocução com as teorias de John Rawls e Jürgen Habermas e situar o devido processo legal como o epicentro do ordenamento jurídico penal.


2. DEFINIÇÃO E FUNÇÃO DO DIREITO PENAL

Para Luiz Régis Prado, "Direto Penal é o setor ou parcela do ordenamento jurídico público que estabelece as ações ou omissões delitivas, cominando-lhes determinadas conseqüências jurídicas – penas ou medidas de segurança (conceito formal). Enquanto sistema normativo, integra-se por normas jurídicas (mandatos e proibições) que criam o injusto penal e suas respectivas conseqüências. De outro lado, refere-se, também, a comportamentos considerados altamente reprováveis ou danosos ao organismo social, que afetam gravemente bens jurídicos indispensáveis à sua própria conservação e progresso (conceito material)." [07]

Santiago Mir Puig, por sua vez, oferece uma definição de Direito Penal que engloba, além da responsabilidade penal, a responsabilidade civil. Assim, Direito Penal, para Mir Puig, é "conjunto de normas jurídicas que associam o delito, cometido ou tentado, às penas, medidas de segurança e sanções reparatórias de natureza civil." [08] Não há conflito entre o Direito Penal e o Direito Civil, explica o jurista espanhol, pois se trata de uma opção de política criminal. "Do ponto de vista da política criminal é, pois, mais aconselhável conceber a responsabilidade civil oriunda do delito pelo prisma do Direito Penal. Não significa, necessariamente, uma contradição com a natureza civil como demonstra a perspectiva conceitual. Podem conciliar-se a partir da perspectiva que o Direito Penal também pode se integrar com um meio de natureza civil." [09]

No Brasil, por exemplo, há a ação civil "ex delicto", que confere à vitima a possibilidade de se pleitear indenização, contra o autor, pelos danos sofridos em decorrência de um crime. O próprio princípio do devido processo legal consagrado no artigo 5º, LIV, da Constituição Federal, estabelece que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Essa complementaridade entre os ramos do Direito é confirmada por Luiz Régis Prado. "A respeito dessa natureza constitutiva e sancionatória, convém, de logo, evidenciar que o Direito Penal opera, no contexto mais amplo do ordenamento jurídico, com todos os demais ramos do Direito, numa relação de complementaridade recíproca." [10]

O interelacionamento mais evidente entre os ramos do Direito é o do Direito Penal com o Direito Constitucional, principalmente, nos direitos e garantias contidos nos diversos incisos do artigo 5º da Constituição Federal de 1988.

2.2. Função de Direito Penal

Retomando. Como já explanado, o Direito Penal é o instrumento mais violento de controle de comportamentos dentro da ordem jurídica. E como tal, deve ter uma função bem estabelecida, para evitar arbitrariedades daqueles que comandam a máquina administrativa, o aparato repressivo do Estado (forças armadas, aparato policial), a elaboração das Leis e a aplicação pelo Poder Judiciário. A função do Direito Penal, assinala Luiz Régis Prado, é proteger bens jurídico-penais, que são essenciais ao sujeito e à coletividade. [11]

Para Cezar Roberto Bitencourt, na doutrina brasileira predomina a tese de que a função do Direito Penal é proteger bens jurídicos fundamentais. [12] Os bens jurídicos, contudo, não devem ser identificados meramente como ratio legis, adverte Bitencourt, já que devem ter um sentido social próprio, que é anterior à norma penal. "A proteção de bem jurídico, como fundamento de um Direito Penal liberal, oferece um critério material, extremamente importante e seguro na construção dos tipos penais, porque, assim, será possível distinguir os delitos das simples atitudes interiores, de um lado, e, de outro, dos fatos materiais não lesivos de bem algum." [13] Bitencourt explica a função do Direito Penal:

"A formalização do Direito Penal tem lugar por meio da vinculação com as normas e objetiva limitar a intervenção jurídico-penal do Estado em atenção aos direitos individuais do cidadão. O Estado não pode – a não ser que se trate de um Estado totalitário – invadir a esfera dos direitos individuais do cidadão, ainda e quando haja praticado algum delito. Ao contrário, os limites em que o Estado deve atuar punitivamente deve ser uma realidade concreta. Esses limites referidos materialmente através dos princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade, da ressocioalização, da culpabilidade, etc. Assim, o conceito de prevenção geral positiva será legítimo desde que compreenda que deve integrar todos estes limites harmonizando suas eventuais contradições recíprocas; se se compreender que uma razoável afirmação do Direito Penal em um Estado social e democrático de Direito exige respeito às referidas limitações.

A onipotência jurídico-penal do Estado deve contar, necessariamente, com freios ou limites que resguardem os invioláveis direitos fundamentais do cidadão. Este seria o sinal que caracterizaria o Direito Penal de um Estado pluralista e democrático. A pena, sob este prisma estatal, teria reconhecida como finalidade, a prevenção geral e especial, devendo respeitar aqueles limites, além dos quais há a negação de um Estado de Direito social e democrático." (BITENCOURT, 2006, p. 11-12)

Percebe-se, portanto, que o Direito Penal tem a função de proteger bens jurídico-penais essenciais ao indivíduo e à sociedade. Contudo, existem limites para a elaboração e a elaboração da Lei Penal. Não pode a Lei Penal transgredir certos limites, nem mesmo em nome de uma maioria, numa interpretação ralwsiana da questão, sob pena de violar direitos que são inalienáveis e não estão sujeitos a qualquer tipo de barganha político-criminal. Esses limites são declarados e inseridos na Constituição e na legislação por meio de princípios que limitam a intervenção estatal, no que se refere ao aspecto jurídico-penal, no sujeito. Para Limongi, o mais importante desses princípios é o devido processo legal substantivo, que ora se passa a examinar.


3. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

Não se pretende, obviamente, fornecer um arcabouço histórico completo [14] sobre o devido processo legal substantivo e processual neste texto, pois isso seria tarefa de anos de pesquisa. Apenas se traçam algumas linhas sobre os seus antecedentes históricos no intuito de contextualizar o estudo com relação aos diversos povos (e Estados) que tiveram importância na configuração das expressões jurídicas que hoje parecem ser comuns, mas que, para aquelas épocas, eram um avanço considerável, tão considerável, que seus efeitos ainda ecoarão por muito tempo na seara do Direito, em todos seus ramos.

Pois bem. De volta ao assunto. Apesar de se difundir que a doutrina do devido processo legal substantivo tenha se originado nos países de Common Law, especialmente os Estados Unidos, suas raízes positivas estão no Direito Alemão bárbaro, ensina Ruitemberg Nunes Pereira. [15] Mais precisamente, o devido processo legal tem base num Decreto Feudal datado de 28 de maio de 1037, de Conrado II (1024-1125), imperador romano-germânico da Idade Média, que versava que "nenhum homem seria privado de um feudo sob o domínio do Imperador ou de um senhor feudal (mesne Lord), senão pelas leis do Império (laws of empire) e pelo julgamento de seus pares (judgment of his peers)". [16]

Já havia, portanto, uma noção, ainda que primitiva, do devido processo legal, tanto em seu aspecto material quanto processual, o que demonstrava que na Alemanha bárbara e provinciana era muito mais avançada que os demais países europeus na proteção dos direitos fundamentais, no entendimento de Ruitemberg Nunes Pereira. Note-se, entretanto, que tal proteção dizia mais respeito à vedação da interferência do Império e dos senhores feudais mais na propriedade, que com relação a assuntos político-criminais.

Mas há de se levar em consideração que esse instituto jurídico não teve importância somente com relação ao Direito de Propriedade, servindo como verdadeiro instrumento para evitar a violação de Direitos Fundamentais, inclusive com relação ao jus persequendi e ao jus puniendi. "Lançam-se, portanto, os fundamentos da vontade do soberano: A Lei é o único instrumento capaz de limitar direitos individuais, e, à medida que impõe procedimentos e prevê casos de limitações a direitos, deve, rigorosamente, ser observada, nos estreitos lindes das limitações impostas." [17]

3.2. A evolução no Direito Britânico

As fortes ligações entre os povos germânicos e a Inglaterra explicam a inclusão de diversos dispositivos jurídicos feudais alemães para o Direito Britânico. "Essas ligações políticas e familiares entre a Inglaterra e a Alemanha foram responsáveis pela transplantação do princípio do devido processo legal, ainda revelado pelas expressões Laws of the Empire e Judgment of his peers, constantes do Decreto Feudal de Conrado II, para o Direito Inglês, fenômeno que se dá após a conquista normanda do território britânico, em 1066." [18] Aliás, esclarece Ruitemberg Pereira, a invasão normanda foi o marco evolutivo mais importante na história do Direito Inglês, pois constitui a gênese da formação e posterior consolidação dos princípios que regem contemporaneamente a doutrina constitucional britânica. [19]

A ascensão do normando William, o Conquistador, ao torno da Inglaterra, foi extremamente importante para a conexão entre o Direito Feudal alemão da Alta Idade Média com os direitos constitucionais do Direito Britânico pós-conquista normanda, principalmente pela abertura da Inglaterra às influências dos reis francos. [20] "Tal influência dos reis francos – expressão que, embora equívoca para os nossos tempos atuais, deve ser compreendida como vinculada aos Frankish Kings, de origem germânica (e não francesa) – logo se faz sentir no reinado de Henrique I, que sucedeu no trono inglês após a morte repentina de William, o Conquistador." [21]

O sucessor de William, o Conquistador, outorgou a Carta de Henrique I [22], com o propósito de conter os abusos cometidos no reinado anterior. Henrique I promoveu a renúncia de algumas práticas feudais, como a interferência da autoridade nos direitos do casamento, a usurpação nas disposições testamentárias, por exemplo. Salienta Ruitemberg Barbosa, que na Carta de Henrique I, foram reelaboradas as palavras do Decreto Feudal de Conrado II, com a determinação do "princípio do julgamento das causas pelos compatriotas ingleses, cuja exigibilidade se retrata nas expressões latinas Unusque per pares suos judicandus est, est ejusdem provinciae." [23]

3.3. A Magna Carta de 1215

A Carta de Henrique I serviu de modelo para a famosa Magna Carta de 1215, da época do rei John, the Lackland. [24] O rei John logo que assumiu o trono, em 1199, aumentou muito a carga tributária, violando muitas vezes os direitos já consolidados dos nobres, para custear uma guerra contra a Normandia. [25] John também contraiu atritos com a Igreja, pois não conseguiu emplacar John Grey como sucessor de Hubert Walter, seu grande conselheiro depois de sua mãe, Eleanor, como arcebispo da Inglaterra. O monarca aliado a monges de Canterbury e alguns bispos peticionam ao Papa Inocêncio III que consagrasse John Grey como arcebispo, em lugar do recém-consagrado Stephen Langdon. O Papa rejeitou a petição e convenceu os religiosos a elegerem Stephen Langdon.

John, the Lackland, não recebeu o novo arcebispo. Como represália, a Igreja interditou o reino em 23 de maio de 1208. No próximo ano, o rei foi excomungado pela Igreja Católica Apostólica Romana. O rei confiscou as terras da Igreja na Inglaterra, provocando a fuga de muitos bispos do país. Já em 1211, o Papa ameaçou John, escrevendo-lhe que se não se submetesse às ordenanças do Vaticano, uma bula papal seria elaborada para destitui-lo do trono, livrando todos os súditos do seu dever de obedecer-lhe. A execução da sentença foi incumbida pelo Papa ao rei Felipe, da França. John também temia vinganças dos barões ingleses, insatisfeitos.

Diante dos acontecimentos, John resolveu submeter-se às ordenanças papais, aceitou o Langdon como arcebispo e restituiu as propriedades da Igreja. Mas isso não foi suficiente. Com a ameaça de guerra com a França, os barões ingleses não deram apoio. Os barões ainda abririam guerra contra o reino se suas liberdades civis não fossem restauradas. Depois de diversas desavenças entre os barões e o rei, John encontrou-se praticamente sem forças de resistência. Em 15 de junho de 1215, John assinou, no campo de Runnymede, a carta de exigência dos barões ingleses, a "Great Charter of Liberties", [26] em latim Magna Charta Libertatum. Paz, por enquanto, na Inglaterra. A Magna Charta foi reeditada diversas vezes. A mais significativa, porém, foi a realizada durante o reinado de Eduardo III, em 1354, por um legislador desconhecido. [27]

"Numa dessas inúmeras reedições, aparece pela primeira vez a expressão due process of law (nisso sim se reconhece a inovação, inovação essa sobre o aspecto formal ou lingüístico – significante – e não sobre o aspecto material ou contenudístico – significado), atribuindo a construção material do Direito Germânico Medieval a roupagem lingüística mais adequada ao Direito Moderno, substituindo-se assim a expressão latina legale judicium parium suorum, conforme constava no Decreto Feudal de Conrado II, na Carta de Henrique I e na Magna Carta de 1215, pela expressão inglesa due process of law." (PEREIRA, 2005, p. 56)

A redação que consagrou o devido processo legal [28], no artigo 39 da Magna Carta, é a seguinte: "Nenhuma pessoa, qualquer que seja sua condição ou estado, será privada da sua terra, da sua liberdade, da sua herança, banido, nem molestado, nem submetido à pena de morte, sem que antes responda às exigências do devido processo legal." [29] Sem mais delongas, é o que importa relatar sobre o desenvolvimento histórico do due process of law na Inglaterra. Parte-se, no próximo tópico, para o seu desenvolvimento nos Estados Unidos, de onde se importou o princípio do devido processo legal substantivo para o Brasil.

3.4. A V e a XIV Emendas da Constituição dos Estados Unidos

De acordo com Celso Limongi, Ada Pelegrini Grinover diz que o artigo 39 da Magna Carta inspirou diretamente o due process of law da Constituição dos Estados Unidos. Num primeiro momento, o due process of law foi utilizado nos Estados Unidos no sentido de law of the land [30], ou seja, com um caráter mais processual e de garantia de legalidade, que substantivo propriamente dizendo. No entanto, prossegue Limongi, além de legalidade, teve nos Estados Unidos, um significado de garantia de justiça contra eventuais arbitrariedades e absurdos do Poder Legislativo. Uma justiça que vinculasse todos os poderes do Estado, ao contrário da Inglaterra, onde jamais se concebeu que esse princípio pudesse ser invocado contra um ato do Parlamento.

Nos Estados Unidos, o devido processo legal passou a ser um limite para os atos legislativos do Congresso Nacional, servindo de suporte para a ação da Suprema Corte na declaração de invalidade de Leis inconstitucionais. O texto original da Constituição dos Estados Unidos, aprovado na Convenção da Filadélfia, não faz menção expressa ao due process of law, muito menos a Declaração da Independência dos Estados Unidos. A inclusão do termo due process of law, segundo Limongi, só se deu em 1791, com a V Emenda à Constituição. A V Emenda à Constituição dos Estados Unidos, nas palavras de Limongi, serviu para evitar abusos da Federação. [31] A sua redação é a seguinte:

"Nenhuma pessoa responderá por crimes capitais, ou outros crimes infames, sem a presença ou processamento diante de um júri, exceto nos casos de rebelião das forças de terra ou navais, nas milícias, quando em exercício em tempos de guerra ou calamidade pública; nenhuma pessoa pode ser julgada duas vezes pelo mesmo crime; nenhuma pessoa pode ser obrigada a testemunhar contra si mesma, em qualquer processo criminal, nem ser privada da sua vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; nenhuma propriedade privada poderá ser utilizada para finalidades públicas, sem a justa indenização." [32]

Posteriormente, a XIV Emenda à Constituição dos Estados Unidos estabeleceu limites aos abusos (e abusos eventuais, em potencial) do poder dos Estados-Membros. Transcreve-se neste texto somente a seção 1 da XIV Emenda:

"Seção. 1. Todas pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos sujeitam-se à jurisdição dos Estados Unidos e dos Estados-membros onde residem. Nenhum Estado-Membro pode elaborar ou aplicar qualquer Lei que violem os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; não podem os Estados privar qualquer pessoa da sua vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal; não pode ser negada a qualquer pessoa, na competência da jurisdição em que está inserida, a proteção igualitária das Leis." [33]

Apesar da consagração no texto constitucional por meio das emendas V e XIV, o due process of law ainda foi utilizado nos Estados Unidos, por meio tempo, como proteção das garantias processuais, tal como o era quando vigia a terminologia law of the land, herança do Direito Inglês. Mais tarde, porém, passou a ser vislumbrado no seu aspecto substantivo, no tocante à imposição de limites aos atos do Legislativo e como escudo contra a violação de Direitos Fundamentais. A consolidação desse aspecto substantivo, conforme Ruitemberg Nunes Pereira, se deu nos Estados Unidos com maior força a partir da segunda metade do século XIX. [34] A seguir, no próximo tópico deste texto, a contextualização do devido processo legal substantivo no ordenamento jurídico constitucional e penal brasileiro, tal como sua interpretação à luz da teoria da justiça de John Rawls e da teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas.


4. O DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANTIVO ENTRE AS TEORIAS DE RAWLS E HABERMAS

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, LIV, dispõe que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Celso Limongi vê tamanha importância no princípio do devido processo legal que, para ele, "todos os demais princípios também relativos ao processo, como o princípio do contraditório, da igualdade das partes, da publicidade dos atos processuais etc. e princípios de vital importância como o da reserva legal e da irretroatividade da Lei, são corolários, os primeiros, do devido processo legal processual, e estes últimos, do processo legal substancial." [35]

O devido processo legal substancial, segundo Limongi, está contido entre os valores constitucionais e serve de guia não só para o Direito Penal (objeto deste estudo), mas também para os outros ramos, como o Direito Civil, Direito Comercial, Direito Administrativo, Direito Tributário, entre os demais. "Francesco C. Palazzo distingue princípios de Direito Penal Constitucional e princípios constitucionais ou valores constitucionais. Estes apresentam conteúdo heterogêneo e, ‘por isso, não exatamente característicos do Direito Penal; impõem-se tanto ao legislador civil, ou administrativo, como ao penal que intervier – não raro de forma necessária – na respectiva matéria’ e, antes, esse autor incluiu o princípio da legalidade do crime e da pena entre os princípios de ‘Direito Penal Constitucional’." [36]

Percebe-se nitidamente o controle judicial, no que tange o aspecto substancial do devido processo legal, com relação a Leis que sejam consideradas irrazoáveis e desproporcionais, já que a própria Constituição não as admite, pois o próprio princípio da reserva legal está subordinado ao princípio do devido processo legal, segundo Limongi. O devido processo legal, portanto, estaria no topo da hierarquia dos princípios, devendo "orientar o legislador, na missão de elaborar a Lei Penal e selecionar as condutas que mereçam ser punidas como crime. E também podem servir para a interpretação da Lei e exclusão da sua aplicação ao caso concreto pelo juiz." [37] A explicação é a seguinte:

"Dir-se-á, então, que se estará aplicando o princípio da legalidade substantiva, pois o que não injuria os valores sociais não pode ser considerado crime.

Ocorre que importamos do Direito Anglo-Americano o devido processo legal substancial, de modo que o princípio da legalidade substantiva igualmente está em nível constitucional inferior ao do devido processo legal substantivo. Afinal, não é sem razão que Celso Bastos, como visto, afirma que o princípio do devido processo legal quase se confunde com o Estado Democrático de Direito.

Em conseqüência, no momento em que o Judiciário vai aplicar a Lei Penal, a ele é lícito examinar a sua razoabilidade, podendo inspirar-se em qualquer outra razão eventualmente presente ao caso concreto. Osfatos se apresentam multifacetários. O legislador não pode prevê-los todos. E não havendo como aplicar os princípios da lesividade, da humanidade, da culpabilidade, aplica-se o princípio de maior amplitude e abrangência que é o devido processo legal substancial." (LIMONGI, 2001a, p. 165)

Tendo fundamento constitucional e preponderância sobre os demais princípios, o devido processo legal é norteador do Direito Penal e proíbe o Poder Legislativo de elaborar Leis Penais incriminadoras retroativas, obrigando, inclusive, a que os crimes sejam tipificados em Lei, no sentido estrito. Ocorre que a Lei é feita por meio do processo legislativo, caso contrário, estará maculada de vícios insanáveis. Ora, o que será isso senão a subordinação do consagrado princípio da legalidade ao devido processo legal?

4.2. Interpretação rawlsiana do devido processo legal substantivo

O devido processo legal como princípio de hermenêutica permite ao magistrado discutir a razoabilidade da Lei, dando-lhe margem para não aplicá-la, caso viole os parâmetros constitucionais. [38] Dessa forma, há congruência com o teoria da justiça como eqüidade de John Rawls, que tece uma crítica ao positivismo jurídico, indo além da mera legalidade, como explica Celso Lafer: ""Com efeito, os dois princípios básicos de Rawls (...) buscam estabelecer, nas estruturas da sociedade, um equilíbrio apropriado entre pretensões opostas, através da eliminação das distorções arbitrárias e das desigualdades dos pontos de partida. Neste sentido, para Rawls o respeito às regras do jogo, característico da legitimidade racional-legal, vai além da legitimação pelo procedimento e da justiça como legalidade, pois tudo se vê continuamente submetido ao escrutínio material da fairness (eqüidade)." [39]

John Rawls conceitua os elementos constitucionais como sendo: "(1) os princípios fundamentais que especificam a estrutura geral do governo e do processo político; os poderes do legislativo, do executivo e do judiciário; os limites da regra da maioria; e (2) liberdades e direitos básicos iguais dos cidadãos que a maioria legislativa deve respeitar, tal como o direito de votar e de participar da política, liberdade de pensamento e de associação, liberdade de consciência, como a preservação do Estado de Direito." [40] Verifica-se em Rawls uma preocupação em reformular a ordem jurídica como um todo, não havendo na sua teoria uma doutrina voltada especificamente ao Direito Penal, o que é o intento deste trabalho.

Quando Rawls escreve sobre processo político, interpreta-se que incluiu o devido processo legal no âmbito constitucional, servindo, inclusive, para limitar os raios de ação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. E mais, um limite contra uma eventual irracionalidade da regra da maioria, geralmente exteriorizada em forma de Lei. A compatibilidade do direito do indivíduo ao mais amplo e adequado esquema de liberdades básicas iguais com o mesmo direito dos demais só se dá via Direito, com a regulamentação por meio de devido processo legal. Essas proibições das ações legislativas também se encontram enunciadas nos dois princípios da Justiça de John Rawls:

"(a) Cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável ao mais plenamente adequado esquema de liberdades básicas iguais, desde que seja compatível com o mesmo esquema das mesmas liberdades para todos; e

(b) As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, elas devem estar vinculadas (attached) a cargos e posições acessíveis para todos, sob condições de igualdade eqüitativa de oportunidades, e, segundo, devem primar pelo máximo benefício daqueles membros da sociedade que são os menos favorecidos (princípio da diferença)." [41]

Como bem se sabe, Rawls não fez uma teoria do Direito e do Direito Penal, propriamente dita, mas da Justiça. Arrisca-se dizer que Rawls tentou elaborar uma teoria do Direito com Justiça., no contexto de uma democracia constitucional. Neste texto, se faz uma tímida aproximação da teoria da Justiça de Rawls com o Direito Penal. No primeiro princípio da Justiça (também conhecido como princípio da liberdade, ou liberdade-igual), Rawls remonta à inviolabilidade do indivíduo, protegida constitucionalmente, que se dá por meio do devido processo legal em seus aspectos processual e material. Encontram-se pontos de complementaridade da teoria de Rawls com a teoria do devido processo legal no Direito Penal de Limongi: "Quando se funda um Estado Democrático de Direito, sabe-se imediatamente, que lesão a liberdades e a bens torna imprescindível o devido processo legal em seus dois aspectos, processual e substancial, e, mesmo que os demais princípios dele decorrentes, não se elevem a princípios constitucionais, ou falhem, para o caso concreto, o princípio soberano, máximo, do due process of law atua em benefício dos direitos e garantias individuais, como o princípio geral e de reserva." [42]

4.2.1. O primeiro princípio do Direito Penal na teoria de Rawls

A redação do primeiro princípio da Justiça de Rawls poderia ser adaptada ao Direito Penal da seguinte forma: "Cada pessoa tem o direito irrevogável ao mais pleno e adequado esquema de proteção dos seus Direitos Fundamentais perante a Legislação Penal, na medida da razoabilidade e da proporcionalidade da sua situação (como autor ou réu), desde que em compatibilidade com os mesmos direitos dos demais." Assim, a liberdade-igual do indivíduo seria tratada pela Legislação Penal segundo o devido processo legal em sua face processual e substantiva, de uma forma garantista, para proteger direitos intrínsecos a cada ser humano, sem que, no entanto, isso signifique impunidade para quem transgredir a Lei Penal.

O sujeito ativo da ação penal [43] pode pedir a reparação do transgressor, ao Judiciário, desde que a reparação não seja irracional e desproporcional. E mesmo que essa punição seja amparada pela Legislação Penal, não poderá ser aplicada por ofensa ao devido processo legal substantivo. Estabelece-se, dessa maneira, um impedimento à elaboração de uma Legislação Penal irracional, incoerente e simbólica. Deve haver razoabilidade na elaboração e aplicação da legislação para respeitar as liberdades e os direitos básicos das pessoas. Não se pode afrontar o bom-senso, portanto. Caso a Legislação Penal transgrida isso, o aplicador da Lei poderia esquivar-se do seu imperativo, com base no primeiro princípio do Direito Penal.

Um exemplo concreto pode ser examinado no voto do desembargador Celso Limongi, na revisão criminal nº 260.338.3/0. Um rapaz de 19 anos à epoca dos fatos foi condenado por estupro presumido (artigo 213 c/c artigo 224, "a", e artigo 71, do Código Penal) por manter oito relações sexuais com uma adolescente de 12 anos. A condenação não foi razoável, embora tenha fundamento legal, pois o réu, no entender de Limongi, era relativamente menor. E a pena não foi proporcional, pois sete anos de reclusão em regime integralmente fechado não correspondia à realidade do réu e da suposta vítima. Sua explicação é a seguinte:

"A idade do peticionário deveria ser levada em conta, principalmente por tratar-se de crime sexual, sendo da própria natureza a exacerbação da libido. Ademais, trata-se de trabalhador rural, inculto, de tal sorte que é difícil para ele compreender a gravidade de sua conduta, agravada pela circunstância de que já vive maritalmente com outra mulher e possui um filho.

Por outro lado, a despeito de merecer reprovabilidade a sua conduta, é inegável que as conseqüências dela advindas se mostram totalmente desproporcionais: a pena imposta é elevada e o regime prisional é o mais severo possível, não permitindo promoções.

A desproporção entre a conduta do peticionário e a pena imposta se mostra tão desarrazoada, que, houvesse ele tirado a vida da menor, receberia a pena de seis anos de reclusão (artigo 121, caput, do Código Penal), mais o benefício da promoção com um sexto de cumprimento de pena! Ter mantido relações sexuais consentidas com menor de 12 anos de idade se mostra mais reprovável e recebe tal conduta a qualificação de crime hediondo!

A Lei dos Crimes Hediondos, Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, foi editada às pressas, de afogadilho, pressionado o legislador por movimento feminista que exigia a exacerbação das penas de estupro e atentado violento ao pudor. Daí a imperfeição da lei, que sequer alterou as penas relativas a esses delitos, também previstos no Código Penal Militar, como também não teve a capacidade de imaginar situações semelhantes a dos autos.

De fato, se, como a prova indicou, o peticionário iniciara namoro com a ofendida, mantendo relações sexuais depois de cerca de dois meses desse namoro, tal conduta sem dúvida perde o caráter de hediondez, considerado o senso moral médio da sociedade, diante do consentimento da namorada. Tal dado não pode ser desprezado pelo intérprete, até porque o crime não se contenta com uma definição meramente formal, mas também material." (LIMONGI, 2001b)

Os costumes não revogam Leis no Direito Positivo Brasileiro. Contudo, podem oferecer base hermenêutica, especialmente na avaliação da racionalidade da Legislação Penal. O descompasso entre a Lei e o tratamento desproporcional com relação à pessoa do réu pelo Judiciário demonstram a falta de razoabilidade na prestação jurisdicional. Tendo em vista a liberação dos hábitos sexuais da sociedade em geral, o consentimento da pretensa vítima (que consentiu as relações sexuais, depois de dois meses de namoro) e o nível de instrução do réu, não se considerou, na aplicação da pena, que a Lei de Crimes Hediondos promoveu acentuou de certa maneira o descompasso entre a Legislação Penal e a evolução da sociedade. Note-se que se trata da Lei de Crimes Hediondos, neste exemplo, antes da sua alteração (pela Lei nº 11.464/2007) para adaptar-se ao princípio da individualização da pena.

A condenação e a legislação ferem os Direitos Fundamentais do réu quando lhe impõe a pena de sete anos de reclusão em regime integralmente fechado. A pena seria maior e mais severa que se o réu cometesse um homicídio simples, que é punido com seis anos de reclusão, com possibilidade de progressão de regime depois do cumprimento de um sexto da pena. Havendo bem jurídico violado (a proteção do menor), há de se ter a tutela do Direito Penal com relação ao caso. No entanto, a tutela penal não pode transgredir, em nome do Direito, os Direitos Fundamentais do réu, por maior que seja a ofensa cometida. Há de se compatibilizar os direitos do réu, os da menor e os da sociedade em igual consideração. Assim, há de se salientar que não se defende a impunidade, nem a liberação exacerbada da conduta sexual, mas que se tenha uma punição razoável e proporcional à sua conduta, no caso concreto. Adequada, então, foi a alteração legislativa que enquadrou a Lei dos Crimes Hediondos ao princípio da individualização da pena, justamente para evitar desproporcionalidade e irrazoabilidade da imposição de penalidade às condutas futuras similares à acima descrita.

4.2.2. O segundo princípio do Direito Penal segundo a teoria de Rawls

Numa interpretação adaptada ao Direito Penal do princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades, de Rawls, pode-se dizer que o acesso ao Judiciário deve ser igual em termos não somente formais, mas também materiais, e que as Leis Penais devem promover um balizamento de modo a evitar tratamento igual em situações desiguais. Assim sendo, para o Direito Penal o princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades [44] poderia ser chamado de princípio da igualdade eqüitativa de acesso à Justiça, com a seguinte redação: "A desigualdade de tratamento provocada pela aplicação da Lei Penal só será admitida se realmente promover à pessoa maior acesso à prestação jurisdicional (como autor ou réu), sob condições de igualdade eqüitativa de consideração (razoável e proporcional) pela legislação e das autoridades pertinentes, para a preservação dos Direitos Fundamentais."

Um exemplo claro da falta de igualdade eqüitativa de acesso à Justiça e de prestação jurisdicional era o crime de estupro, em regra, ser de ação penal privada. Porém, poderia ser de ação penal pública condicionada à representação se a vítima ou seus pais não tivessem condições econômicas de bancar as custas judiciais. Atualmente, ademais, o crime de estupro é de ação penal pública condicionada à representação do ofendido, conforme alteração promovida pela Lei nº 12.015/2009, sendo de ação penal pública incondicionada se cometida contra menores e vulneráveis.

Só era crime de ação pública incondicionada, pasmem, se o autor do crime se fizesse prevalecer, para a prática do estupro, do pátrio poder, ou se for padrasto, tutor ou curador. Havia entendimentos, ademais, que admitiam a ação pública incondicionada em caso de estupro com violência real [45].

Enfim, o que se critica é que o estupro, por menor violência ou ameaça que sejam empregadas, fosse concebido como um crime cujos processamentos policial e judicial eram postos como sendo da esfera privada da vítima. Se ela "quisesse", poderia processar (por queixa ou representação) o estuprador. Mas o crime de furto (art. 155, CP) é de ação pública incondicionada. A liberdade sexual da mulher, mesmo que implicasse numa lesão maior que num crime de furto – ainda que não acarretasse em violência real à vítima –, por exemplo, estava relegada a segundo plano. Assim, a proteção constitucional da privacidade e da intimidade familiar era utilizada, para justificar a impunidade. A vítima era aterrada na esfera privada, junto com o crime que sofrera, livrando o criminoso de ser processado e julgado na esfera pública do sistema patriarcal.

A opção de uma ação penal pública incondicionada a ser iniciada de ofício pelo Ministério Público (tal como o é hoje) enquadraria o crime sexual contra a mulher como uma lesão publicamente intolerável, mas, vertentes feministas teriam na ação penal privada um instrumento de proteção da autonomia feminina, de deixar a cargo da vítima a decisão de levar o crime ao conhecimento das autoridades e, se quiser, processar o criminoso. Parece que a esfera privada servia mais para se jogar embaixo do tapete as ofensas que, apesar de juridicamente criminalizadas e penalizadas, seriam convenientes ao sistema patriarcalista, que para proteger o indivíduo da interferência indevida do Estado. A desigualdade apresentada neste caso em tela desobedeceria o segundo princípio do Direito Penal de acordo com a teoria de Rawls. Por isso, não poderia ser aceita pelo ordenamento jurídico, por apresentar uma desigualdade que não serviria para promover maior acesso à Justiça. Portanto, nessa ótica, no passado, uma ação promovida pelo Ministério Público, em caso de estupro do artigo 213 (CP), jamais poderia ser fulminada por ilegitimidade de parte.

4.2.2.1. A desigualdade compensatória no Direito Penal

O segundo princípio do Direito Penal segundo a teoria de Rawls, apesar de discriminar desigualdades, pode legitimar alguns tipos de desigualdades, por meio da legislação, desde que busque implementar igualdade eqüitativa de acesso à Justiça ou prestação jurisdicional. Por exemplo. A maior parte da legislação penal sexual dispõe que o elemento objetivo dos delitos de estupro é constranger a vítima a determinados atos sexuais com emprego de violência ou grave ameaça. Alguns doutrinadores, escreve Ana Lúcia Sabadell, defendem que basta a mera recusa da vítima para caracterizar uma ação sexual ilegal. Devido a séculos de dominação masculina, a autodeterminação sexual das mulheres não é, diante do prisma patriarcalista, evidente.

Não basta, no Direito Penal brasileiro, que a mulher, vítima de estupro, não queira submeter-se a uma relação sexual indesejada, ela deve ser oferecer alguma forma de resistência à agressão ou à grave ameaça. Seria uma maneira de legitimar, aos homens, o acesso ao corpo das mulheres e das crianças?

A violação da dignidade das mulheres e das crianças só seria punida, então, se houvesse emprego de violência ou grave ameaça? Por que essa lógica, se no crime de violação de domicílio (art. 150, CP), não há necessidade de emprego de grave ameaça ou violência à vítima? O mesmo ocorre no crime de cárcere privado (art. 148, CP), que não prevê como elemento objetivo do tipo a violência ou grave ameaça. Mais uma vez, parece que se tenta empurrar para o tapete, para a esfera privada, algumas ofensas à liberdade sexual das mulheres. Não basta ser crime, tem que ser evidentemente crime, aos olhos de todos. O Direito Constitucional contemporâneo concebe a sexualidade como ato voluntário da pessoa, que não deve ser, jamais, monopólio dos homens.

Sabadell, diante disso, salienta que os crimes sexuais contra as mulheres devem ser desmistificados e tratados de forma igual a outros crimes. Em vez de serem elementos normativos do tipo, a violência ou grave ameaça deveriam ser enquadradas legalmente como qualificadoras, em vez de elementos objetivos do crime de estupro. [46] Para a configuração do estupro, seria apenas necessária a expressão da recusa da vítima em manter uma relação sexual contra sua vontade livre. O tratamento das mulheres de modo diferenciado, caso vítimas de estupro, seria promovido de forma desigual para compensar séculos de subserviência. Aí, o instrumento de promoção da desigualdade compensatória seria tornar a violência e a grave ameaça, no crime sexual contra a mulher, como qualificadoras, com a devida guarida do segundo princípio do Direito Penal segundo a teoria de Rawls.

Atente-se que ambos princípios formulados neste artigo com base na teoria da Justiça de John Rawls constituem uma tentativa de se evitar o tratamento de situações diferentes com o mesmo critério, pois em nome de uma legalidade cega e uma suposta igualdade, cometer-se-ia uma injustiça muito maior, em nome do Direito, que promover a Justiça, propriamente dizendo.

Outro crítico voraz da instrumentalização excessiva do Direito é o alemão Jürgen Habermas, cuja aplicação da sua teoria da ação comunicativa e suas conexões com o devido processo legal substantivo se examinam no tópico seguinte.

4.3. Habermas contra a razão instrumental do Direito

A técnica característica dos meios de produção capitalista, geralmente com o suporte das ciências exatas e biológicas, invadiu a seara das ciências humanas, priorizando a razão instrumental. A razão instrumental, das relações meio-fim, dá vestimenta científica às ações humanas de transformação da natureza, por meio do trabalho, na obtenção de bens necessários à sua sobrevivência. No entanto, a razão instrumental – típica das ciências – converte as outras pessoas em meios para que se atinjam fins. Esse tecnicismo instrumental se transfere do plano de domínio da natureza para as relações humanas em si, como a dimensão ético-jurídica.

O Direito contaminado pelo tecnicismo jurídico, por exemplo, serviu para justificar – do pondo de vista jurídico – o Direito Positivo empregado na Alemanha nazista para cometer as atrocidades contra seus desafetos. Dentro do esquema de Kelsen [47], os carrascos agiram segundo o Direito, amparados pelo devido processo legal. Devido processo legal processual, diga-se de passagem. Pois de forma alguma, no Estado nazista, se considerou o devido processo legal em seu aspecto substantivo, de verdadeira garantia dos Direitos Fundamentais.

O devido processo legal desprovido de conteúdo substantivo, considerado somente em sua vertente processual, marca o domínio da ciência com a exclusão total da ética do Direito. O Direito parece limitar-se ao campo formal da lógica matemática, num dogmatismo lógico-instrumental. Esses valores instrumentais são alcançados por meio de ações estratégico-instrumentais. O interesse técnico submete das ações estratégico-instrumentais submete as coisas (a natureza) ao ser humano, através de métodos baseados nas ciências experimentais e na tecnologia. Há, então, uma cadeia de controle, com possibilidade de previsão e recriação artificiais. O interesse prático das ações estratégico-instrumentais organiza as relações humanas, reprimindo sua natureza intrínseca, impondo normas para regular a maior parte dos processos da sua vida social. Essas normas de ações estratégico-instrumentais, se aceitas e institucionalizadas, terão força de Lei. Essas normas de ações estratégico-instrumentais juridificadas formam um círculo fechado em si mesmo, um sistema fechado, que funciona numa lógica própria, como uma equação matemática. Esse voluntarismo, da pura criação do Direito, pelos processos jurídico-legislativos, fechados em si, são a origem da patologia do Direito Positivo. Muitas vezes, isso conduz a uma dissociação entre o que se prescreve na Lei e a realidade. É o caso das Leis absurdas, que desafiam a razoabilidade. Muitas vezes, Leis não razoáveis também não contêm, em si, critérios de proporcionalidade de regulação de conduta e de imposição de eventuais penalidades.

"Essa tensão ideal retorna intensificada no nível do direito, mais precisamente na relação entre a coerção do direito, que garante um nível médio de aceitação da regra, e a idéia de autolegislação – ou da suposição da autonomia política dos cidadãos associados – que resgata a pretensão de legitimidade das próprias regras, ou seja, aquilo que as torna racionalmente aceitáveis. Esta tensão na dimensão de validade do direito implica a organização do poder político, empregado para impor legitimamente o direito (e o emprego autoritativo do direito); poder político ao qual o direito deve a sua positividade. A idéia de Estado de direito constitui uma resposta ao desiderato da transformação jurídica pressuposta pelo próprio direito. No Estado de direito a prática da autolegislação dos cidadãos assume uma figura diferenciada institucionalmente. A idéia de Estado de direito coloca em movimento uma espiral de auto-aplicação do direito, a qual deve fazer valer a suposição internamente inevitável da autonomia política, contra a facticidade do poder não domesticado juridicamente, introduzida no direito a partir de fora. (...) E aqui se trata de uma relação externa entre facticidade e validade (percebida na perspectiva do sistema jurídico), uma tensão entre norma e realidade, que constitui um desafio para a elaboração normativa." (HABERMAS, 1997, vol. 1, p. 60-61)

A Lei que deveria proteger pode servir para fustigar, dependendo do caso. Num desses exemplos, o paradigma iluminista de razão, que tiraria os seres humanos das trevas da ignorância, ruiu. A razão tornou-se algoz e empreendedora da dominação do homem pelo homem, como se atestou na Alemanha de Adolf Hitler e seus territórios dominados. [48]

4.4. Razão comunicativa e devido processo legal substantivo

Em contraponto à ação estratégico-instrumental, Habermas propõe a ação comunicativa, na qual a interação é racionalmente motivada, com conteúdo emancipatório para a libertação social e política. A ação comunicativa não se resume às conversações sobre os fatos cotidianos, é uma prática comunicativa, com a instituição das esferas do discurso, para se atingir novos níveis de reflexão. Os acordos obtidos pela interação, via ação comunicativa, são racionais, obtidos por meio da argumentação racional das pessoas. Dessa maneira, Habermas propõe a substituição da razão instrumental pela razão comunicativa para combater a mecanização das relações sociais.

Na ação comunicativa, o interesse prático – a interação racionalmente motivada – num processo de formação de consenso entre as pessoas numa situação ideal de fala por meio de uma discussão racionalmente motivada. A situação ideal de fala, em termos simples, seria uma situação ideal em que todos se entendem, quer dizer, "todos falam a mesma língua e linguagem". Há um entendimento completo dos objetos das discussões. Na teoria da ação comunicativa, Habermas diz que o ser humano tem o desejo de se fazer compreender e ser compreendido por qualquer outro falante por meio de certas pretensões de validade universal em qualquer situação de comunicação e, mais, que esse conteúdo seja apreendido e possibilite o entendimento entre falantes e ouvintes.

Com isso, Habermas amplia o conceito de razão, que passa a abranger, além da verdade, a correção e a autenticidade. A linguagem, para Habermas, converte-se também em motores que geram expectativas, tanto no nível social quanto no nível subjetivo, de reações comportamentais. Esse seria o princípio da universalidade de Habermas um dos pilares da sua teoria, que poderia ser aplicado na reconstrução do Direito Positivo.

Habermas concebe a complementaridade entre o Direito e a moral por meio da integração social, via ação comunicativa, o "fio condutor para a reconstrução do emaranhado de discursos formadores da opinião e preparadores da decisão, na qual está embutido o poder democrático exercitado conforme o direito." [49] Numa assertiva mais ousada, pode-se dizer que a teoria de Habermas se relaciona com o princípio da razoabilidade, um dos corolários [50] do princípio do devido processo legal substantivo. A elaboração e a aplicação das Leis devem "obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competência exercidas" [51]. Cezar Roberto Bitencourt completa: "Razoável é aquilo que tem aptidão para atingir os objetivos a que se propõe, sem, contudo, representar excesso algum." [52]

Para Habermas, o uso público das liberdades comunicativas deve ser garantido institucionalmente pelos Direitos Fundamentais, como se fossem Direitos Subjetivos, abrindo margem para uma colocação de extrema relevância: a linguagem dos direitos de comunicação e participação deve ser elaborada de uma maneira que permita aos sujeitos autônomos do Direito a faculdade de escolha, seja de utilizá-los ou não, ou, ainda, de escolher como utilizá-los. [53] Assim sendo, numa perspectiva habermasiana, a razoabilidade se constrói de maneira intersubjetiva, uma formação consensual e racional – por meio da discussão racional por seres livres e iguais numa situação ideal de fala –, para estabelecer o senso normal de elaboração e de aplicação das Leis, especialmente das Leis Penais, para rejeitar tudo aquilo que seja exorbitante ou, mesmo, bizarro e inaceitável.

4.5. Proporcionalidade e respeito à dignidade humana

Em Habermas, por meio da ação comunicativa, os seres humanos se reconhecem como seres livres e iguais em sua dignidade, já que rejeita a lógica das relações meio-fim da razão instrumental típica das ciências e da tecnologia. Seres humanos devem ser considerados como fins neles mesmos, nunca como meios para ações de quem quer que seja, mesmo o Estado. Mesmo na imposição da pena, por parte do Estado, deve haver essa consideração e respeito pela dignidade humana. A punição, nesses termos, deve ser realizada na medida da ofensa cometida contra o bem jurídico, segundo o princípio da proporcionalidade, o segundo corolário do devido processo legal substantivo. "É que ninguém deve estar obrigado a suportar constrições em sua liberdade ou propriedade que não sejam indispensáveis à satisfação do interesse público. Logo, o plus, o excesso acaso existente, não milita em benefício de ninguém." [55]

Além do aspecto punitivo, de penas proporcionais ao ato ilegal cometido, Cezar Roberto Bitencourt salienta que o princípio da proporcionalidade é um limite, não só da aplicação, mas também da elaboração de Leis. "Não se trata evidentemente, de questionar a motivação interna da voluntas legislatoris, e tampouco de perquirir a finalidade da Lei, que é função privativa do Parlamento. Na verdade, a evolução dos tempos tem nos permitido constatar, com grande freqüência, o uso abusivo de fazer Leis had hocs, revelando, muitas vezes, contradições, ambigüidades, incongruências e falta de razoabilidade, que contaminam esses diplomas legais com o vício de inconstitucionalidade." [56] Em caso de irrazoabilidade ou desproporcionalidade das Leis, portanto, cabe intervenção e controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário.

Numa interpretação habermasiana, a Lei Penal que impõe pena desproporcional e não é razoável deve ser invalidada por não encontrar suporte constitucional e ainda por reproduzir um esquema lógico de relações meio-fim, que trata as pessoas como meios e não como fins nelas mesmas (dotadas de integral dignidade). Por meio da razão comunicativa, os seres humanos assumem sua parcela de responsabilidade moral e assumem a tarefa de mobilizarem ações coletivas por meio de uma práxis solidária e organizada que limitem o poder no que tange à opressão de certos direitos inatos e inalienáveis intrínsecos a cada pessoa. A correspondência disso com o Direito Penal pode ser explicada com a a doutrina de Cezar Roberto Bitencourt: "Para concluir, com base no princípio da proporcionalidade é que se pode afirmar que um sistema penal somente estará justificado quando a soma das violências – crimes, vinganças e punições arbitrárias – que ele pode prevenir for superior à das violências constituídas pelas penas que cominar. Enfim, é indispensável que os Direitos Fundamentais do cidadão sejam considerados indisponíveis (e intocáveis), afastados da livre disposição do Estado, que, além de respeitá-los, deve garanti-los." [57]


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O positivismo jurídico, se considerado como um sistema fechado em si mesmo, tem uma fraqueza desconcertante: é capaz de reconhecer somente se um procedimento ou uma Lei (ou ato normativo) são válidos, sem levar em conta o seu conteúdo substancial, inclusive das suas modificações. O devido processo legal substantivo é uma regra de hermenêutica, mas, ao mesmo tempo, princípio que fornece diretrizes para que o Direito não seja concebido como um puro "dever ser", totalmente dissociado da realidade material, muito menos como algo desprovido de conteúdo, sem conseqüências.

Não basta que as normas jurídicas sejam positivadas e emanadas por autoridade estatal competente para que se configure uma ordem jurídica legítima. Um exemplo claro é o sistema jurídico nazista. As atrocidades foram cometidas dentro da "legalidade" do ordenamento jurídico do III Reich. Os nazistas, embora revestidos de legalidade, desconsideraram a existência de normas com validade universal, pois tinham alguns sujeitos como melhores que os outros. A partir da formulação do primeiro princípio do Direito Penal segundo a teoria da Justiça de John Rawls, através do devido processo legal positivo, isso não seria possível, pois haveria a negativa da possibilidade de consideração desigual das pessoas no tocante aos seus Direitos Fundamentais.

O III Reich mostrou uma imprecisão desconcertante na formulação do seu ordenamento jurídico, pois considerou o devido processo legal somente em seu aspecto processual, no cometimento das execuções sumárias de milhares de inocentes. Caso o devido processo legal fosse encarado também em seu aspecto substantivo, tais abominações jamais teriam ocorrido. Em seu aspecto substantivo, numa interpretação habermasiana da questão, jamais seria permitida a legitimação de uma ordem jurídica que desconsiderasse qualquer outra pessoa como um ser inferior. Esse reconhecimento do outro como um ser livre e igual desautorizaria qualquer tratamento que passasse por cima do dever de igual consideração que cada ser humano tem com os demais e a imposição de penalidades sem critérios de proporcionalidade com relação à ofensa cometida.

O devido processo legal substantivo é uma proteção dos Direitos Fundamentais contra as eventuais irracionalidades ou abusos do Poder Legislativo e também contra a aplicação desarrazoada e desproporcional da Lei Penal. Constitui, ainda, uma garantia contra o uso indevido do devido processo legal processual, pois ao prover substancialidade, evita-se a tomada de decisões arbitrárias e não condizentes com o bom senso. Alçado em nível constitucional, o devido processo legal substantivo abrange todos os ramos do Direito, especialmente o Direito Penal.

A legislação penal que permite o tratamento igual de situações diferentes e o tratamento diferente de situações iguais não é razoável, muito menos proporcional. Portanto, deve ser fulminada, pois maculada está de uma inconstitucionalidade legitimada segundo princípios de proteção aos Direitos Fundamentais, que são inatos, inalienáveis e indisponíveis a qualquer ser humano, recuperando ou se preservando, inclusive, o significado democrático do Direito Penal. Afinal, o Direito serve às pessoas. E não vice-versa.


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Notas

  1. "Abrindo o debate, deixo expresso que a Constituição de 1988 consagra o devido processo legal nos seus dois aspectos, substantivo e processual, nos incisos LIV e LV, do art. 5º, respectivamente. (...) Due process of law, com conteúdo substantivo — substantive due process — constitui limite ao Legislativo, no sentido de que as leis devem ser elaboradas com justiça, devem ser dotadas de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality), devem guardar, segundo W. Holmes, um real e substancial nexo com o objetivo que se quer atingir. Paralelamente, due process of law, com caráter processual — procedural due process — garante às pessoas um procedimento judicial justo, com direito de defesa." (ADI 1.511-MC, voto do Min. Carlos Velloso, DJ 06/06/03)
  2. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 1.ª ed. 2.ª reimpressão. São Paulo (SP): Martins Fontes, 1997. p. 4.
  3. KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6.ª ed. Traduzido por João Baptista Machado. São Paulo (SP): Martins Fontes, 2003. p. 48.
  4. A legitimação de uma nova ordem jurídica, reconstruída pela razão comunicativa, pode ser lida em HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia. Entre facticidade e validade. Vol. 1 e 2. 1.ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Tempo Brasileiro, 1997.
  5. LIMONGI, Celso Luiz. O devido processo legal substantivo e o Direito Penal. Revista da Escola Paulista da Magistratura, v.2, no. 1, p. 151-174, jan.jun. 2001.
  6. Atual presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
  7. PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal. 6.ª ed. São Paulo (SP): Revista dos Tribunais, vol. 1, 2006, p. 51.
  8. Tradução livre do original em espanhol: "conjunto de normas jurídicas que asocian al delito, cometido o de probable comisión, penas, medidas de seguridad y sanciones reparatorias de naturaleza civil." (MIR PUIG, 2002, p. 19)
  9. Tradução livre do original em espanhol: "Político-criminalmente es, pues, aconsejable contemplar la responsabilidad civil nascida del delito desde el prisma del derecho penal. Ello no significa necesariamente una contradicción con la naturaleza civil que demonstra la perspectiva conceptual. Pueden conciliarse ambos puntos de vista si si admite que el derecho penal puede integrarse también de un medio de naturaleza civil." (Idem, ibidem)
  10. PRADO, Luiz Régis. Op. cit. p. 52.
  11. Idem, ibidem. p. 51.
  12. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – parte geral. Vol. 1. 10ª ed. São Paulo (SP): Editora Saraiva, 2006. p. 8.
  13. Idem, ibidem. p. 9.
  14. Para uma explanação histórica mais detalhada e meticulosa, conferir O princípio devido processo legal substantivo, de Ruitemberg Nunes Pereira.
  15. PEREIRA, Ruitemberg Nunes. O princípio do devido processo legal substantivo. 1.ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Renovar, 2005. p. 5-27.
  16. Idem, ibidem. p. 20. Para Pereira, essas expressões do Decreto Feudal de Conrado II foram copiadas para a Carta Inglesa de 1215, não sendo, portanto, criações originais britânicas.
  17. Idem, ibidem. p. 26-27.
  18. Idem, ibidem. p. 28.
  19. Idem, ibidem. p. 28-29.
  20. Idem, ibidem. p. 36.
  21. Idem, ibidem. p. 37.
  22. Também conhecida como "Charter of Henry I" ou "Leges Henrici Primi".
  23. Idem, ibidem. p. 38.
  24. Mais conhecido no Brasil como o "rei João Sem-Terra". John assumiu o trono inglês depois da morte do seu irmão, Ricardo I, por meio de eleição baronal. Sua coroação ocorreu em 27 de maio de 1199.
  25. As aventuras bélicas do Rei John não foram bem sucedidas, a exemplo das derrotas para os normandos, em 1203, e em Guienne, em 1214.
  26. Para Ruitemberg Barbosa (2005, p. 56), a Magna Charta foi a primeira norma que marcou a positivação do Direito Inglês, sendo o primeiro texto normativo escrito do reino. Celso Limongi (2001, p. 156) salienta que com a Magna Carta, "a nobreza garantia, de tal arte, a inviolabilidade de seus direitos relativos à vida, liberdade e propriedade. A violação a tais valores somente poderia dar-se através da ‘lei da terra’".
  27. De acordo com Celso Limongi (2001a, p. 156), a expressão original per legem terrae foi substituída por due process of law, numa lei aprovada pelo Parlamento Britânico.
  28. O princípio foi reafirmado em 1628 na Petition of rights, endereçada ao Rei Carlos I. O caráter processual do due process of law era conhecido pela expressão law of the land.
  29. Tradução livre do inglês: "That no man of what estate or condition that he be, shall be put out of land or tenement, nor taken nor imprisioned, nor disinherited, nor put to death, without being brought in answer by due process of law."
  30. Ruitemberg Pereira (2005, p. 115-116) ensina que a primeira referência ao devido processo legal encontra reminiscências no texto "The Federalist nº 16", de Alexandre Hamilton, que, dirigindo-se ao povo de Nova Iorque, ainda preferia o termo law of the land. "Em The Federalist n. 22, Hamilton amplia o conceito de Law of the Land a fim de que esta expressão alcance também os tratados dos Estados Unidos da América, cuja intepretação ficaria na alçada dos juízes e tribunais, cabendo ao Supremo Tribunal Federal americano a uniformização da jurisprudência ao seu respeito. (...) Em seguida, em The Federalist n. 27, Hamilton amplia ainda mais o leque normativo a ser considerado como laws of the land, fazendo alcançar agora todas as leis ditadas pela confederação, vinculativas da atuação dos poderes judiciário, legislativo e executivo, o que se repete em The Federalist n. 31, em que o autor faz menção a um princípio de necessidade legislativa, em The Federalist n. 33. (PEREIRA, 2005, p. 120-121)
  31. A Suprema Corte dos Estados Unidos já chegou distinguir, com base na Emenda XIV, a cidadania nacional da cidadania estadual, o que causou certa celeuma jurídica. Pois, como haveria de se separar, numa mesma pessoa, o cidadão nacional do cidadão estadual?
  32. Tradução livre do original em inglês: "No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a Grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the Militia, when in actual service in time of War or public danger; nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation."
  33. Tradução livre do original em inglês: "Section. 1. All persons born or naturalized in the United States and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the United States and of the State wherein they reside. No State shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws."
  34. Detalhes da evolução do devido processo legal substantivo, nos Estados Unidos, podem ser conferidos com maior particularidades na obra de Ruitemberg Nunes Pereira (2005, p. 131-235). Para não escapar do tema deste trabalho, restringe-se a cobertura histórica do substantive due process of law, embora seus meandros sejam fascinantes, a poucas páginas. Pede-se desculpa, antecipadamente, por eventual sentimento de superficialidade que o leitor possa ter com relação à parte deste texto no que se refere à evolução histórica do devido processo legal substantivo.
  35. LIMONGI. Op. cit. p. 168.
  36. Idem, ibidem. p. 164.
  37. Idem, ibidem. p. 165.
  38. Idem, ibidem. p. 168.
  39. LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. 4.ª reimpressão. São Paulo (SP): Companhia das Letras, 1988. p. 73.
  40. "(1) the fundamental principles that specify the general structure of government and the political process; the powers of the legislature, executive and judiciary; the limits of majority rule; and (2) the equal basic rights and liberties of citizenship that legislative majority must respect, such as the right to vote and to participate in politics, freedom of tought and of association, liberty of conscience, as well as the protections of the rule of law." (RAWLS, 2001, p. 28)
  41. "(a) Each person has the same indefeasible claim to a fully adequate scheme of equal basic liberties, which scheme is compatible with the same liberties for all; and
  42. (b) Social and economic inequalities are to satisfy two conditions: first, they are to be attached to offices and positions open to all under conditions of fair equality of opportunity; and second, they are to be the greatest benefit of the least-advantaged members of society (the difference principle)." (Idem, ibidem, p. 42-43)

  43. LIMONGI. Op. cit. p. 168.
  44. O sujeito ativo é o Estado, em caso de ação penal pública, e o particular, em ação penal privada.
  45. Por enquanto, não é interessante tentar adaptar o princípio da diferença de Rawls ao Direito Penal.
  46. Súmula 608 do STF: "No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada."
  47. SABADELL, Ana Lúcia. A problemática dos delitos sexuais numa perspectiva de Direito Comparado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo (SP), n. 27, 1999. p. 93.
  48. Kelsen concebe o Direito como um sistema fechado de normas organizadas de modo hierarquizado. Essas diferentes normas jurídicas só podem ser modificadas segundo normas processuais de categoria mais elevada, desde que de acordo com a norma hipotética fundamental. O positivismo jurídico contribuiu sobremaneira na concepção de Direito como um sistema fechado, separando derradeiramente o que é jurídico do que é moral.
  49. O finalismo de Hans Welzel, segundo Cezar Roberto Bitencourt (2006, p. 90-91), surgiu como uma necessidade de se estabelecer limites ao poder, para se evitar abominações como a do III Reich. Foi um renascimento do jusnaturalismo como limitador do Direito Positivo, visando reconhecer certos Direitos inatos ao ser humano, anteriores ao Direito Positivo, que este jamais poderia ignorar.
  50. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. - Entre facticidade e validade. Vol. 1. 1.ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Tempo Brasileiro, 1997.vol. 1, p. 21.
  51. Outro corolário do devido processo legal substantivo, o princípio da proporcionalidade, será exposto no item seguinte. Bitencourt (2006, p. 32) diz que, equivocadamente, alguns autores atribuem as expressões proporcionalidade e razoabilidade como sinônimas, embora haja íntima ligação entre ambas. A denominação princípio da proporcionalidade, explica Bitencourt, deriva da doutrina alemã, enquanto a denominação princípio da razoabilidade originou-se do entendimento jurisprudencial da Suprema Corte dos Estados Unidos. "Pois é exatamente o princípio da razoabilidade que afasta a invocação do exemplo concreto mais antigo do princípio da proporcionalidade, qual seja, a ‘Lei de Talião’, que, inegavelmente, sem qualquer razoabilidade, também adotava o princípio da razoabilidade. Assim, a razoabilidade exerce função controladora na aplicação do princípio da proporcionalidade. Com efeito, é preciso perquirir se, nas circunstâncias, é possível adotar outra medida ou outro meio menos desvantajoso e menos grave para o cidadão." (Bitencourt, 2006, p. 33)
  52. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 14.ª ed. São Paulo (SP): Malheiros Editores, 2002. p. 91.
  53. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – parte geral. Vol. 1. 10ª ed. São Paulo (SP): Editora Saraiva, 2006. p. 33.
  54. HABERMAS. Op. cit., p. 167.
  55. BANDEIRA DE MELLO. Op. cit. p. 93.
  56. BITENCOURT. Op. cit. p. 31.
  57. Idem, ibidem. p. 34.

Autor

  • Roger Moko Yabiku

    Roger Moko Yabiku

    Advogado, jornalista e professor universitário. Bacharel em Direito e Jornalismo, graduado pelo Programa Especial de Formação Pedagógica de Professores de Filosofia, MBA em Comércio Exterior, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e Mestre em Filosofia (Ética). Professor do CEUNSP e da Faculdade de São Roque - UNIESP.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YABIKU, Roger Moko. O devido processo legal substantivo no direito penal sob o prisma das teorias de John Rawls e de Jürgen Habermas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2462, 29 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14592. Acesso em: 28 mar. 2024.