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A responsabilidade penal da pessoa jurídica no cenário nacional e internacional

A responsabilidade penal da pessoa jurídica no cenário nacional e internacional

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1 INTRODUÇÃO

Muito se tem discutido na doutrina nacional e estrangeira acerca da possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas no âmbito criminal. No Brasil, parte-se da interpretação de determinados dispositivos constitucionais e, além disso, de normas expressas em legislações especiais, para que se desenvolvam as discussões acerca de sua possibilidade ou não. Com o intuito de evidenciar tais interpretações, o presente trabalho busca analisar a problemática que hoje se desenvolve acerca do tema, bem como apresentar a forma como determinadas legislações estrangeiras vêm adotando a possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas em seus sistemas, estabelecendo, por fim, uma discussão acerca da possibilidade de sua adoção pelo sistema jurídico penal brasileiro, face os princípios constitucionais que permeiam o nosso ordenamento jurídico.


2 A problemática da responsabilidade penal da pessoa jurídica

Durante os últimos anos muito se tem discutido na doutrina nacional e estrangeira a questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em razão da importância que esta ocupa na sociedade moderna, o assunto vem sendo abordado principalmente no âmbito do fenômeno da criminalidade econômica, envolvendo, nesse sentido, relações de consumo, da ordem econômica e do meio ambiente.

Nesse sentido, Klaus Tiedmann estabelece que:

[...] nuevas formas de criminalidad como los delitos em los negocios (comprendidos aquéllos contra el consumidor), los atentados contra al medio ambiente y el crimen organizado colocan a los sistemas y medios (p.102) tradicionales del Derecho penal frente a dificultades tan grandes que resulta insdispensable uma una nueva manera de abordar los problemas. [...] Estas nuevas formas de criminalidad (econômicas) han obligado a perguntarse se las actuales excepciones no devem convertirse en la regra; pues es poco convincente, considerada la realidad y los demás subsistemas del derecho, que por ejemplo el atentado contra el medio ambiente cometido pó uma gran empresa sea comprendido como um hecho de uma sola persona natural: la que lo ordeno o ejecutó uma determinada medida. [01]

No cenário internacional, temos, atualmente, duas posições sobre o tema, existindo, de um lado, aqueles países que admitem a responsabilidade penal da pessoa jurídica, como acontece em alguns estados dos Estados Unidos e na Inglaterra, países adeptos ao sistema da commom law, e, de outro, aqueles que a rejeitam, como, por exemplo, os países da América Latina e da Europa continental [02].

De acordo com o disposto por Luiz Regis Prado, "em termos científicos, tem-se como amplamente dominante, desde há muito, no Direito Penal brasileiro, como nos demais Direitos de filiação romano-germânica, a irresponsabilidade penal da pessoa jurídica (...)". (PRADO, p. 281, 2005).

Vários, porém, são os argumentos utilizados para demonstrar a impossibilidade de responsabilização da pessoa jurídica no âmbito penal, sendo os mais importantes deles os seguintes: a) a pessoa jurídica não pode ser responsabilizada penalmente por não ser capaz de conduta (o conceito de ação depende da análise de um critério subjetivo); b) a pessoa jurídica não pode ser responsabilizada penalmente por não ser capaz de culpabilidade; c) a pessoa jurídica não pode ser responsabilizada penalmente por estar ausente a capacidade de pena (haveria aqui uma ofensa ao princípio da personalidade ou pessoalidade que estabelece que nenhuma pena passará da pessoa do condenado).

Eugenio Raúl Zaffaroni, ao trabalhar o tema, estabelece que, embora seja defendida a idéia de que a possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica afronta os princípios da personalidade da pena e da culpabilidade, como já exposto anteriormente, não se torna necessário sequer analisar tais argumentos, já que a pessoa jurídica não é capaz de conduta humana, não possui vontade [03]. Se a pessoa jurídica, portanto, não é capaz de conduta, falta para a caracterização de um delito o seu aspecto genérico, presente em todas as formas típicas. Se não há conduta, não há que se falar, assim, em delito. Se não há delito, não há que se falar, portanto, em responsabilidade penal, caso contrário, estar-se-ia gerando uma incompatibilidade total entre os elementos da dogmática penal.

A par destas justificativas, ainda existem aqueles que suscitam a idéia de que, caso fosse possível tal responsabilização, não haveria possibilidade de adequá-la às finalidades propostas pela dogmática penal em relação às penas, ou seja, em relação à prevenção geral e especial. Nesse sentido, indaga-se, portanto, a respeito da inaplicabilidade, quanto às pessoas jurídicas, da própria idéia de ressocialização.


3 Teorias acerca da natureza da pessoa jurídica

Com o objetivo de melhor compreendermos as bases sobre as quais se fundam a discussão acerca do problema, cabe-nos a partir de agora esclarecer as principais teorias que buscam conceituar a natureza jurídica da pessoa jurídica, ou seja, estabelecer o que vem a ser, propriamente, aquilo que denominamos de "pessoa jurídica". Em geral, duas são as principais teorias que tentam explicar sua natureza: a teoria da ficção e a teoria da realidade.

3.1.Teoria da ficção

Para Savigny, as pessoas jurídicas não possuem existência real, mas apenas existência fictícia, razão pela qual as mesmas não poderiam jamais ser sujeitos ativos de um delito.

Antônio de Araújo, ao tratar o assunto, estabelece que:

Savigny, ao negar a existência de um delito corporativo e impor a concepção romanista, excluiu por todo um século o problema. A ausência de responsabilidade penal da pessoa jurídica, que, desde há muito, predomina amplamente no Direito Penal de filiação romano-germânica, vem expressa na conhecida locução societas delinquere non potest.

Nesse sentido, conclui-se por essa teoria que a pessoa jurídica nada mais é do que uma abstração, sem nenhuma "realidade social", um ente que não possui vontade própria não podendo portanto, cometer nenhum crime.

3.2 Teoria da realidade

A teoria da realidade, por sua vez, possui como um de seus maiores precursores Otto Gierke, e, diferentemente do que é defendido pela teoria da ficção, esta teoria defende a idéia de que a pessoa jurídica é um ente que possui vontade própria, sendo, portanto, capaz de conduta.

No que diz respeito a tal posicionamento, Kleber Morais Bahia aduz que:

A pessoa jurídica tem vontade própria, pois, essa nasce e vive da vontade individual de seus membros. Essa vontade se manifesta a cada etapa de sua vida, pela reunião, pela deliberação, voto de seus membros, acionistas, conselho, direção. Assim sendo, a vontade coletiva pode cometer crimes tanto quanto a vontade individual, conforme a doutrina francesa.

Este posicionamento tem sido adotado atualmente pela doutrina, sendo, portanto, a pessoa jurídica considerada não como um ente meramente abstrato, ou como uma mera ficção, mas como um ente que possui, antes de mais nada, existência própria, que difere, contudo, das pessoas naturais, únicas capazes de vontade e, portanto, capazes de serem sujeitos ativos de um delito.


4 A responsabilidade penal da pessoa jurídica no cenário internacional

Alguns sistemas, tais como o inglês, o francês e o americano, devido à adoção da idéia da responsabilidade penal da pessoa jurídica, merecem ser aqui tratados.

De acordo com o sistema inglês, "a pessoa jurídica pode ser responsabilizada por toda infração penal que sua condição lhe permitir realizar. Isso ocorre, especialmente, no campo dos delitos referentes às atividades econômicas, de segurança do trabalho, de contaminação atmosférica e de proteção ao consumidor" (PRADO, p.292, 2005).

Tendo em vista tal sistema, para que uma pessoa jurídica seja responsável pela prática de um delito, torna-se necessário a realização de uma conduta humana. Este argumento encontra guarida na teoria da identificação. Considera-se, nestes casos, que a pessoa física não atua para a sociedade, mas enquanto sociedade. Assim sendo, sua vontade seria a vontade da própria sociedade, o que justificaria tal responsabilização.

Vale apenas ressaltar, que a criação desta possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas pelo sistema inglês é uma criação jurisprudencial, que surgiu no início do século XIX, alcançando não apenas os crimes econômicos, mas crimes de qualquer natureza.

O sistema francês, por sua vez, disciplinou a matéria de forma expressa no Código Penal de 1992 tendo previsto, tanto no Código, quanto em leis especiais, vários tipos de infrações que podem ser praticadas pelas pessoas jurídicas e que são, portanto, objetos de sanções.

De acordo com Klaus Tiedemann "según la opinión del Consejo Constitucional Francés, dicha responsabilidad se admite solamente com relación a los casos expresamente previstos em la ley o reglamento" [04].

Tendo em vista tal sistema, "a responsabilidade penal da pessoa moral está condicionada à prática de um fato punível suscetível de ser reprovado a uma pessoa física" (PRADO, p.299, 2005). Assim sendo, temos que a responsabilidade penal da pessoa jurídica é subsidiária à responsabilidade penal da pessoa física. Não havendo responsabilidade por parte da pessoa física, em regra, não poderá ser condenada também a pessoa jurídica.

Dentre as sanções previstas para as pessoas jurídicas podem ser citadas como exemplo: a multa, a interdição definitiva ou temporária para exercer atividades profissionais, o controle judiciário por cinco ou mais anos, o fechamento definitivo ou temporário da empresa. Além disso, vale aqui também ressaltar, que o diploma francês estabelece expressamente entre seus dispositivos os crimes que podem ser praticados pelas pessoas jurídicas, enquadrando-se entre eles, a título de ilustração, a lesão corporal culposa, o estelionato, a extorsão, a traição, o terrorismo, dentre outros.

Em outros locais, contudo, uma das punições utilizadas em relação a este tipo de responsabilização como forma de reprimir a criminalidade é o confisco geral. Neste sentido, aduz Klaus Tiedmann que:

Además, en los últimos años, numerosos Estados han vuelto a introducir, a pesar de las dudas sobre su constitucionalidad, la confiscación general para reprimir el crimen organizado. Esta sanción, consistente en despojar de todos sus bienes a uma persona, parecía abandonada desde hace tiempo, salvo en los países que formaban parte del sistema socialista. Así, desde 1991 los Federal Setencing Guidelines de los Estados Unidos permiten pronunciar, contra agrupaciones com fines predominantemente criminales, multas de um monto tan elevado que implican privarlas de total de sus base financiera. Evidentemente, no se pueden aplicar tales multas a las empresas normales sin disolverlas. [05]

Como se pode perceber, em alguns casos, tais penas podem levar, até mesmo, ao fechamento da empresa em alguns países em razão do valor da multa a ser aplicada como pena face à ocorrência de algum fato criminoso do qual tenha participado a empresa, multas estas que podem levar à dissolução da empresa, tendo em vista seus valores extremamente exacerbado.

De acordo com tais posicionamentos e tendo em vista as teorias que buscam explicar a natureza da pessoa jurídica, já expostas acima, temos que, tais defensores se baseiam para tal responsabilização, na teoria da realidade, que consagra a pessoa jurídica como um ente real, que possui vontade própria e que, pelo fato de sua vontade poder, em certas circunstâncias, não coincidir com a vontade de seus representantes, deve ser a pessoa jurídica diretamente responsabilizada por seus atos.

Assim sendo, não se baseiam para tal responsabilização, na culpa, como critério subjetivo e individual, mas na idéia de uma responsabilização social, como forma de tornar possível, dentro da estrutura da teoria do delito hoje estabelecida, a imputação desta responsabilidade em âmbito criminal.


5 O tratamento da responsabilidade penal das pessoas jurídicas no sistema brasileiro

A Constituição da República, em seus artigos 173, §5º e 225, §3º, prevê sanções penais e administrativas para as pessoas jurídicas, sobre as quais pairam grandes controvérsias.

Estabelece o artigo 225, §3º, da Constituição da República, que "as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados".

Para aqueles que defendem a impossibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas, não se pode considerar, de acordo com este artigo, que há previsão concreta de responsabilidade criminal das pessoas coletivas. Isso porque, quando o artigo faz menção às pessoas físicas, deve-se correlacionar esta idéia com as sanções penais, e, ao tratar das pessoas jurídicas, ser o enunciado correlacionado às sanções administrativas.

Juarez Cirino dos Santos estabelece, assim, que:

[...] especialistas em Direito Penal rejeitam a pretendida ruptura do princípio constitucional da responsabilidade penal pessoal, destacando as diferenças semânticas das palavras condutas e atividades, empregadas no texto com bases de correlações distintas, assim estruturadas: a) as condutas de pessoas físicas sujeitarão os infratores a sanções penais, b) as atividades de pessoas jurídicas sujeitarão os infratores a sanções administrativas. (SANTOS, 2008, p.436).

Diante do exposto, mesmo se a interpretação do artigo não for realizada neste sentido, qualquer interpretação contrária deve ser afastada, pois, a interpretação da Constituição deve ser feita de forma sistemática, devendo, portanto, serem levados sempre em consideração pelo intérprete de suas normas, os princípios sobre os quais ela se funda. Uma interpretação diversa do artigo levaria à ofensa dos princípios da culpabilidade e da personalidade, como brevemente exposto no início do trabalho.

Luiz Luisi, ao discorrer sobre o tema aduz que:

Desde muito está superada esta análise estritamente literal e isolada da norma, pois a mesma não pode ser enfocada na sua singularidade e na sua literalidade, mas deve ser interpretada como componente de um ordenamento, ou melhor, de um sistema. Estando, portanto, as normas conectadas com outras normas, impõe-se uma interpretação dentro do sistema. [...] E onde mesmo no campo constitucional, em caso de conflito de normas, prevalecem, as de maior valor, especialmente as ditas normas pétreas, por constituírem princípios reitores do ordenamento constitucional. (LUISI, 2003, p.159).

Outro dispositivo discutido pela doutrina é o artigo173, §5º, que assim dispõe: "a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-se às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular". Com bem se observa, não podemos, de acordo com o disposto no artigo, afirmar que o mesmo estabeleça a idéia de responsabilidade penal para as pessoas jurídicas, já que o mesmo não prevê expressamente tal possibilidade, visto que seu utiliza da expressão "punições compatíveis com sua natureza". Ora, não é exclusivo do Direito Penal o conceito de punição, podendo ser esta administrativa, razão pela qual não se deve chegar à conclusão precipitada de que o legislador tenha, neste artigo, estabelecido uma punição penal para as pessoas jurídicas.

Dessa forma, não devemos considerar que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas seja constitucional, tendo em vista que os artigos 225, §3º e 173, §5º, não estabeleceram, de acordo com as explicações expostas, uma efetiva exceção à responsabilidade penal da pessoa jurídica. [06]

Quanto à legislação brasileira, a lei dos crimes ambientais (Lei 9605/98), dispõe em seu artigo 3º que "as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato".

Ocorre, contudo, que embora exista em nossa legislação esta fórmula expressa de responsabilidade penal das pessoas jurídicas, tal dispositivo não estabelece se a pessoa jurídica teria uma vontade real (teoria da realidade) ou uma simples vontade reflexa (teoria da ficção).

Como bem estabelece Juarez Cirino dos Santos:

Este ponto é crucial, porque indicaria a sede do dolo e da imprudência como fundamento subjetivo da responsabilidade penal das empresas: a sede do dolo e da imprudência seria a pessoa jurídica (teoria da realidade) ou seria a pessoa física (teoria da ficção)? (SANTOS, 2008, p.438).

Percebe-se, desse modo, que embora tenha a legislação brasileira estabelecido uma forma de responsabilidade penal para as pessoas jurídicas, esta se limitou a estabelecê-la, sem, contudo, esclarecer suas dimensões.

Desse modo, percebe-se que, embora hajam disposições constitucionais e legislativas que geram discussões acerca de seu real âmbito de aplicação, tais dispositivos não podem ser considerados legítimos, nem constitucionais, uma vez que, como será trabalhado posteriormente, ferem frontalmente princípios penais constitucionais e, além disso, interferem e modificam elementos já consagrados na dogmática penal no que diz respeito à própria teoria do delito.


6 Os princípios constitucionais penais e suas relações com a responsabilidade penal das pessoas jurídicas

Como já exposto brevemente no início deste trabalho, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas fere frontalmente alguns princípios penais constitucionais.

Dentre eles, o primeiro a ser analisado será o princípio da culpabilidade, segundo o qual não há crime sem culpa, ou, de acordo com a fórmula latina, nullum crimen sine culpa.

Ocorre, contudo, que a pessoa jurídica, diferentemente da pessoa física, não tem capacidade de culpabilidade, uma vez que esta é desprovida de consciência e vontade.

Com base no conceito de culpabilidade, como juízo de reprovação, são necessários a presença de alguns requisitos que compõem o próprio conceito para que determinado sujeito seja considerado culpável, a saber, imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa. Ocorre, porém, que o primeiro requisito a ser exigido pelo próprio conceito de culpabilidade, não pode ser alcançado em relação às pessoa jurídicas, visto que a imputabilidade é uma condição inerente à pessoa física.

Neste sentido, estabelece Juarez Cirino dos Santos que:

A pessoa jurídica não tem capacidade penal, porque os requisitos de maturidade e de sanidade mental são inaplicáveis à vontade pragmática das reuniões, deliberações e votos da pessoa jurídica – e não podem ser supridos pelo registro na Junta Comercial, ou pela validade do contrato social. (SANTOS, 2008, p.448).

Outrossim, como preencher o requisito da "potencial consciência da ilicitude" em relação à pessoa jurídica, se suas atividades são desenvolvidas por seus sócios, diretores ou prepostos? Tal característica, de se "saber o que faz", só pode existir no campo psíquico individual de pessoas físicas, já que a pessoa jurídica, por si só, não possui sequer consciência.

Por fim, o terceiro elemento da culpabilidade, ou seja, a exigibilidade de obediência ao direito poderia, em tese, ser exigido da pessoa jurídica na prática de seus atos. Todavia, para que haja a exigência de obediência ao direito, necessário é que o agente seja imputável, além de estar configurada a potencial consciência da ilicitude, o que, como já visto, não é possível. Assim, ausentes os dois primeiros elementos (imputabilidade e potencial consciência da ilicitude), será impossível a caracterização do terceiro elemento (exigibilidade de conduta diversa, ou conforme ao direito), que configura a possibilidade concreta do autor de poder adotar sua decisão de acordo com o conhecimento do injusto.

Embora demonstradas todas as incongruências relativas à possibilidade de culpabilidade das pessoas jurídicas, vale aqui ressaltar que existem autores, como TIEDEMANN, que propõem um modelo de culpabilidade para as pessoas jurídicas, estabelecendo que:

Tal culpabilidad de la agrupación no es idêntica a la culpabilidad cumulativa constituída pó la adición de las culpas personales (admitidas p. ej. en el derecho de dos Estados Unidos). Tampoco está basada, o no solamente, em la imputacíon de la culpabilidad de outro. Reconocer em derecho penal tal culpabilidad (social) de la empresa solo significa reconocer, de una parte, las consecuencias de su realidad social y, de otra parte, las obrigaciones correspondentes a sus derechos. [07]

Por sua vez, o princípio da pessoalidade ou personalidade da pena, pelo qual se deve entender que "nenhuma pena passará da pessoa do condenado", também deve ser aqui analisado.

O problema que surge nesse sentido é o de que, quando da responsabilização penal da pessoa jurídica, sujeitos atingidos pela decisão seria não a pessoa jurídica em si, mas as pessoas naturais que a compõem.

Como relembra Luiz Luisi,

Tem se alegado que as penas aplicáveis a pessoa jurídica atingem as pessoas naturais que a integram. Uma pena de multa por exemplo repercute no patrimônio das pessoas naturais que integram a pessoa jurídica, Mesmo nos Estados Unidos, segundo informa Malamud Goti, a doutrina, tem advertido sobre a necessidade de restringir o âmbito da punibilidade da pessoa jurídica, pois para evitar que a punição recaia sobre pessoas alheias a infração cometida. E refere o caso dos acionistas das sociedades anônimas. (LUISI. 2003, p.160).

Desse modo, demonstrada também está a impossibilidade de conjugação entre o princípio da personalidade da pena e a responsabilidade das pessoas jurídicas.

Por fim, temos ainda, uma lesão direta ao princípio da punibilidade, definido por Juarez Cirino dos Santos, como sendo uma síntese dos fins racionais atribuídos à pena.

A pessoa jurídica é um ser incapaz de sentimento, de consciência, de vontade, de emoções, razão pela qual, todas as finalidades atribuídas à pena não são com ela compatíveis.

Desse modo coloca o autor que:

Primeiro, a reprovação de culpabilidade expressa na pena retributiva de crime não pode incidir sobre a vontade pragmática da pessoa jurídica, porque a psique impessoal e incorpórea da pessoa jurídica é incapaz de arrependimento, estado afetivo exclusivo do ser humano.

Segundo, a prevenção geral negativa de desestímulo à criminalidade pela intimidação do criminoso não pode atuar sobre a empresa pela razão elementar de que a vontade coletiva transpsíquica ou interpessoal da pessoa jurídica não pode ser intimidada; por outro lado, a prevenção geral positiva de reforço dos valores comunitários não pode existir independente da prevenção geral negativa – e, portanto, é igualmente inócua.

Terceiro, a prevenção especial negativa de neutralizar o condenado por privação da liberdade pessoal é impensável na pessoa jurídica, porque a empresa não pode ser encarcerada; por outro lado, a prevenção especial positiva de ressocializar o condenado pela execução da pena é programa pedagógico jamais realizado na pessoa física e, simplesmente, impossível de ser realizado na pessoa jurídica. (SANTOS, 2008, p.454).

Assim sendo, e de acordo com todos os argumentos trabalhados, percebe-se a impossibilidade de conciliação, no nosso ordenamento jurídico, da responsabilização das pessoas jurídicas, face à afronta direta deste instituto a vários princípios constitucionais.


7 CONCLUSÃO

Embora possa parecer necessária a intervenção do Direito Penal para responsabilizar diretamente as pessoa jurídicas, tendo vários países já adotado expressamente tal possibilidade, não vemos como possível sua introjeção no sistema jurídico-penal brasileiro. Para que isso pudesse ocorrer, necessário seria uma modificação do sistema hoje adotado, já que este se constrói com base na idéia de uma responsabilização de pessoas físicas, capazes, portanto, de conduta e de culpabilidade.

Não queremos dizer com isso, porém, que não deva ser aplicado nenhum tipo de sanção às pessoas jurídicas. O que se pretende demonstrar é que não há possibilidade de se atribuir uma sanção estritamente penal para tais entes. Isso porque, além de não ser possível, por exemplo, que estes se submetam a uma pena de prisão, tendo em vista sua própria estrutura, não é possível conjugar sua natureza com os elementos hoje exigidos pela própria estrutura analítica do delito, nem sequer, adequar tal responsabilidade aos princípios sob os quais devem se basear não só o sistema jurídico-penal, mas todo o ordenamento jurídico. Nesse sentido, não devemos, portanto, entender que a Constituição de 1988 tenha estabelecido expressamente, como alguns defendem.

Assim sendo, e diante de todos os argumentos expostos, percebe-se que embora exista um movimento no sentido de tentar responsabilizar penalmente as pessoas jurídicas como meio de intervenção e diminuição de certas formas de criminalidade, estas necessidades trazidas por movimentos de política criminal acabam criando certos entraves que não estão de acordo com a própria dogmática penal, seja porque não se adequam aos requisitos necessários para a caracterização de um delito, que como já demonstrado, possui um caráter genérico que precisa existir para que se possa atribuir a alguém a responsabilidade por certo fato, que é a conduta, seja porque tal responsabilização não está de acordo com princípios constitucionais penais que devem obrigatoriamente ser observados.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas

  1. TIEDEMANN, Klaus. Responsabilidad penal de las personas juridicas. Disponível em http://www.unifr.ch/ddp1/derechopenal/anuario/an_1996_07.pdf Acesso em: 14/03/2010.
  2. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 3.ed. Curitiba: ICPC, Lumen Júris, 2008, p.431.
  3. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. Volume I. 7.ed. rev e atual. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2008, p.355-356.
  4. TIEDEMANN, Klaus. Responsabilidad penal de las personas juridicas. Disponível em http://www.unifr.ch/ddp1/derechopenal/anuario/an_1996_07.pdf Acesso em: 14/03/2010.
  5. TIEDEMANN, Klaus. Responsabilidad penal de las personas juridicas. Disponível em http://www.unifr.ch/ddp1/derechopenal/anuario/an_1996_07.pdf Acesso em: 14/03/2010.
  6. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 3.ed. Curitiba: ICPC, Lumen Júris, 2008, p.436.
  7. TIEDEMANN, Klaus. Responsabilidad penal de las personas juridicas. Disponível em http://www.unifr.ch/ddp1/derechopenal/anuario/an_1996_07.pdf Acesso em: 14/03/2010.

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PAULA, Francine Machado de. A responsabilidade penal da pessoa jurídica no cenário nacional e internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2482, 18 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14706. Acesso em: 25 abr. 2024.