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A auditoria-fiscal do trabalho no combate ao trabalho escravo moderno no setor sucroalcooleiro

A auditoria-fiscal do trabalho no combate ao trabalho escravo moderno no setor sucroalcooleiro

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As ações do Ministério do Trabalho e Emprego, que antes atingiam somente algumas dezenas de trabalhadores nas fazendas de gado e carvoarias, passaram a ter destaque pelo resgate de centenas de cortadores de cana por todo Brasil.

INTRODUÇÃO.

A ação da Auditoria-Fiscal do Trabalho ganhou ainda mais relevo com a alteração da competência da Justiça do Trabalho pela Emenda Constitucional n. 45. Acertadamente o poder constituinte derivado levou para o conhecimento da Justiça Especializada o exame da atuação deste órgão fiscalizador. Com isto, um universo de matérias passou a interessar a doutrina trabalhista. Talvez a matéria mais árdua seja a caracterização do trabalho escravo moderno e, em especial, no setor sucroalcooleiro, por sua relevância e pela quantidade de trabalhadores atingidos numa só ação, via de regra.

De fato, numa só operação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, por vezes, se resgata centenas de trabalhadores [01] nas frentes de trabalho de corte de cana. Ou seja, as ações do Ministério do Trabalho e Emprego, que antes do fortalecimento do etanol atingiam somente algumas dezenas de trabalhadores nas fazendas de gado e carvoarias (dentre outros segmentos), passaram a ter destaque pelo resgate de centenas de cortadores de cana por todo Brasil. Tal fato, além de implicar na imediata mudança de mentalidade do empregador rural sucroalcooleiro em relação às condições de trabalho, também criou um traço negativo para um recurso energético, teoricamente, "limpo" do ponto de vista ambiental.

De toda forma, no setor sucroalcooleiro tem-se encontrado diversos fenômenos tais como: a) jornadas exaustivas denunciadas, inclusive, na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, que levou à edição do enunciado n. 20 [02]; b) migração de trabalhadores, antes ativada somente pelo aliciamento e, agora, firmada num movimento de migração temporária (conforme a sazonalidade da colheita) "espontâneo", no entanto, com problemas ainda maiores em relação à moradia e condição de vida dos mesmos.

Ao lado disto, pode-se listar algumas questões:

a) como superar a ausência de conceito administrativo de trabalho escravo?

b) O Auditor-Fiscal do Trabalho tem ou não poder de interpretar e, principalmente, de integrar as normas?

c) Há diferença entre o conceito brasileiro de trabalho escravo e o da Organização Internacional do Trabalho?

d) Como realizar a caracterização do trabalho escravo?

e) O requisito da restrição liberdade existe ou não para todos os tipos de trabalho escravo moderno?

f) Há ou não fraude nos alojamentos na cidade?

g) É ou não dever da empresa fornecer moradia para os trabalhadores migrantes temporários?

h) É ou não possível a discriminação positiva em prol da migração sustentável?

É no propósito de iniciar um debate fecundo sobre estes temas que se propõem as linhas seguintes. Para tanto, a fim de demonstrar a importância e legitimidade do estudo, o texto jurídico é antecedido de uma análise, ainda que superficial, sobre o cenário econômico e social do setor sucroalcooleiro e, em especial, a quantidade de acidentes de trabalho.


1.ECONOMIA SUCROALCOOLEIRA.

É público e notório o crescimento do setor sucroalcooleiro. As expectativas do setor são as melhores possíveis:

"O agronegócio compreende as atividades de pesquisa, de fornecimento de máquinas, insumos e serviços para a propriedade rural, atividades de produção nas propriedades agrícolas e aquelas ligadas às indústrias de processamento de alimentos e matérias-primas rurais. O Brasil é o terceiro maior exportador agrícola do mundo, atrás apenas dos EUA e da União Européia. Entre as tendências para o futuro, destaca-se o papel do setor sucroalcooleiro, em função da recente busca mundial por fontes alternativas de combustível". (Relatório Anual 2006 do BNDES)

"A demanda mundial por biocombustíveis deverá crescer a taxas elevadas no futuro previsível, impulsionada pela conscientização da necessidade de deter o processo de aquecimento global, bem como pelos temores de uma possível escassez de petróleo". (BNDES Setorial, Rio de Janeiro, n. 27, p. 21-38, mar. 2008)

A instabilidade do preço do petróleo tem forçado os governos de todo o planeta a buscar fontes alternativas. O Brasil adotou a tecnologia dos carros Flex, o que redesenhou a indústria automobilística:

Ano

Autoveículos Leves (automóveis e comerciais leves)

Gasolina

Álcool

Flex

Diesel

2002

1.576.418

56.594

67.134

2003

1.561.283

34.919

49.264

76.375

2004

1.682.167

51.012

332.507

115.445

2005

1.334.189

51.476

857.899

133.889

2006

977.134

775

1.391.636

101.679

2007

767.446

3

1.936.853

96.709

Fonte: Anuário da Indústria Automobilística Brasileira 2008. ANFAVEA - Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (www.anfavea.com.br)

Há, ainda, a questão ecológica. A produção do álcool seria ecologicamente sustentável:

"Se a combustão for de um elemento não-fóssil, como por exemplo o álcool, também será emitido gás carbônico para a atmosfera. Entretanto, não será promovido desequilíbrio no ecossistema, já que o gás carbônico emitido será contrabalançado por aquele consumido pela cana-de-açúcar em seu crescimento. A combustão do álcool, portanto, não contribui para o aumento do efeito estufa". (BNDES Setorial, Rio de Janeiro, n. 23, p. 235-266, mar. 2006)

Mesmo em relação à queima da cana, tão prejudicial à população próxima dos canaviais e aos trabalhadores, já existe Lei do Estado de São Paulo (Lei Estadual n. 11241/2002), que prevê a diminuição gradual da queima em todo o Estado.

No entanto, a par deste panorama de lucros atuais e promissora rentabilidade, há usinas que vêm desatendendo sua função social em relação aos trabalhadores.

"Por outro lado, a propriedade privada é uma concessão da sociedade, não tem origem transcendental. Por isso, o direito de propriedade deve ser exercido, sempre, com fim social (artigo 5°, XXIII, da CF/88), e não utilizado como instrumento de poder sobre a vontade alheia, em uma ambiente de sobrevivência hostil". (JOÃO BAPTISTA CILLI FILHO. JUIZ DO TRABALHO. VT/Taquaritinga. PODER JUDICIÁRIO. JUSTIÇA DO TRABALHO. TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO. PROCESSO N° 0900/08-0)

O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) tem realizado resgate de trabalhadores submetidos à condição análoga à de escravo em canaviais situadas em todo o Brasil. Além da atividade ordinariamente penosa do trabalhador rural no setor canavieiro, há empregadores que degradam o ser humano, demonstrando desrespeito aos comandos legais. Realizam verdadeira discriminação em relação aos rurícolas, sujeitando-os a condições de habitação e labor incompatíveis com a dignidade humana.

Tal procedimento afronta a política estatal de investir no setor. O setor sucroalcooleiro tem recebido incentivo (isenção fiscal e financiamento) tanto dos Estados como da União. Inclusive o Fundo de Amparo ao Trabalhador tem sustentado boa parte dos empréstimos subsidiados:

"O FAT continua sendo a principal fonte externa de financiamento do Orçamento de Investimentos do Sistema BNDES. Em 31 de dezembro de 2006, o saldo de recursos do FAT no BNDES era de R$ 98 bilhões, sendo que desse total R$ 73 bilhões constituíam o saldo do FAT Constitucional e R$ 25 bilhões o saldo do FAT Depósitos Especiais. Ao longo de 2006, ingressaram no BNDES R$ 13,7 bilhões de recursos novos oriundos do FAT, dos quais R$ 7,6 bilhões do FAT Constitucional e R$ 6,1 bilhões do FAT Depósitos Especiais. (Relatório Anual 2006 do BNDES)

"Durante o ano de 2006 o BNDES aprovou financiamentos no valor total de R$ 2,1 bilhões ao setor agrícola, em que se destacam R$ 1 bilhão para usinas de açúcar e álcool e R$ 879 milhões para o setor de carnes". (Relatório Anual do BNDES de 2006)

Em conseqüência das perspectivas favoráveis para o etanol no Brasil – decorrentes do quadro descrito acima –, verificou-se, nos últimos anos, aumento muito significativo da demanda por recursos do BNDES destinados a financiar a expansão da produção desse combustível. O alto volume de tais financiamentos – que geraram desembolsos de aproximadamente R$ 3,5 bilhões em 2007, ou seja, cerca de 5% do total – foi um dos fatores responsáveis pela criação do Departamento de Biocombustíveis (DEBIO), em agosto de 2007. (BNDES Setorial, Rio de Janeiro, n. 27, p. 21-38, mar. 2008)

Diante deste quadro, se configura ainda maior o dever da Fiscalização Laboral em combater o trabalho análogo ao de escravo nos canaviais. Este setor não detém nenhuma justificativa econômica para se omitir em relação ao meio ambiente do trabalho. Pelo contrário, sua sustentabilidade ambiental deve abranger o trabalhador.


2.ROTINA E RISCO DO TRABALHADOR.

O perfil do trabalhador rural no corte de cana é de um "Maratonista Franzino" [03]. A exigência produtiva leva este trabalhador à sobrecarga cardiorrespiratória. Muito embora nos últimos anos haja aumento da exigência de desempenho do cortador de cana, a melhoria de suas condições de trabalho não acompanhou esta demanda, pelo contrário.

A FUNDACENTRO informa que "o excesso de trabalho em condições adversas provoca freqüentes câimbras nas mãos, nos pés, nas pernas dos trabalhadores". Além disto, é comum, durante a ação fiscal, o Auditor presenciar um acidente de trabalho no corte:

"Acidentes de trabalho ocorrem freqüentemente no corte da cana. Os cortes são mais freqüentes nas pernas e nas mãos para onde está direcionada a lâmina cortante do facão no ato do corte da base da cana e no aparamento das ponteiras. Também ocorrem acidentes nos olhos". (Dissolvendo a Neblina: O Encontro dos Trabalhadores Canavieiros da Região Sudeste: Saúde, Direito, Trabalho. São Carlos, 26 a 28 de Outubro de 2004. FUNDACENTRO).

A maioria dos trabalhadores é migrante. São laboristas que vêm de regiões muito pobres para a safra, na esperança de ganhar dinheiro que dê para melhorar sua condição de vida e de sua família. Assim que termina a safra retornam para sua terra onde está sua casa.

Neste itinerário encontram, por vezes, várias formas de exploração: seja o gato ou aliciador, que lhe cobra pelo transporte, hospedagem e alimentação; seja pelo turmeiro, que lhe toma a CTPS quando chega e lhe cobra pela hospedagem e alimentação. Há vários casos em que tanto o gato quanto o turmeiro figuram como parceiros das empresas sucroalcooleiras, fazendo a captação de trabalhadores e transportando os cortadores de cana para as frentes de trabalho.

Em razão do tempo que passam fora de casa, há relatos de trabalhadores que não acompanham o nascimento dos filhos, que não retornam para suas terras por falta de dinheiro ou por vergonha de não ter nada para levar aos seus familiares, e etc.

Além da atividade de corte, há, ainda, as atividades de plantio, de aplicação de agrotóxicos, de queima, de carregamento, de engate e de transporte da cana.

No plantio, assim como na aplicação de agrotóxicos, a operação é arriscada tal como relata a FUNDACENTRO:

"As condições de trabalho no plantio da cana também pioraram, em decorrência da mecanização e semi-mecanização do plantio, que se dá com a entrada do caminhão carregado de cana no talhão. Uma turma trabalha encima do caminhão jogando a cana para a segunda turma de trabalhadores que as recebe e as arruma no sulco, preparando-as para a turma seguinte picotá-la. Estas duas turmas precisam trabalhar de forma sincronizada para que os trabalhadores não sejam atropelados pelo trator que vem atrás, fechando e adubando o sulco. Nestas condições, o ritmo de trabalho dos trabalhadores é determinado pela velocidade do caminhão e as condições adversas de trabalho aumentam os riscos de acidentes e depauperam fisicamente os trabalhadores.

(...)

No caso do plantio, há dificuldades para se equilibrar encima do caminhão em movimento. Por outro lado, é preciso muita agilidade para não se acidentar nesta operação sincronizada que distribui os trabalhadores entre o caminhão na frente e o trator atrás. Os trabalhadores têm de fazer muito força para jogar a cana no sulco, pois é difícil puxar a cana. Têm se registrado acidentes de trabalho provocados pela queda do caminhão em movimento".

(...)

Os venenos usados na cultura da cana de açúcar podem provocar intoxicações nos trabalhadores. Um estudo conduzido pelo Núcleo de Estudos sobre Saúde e Trabalho Rural, sediado no Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, junto a trabalhadores de uma empresa sucro-alcooleira de MG, detectou várias alterações em exames laboratoriais e várias queixas relativas aos sistemas renal e nervoso em trabalhadores expostos a agrotóxicos. Em vários casos, foi feito o nexo entre as alterações dos trabalhadores e seu trabalho e eles foram reconhecidos como doença profissional pelo INSS. Há uma necessidade de se ampliar este estudo, que envolveu também pesquisas imunológicas, uma vez que a compreensão dos mecanismos bioquímicos e imunológicos envolvidos poderia ajudar a detecção precoce de alterações em trabalhadores expostos a agrotóxicos.

(Dissolvendo a Neblina: O Encontro dos Trabalhadores Canavieiros da Região Sudeste: Saúde, Direito, Trabalho. São Carlos, 26 a 28 de Outubro de 2004. FUNDACENTRO).

A queima da cana produz ainda mais acidentes, principalmente quando feita à noite.

Em relação à área industrial das usinas, também há desrespeito à legislação de segurança laboral. Em parte das operações do GEFM há interdições desta área, inclusive de caldeiras que colocam em risco toda a população local [04].

A gravidade do desrespeito ao ser humano, por relevante parte dos empregadores do setor sucroalcooleiro, pode ser sentida conforme o quantitativo dos acidentes de trabalho. Estes dados foram levantados no Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho: AEAT 2007 [05] e comparados com dados do MAPA – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento [06].

2.1.Acidentes de Trabalho no Setor Sucroalcooleiro.

O setor sucroalcooleiro é identificado por três códigos do CNAE (Cadastro Nacional de Atividades Empresariais):

CNAE 1.0

Descrição da Atividade

Correspondência no CNAE 2.0

01.13-9

Cultivo de cana-de-açúcar

01.13-0

15.61-0

Usinas de açúcar

10.71-6

23.40-0

Produção de álcool

19.31-4

Não há uniformidade no uso de CNAE pelas empresas do ramo. Há usinas produtoras de etanol que utilizam o CNAE de usinas de açúcar em virtude de sua evolução histórica (ou seja, eram antes usinas de açúcar). E há, ainda, em razão de terceirização, empresas enquadradas em CNAE diverso, mas que prestam serviço apenas no segmento sucroalcooleiro.

Deve ser levado em conta, também, o número de subnotificações de acidente de trabalho estimado. Há pesquisas em que o número de subnotificações chega à marca de 79,5%, havendo ainda estudiosos, tal como o Juiz do Trabalho Sebastião Geraldo de Oliveira (Indenizações por Acidente de Trabalho ou Doença Ocupacional. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2006), que estimam, ao menos, 50%. Muito embora o nexo técnico epidemiológico venha, gradualmente, diminuindo este número, ainda é cedo para rever a estimativa de subnotificações.

"RESULTADOS: Foram visitadas 9.626 residências, onde habitavam 26.751 moradores com idade superior a nove anos, dos quais 13.328 eram trabalhadores ocupados. A subnotificação de acidentes do trabalho foi estimada em 79,5% (IC 95% 78,8%-80,3%)." (Subnotificação de acidentes do trabalho não fatais em Botucatu, SP, 2002. Ricardo CordeiroI; Mirian SakateII; Ana Paula Grotti ClementeI; Cíntia Ségre DinizII; Maria Rita DonalisioI. IDepartamento de Medicina Preventiva e Social. Faculdade de Ciências Médicas. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, Brasil. IIDepartamento de Saúde Pública. Faculdade de Medicina de Botucatu. Universidade Estadual Paulista. Botucatu, SP, Brasil. Rev. Saúde Pública vol.39 no.2 São Paulo Abril de 2005. Pesquisa feita com apoio e financiamento da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Sítio acessado em 06/11/2008: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102005000200017)

Conforme a tabela abaixo, o segmento sucroalcooleiro na soma dos anos de 2006 e 2007 totaliza 58.574 acidentes de trabalho registrados, o que representa 99,7% em comparação ao número de acidentes de trabalho ocorridos na construção civil (58.752). Ocorre, no entanto, que a construção civil se desenvolve com certa uniformidade em todo o Brasil. Já o setor canavieiro tem concentração em alguns Estados, além do aspecto da safra, o que eleva, ainda mais, proporcionalmente, sua participação na lesão à saúde do trabalhador.

CAPÍTULO 1 - BRASIL E GRANDES REGIÕES

1.1 - Quantidade de acidentes do trabalho, por situação do registro e motivo, segundo a

Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), no Brasil - 2006/2007

CNAE

Com CAT Registrada

Total

2006

2007

Denominação

Cultivo de cana-de-açúcar

01.13-0

8.081

8.334

Fabricação de açúcar em bruto

10.71-6

14.835

17.367

Fabricação de álcool

19.31-4

4.597

5.360

Total Sucroalcooleiro

27.513

31.061

Cultivo de cereais

01.11-3

839

664

Cultivo de algodão herbáceo e de outras fibras de lavoura temporária

01.12-1

141

153

Cultivo de fumo

01.14-8

181

16

Cultivo de soja

01.15-6

286

475

Cultivo de oleaginosas de lavoura temporária, exceto soja

01.16-4

69

49

Cultivo de plantas de lavoura temporária não especificadas anteriormente

01.19-9

484

272

Horticultura

01.21-1

158

123

Cultivo de flores e plantas ornamentais

01.22-9

84

105

Cultivo de laranja

01.31-8

1.170

1.137

Cultivo de uva

01.32-6

1.195

722

Cultivo de frutas de lavoura permanente, exceto laranja e uva

01.33-4

895

878

Cultivo de café

01.34-2

438

435

Cultivo de cacau

01.35-1

41

45

Cultivo de plantas de lavoura permanente não especificadas anteriormente

01.39-3

251

183

Produção de sementes certificadas

01.41-5

2.162

1.669

Produção de mudas e outras formas de propagação vegetal, certificadas

01.42-3

27

37

Criação de bovinos

01.51-2

633

1.025

Criação de outros animais de grande porte

01.52-1

21

22

Criação de caprinos e ovinos

01.53-9

5

11

Criação de suínos

01.54-7

73

86

Criação de aves

01.55-5

1.159

982

Criação de animais não especificados anteriormente

01.59-8

19

14

Atividades de apoio à agricultura

01.61-0

8.263

4.087

Atividades de apoio à pecuária

01.62-8

1.047

854

Atividades de pós-colheita

01.63-6

68

77

Total AGRICULTURA, PECUÁRIA E SERVIÇOS RELACIONADOS

19709

14121

Incorporação de empreendimentos imobiliários

41.10-7

625

787

Construção de edifícios

41.20-4

11.016

11.024

Construção de rodovias e ferrovias

42.11-1

3.226

3.536

Construção de obras-de-arte especiais

42.12-0

1.025

846

Obras de urbanização - ruas, praças e calçadas

42.13-8

464

495

Obras para geração e distribuição de energia elétrica e para telecomunicações

42.21-9

4.014

4.088

Construção de redes de abastecimento de água, coleta de esgoto e construções correlatas

42.22-7

285

340

Construção de redes de transportes por dutos, exceto para água e esgoto

42.23-5

220

247

Obras portuárias, marítimas e fluviais

42.91-0

70

126

Montagem de instalações industriais e de estruturas metálicas

42.92-8

1.322

1.560

Obras de engenharia civil não especificadas anteriormente

42.99-5

2.257

2.244

Demolição e preparação de canteiros de obras

43.11-8

53

44

Perfurações e sondagens

43.12-6

97

87

Obras de terraplenagem

43.13-4

714

695

Serviços de preparação do terreno não especificados anteriormente

43.19-3

1

3

Instalações elétricas

43.21-5

768

727

Instalações hidráulicas, de sistemas de ventilação e refrigeração

43.22-3

235

256

Obras de instalações em construções não especificadas anteriormente

43.29-1

658

581

Obras de acabamento

43.30-4

1.236

1.152

Obras de fundações

43.91-6

401

451

Serviços especializados para construção não especificados anteriormente

43.99-1

367

409

Total CONSTRUÇÃO

29054

29698

FONTE: DATAPREV, CAT.

Tabela 1: Comparação com outros setores da economia.

ESTADO

Sucroalcooleiro

%

Outros

%

Total

Goiás

4.982

18%

22.167

82%

27.149

Maranhão

737

13%

4.734

87%

5.471

Pernambuco

4.514

20%

17.830

80%

22.344

Alagoas

9.045

70%

3.923

30%

12.968

FONTE: DATAPREV, CAT.

Tabela 2: Exemplo de alguns Estados.

Gráfico 1. FONTE: DATAPREV, CAT.

Estados

Total de Cana Moída na safra 05/06 (t)

Total de Cana Moída na safra 06/07 (t)

Total de Cana Moída

CAT de 2006 e 2007

Acidentes por cem mil toneladas

Média de Corte Diário (divisão por 365) (t)

Acidentes por dia do ano

SÃO PAULO

241.222.574

265.379.217

506.601.791

23.452

4,63

693.975

32,13

PARANÁ

24.522.773

32.118.523

56.641.296

5.638

9,95

77.591

7,72

MINAS GERAIS

24.324.538

29.153.432

53.477.970

3.567

6,67

73.257

4,89

ALAGOAS

22.254.195

24.594.118

46.848.313

9.045

19,31

64.176

12,39

GOIÁS

14.568.007

16.140.042

30.708.049

4.982

16,22

42.066

6,82

PERNAMBUCO

13.797.850

14.583.679

28.381.529

4.514

15,90

38.879

6,18

BAHIA

2.391.415

2.278.680

4.670.095

1.983

42,46

6.397

2,72

MARANHÃO

844.456

1.660.264

2.504.720

737

29,42

3.431

1,01

Total

343.925.808

385.907.955

729.833.763

53.918

7,39

999.772

73,86

Fontes: DATAPREV, CAT e MAPA.

Observação: a safra se inicia no segundo trimestre do ano. Como não há coincidência entre os períodos avaliados considerei os períodos existentes para análise aproximada.

Tabela 3: Acidente por produção.

Há Estados, conforme Gráfico 1 acima, em que o setor sucroalcooleiro é responsável por até 70% dos acidentes de trabalho. É o que ocorre no Estado de Alagoas e que foi acompanhado de perto pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel na Usina Santa Clotilde. O Grupo coordenado pelo Auditor-Fiscal do Trabalho Dercides Pires da Silva identificou grande número de acidentes de trabalho ocorridos durante o período em que a Justiça do Trabalho suspendeu a interdição feita pela Auditoria do Trabalho.

"Em apenas seis dias, de 26 de fevereiro a 3 de março, 88 trabalhadores da usina Santa Clotilde, localizada em Rio Largo, município da grande Maceió, foram afastados por acidentes de trabalho. Diante dessa situação, a força-tarefa do Ministério Público do Trabalho (MPT) entrou com pedido de reconsideração da decisão do juiz Alan Esteves, da 7ª Vara do Trabalho da capital, que suspendeu a interdição do corte da cana naquela empresa". (Notícia veiculada em 04/03/2008. Procuradoria Regional do Trabalho da 19ª Região. Sítio acessado em 06/11/2008: http://www.prt19.mpt.gov.br/informativo/2008/mar/acidentes_trabalho.htm)

Quando se compara os números da produção do setor sucroalcooleiro (cana moída) com a quantidade de acidentes de trabalho chega à marca de 73,86 acidentes por dia em apenas 08 Estados. Só em São Paulo, o maior produtor, a marca é de 32,13 acidentes por dia. Levando em conta as estimativas de subnotificação estes valores devem ser acrescidos de, no mínimo, 100%, considerando que, pelo menos, metade dos acidentes de trabalho não são informados.


3.ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO.

Como informa Ruth Beatriz Vasconcelos Vilela, Secretária de Inspeção do Trabalho, "desde 1995, o Ministério do Trabalho e Emprego, por intermédio do Grupo Especial de Fiscalização Móvel e de equipes das Delegacias Regionais do Trabalho, subordinados à Secretaria de Inspeção do Trabalho, tem realizado inspeções em inúmeras propriedades rurais denunciadas por exploração do trabalho escravo" [07]. São 13 anos de atividade constante no combate à submissão do trabalhador à condição análoga à de escravo.

Este trabalho tem sido reconhecido internacionalmente, inclusive pela OIT [08], que considera exemplar o combate ao trabalho escravo no Brasil. Em 2003 o combate foi consolidado pela Lei n. 10.803 de 11.12.2003, que tornou mais claro o que é considerado trabalho escravo no Brasil.

Além disto, no mesmo ano, foi lançado o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo pelo Governo Federal. E agora, em 2008, foi lançado o 2º Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo realizando a atualização do primeiro. Informa Paulo Vannuchi, Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, na apresentação deste segundo plano, que 68,4% das metas do primeiro plano foram alcançadas.

O 2º Plano de Erradicação foi elaborado pela CONATRAE – Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Esta comissão foi criada pelo Decreto Presidencial não numerado de 31/07/2003 e é vinculada à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Tem por missão acompanhar o cumprimento dos Planos de Erradicação e de propor estudos e pesquisas na área, dentre outras atribuições. O Ministério do Trabalho e Emprego a integra.

E ainda, o Ministério do Trabalho e Emprego, com a edição da Portaria nº. 540, de 15/10/2004, criou o "CADASTRO DE EMPREGADORES QUE TENHAM MANTIDO TRABALHADORES EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO". Este cadastro conta, atualmente, com 168 [09] pessoas (físicas e jurídicas). Após "decisão administrativa final relativa ao auto de infração lavrado em decorrência de ação fiscal em que tenha havido a identificação de trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo" estes empregadores são inscritos no cadastro. Este cadastro, simplesmente informativo, tem sido utilizado por instituições financeiras para estabelecer sua política creditória. Assim, o obstáculo de acesso ao crédito tem sido uma grande ferramenta no combate aos neoescravagistas.

O trabalho de frente é executado pelo GEFM – Grupo Especial de Fiscalização Móvel, regulado pela Portaria do MTE n. 265 de 06/06/2002, somado às ações realizadas pelas Superintendências Regionais do Trabalho, voltadas especialmente para o combate ao trabalho escravo. Este Grupo é formado por Auditores Fiscais do Trabalho (integrantes da carreira da inspetoria laboral, existente em quase todo o mundo). Nas operações integram a equipe: Procuradores do Trabalho, Delegados e Agentes da Polícia Federal, Policiais Rodoviários Federais, dentre outros órgãos que, eventualmente, possam ser chamados a colaborar.

3.1.Inspeção Laboral e o Setor Sucroalcooleiro.

O Setor Sucroalcooleiro tem merecido atenção da inspeção laboral em razão da sua expansão e do histórico de irregularidades encontradas.

Há graves irregularidades relacionadas a transporte [10]. Como exemplo, podemos citar: o transporte de equipamentos de trabalho, como facões, junto aos trabalhadores; motoristas inabilitados; veículos não autorizados pelas autoridades competentes, que elevam o risco, já existente, de acidentes no trânsito. Infelizmente, é comum ouvir notícias de acidentes envolvendo estes veículos [11]. Transitam em rodovias estaduais e federais, onde o trânsito é ainda mais perigoso, sob a alcunha "RURAIS", estampado no veículo. É comum a inspeção laboral encontrar ônibus sucateados, com o assoalho esburacado e com adaptações para caber mais trabalhadores, de forma que o espaço entre o joelho e o banco da frente é ínfimo. Tais veículos vêm sendo, sistematicamente, interditados pela inspetoria laboral por ocasião das ações fiscais.

É recorrente a ausência de instalações sanitárias nas frentes de trabalho, condição básica e de baixo custo para o empregador. Os trabalhadores (homens e mulheres) realizam suas necessidades fisiológicas no meio do canavial, sem qualquer condição de higiene. Há, ainda, algumas empresas que tentam disfarçar este atentado à dignidade humana com "tendas", que não são passíveis de utilização. São armações de lona com um buraco no chão, sujeitas ao calor e à ação do vento que, por vezes, lança as tendas no ar.

Há flagrantes de ausência de abrigo para as refeições. Os trabalhadores encontrados nestas condições almoçam embaixo de sol forte e sentados nas garrafas de água.

A superlotação dos alojamentos, com a sobreposição de redes, por exemplo, e a inexistência de armários são fatos graves por vezes constatados pela auditoria. O trabalhador, que já tem um ritmo penoso de trabalho, também em sua moradia, fornecida pela empresa, é sujeito a condições precárias de habitabilidade. Não há local para guarda de seus bens pessoais ou possibilidade de momentos de privacidade. Além disto, a superlotação catalisa a contaminação por doenças. A superlotação e a ausência de janelas criam grande desconforto térmico.

Além disto, com relação à aplicação de agrotóxicos, há situações em que se constata: a não capacitação para prevenção de acidentes; o não fornecimento de EPI; a ausência de vestimenta em condições de uso e higienizadas; a não descontaminação do EPI e vestimentas ao final da jornada, fazendo com que o trabalhador volte para sua casa e faça a limpeza do material, contaminando o meio ambiente doméstico; o não fornecimento água própria para consumo humano, condição indispensável à vida de trabalhadores.


4.INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO DAS NORMAS PELO AUDITOR-FISCAL DO TRABALHO.

Neste ponto do estudo, passo a analisar, juridicamente, as questões levantadas. Para tanto, por ordem lógica, é necessária a pré-avaliação da questão da interpretação das normas e de sua integração pelo Auditor-Fiscal do Trabalho. Para tanto, nas linhas seguintes estão impressos trechos da doutrina do JUIZ DO TRABALHO ÉDISON VACCARI [12] que informa e resolve o tema:

"Uma vez que a lei está em vigência, cabe ao aplicador interpretá-la, por mais clara que seja. A lei é abstrata em razão de seu processo generalizante, já que se refere a uma série de casos indefinidos. Daí porque a clareza da lei é relativa. Para determinado fato ela pode ser efetivamente clara; mas para outro ela pode se tornar duvidosa. (...) Tanto as leis claras quanto as ambíguas comportam interpretação, razão pela qual não tem aplicabilidade a expressão latina in claris cessat interpretatio. (...) No V. acórdão da lavra do Ministro Sepúlveda Pertence, Recurso Extraordinário 234.068-1, de outubro de 2004, ADMITIU-SE O USO DA ANALOGIA SEM AFRONTA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. (...) A lei a ser cumprida muitas vezes não é clara o suficiente para que seja imediatamente cumprida, havendo necessidade de sua interpretação. Noções de hermenêutica são aplicáveis, para tanto. Ao administrador público cabe, também, editar o regulamento da lei, ante seu poder normativo. Esse poder normativo é aplicável às situações em que não se exige e edição de lei. Por fim, diante das lacunas da lei, verificou-se que tanto a doutrina estrangeira quanto a nacional admitem a utilização da analogia, costumes e princípios gerais do direito".

Ao Inspetor Laboral é dado realizar o exercício de integração do ordenamento trabalhista através de recursos como a analogia e aplicação de princípios, nos termos do art. 8º da CLT [13] (sem as ressalvas e limitações impostas à Autoridade Tributária [14]) – que franquia a integração para além da Justiça do Trabalho. E mais, o princípio da proteção, que norteia a aplicação da interpretação que melhor proteja o trabalhador, também é aplicável pela Autoridade Administrativa a par do princípio da estrita legalidade. Isto porque, ao contrário de outros ordenamentos como o Tributário, em que o Auditor da Receita deve aplicar o princípio da estrita legalidade, interpretando restritivamente as normas que demandam do contribuinte, o Direito do Trabalho possui duas esteiras.

De uma banda tem-se as normas de Direito Administrativo do Trabalho, que regulamentam o valor das multas e questões fiscais, como a contribuição sindical. De outra, as normas de Direito do Trabalho que regram a dinâmica da relação laboral. Nestas últimas, o princípio da proteção deve ser aplicado, uma vez que, de outra forma, haveria num mesmo sistema jurídica uma interpretação administrativa e outra judicial. A própria CLT impede a ocorrência desta dupla interpretação, colocando no mesmo nível de poder integrativo do ordenamento laboral a autoridade administrativa e o Judiciário. Ou seja, o mesmo exercício de hermenêutica e integração que a Autoridade Judiciária faz, o Auditor deve fazer com uma única diferença: ao Executivo, como se sabe, com exceção do seu chefe maior, não é dado desrespeitar o princípio de presunção de constitucionalidade das normas.

Neste contexto, ao atender o art. 8º da CLT, o Auditor-Fiscal do Trabalho mantém-se fiel ao princípio da estrita legalidade.


5.MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA.

Conforme leciona RAIMUNDO SIMÃO DE MELO, citando CELSO ANTONIO PACHECO FIORILLO:

"O meio ambiente do trabalho é ‘o local onde as pessoas desempenham suas atividades laborais, sejam remuneradas ou não, cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio e na ausência de agentes que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores, independente da condição que ostentem (homens ou mulheres, maiores ou menores de idade, celetistas, servidores públicos, autônomos, etc.)’".

E ainda, em complemento ao conceito de meio ambiente:

"Neste sentido, Norma Sueli Padilha que afirma resultar ‘... claro que quando a Constituição Federal, em seu art. 225, fala em meio ambiente ecologicamente equilibrado, está mencionando todos os aspectos do meio ambiente. E, ao dispor, ainda, que o homem para encontrar uma sadia qualidade de vida necessita viver nesse ambiente ecologicamente equilibrado, tornou obrigatória também a proteção do ambiente no qual o homem, normalmente, passa a maior parte de sua vida produtiva, qual seja, o trabalho’". (...) "Segundo José Afonso da Silva ‘... merece referência em separado o meio ambiente do trabalho, como o local em que se desenrola boa parte da vida do trabalhador, cuja qualidade de vida está, por isso, em íntima dependência da qualidade daquele ambiente. É um meio ambiente que se insere no artificial, mas digno de tratamento especial’". (...) "Rodolfo de Camargo Mancuso define meio ambiente do trabalho como o ‘... habitat laboral, isto é, tudo que envolve e condiciona, direta e indiretamente, o local onde o homem obtém os meios para prover o quanto necessário para a sua sobrevivência e desenvolvimento, em equilíbrio com o ecossistema. A ´contrario sensu´, portanto, quando aquele ´habitat´ se revele inidôneo a assegurar as condições mínimas para uma razoável qualidade de vida do trabalhador, aí se terá uma lesão ao meio ambiente do trabalho’". FERNANDES, Fábio de Assis Ferreira. O princípio da prevenção no meio ambiente do trabalho. Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasília, n. 28, set. 2004, p. 51 e ss.

De fato, sendo o meio ambiente o conjunto das condições que regem a vida, o meio ambiente do trabalho é aquele que rege a vida do laborista em atividade e engloba a moradia disponibilizada para o trabalho. Isto porque, sendo necessário alojar o trabalhador (principalmente o migrante) para que realize suas atividades, a salubridade deste local é relevante até para o contrato de trabalho, conforme NR-31, e, portanto, relevante para o conceito de meio ambiente de trabalho.

Este meio ambiente encontra tutela na Constituição Federal em seus artigos 225, caput e §3º, c/c 200, VIII, e 7º, XXII:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;

Assim, a Constituição de nossa República qualificou o meio ambiente, incluindo o do trabalho, como bem difuso, que pertence a todos, impondo-se não só ao Poder Público, mas à coletividade sua preservação. A partir disto, a doutrina e jurisprudência civilista e trabalhista majoritárias compreendem que o §3º do art. 225 (principalmente quando combinado com o art. 14, §1º, da Lei n. 6938/81) estabeleceu a responsabilidade objetiva pelo dano ao meio ambiente do trabalho.

A responsabilidade objetiva é o "olhar a vítima" e não o culpado. Funda-se no solidarismo constitucional (art. 3º, I), bem como no valor da justiça. Desta forma, impõe-se a reparação àquele que ofendeu o meio ambiente, independente de verificação de dolo (vontade de praticar o ato comissivo ou omissivo lesivo) ou culpa (imprudência, negligência e/ou imperícia na prática do mesmo ato). Ou seja, havendo o dano ambiental, o agente causador – conforme a teoria do risco aplicável ao poluidor empresário, que assume os riscos de sua atividade (art. 2º da CLT) – tem o dever constitucional de sanear o meio ambiente, torná-lo indene e compensar as vítimas, independentemente de culpa.

Importante salientar que, em matéria de meio ambiente do trabalho, o princípio da precaução exige extrema cautela do empresário nas questões ambientais. De tal forma que, havendo poluição ao meio ambiente, inclusive do trabalho, sua culpa emerge do não atendimento ao dever de prevenção. Ou seja, muito embora haja responsabilidade objetiva, facilmente se observa a conduta culposa pelo não atendimento dos princípios basilares do direito ambiental-trabalhista, seja pelo descumprimento das NR´s, seja pelo desatendimento do princípio mais amplo da precaução.

Tal é a amplitude da proteção ao meio ambiente que se exige, além da prevenção, a precaução, conforme estabelecido no princípio n. 15 da Declaração do Rio de Janeiro de 1992:

"Para proteger o meio ambiente medidas de precaução devem ser largamente aplicadas pelos Estados segundo suas capacidades. Em caso de risco de danos graves e irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto para procrastinar a adoção de medidas visando a prevenir a degradação do meio ambiente".

Sendo a coletividade (que abrange o explorador da mão-de-obra) responsável pelo meio ambiente, conforme dicção constitucional, esta também, e não só o Estado, deve atender ao princípio da precaução, antecipando-se ao estado da arte da ciência ocupacional e não expondo o trabalhador a riscos potenciais.

5.1.Responsabilidade Objetiva e Responsabilidade Subjetiva para a Imposição de Multa.

Muito embora o ordenamento ambiental preveja a responsabilidade objetiva do empregador-poluidor, as multas trabalhistas seguem o direito administrativo sancionador, que determina, em regra, a responsabilidade subjetiva para sua aplicação.

Que não se confunda! As esferas civil, administrativa e penal são, em regra, independentes. A responsabilidade ambiental é objetiva. A responsabilidade penal é subjetiva.

A responsabilidade para imposição de multa trabalhista é subjetiva, entretanto, aplica-se segundo o que for apurado em relação aos "braços humanos da empresa", conforme leciona FELICIANO [15]. E ainda, seguindo a lição deste magistrado, o princípio da culpabilidade tem aplicação mitigada nesta seara. Não se exige que a Administração prove dolo ou culpa do infrator. A autuação administrativa gera presunção de culpa, conforme princípio da legitimidade dos atos administrativos.

Hipóteses como a terceirização ilícita ou o uso de intermediadores/aliciadores para contratação de mão-de-obra geram a caracterização de culpa por parte do tomador (culpa in eligendo) e, portanto, ensejam multa.

Além disto, na eventual hipótese de ausência de culpa da empresa, sendo esta cientificada do dano e não tomando providências imediatas, será também passível de autuação pela situação que mantém.

Por exemplo, havendo trabalhadores que não se declararam migrantes para a Usina e vivem em péssimas condições de habitação na cidade e sendo tal fato de desconhecimento notório da empresa, a mesma, sendo cientificada, deverá proceder à alteração da moradia dos trabalhadores imediatamente. Não o fazendo, estará agindo culposamente ao manter a condição degradante dos trabalhadores e, portanto, será passível de multa pela continuidade do dano ambiental. Sobre a responsabilidade da empresa pela habitação do migrante, passo a expor no tópico seguinte.

Por outro lado, providências como o resgate dos trabalhadores sujeitos à condição análoga de escravo, seus pagamentos e indenizações devidas, além das despesas com seu retorno à terra de origem, não são atos de aplicação de multas e, portanto, independem de culpa.

5.2.Impacto Ambiental. Migração e Trabalho Degradante.

A introdução supra, fixa as premissas que norteiam a atuação estatal em face das empresas que insistem na degradação do ser humano. De fato, a responsabilidade dos infratores é objetiva em relação ao meio ambiente. Os empregadores têm, por dever, precaver todo e qualquer dano.

Desta forma, a responsabilidade da empresa infratora perante o trabalhador sujeito a condições análogas à de escravo abrange tanto aquele que é submetido a condições degradantes na frente de trabalho, como também aquele que vive em condições insalubres nos alojamentos disponibilizados pelo empregador ou por terceiro. Ou seja, também nos casos de terceirização ilícita, intermediação de mão-de-obra ou aliciamento, o real empregador responderá pelos atos praticados pelo terceiro que colocou os trabalhadores em condições degradantes.

No entanto, muito embora cientes de sua responsabilidade, algumas empresas vêm praticando uma omissão, no intuito de se verem livres do dever de fornecer moradia, quando necessária para o trabalho. É o caso dos migrantes, que se deslocam no intuito de ganhar algum dinheiro laborando para as Usinas e depois retornar para suas terras. Ou seja, eles não têm interesse de fixar domicílio (residência com ânimo definitivo) na região da Usina. Nestes casos, algumas Usinas têm desativado seus alojamentos ou simplesmente optado por não tê-los, deixando à própria sorte estes trabalhadores. Por vezes, a fiscalização do trabalho tem encontrado trabalhadores alojados em condição degradante nas cidades, que não têm qualquer estrutura para receber estes laboristas. São alojamentos improvisados em barracões velhos e sem qualquer condição de higiene.

Numa análise açodada, poderia parecer que nenhuma obrigação haveria para a empresa em relação aos alojamentos alugados pelos próprios trabalhadores migrantes. Entretanto, a legislação ambiental brasileira impede tal conclusão.

Conforme entendimento de RAIMUNDO SIMÃO DE MELO (obra cit., p. 84) o Estudo Prévio de Impacto Ambiental [16] (EPIA) é aplicável, também, ao meio ambiente de trabalho, "embora ainda pouco discutida" na esfera laboral. De fato, a Constituição não faz qualquer distinção, exigindo em seu art. 225, §1º, IV, a realização do EPIA.

Em relação a este instituto, a par da licença ambiental, que deve ser condicionada ao adequado EPIA, o mais relevante é a revelação do princípio da precaução, que é levado ao seu grau máximo, exigindo-se o estudo amplo de todas as conseqüências do empreendimento, antes mesmo de sua execução.

Quando há a instalação de uma Usina, o administrador do empreendimento já tem dimensionado o quantitativo de pessoas que lhe serão necessárias para atender sua demanda de produção. Por conseqüência, conhecedor da região, sabe se haverá ou não mão-de-obra suficiente (seja em razão do quantitativo e/ou da qualidade da mão-de-obra ofertada no local). Não havendo, é sua obrigação precaver danos ambientais que podem advir da migração. Um desses danos ambientais potenciais é a degradação das moradias dos trabalhadores, em decorrência da falta de infra-estrutura da cidade para suportar o movimento migratório. Assim, considerando que é necessário alojar estes trabalhadores, é seu dever constitucional criar condições adequadas para receber os laboristas migrantes que venha a contratar.

E ainda, a interpretação do art. 160 da CLT, que determina a inspeção prévia pela Auditoria do Trabalho, pode e deve abranger todos estes vetores da implantação de uma empresa, servindo, portanto, de instrumento de realização dos princípios ambientais da Carta Magna. Ou seja, todos os impactos ao meio ambiente de trabalho são abrangidos pela fiscalização laboral, sendo legítima sua atuação na espécie.

No entanto, mesmo não havendo EPIA que abranja as condições de trabalho, nem inspeção prévia da fiscalização laboral que tenha atentado para estas conseqüências, o empregador não se desincumbe de responder por sua imprevidência. Deve o empregador prevenir o dano. Sua omissão será apenada se o trabalhador foi posto à própria sorte na cidade. Outro não é o entendimento de recente decisão judicial que servirá de paradigma para as que virão:

Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região

2ª Vara do Trabalho de Sertãozinho

Juiz do Trabalho: WELLINGTON CÉSAR PATERLINI

Processo n. 01332-2008-125-15-00-0

Autor: MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO

Procurador: SÍLVIO BELTRAMELLI NETO

Decisão de Antecipação de Tutela

Sertãozinho, 30 de julho de 2008.

"Em ótica convencional, não é fácil cogitar-se de responsabilizar o empregador pelas condições de moradias que não foram por ele oferecidas aos trabalhadores que atuam em seu favor. Acontece que o direito do trabalho deve avançar, e não retroceder. Isso significa que o caminho que ruma à precarização dos direitos trabalhistas é avesso às suas próprias tendências ontológicas mais essenciais.

(...)

A moradia é direito social, conforme artigo 6o da Constituição Federal. Os valores sociais do trabalho e a dignidade da pessoa humana são tão fundantes da República e da ordem econômica quanto a livre iniciativa. E a liberdade de contratar submete-se à função social de seu resultado. No caso de trabalhadores migrantes da cana-de-açúcar, é irretocável o raciocínio de que, como regra, "sua habitação se estabelece a partir e em função da relação laboral", de modo que moram como moram "por causa do emprego", fls. 30. Igualmente adequada a formulação de que o conceito de meio ambiente do trabalho, absorvido pelo direito posto , deve centralizar-se na pessoa do trabalhador, fls. 29. Então, as moradas coletivas dos trabalhadores migrantes, diretamente providenciadas ou não pelos beneficiários do trabalho, constituirão verdadeira extensão do ambiente de trabalho, conforme fls. 31. Assim, nessa específica situação, a manutenção de condições adequadas de moradia para esses trabalhadores, pela empregadora, deve-se incluir nos "custos sociais externos que acompanham a produção industrial", e que, como tais, devem ser na verdade "internalizados, isso é, levados à conta dos agentes econômicos em seus custos de produção". Em termos simples, e usando-se a mesma lógica do princípio do poluidor-pagador - próprio à legislação ambiental invocada em inicial, fls. 34 -, isso significa legitimamente imputar ao empregador o custo social das condições de moradas coletivas (então compreendidas como extensão do ambiente de trabalho, especialmente no caso dos trabalhadores migrantes) que decorrem do tipo de contratação que ele engendra .

(...)

Veja-se: no caso em questão, a usina pagou empresa intermediadora de mão-de-obra para serviços afeitos à sua atividade-fim. E foi pessoa identificada como feitor justamente dessa empresa, irregularmente contratada pela ré, que, por sua vez, intermediou a instalação dos inadequados alojamentos constatados, como indicado a fls. 94/105. Portanto, não é sequer possível dizer que inexista cadeia fática a ligar a usina aos tais alojamentos. E essa cadeia fática, que se poderia reputar por demais indireta ou mitigada, deve ser valorizada porquanto inserida em contexto de contratações primariamente irregulares" (grifei).

Como se observa, o Juiz do Trabalho responsabilizou objetivamente a Usina pelas instalações físicas das moradias dos trabalhadores, em razão da migração para laborar na própria empresa. O que, por si só, já seria suficiente para exigir a reparação do dano, conforme informado pelo Magistrado. No entanto, acrescentou o que ocorre em geral, a existência da intermediação das locações, realizada por terceiro.

De fato, quando o trabalhador migrante chega à cidade, não tem qualquer referência pessoal que lhe permita locar um imóvel. Em regra, sequer tem dinheiro para o aluguel, dependendo do que vier a receber da Usina. Neste momento, intermediadores de mão-de-obra e/ou turmeiros assumem as tratativas com o dono do imóvel e garantem o trabalhador, dando continuidade ao ciclo de escravização por endividamento e coação moral.

Tais fatos reforçam a responsabilidade da empresa, que se utiliza desses terceiros para contratar mão-de-obra, sendo improvável a ignorância do empregador em relação a esta realidade.

Além da questão ambiental, a função social da propriedade (art. 5º, XXIII, e 170, III da CF/88) e o desenvolvimento sustentável são princípios que guiam rumo à mesma conclusão. O estabelecimento de um grande empreendimento deve levar à melhoria da condição de vida da população e não o contrário.

5.3.DISCRIMINAÇÃO POSITIVA

Diante deste quadro de responsabilidade, algumas empresas noticiam como obstáculo "insuperável" o fato de que não é possível saber se o trabalhador é ou não migrante temporário e, portanto, seria impossível cumprir a obrigação de fornecimento de alojamento quando o trabalhador declara que reside na cidade. De fato, este pode ser um complicador, no entanto, deve ser observado o que ordinariamente acontece, como nos casos a seguir citados.

CASO 01: A Auditoria do Trabalho tem encontrado, via de regra, relatos de trabalhadores que têm suas carteiras "apreendidas" ao chegar à cidade de destino pelo gato, que as leva para a Usina. Nesta hipótese, não há que se falar em desconhecimento, mas de conivência da empresa que utiliza este tipo de intermediador para contratar mão-de-obra migrante. Assim, torna-se responsável por todas as ações deste intermediador, como preposto seu, que, inclusive, tem poder de contratar. Além disto, é responsável pela situação dos trabalhadores migrantes.

CASO 02: Normalmente, a fiscalização consegue identificar o gato, entretanto, há hipóteses em que tal identificação não é possível. Os trabalhadores chegam à cidade em grupos, que vão até o departamento de pessoal da Usina, o que já representa um severo indício da situação de migrantes temporários. Tal fato não deve passar despercebido pela empresa, que deve investigar a real condição destes trabalhadores.

CASO 03: A hipótese mais complexa é a do trabalhador migrante temporário, que chega à cidade sozinho e vai procurar emprego. Ou mesmo aquele que é migrante temporário, mas é dispensado ou se demite de uma Usina e busca contratação em outra. O que fazer nestes casos?

Solução simples seria perguntar ao trabalhador se o mesmo é migrante temporário e, em caso afirmativo, colocá-lo no alojamento. Entretanto, alguns trabalhadores omitem tal informação por temerem não ser contratados. Aqui principia outro problema: a empresa pode discriminar na contratação de trabalhadores migrantes temporários?

Inicialmente, cabe apresentar a definição de discriminação, dada pelo mestre DELGADO: "é a conduta pela qual se nega à pessoa, em face de critério injustamente desqualificante, tratamento compatível com o padrão jurídico assentado para a situação concreta por ela vivenciada" [17]. Tal conceito apresenta a definição da discriminação negativa, ou seja, aquela que é baseada em critério injusto. Por exemplo, negar trabalho em razão da origem, é critério injustamente desqualificante.

Entretanto, negar trabalho ao migrante temporário em razão de política voltada à sustentabilidade social do empreendimento não é ilícito. Trata-se de discriminação positiva, ou seja, aquela que se diferencia por critério justo.

Recentemente o TST decidiu a favor da discriminação positiva em prol da mão-de-obra local:

Notícia do TST veiculada em 03/10/2005: "TST valida ‘discriminação positiva’ em favor de mão-de-obra local. A Seção de Dissídios Coletivos (SDC) do Tribunal Superior do Trabalho declarou a validade de cláusula que dá preferência de contratação à mão-de-obra local como forma de integrar os trabalhadores de uma comunidade ao desenvolvimento da região, garantindo seu acesso aos empregos gerados. (...) a empresa se comprometerá a dar preferência à contratação de mão-de-obra local, desde que atenda aos pré-requisitos necessários para as funções, exigidas pela empresa no que concerne à capacitação e o processo seletivo das empresas" (ROAA 96/2004-000-08-00.4 e ROAA 560/2004-000-08-00.2).

Assim, a Usina deve sim dar preferência à mão-de-obra local para não causar o crescimento populacional desordenado, que leva às más condições de habitação. Tal mão-de-obra, desde que qualificada para o trabalho, deve ser priorizada. E, somente após sua contratação, deverá haver a pactuação com trabalhadores migrantes temporários, que deve ser feita com observância da garantia de alojamento.

Não se trata, no presente caso, de dar subsídio à empresa, para que economize na contratação e não tenha que fornecer alojamento. Mas sim, de ponderação da necessidade de proteger o migrante temporário e minimizar a migração desordenada frente à liberdade de trânsito, que todo nacional tem, em nosso território.

Com tal discriminação positiva, têm-se os seguintes resultados:

1.Protege-se a mão-de-obra local;

2.Valoriza-se aquele que migra em caráter definitivo;

3.Impõe-se à empresa a responsabilidade pela moradia do trabalhador migrante temporário.

Cabe à empresa investigar seriamente se o trabalhador é ou não migrante temporário. Tal ônus decorre de uma situação gerada por ela mesma e, portanto, inerente ao cumprimento de sua função social.

A par deste entendimento, deve-se levar em conta o Princípio da Primazia da Realidade, que informa toda ordem jurídica laboral. Artifício algum pode ser utilizado sob o pretexto de legitimar a contratação de trabalhador migrante temporário como mão-de-obra local. Por exemplo: a contratação por meio do SINE (Sistema Nacional de Emprego) não transmuda a situação do trabalhador. Sendo mais claro: a responsabilidade pela habitação da mão-de-obra migrante temporária é da empresa que contrata tal trabalhador. Foi esta que deu causa à migração e que, no levantamento de impactos ao meio ambiente, tem que projetar a recepção desta massa de trabalhadores.

Hipótese interessante é da Usina que até certo momento utiliza somente mão-de-obra local e, com a instalação de Usina concorrente próxima, passa a ter necessidade de mão-de-obra migrante. Também neste caso, é responsável pela habitação dos migrantes temporários, posto que, não é juridicamente admissível exigir que a nova Usina não contrate mão-de-obra local. Além disto, o princípio da livre concorrência impede qualquer interpretação que leve à conclusão diversa.

Por fim, a inspetoria não pode deixar de observar discriminação em relação à mão-de-obra local. Seria a hipótese de a Usina preferir a contratação de mão-de-obra migrante em face da mão-de-obra local, não em razão de sua capacidade técnica, mas como instrumento de desmobilização dos trabalhadores. Ou seja, à medida que a Usina se estabelece e os trabalhadores locais vão se estruturando junto a seus sindicatos, passam a reivindicar melhores condições de trabalho, inclusive com greves. Se a Usina estiver discriminando a mão-de-obra local por tal critério, é passível da autuação prevista na Lei 9029/95, por discriminação negativa pela origem.

CASO 04: Hipótese que pode ocorrer é do trabalhador migrante temporário que decide, espontaneamente, se fixar em casa alugada por ele mesmo. Neste caso, deve-se respeitar a decisão do trabalhador e não se pode responsabilizar a Usina pelas condições desta moradia. Entretanto, deve ser observado:

a)se o trabalhador fez uma opção livre ou foi levado a procurar outro local pelas más condições da moradia ofertada pela Usina, ou mesmo pela ausência de qualquer oferta de moradia;

b)se esta nova moradia não representa simples realocação dos trabalhadores, tendo, por exemplo, a figura do gato como fiador da locação, dentre outros indícios.

Não sendo a opção realmente livre ou havendo simples realocação, mantém-se a responsabilidade da empresa.

5.4.PREVISÃO DA CCT EM GOIÁS.

A Convenção Coletiva do Setor Canavieiro Goiano de 2009 em sua Cláusula 17ª estabelece a preferência que deve ser dada à mão-de-obra local, e no seu §4º da Cláusula 17ª informa:

PARÁGRAFO QUARTO – Nos casos de contratação de trabalhadores em municípios de outros Estados ou Regiões, o empregador fornecerá alojamento gratuito, sem caráter salarial, observando as normas de segurança, saúde e higiene.

Nestes termos, a Convenção explicita o dever da empresa em fornecer alojamento para quem é recrutado fora do Estado ou Região. Desta regra, a única expressão que pode causar dúvida é o termo Região.

É necessário entender que as Fazendas e Usinas localizam-se na Zona Rural de um Município, ou até de mais de um, dependendo da dimensão da propriedade. Sendo assim, é comum que uma mesma empresa transporte, diariamente, trabalhadores de mais de um município para as frentes de trabalho. Estes municípios, onde os trabalhadores contratados pela empresa residem e de onde são transportados diariamente para as frentes de trabalho, formam a Região daquela empresa. Ou seja, se há necessidade de que o trabalhador recrutado mude de cidade para poder trabalhar na empresa, houve contratação em outra Região e, portanto, deve lhe ser fornecido alojamento.

5.5.Necessidade de Afirmação do Meio Ambiente do Trabalho.

Por oportuno, cabe defender a isonomia de tratamento entre o meio ambiente do trabalho e os demais. Conforme artigo do Procurador do Trabalho FERNANDES [18], a OIT informa que 95% dos danos ambientais aos ecossistemas naturais se originam no meio ambiente do trabalho. São, por exemplo, erros humanos "esperando para acontecer" [19], decorrentes de péssimas condições ambientais: insalubridade, excesso de jornada, falta de alimentação adequada, assédio moral e etc. Segue FERNANDES:

"a variável ambiental trabalhista também seja levada em conta nos estudos de viabilidade dos empreendimentos e nas ações estratégicas do setor público e privado que impliquem em interferências no meio ambiente como um todo, sob pena de não estarmos a imprimir uma defesa eficaz do meio ambiente."

No entanto, há uma corrente doutrinária que distingue a responsabilidade civil ambiental do empresário em relação ao empregado e ao consumidor. Se um consumidor tem lesão auditiva por conta do meio ambiente da empresa, a responsabilidade seria objetiva. Entretanto, se o empregado tem a mesma lesão em decorrência do mesmo meio ambiente, a responsabilidade, pela citada corrente, seria subjetiva. Sob a premissa de respeitar o texto do art. 7º, XXVIII, da CF/88, deita-se por terra um dos objetivos fundamentais de nosso Estado, qual seja a não-discriminação (art. 3º, IV); desrespeita-se a unidade do texto constitucional não realizando a harmonização necessária entre o comando do art. 7º e os demais.

Ainda, conforme a lição de Guilherme José Purvin de Figueiredo, citado por FERNANDES, o próprio Direito Ambiental origina-se da legislação laboral quando na Revolução Industrial se verificou "a aceleração do processo de degradação do meio ambiente natural e humano". E segue:

"Todavia, a ideologia dominante desde então procedeu a uma distinção entre direitos do trabalhador e direitos dos demais cidadãos. Assim, os primeiros passos do legislador no sentido de procurar controlar a poluição no ambiente laboral foram classificados como mero aspecto do Direito do Trabalho".

Por mais estas razões é necessário o resgate da importância do meio ambiente de trabalho. Tal instituto deve alçar plano superior ao clássico conflito entre capital e trabalho. Deve ser colocado como ponto pacífico e insuscetível de ponderação em relação a temas como concorrência ou custo da produção. Isto porque trata da vida do ser humano, origem e destino de todo ordenamento jurídico.

Neste caminho, vários doutrinadores como OLIVEIRA [20], DALLEGRAVE [21] e MELO [22] adotam a responsabilidade objetiva do empregador em relação aos danos ao meio ambiente de trabalho que alcançam terceiro e/ou trabalhadores. Como afirma OLIVEIRA, "não faz sentido a norma ambiental proteger todos os seres vivos e deixar apenas o trabalhador (...) apesar de óbvio, deve ser dito – que o trabalhador também faz parte da população e é um terceiro em relação ao empregador poluidor".

Em arremate, assevera Julio César de Sá da Rocha, citado por OLIVEIRA [23]:

"Como se trata de poluição no meio ambiente do trabalho que afeta a sadia qualidade de vida dos trabalhadores, a compreensão dos dispositivos mencionados não pode ser outra senão a de que a responsabilidade em caso de dano ambiental é objetiva; e quando a Magna Carta estabelece a responsabilidade civil subjetiva, somente se refere ao acidente de trabalho, acidente-tipo individual, diferente da poluição no ambiente do trabalho, desequilíbrio ecológico no habitat de labor, que ocasiona as doenças ocupacionais."

5.6.Tipo Administrativo, Tipo Penal e Determinação Legal Administrativa sem Conteúdo Sancionatório.

Antes de adentrar no conceito de trabalho escravo, faz-se necessário estabelecer diferenças entre os tipos penais e os trabalhistas-administrativos. Conforme leciona a doutrina administrativa, a tipicidade é consectário lógico do princípio da legalidade estrita, que informa o direito administrativo. O Estado é autorizado a proceder pela lei, enquanto o particular pode fazer o que a lei não proíbe.

No entanto, ao legislador é impossível prever todos os casos concretos que possam advir. Daí a uniformidade da doutrina e jurisprudência em se dizer que a tipicidade administrativa é de conteúdo mais elástico. É assim, inclusive, em relação ao direito administrativo sancionador:

"Como bem obtempera SABBAD SOARES, o Direito Administrativo sancionador distingue-se do Direito Penal, em termos práticos, por três aspectos: (a) a culpa é de rigor, e não o dolo (i.e., a culpa não precisa vir expressa no tipo, diversamente do que ocorre no Direito Penal, ut artigo 18, par. único, do CP); (b) o Direito Administrativo sancionador é um Direito sumamente preventivo e não preventivo-repressivo, como é o Direito Penal; e (c) prevalece, no campo de ação do Direito Administrativo sancionador, os ilícitos de perigo abstrato e ― acresça-se ― os de mera desobediência. A par disso, aduza-se ainda que os tipos administrativos são, de regra, mais abertos que os tipos penais estritos, que vazam normas penais incriminadoras (e, no entanto, ainda assim são ― ou devem ser ― tipos).

(...)

Enfim, do Direito Penal proviria, ainda, o princípio da tipicidade, de modo a não permitir o exercício absolutamente discricionário da potestade sancionatória administrativa. Trata-se, porém, de um princípio de tipicidade relativa, já que não se justifica, pelo âmbito de incidência do Direito Administrativo sancionador (bens, direitos e atividades), aplicar à hipótese o princípio da fragmentariedade, tão caro ao Direito Penal."

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Sobre a Competência da Justiça do Trabalho para Causas de Direito Administrativo Sancionador. REVISTA ELETRÔNICA DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO. Revista n. 26. Campinas: 2005. P. 99 e ss.

Como bem leciona FELICIANO, o Direito Penal é indicado por princípios próprios como o da fragmentariedade. Ou seja, conforme a lição da teoria do direito penal mínimo, a sanção à liberdade deve ser utilizada como ultima ratio em toda e qualquer sociedade, sob pena de o próprio ordenamento jurídico perder legitimidade ao se tornar inaplicável pela grande gama de situações que condena.

Doutra forma, o Direito Administrativo Sancionador admite o tipo com certa abertura, para que o Poder de Polícia possa alcançar situações que o legislador (mens legislatoris) não previu. Assim, pela interpretação teleológica, é possível determinar, com certeza, o sentido da norma (mens legis), a fim de alcançar certo fato.


6. TRABALHO ESCRAVO.

Na medida em que a doutrina trabalhista avança no sentido de categorizar novas práticas de lesão ao ser humano, há, por conseqüência lógica, a sensibilização do Poder Legislativo, que é levado a dar uma resposta protetiva. Por vezes o legislador opta por sancionar o fato diretamente pelo ordenamento penal, diante de sua gravidade. Neste ponto, o direito penal passa a ter a definição legal da questão laboral, enquanto o próprio ordenamento trabalhista, em seu sentido estrito, não o tem.

É o caso, por exemplo, do assédio sexual tipificado no art. 216-A do CP. Na hipótese, o legislador conceituou o assédio sexual por chantagem, apesar da doutrina e jurisprudência laboral conhecerem, também, o assédio sexual por intimidação (que é realizado não pelo superior, mas pelos próprios colegas). Ou seja, o jurista laboral não está adstrito ao conceito de assédio sexual informado pelo Código Penal. Sendo espécie de discriminação no ambiente de trabalho, havendo lesão à personalidade do trabalhador, haverá dano e, portanto, direito à reparação.

De toda forma, quando o operador do direito trabalhista encontra fato que pode ser enquadrado como assédio sexual por chantagem, utiliza, em aplicação analógica, o dispositivo penal. Neste caso, ao contrário do direito penal, que alcança apenas o sujeito ativo, a responsabilidade civil atinge tanto o autor da conduta assediante, como a empresa que permitiu o vilipêndio ao meio ambiente de trabalho.

Nestes termos, também o tipo penal de redução à condição análoga à de escravo tem relevância para a Auditoria-Fiscal do Trabalho a partir do momento em que serve como conceito análogo da sua caracterização no âmbito administrativo-trabalhista. Tal capitulação causa a rescisão indireta imediata do contrato de trabalho e determina a concessão do seguro-desemprego para os trabalhadores resgatados, nos termos do art. 2º-C da Lei n. 7998/90:

Art. 2o-C O trabalhador que vier a ser identificado como submetido a regime de trabalho forçado ou reduzido a condição análoga à de escravo, em decorrência de ação de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, será dessa situação resgatado e terá direito à percepção de três parcelas de seguro-desemprego no valor de um salário mínimo cada, conforme o disposto no § 2o deste artigo.(Artigo incluído pela Lei nº 10.608, de 20.12.2002)

§ 1o O trabalhador resgatado nos termos do caput deste artigo será encaminhado, pelo Ministério do Trabalho e Emprego, para qualificação profissional e recolocação no mercado de trabalho, por meio do Sistema Nacional de Emprego - SINE, na forma estabelecida pelo Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador - CODEFAT. (Parágrafo incluído pela Lei nº 10.608, de 20.12.2002)

§ 2o Caberá ao CODEFAT, por proposta do Ministro de Estado do Trabalho e Emprego, estabelecer os procedimentos necessários ao recebimento do benefício previsto no caput deste artigo, observados os respectivos limites de comprometimento dos recursos do FAT, ficando vedado ao mesmo trabalhador o recebimento do benefício, em circunstâncias similares, nos doze meses seguintes à percepção da última parcela.(Parágrafo incluído pela Lei nº 10.608, de 20.12.2002)

Assim, a fiscalização laboral, verificando a situação do trabalhador em condição análoga à de escravo – o que prescinde do exame do sujeito ativo do crime (e do próprio crime), pois o poder de polícia administrativa, neste caso, alcança apenas a empresa – tem o dever legal de determinar a rescisão indireta, para a conseqüente emissão das guias de seguro-desemprego aos resgatados.

Observa-se que não há conceituação do que seja trabalho escravo na Lei 7998/90. A citada lei também não prevê que para haver a liberação do seguro-desemprego deverá ter ocorrido um crime. O que a lei exige é a submissão dos trabalhadores à condição análoga de escravo e o resgate destes pela Inspeção Laboral, ou seja, tem-se uma noção administrativa do trabalho escravo.

6.1.Conceitos de Trabalho Escravo e a Questão da Liberdade.

A OIT - Organização Internacional do Trabalho assim conceitua o trabalho escravo moderno:

Convenção n. 29. Art. 2º. 1. Para fins desta Convenção, a expressão "trabalho forçado ou obrigatório" compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.

Desta forma, a OIT compreende trabalho escravo contemporâneo como sinônimo de trabalho forçado. Ou seja, só há trabalho escravo, na visão da OIT, quando há prestação de serviço involuntária, com clara ofensa à liberdade.

No entanto, o combate ao trabalho escravo no Brasil, referência mundial, conduziu primeiro o jurista laboral, e depois o legislador brasileiro, a uma postura ampliativa do conceito de trabalho escravo, para alcançar situações que não exigem, em todas as suas formas, a restrição da liberdade de locomoção. Tal formulação visa dar maior efetividade ao combate às condições degradantes em que os trabalhadores são encontrados.

Reforça-se que, ainda que não houvesse alteração da Lei, sua interpretação evolutiva já era sentida pela doutrina laboral. De fato, a restrição da caracterização de trabalho escravo à usurpação da liberdade (por vezes dissimulada) atentava contra o seu combate. Por esta razão, o intérprete já buscava a adequação do instituto à realidade nacional, sendo que a própria OIT é sensível ao caso:

"É conveniente recordar que, ainda na redação original, já se entendia que ‘o crime, entretanto, existe, mesmo sem restrição espacial. A sujeição absoluta de um homem a outro realiza-se ainda que àquele seja consentida certa atividade, alguma liberdade de movimento (a supressão total desta não se compreenderia), etc., necessárias, aliás, freqüentemente, para que o ofendido sirva ao seu senhor. Não é preciso também a inflição de maus-tratos ou sofrimentos ao sujeito passivo’.

Raquel Dodge aduz que ‘escravizar é grave, porque não se limita a constranger nem a coagir a pessoa limitando sua liberdade. Também isto. Escravizar é tornar o ser humano uma coisa, é retirar-lhe a humanidade, a condição de igual e a dignidade. Não só a liberdade de locomoção é atingida e, às vezes, a possibilidade de locomoção resta intacta. Guiar-se por esse sinal pode ser enganador. A redução à condição análoga à de escravo atinge a liberdade do ser humano em sua acepção mais essencial e também mais abrangente: a de poder ser. A essência da liberdade é o livre arbítrio, é poder definir seu destino, tomar decisões, fazer escolhas, optar, negar, recusar. Usar todas as suas faculdades. O escravo perde o domínio sobre si, porque há outro que decide por ele. A negativa de salário e a desnutrição calculadas, no contexto de supressão da liberdade de escolha são sinais desta atitude. Assim como a supressão de órgão humano e a submissão de mulheres para fins de tráfico’". (CAZETTA, Ubiratan. Possibilidades Jurídicas de Combate à Escravidão Contemporânea. Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2007. P. 85) (Grifei).

"Não obstante, à medida que a OIT amplia sua pesquisa, análise e suas campanhas de conscientização sobre questões de trabalho forçado nas diferentes partes do mundo, mais fatos básicos tem de enfrentar. Há um extenso espectro de condições e práticas de trabalho, que vão da extrema exploração, inclusive de trabalho forçado numa ponta, a trabalho decente e plena observância das normas do trabalho, na outra. Na parte do espectro em que se pode encontrar condições de trabalho forçado, pode ser muito difícil traçar uma linha divisória entre trabalho forçado, no sentido estrito da expressão, e condições extremamente precárias de trabalho. Mesmo na área legalmente definida como trabalho forçado, há múltiplas maneiras de empregadores poderem privar seus trabalhadores do pleno gozo de seus direitos humanos e trabalhistas, principalmente da percepção de salários mínimos ou de mercado, mediante a aplicação de uma gama de mecanismos de coação ou engano". (Uma Aliança Global Contra o Trabalho Forçado – Relatório Global do Seguimento da Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho. Brasília: OIT, 2005).

Em primeiro plano, cabe verificar o art. 2º-C da Lei n. 7998/90. Este dispositivo bem coloca a amplitude do conceito de trabalho escravo no Brasil, ao expor expressamente que o resgate de trabalhadores é cabível quando houver trabalho forçado (leia-se restrição de liberdade) ou condição análoga à de escravo. Não há palavras inúteis na lei. A mens legis, a intenção da lei, é deixar bem claro que o Brasil adota outras hipóteses, além da mencionada pela OIT, para caracterizar o trabalho escravo contemporâneo.

Enquanto norma que determina um procedimento administrativo, a Lei n. 7998/90 tem, assim, claro cunho de direito administrativo e, portanto, encerra tipo administrativo. Este tipo é menos restrito que o tipo administrativo sancionador, já que não multa, e ainda menos restrito que o tipo penal, que impõe pena de restrição de liberdade. Assim, o operador do direito trabalhista busca no Código Penal o tipo da Condição Análoga à de Escravo para aplicar, por analogia, no âmbito trabalhista-administrativo. E assim dispõe o art. 149 do CP:

Redução a condição análoga à de escravo

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Muito embora o crime do art. 149 do CP esteja incluído no capítulo dos crimes contra a liberdade, o fato é que seu texto não exige restrição de liberdade em todos os tipos. Os tipos de jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho em nada atentam contra a liberdade de locomoção.

Atentam contra a liberdade em seu sentido lato, conforme examinado por CAZETTA na citação supra. Ou seja, o trabalhador fortemente dependente do empregador, em razão do desemprego estrutural, se vê obrigado a sujeitar-se ao meio ambiente de trabalho degradante. Não tem opção. É trabalhar nos moldes estabelecidos pela empresa ou sucumbir à fome. Não há liberdade de escolha de emprego, quiçá de condições de trabalho.

Em reforço, o tipo do art. 149 do CP, com a alteração de 2003, veio pormenorizar as hipóteses de trabalho escravo moderno. Tipificou o trabalho forçado, que literalmente expressa trabalho prestado por coação. Poderia ter-se limitado a isto, alcançando os conceitos internacionais, entretanto, foi mais longe. Passou a elencar outras formas que não dependem de coação ou restrição de liberdade. Condição degradante de trabalho é tipo próprio, não se conjuga com trabalho forçado (até porque todo trabalho forçado é degradante por natureza); pode ser prestado sem coação moral ou física (apesar de existente, em regra, a coação social-econômica).

VITO PALO NETO [24], muito embora adote concepção restritiva sobre o trabalho escravo, bem coloca a situação dos trabalhadores brasileiros que são escravizados por conseqüência de sua condição social:

"Aristóteles, por exemplo, tentou demonstrar que a antítese senhor-escravos era um dado da natureza, ou seja, da mesma maneira que alguns eram senhores por natureza, outros haviam nascido para ser escravos. Acreditava-se que ‘o escravo natural’ não podia ser feliz com a liberdade, visto que não tinha ‘faculdade deliberativa’".

(...)

"Ao nos depararmos com certas situações de trabalhos forçados ou de trabalho em condições de escravidão encontradas nos dias de hoje, podemos restabelecer a idéia do ‘escravo natural’ como clara demonstração de retrocesso da civilização".

(...)

"A falta de instrução e baixa qualificação desses trabalhadores, além de seu estado de miserabilidade, acabam por condená-los a uma condição de ‘escravo em potencial’, que seria algo semelhante ao ‘escravo natural’, com as devidas proporções".

Em conclusão, o tipo penal aplicado analogicamente deve ser interpretado, conforme a óptica da tipicidade administrativa-trabalhista. No ramo trabalhista, a doutrina e jurisprudência majoritária seguem pela caracterização do trabalho escravo, ainda que não haja restrição da liberdade de locomoção:

"Destarte, com o advento da Lei n. 10.803/03, tornou-se possível punir não somente a submissão do trabalhador a maus tratos, labor forçado, sem remuneração e/ou com a restrição da liberdade de locomoção (seja por dívidas, retenção de documentos, não fornecimento de transporte ou ameaças), mas também a submissão da vítima a condições degradantes de trabalho.

Frequentemente a fiscalização encontra trabalhadores alojados em condições desumanas, sem acesso ao mínimo, como água potável, alimentação adequada e medicamento, e constatada essa realidade, como já analisamos em tópico acima, estaremos diante, claramente, da conduta tipificada no art. 149 do Diploma Penal, independentemente do uso de força bruta ou ameaças". (MELO, Luís Antônio Camargo de. Possibilidades Jurídicas de Combate à Escravidão Contemporânea. Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2007. P. 85)

"É que ainda se espera, no caso desse ilícito penal, a materialização da ‘escravidão’ a partir de uma imagem clássica, com a pessoa acorrentada e sob constante ameaça de maus-tratos e outras formas de violência. Reforçando a idéia, o que se espera é a violação a um princípio básico, que é a liberdade.

Isso, além da negação do próprio dispositivo legal indicado (artigo 149, do CPB), que é claro a respeito, representa visão conceitual restritiva e que não mais deve prevalecer.

Na verdade, o trabalho em condições análogas à de escravo é reconhecido, hoje em dia, a partir do momento em que há o desrespeito ao atributo maior do ser humano que é a sua dignidade, e que ocorre, do ponto de vista do trabalho humano, quando é negado ao trabalhador um conjunto mínimo de direitos que a Organização Internacional do Trabalho convencionou denominar trabalho decente, e que são os Direitos Humanos específicos dos trabalhadores". (BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. Trabalho com redução à condição análoga à de escravo: análise a partir do trabalho decente e de seu fundamento, a dignidade da pessoa humana. Artigo publicado no livro: Trabalho Escravo Contemporâneo. São Paulo: LTr, 2006)

"Ora, a efetivação desses direitos não pode se perder em discussão meramente acadêmica ou retórica; deve levar em conta as enormes dificuldades para o alcance da proteção desse conjunto de garantias mínimas, que conferem dignidade à pessoa. Por certo esse sistema guarda relação com o estágio de desenvolvimento de determinada sociedade, razão pela qual, para muitos - especialmente nos países periféricos -, os direitos sociais, que exigem uma atuação positiva do Estado, não passam de mera declaração. Avulta, nesse processo, a importância da justiça como instrumento de cidadania, de liberdade e de realização efetiva de direitos. É dentro desse contexto que está inserida a questão subjacente à posta em lide. Indiscutível a necessidade de fiscalização e de repressão, por parte do Estado - sem excluir as instituições, e especialmente a sociedade civil -, de toda a forma de indevida exploração do homem pelo omem, seja em trabalho degradante, seja em condições humilhantes ou análogas à de escravo. A repulsa há de ser veemente e deve partir da sociedade, sem desprezar o dever indeclinável do poder público de viabilizar medidas eficazes para coibir essa prática nefasta. Feitas essas considerações e voltando ao caso concreto, registro que o procedimento que culminou na inclusão do nome do autor no cadastro criado pela Portaria nº 540/2004, do MTE, não fratura, por si só, as garantias do art. 5º, incisos II e LV, da CF, como a seguir explicitado. Sob o ângulo do primeiro preceito, noto que desde o final do século XIX há, no país, norma a inibir o trabalho escravo - a denominada Lei Áurea. A circunstância da abolição deste regime de labor foi, ao longo da nossa história republicana, reafirmada com maior ênfase; logo, não diviso a necessidade de nova lei, no sentido formal, para que o estado brasileiro adote medidas necessárias para coibir a hedionda prática, ainda que ela venha experimentando refinamentos capazes de obscurecer a sua existência". (Processo n. 00856-2006-006-10-00-2 RO. Juiz Relator JOÃO AMÍLCAR. TRT 10ª Região. Acórdão da 2ª Turma. Publicado em: 16/11/2007) (Grifei).

"Essa situação degradante de trabalho é modernamente concebida como ‘trabalho em condições análogas à de escravo’, em violação à organização do trabalho, e configura-se infração penal descrita nos tipos legais dos arts. 149, 131, parágrafo único, 203 e 207 do Código Penal. Para a sua caracterização não é necessário o cerceio da liberdade de locomoção do trabalhador, mediante o aprisionamento deste no local de trabalho. Basta a configuração da falta de condução, da dependência econômica, da carência de alimentação e de instalações hidro-sanitárias adequadas, do aliciamento de mão-de-obra, dentre outros". (Processo n. 00245-2004-811-10-00-3 RO. Juíza Relator HELOISA PINTO MARQUES. TRT 10ª Região. Acórdão da 2ª Turma. Publicado em: 18/03/2005).

6.2.Efeito da Conceituação no Combate ao Trabalho Escravo no Brasil.

A conceituação, verificada no item anterior, tem especial importância para a Inspeção Laboral. Isto porque, no âmbito da Justiça do Trabalho, com exceção da análise do CADASTRO DE EMPREGADORES, da Portaria n. 540/2004 e dos autos de infração lavrados em decorrência do trabalho análogo ao de escravo, os demais pleitos levados a Justiça Laboral não dependem da caracterização do trabalho escravo.

De fato – assim como no assédio sexual supra retratado –, havendo lesão à personalidade dos trabalhadores, mesmo que não seja caracterizada a condição análoga à de escravo, o Juiz do Trabalho deferirá os pedidos de dano moral coletivo e obrigação de fazer e não fazer, que venham a ser feitos pelo Ministério Público do Trabalho, desde que sejam provadas as lesões.

Desta forma, o embate principal sobre o tema acontece com o enfrentamento jurídico entre empresários e Ministério do Trabalho e Emprego, seja através da Auditoria-Fiscal do Trabalho, no âmbito administrativo, ou da Advocacia da União, no âmbito judiciário. Tal conflito é ainda maior quando a operação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel – GEFM alcança usinas pertencentes a grandes grupos econômicos.

Ao se alcançar grande número de trabalhadores e, por conseqüência, elevada soma das verbas rescisórias e indenizatórias devidas aos laboristas sujeitos à condição de escravos, é natural que haja maior comoção por parte do empresariado.

Entretanto, o Brasil possui, certamente, o conceito de trabalho escravo mais moderno do mundo. Por esta razão, não deve ser confundido como o país que mais escraviza (muito menos tal argumento ser utilizado na política internacional contra a produção de álcool), mas sim, identificado como um dos países que menos tolera o trabalho degradante no campo.

6.3.Espécies de Trabalho Escravo.

O art. 149 do Código Penal apresenta um tipo alternativo, em que o delito se perfaz por meio de qualquer um dos diversos verbos, quais sejam:

1.submetendo-o a trabalhos forçados;

2.submetendo-o a jornada exaustiva;

3.sujeitando-o a condições degradantes de trabalho;

4.restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

6.3.1.Trabalhos Forçados e Restrição, por qualquer meio, da Locomoção do Trabalhador em razão de Dívida Contraída com o Empregador ou Preposto.

Trabalhos forçados são aqueles que o trabalhador não pode recusar, em razão de coação física ou moral. Conforme lição de JOSÉ CLÁUDIO MONTEIRO DE BRITO FILHO [25], esta restrição à liberdade pode caracterizar-se desde o início ou após a contratação, na execução do labor. Ou seja, o "trabalho inicialmente consentido, mas que depois se revela forçado".

Há registro de trabalhadores comprados em hotéis pelo valor de sua dívida, principalmente para labor no roço, para preparação do pasto. No entanto, no setor sucroalcooleiro a forma de trabalho forçado mais comum é por coação moral, decorrente do endividamento, o chamado truck system ou sistema de barracão [26].

A CLT e o próprio Código Penal, mesmo antes da nova redação do art. 149 do CP, já condenavam o sistema de barracão:

CLT. Art. 462 - Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositvos de lei ou de contrato coletivo. § 2º - É vedado à emprêsa que mantiver armazém para venda de mercadorias aos empregados ou serviços estimados a proporcionar-lhes prestações " in natura" exercer qualquer coação ou induzimento no sentido de que os empregados se utilizem do armazém ou dos serviços.

Código Penal. Art. 203 - Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho:

Pena - detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1º Na mesma pena incorre quem:

I - obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida;

Assim, restrição de locomoção, em razão de dívida contraída, configura o conhecido sistema Truck System. Neste modelo, o empregador utiliza de armazém exclusivo para, com a venda a prazo de produtos por valores acima do normal (ou mesmo com valores normais, mas com a contraprestação salarial diminuta), endividar o trabalhador, que fica preso no trabalho por sentir-se moralmente em débito; ou por não ter dinheiro para sair do local; ou por haver vigilância armada para que o mesmo não se evada enquanto não quitar a dívida.

O GEFM tem encontrado, inclusive, casos em que há "cantina" dentro da própria usina, ao lado dos alojamentos, com fornecimento de bebida alcoólica e cadernos de anotação das dívidas, mas sem precisar o valor do produto.

Tal forma de restrição de locomoção tem sofrido alterações com o intuito de dissimular-se situação diversa. O modelo tradicional de armazém no interior da própria fazenda tem evoluído para um sistema de endividamento na cidade, através de mercado único, indicado para o trabalhador para operacionalizar a venda a prazo (o "fiado"), conforme vem acompanhando a inspeção laboral [27].

Nesta mutação, verificamos que o empregador ou seu preposto, vincula o trabalhador migrante a determinada mercearia em razão de somente naquela afiançar seu crédito. Com o passar do tempo e atraso de salário, ou renda extremamente baixa, o trabalhador não consegue quitar sua dívida, vivendo em condição miserável sem poder se desvencilhar da relação laboral.

O endividamento também pode ocorrer na fase pré-contratual com as despesas feitas pelo trabalhador no processo de migração, ou mesmo enquanto aguardava a oportunidade de trabalho na cidade.

6.3.2.Condições Degradantes.

"Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante" (art. 5º, III, CF/88).

Notória a quantidade de pessoas que habitam os núcleos urbanos em condições claramente degradantes. A má distribuição de renda e o desemprego estrutural levam famílias inteiras a morar em condições insalubres, em moradias improvisadas, sem água potável ou sistema de esgoto e com alimentação precária. Ou seja, homens, mulheres e crianças que não tem respeitada sua dignidade.

"É inegável que a falta de emprego e a conseqüente necessidade gerada na busca do sustento próprio e de sua família, muitas vezes, levam o homem a abdicar de seus direitos, tornando-se presa fácil da exploração. Tal fato faz com que certos empregadores, verdadeiros agentes ativos do ilícito em debate, tenham em mãos um ‘açoite’ tão efetivo quanto os utilizados nas modalidades de coerção física e moral. Em alguns casos não é o empregador quem impede o rompimento da relação de trabalho, mas a penosa situação de necessidade em que encontra o próprio trabalhador" [28].

Entretanto, o trabalho não é e não pode ser mantenedor desta condição. O emprego é promovedor da melhoria de vida do laborista. O próprio Direito do Trabalho tem como fundamento a promoção de melhores condições de vida e de trabalho do operário. A Constituição Federal, inclusive, assegura o PRINCÍPIO DO NÃO RETROCESSO SOCIAL em diversos dispositivos:

-art. 7º, caput, "além de outros que visem à melhoria de sua condição social";

-art. 7º, XXII, "redução dos riscos inerentes ao trabalho";

-art. 114, §2º, "podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente".

O empregador fere a função social de sua propriedade (art. 5º, XXIII, e 170, caput e inciso III, da CF) ao desrespeitar o fundamento da ordem econômica: a valorização do trabalho. Tem o tomador dos serviços o dever constitucional de elevar a condição de vida do trabalhador, pagando salário justo e respeitando sua dignidade.

O empregador não pode utilizar, para obter lucro, um problema social enfrentado pelo nosso país, tal como a má distribuição de renda. Quando o tomador dos serviços sujeita, em sua atividade empresarial, trabalhadores a condições degradantes, ou seja, não respeita os direitos humanos mínimos do trabalhador, submete o laborista ao trabalho escravo e deve por isto ser apenado.

6.3.2.1.Conceito de Condição Degradante.

Degradante é a condição de labor que atenta contra a dignidade do trabalhador a ponto de coisificá-lo. Este conceito induz a duas indagações: o que confere dignidade ao trabalhador? E o que seria o ser humano coisificado?

A concepção do que confere dignidade ao trabalhador leva ao exame dos direitos humanos relativos ao trabalho. O desrespeito ao chamado "PATAMAR CIVILIZATÓRIO MÍNIMO" [29], ou seja, o conjunto de direitos operários de indisponibilidade absoluta (previstos na Constituição, convenções internacionais e normas relativas à Segurança e Saúde do Trabalho na legislação infraconstitucional) viola a dignidade do laborista.

Assim, há um núcleo rígido dos direitos trabalhistas que, se desrespeitados, passam da simples violação de regra para grave atentado à dignidade do trabalhador. São condições de trabalho básicas que não permitem, sequer, a transação em negociação coletiva.

Estas condições são classificadas no art. 7º da Constituição. Este artigo levou uma série de direitos humanos do trabalhador ao patamar de direitos fundamentais desta República. Parte deles admitiu a negociação coletiva e a outra, proibiu qualquer contemporização em relação aos demais, quais sejam:

1.garantia de salário mínimo e proteção do salário contra retenção ilícita;

2. duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais (salvo, apenas, compensação);

3.repouso semanal remunerado;

4.redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;

5.não discriminação (trabalho manual, sexo, idade, cor ou estado civil).

Assim, as garantias relativas a salário, jornada, descanso, não-discriminação e segurança e saúde do trabalho formam a matriz da dignidade do obreiro. Havendo o desrespeito a estas normas basilares há afronta à dignidade.

No entanto, para que se configure o trabalho degradante não basta a falta de pagamento de salário mínimo. Muito embora afronte a dignidade do trabalhador não receber sua contraprestação, repita-se, mínima, o trabalho degradante é aquele que, ao ferir a dignidade de forma grave, coisifica o trabalhador.

Coisificar o ser humano é negar-lhe a condição de homem. É torná-lo simples objeto. Mero insumo na produção. Este conceito escapa ao direito, pois depende de uma verificação no mundo dos fatos. Ou seja, um ser humano pode concluir pela coisificação de outro diante do CONJUNTO de atentados ao patamar civilizatório mínimo. Conforme a gravidade das violações, conclui-se pela coisificação e pela degradância, por conseqüência lógica.

Ocorre a coisificação quando se verifica, por exemplo:

1.a inexistência de salário: seja pela fraude do sistema do barracão ou outros endividamentos; seja por descontos indevidos ou pelo simples não pagamento;

2. ausência de condições mínimas de segurança e saúde do trabalho: ausência de água potável; alojamentos superlotados ou sem condições mínimas de habitabilidade; fornecimento de alimentos estragados e/ou insuficientes; inexistência de EPI ou fornecimento de EPI que, além de não proteger, machuca o trabalhador, em atividade de alto risco de acidentes (como o corte de cana); ausência de instalação sanitária na frente de trabalho (o que não é suprido por uma "tenda sanitária" sem condições de uso);

3.desrespeito ao limite de jornada e ao descanso semanal, deixando o trabalhador sem período suficiente de descanso e sem possibilidade de lazer;

4.tratamento discriminatório sistemático: assédio moral; diferença grave de tratamento entre o setor administrativo, técnico e de trabalho manual.

Quando se observa, nas inspeções laborais, estas violações, após o levantamento do conjunto das mesmas, o homem médio conclui que o ser humano, naquela empresa, não tem valor maior que uma máquina ou do que a matéria-prima. É um objeto descartável. O homem médio sentencia que há trabalho em condições degradantes.

6.3.3.Jornada Exaustiva.

Tal como escreve Ubiratan Cazetta, citando José Cláudio Monteiro de Brito Filho, o conceito de jornada exaustiva é o seguinte:

"A jornada exaustiva é a que submete o trabalhador a um esforço desarrazoado, excessivo, sujeitando-o ao limite de sua capacidade e que implica em negar-lhe suas condições mais básicas, ‘como o direito de trabalhar em jornada razoável e que proteja sua saúde, garanta-lhe descanso e permita o convívio social’" [30].

Assim, a jornada exaustiva é aquela que impõe ao trabalhador labor incompatível com sua capacidade, levando-o a atentar contra sua saúde e atingindo o direito à desconexão do trabalho, ou seja, o direito ao descanso, convívio social e lazer. E ainda, conforme lição de Márcio Túlio Viana, a jornada exaustiva pode ser caracterizada como a jornada extensa ou INTENSA [31]. Logo, é jornada exaustiva, tanto a jornada que ultrapassa determinada carga horária [32], como também a que, pela intensidade das atividades e pelo ritmo, leva o trabalhador à extenuação.

Um trabalhador submetido regularmente a uma jornada superior a 10 horas e sem descanso semanal, por exemplo, está submetido a uma jornada exaustiva. No entanto, um trabalhador com jornada normal e descanso semanal regular também pode estar submetido à jornada exaustiva, em face do ritmo do trabalho. Ambas as hipóteses têm sido encontradas no setor sucroalcooleiro.

Na primeira situação, são encontrados trabalhadores laborando sem descanso semanal (ou com escala de folga 6X1, sem respeito à coincidência com o domingo) e em jornadas que vão das 5h às 17h, sem intervalo [33]. Em geral, nas situações de jornadas exaustivas encontradas, o trabalhador inicia seu dia acordando às 04h da manhã para preparar a alimentação, espera o transporte à frente de trabalho a partir das 05h, retorna às 19h, para dormir às 21h, após tomar banho, lavar sua roupa, afiar o podão e jantar (quando há comida). Tal ritmo de trabalho retira qualquer condição de descanso adequado ou lazer, transformando o trabalhador em mero meio mecânico de produção.

Mesmo a jornada 5x1 colabora para exaurir o trabalhador:

"Implantação do regime de trabalho 5x1: muitas usinas têm tentado implantar o regime 5x1 no corte de cana, em substituição ao regime de trabalho atual. No regime 5x1, trabalha-se 5 dias e folga-se 1: conseqüentemente, as folgas só caem no domingo a cada sete semanas. Este regime não encontra nenhuma justificativa técnica e é prejudicial aos trabalhadores porque aumenta a sua jornada de trabalho e prejudica a sua vida familiar e social, uma vez que eles têm que trabalhar em quase todos os domingos. Os sindicatos de trabalhadores têm se manifestado contra a implantação deste regime. Em decisão recente (29/setembro 2004), os juízes da Terceira Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 9° Região (Paraná) confirmaram a sentença que o sistema 5x1 era prejudicial aos trabalhadores rurais e que não poderia ser implantado em uma usina da região". (Fonte: Dissolvendo a Neblina: O Encontro dos Trabalhadores Canavieiros da Região Sudeste: Saúde, Direito, Trabalho. São Carlos, 26 a 28 de Outubro de 2004 FUNDACENTRO)

Na segunda situação, há a questão do ganho por produtividade. A par da desinformação do trabalhador, em relação ao controle de sua produção, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel tem detectado a existência de incentivos de produtividade que corroboram para uma rotina laboral que ultrapassa a capacidade física do trabalhador.

Técnicas como premiações e anúncios sucessivos de aumento da gratificação por cana cortada no decorrer do dia são exemplos dos incentivos. Freqüentemente o GEFM encontra registros de acidentes de trabalho e relatos de trabalhadores que passam mal em meio ao canavial por causa da intensidade do labor.

Em relação à capacidade de corte de um trabalhador a EMBRAPA informa o seguinte:

"A capacidade de corte de um trabalhador que atua nessa atividade varia de cinco toneladas por dia, em casos em que a cana é previamente queimada, a 2,5 toneladas por dia, no caso da cana-crua". (ROSSETTO, Raffaella. Agência de Informação Embrapa – Cana-de-açúcar. Sítio visitado em 18/11/08: http://www.agencia.cnptia.embrapa.br/gestor/cana-de-acucar/arvore/CONTAG01_98_22122006154841.html).

Assim, a EMBRAPA dá a média de produtividade de um cortador de cana no patamar de 05 toneladas de cana queimada por dia. Entretanto, o GEFM tem encontrado relatos de trabalhadores que não podem cortar menos de 12 toneladas de cana por dia, sob pena de demissão.

O Professor Francisco Alves, no artigo "Por que morrem os cortadores de cana?", publicado na revista Saúde e Sociedade (v. 15 , n. 3, p. 90-98, set-dez de 2006), conclui que há mortes de trabalhadores empregados no corte de cana que devem ser atribuídas à exigência produtiva, ou seja, à jornada exaustiva decorrente da intensidade das atividade. Relata, em seu estudo, que a exigência de produtividade por toneladas foi de 03t na década de 60, 06t na década de 80 a 12t na década de 90.

"Um trabalhador que corte 6 toneladas de cana, num talhão de 200 metros de comprimento, por 8,5 metros de largura, caminha, durante o dia uma distância de aproximadamente 4.400 metros, despende aproximadamente 50 golpes com o podão para cortar um feixe de cana, o que equivale a 183.150 golpes no dia (considerando uma cana em pé, não caída e não enrolada e que tenha uma densidade de 5 a 10 canas a cada 30cm.). Além de andar e golpear a cana, o trabalhador tem que, a cada 30cm, se abaixar e se torcer para abraçar e golpear a cana bem rente ao solo e levantar-se para golpeá-la em cima. Além disto, ele ainda amontoa vários feixes de cana cortados em uma linha e os transporta até a linha central. Isto significa que ele não apenas anda 4.400 metros por dia, mas transporta, em seus braços, 6 toneladas de cana, com um peso equivalente a 15 Kg, a uma distância que varia de 1,5 a 3 metros. Além de todo este dispêndio de energia andando, golpeando, contorcendo-se, flexionando-se e carregando peso, o trabalhador sob o sol utiliza uma vestimenta composta de botina com biqueira de aço, perneiras de couro até o joelho, calças de brim, camisa de manga comprida com mangote, também de brim, luvas de raspa de couro, lenço no rosto e pescoço e chapéu, ou boné. Este dispêndio de energia sob o sol, com esta vestimenta, leva a que os trabalhadores suem abundantemente e percam muita água e junto com o suor perdem sais minerais e a perda de água e sais minerais leva a desidratação e a freqüente ocorrência de câimbras. As câimbras começam, em geral, pelas mãos e pés, avançam pelas pernas e chegam no tórax, o que provoca fortes dores e convulsões, que fazem pensar que o trabalhador esteja tendo um ataque nervoso". (Professor Francisco Alves. Artigo "Por que morrem os cortadores de cana?" publicado na revista Saúde e Sociedade. V. 15 , n. 3, p. 90-98, set-dez de 2006).

Apesar dos malefícios do pagamento por produção, conforme o documento "Reuniões entre FUNDACENTRO e Representações Sindicais dos Trabalhadores no Setor Sucroalcooleiro em 2006", da FUNDACENTRO, há resistência dos próprios trabalhadores em relação ao fim do salário por produção:

"2- Sobre a proposta de promotores do Ministério Público do Trabalho, de abolir o salário por produção dos cortadores de cana, imputado como causa de seu esgotamento e morte: Representantes da CONTAG, da CONTAC e da FERAESP se manifestaram contra a maneira pela qual membros do MP têm se posicionado sobre o fim do pagamento por produção para os cortadores de cana, em reuniões de trabalhadores e em audiências públicas, no estado de São Paulo e em Goiás. Consideram que o esgotamento é provocado por um conjunto de fatores que estimulam a produção e não unicamente pela forma de pagamento e que a discussão precisa ser ampliada e os sindicatos ouvidos pelo MP. Entre estes fatores citaram:

(...)

B) O aumento das metas de produção: a média de produção exigida pelas empresas está sempre aumentando. Em Goiás, por exemplo, em 1992 a média era de 6,5 toneladas/cortador/dia e hoje é de 10 toneladas/cortador/dia. As usinas empregam mais trabalhadores do que necessitam no início da safra e, após fazer um rigoroso controle de produção de cada um, dispensam os menos produtivos".

De toda forma, a exigência de alta produtividade, seja sob ameaça de punição, seja por incentivo de maiores ganhos, tem coadjuvado para a caracterização da jornada exaustiva. A empresa que se utiliza desta técnica administrativa tem o dever legal de cuidar para que os trabalhadores não se esforcem além das suas capacidades. Se não for possível tal controle, não deve lançar mão da referida técnica, sob pena de configuração de condição análoga à de escravo.

CONTROLE DA PRODUTIVIDADE

"Os motivos que levam as usinas a adotarem o pagamento por produção, que é uma das formas de trabalho, já denunciada por Adam Smith no final do século XVIII e por Karl Marx no século XIX, como uma das mais desumanas e perversas, pois o trabalhador tem o seu ganho atrelado a força de trabalho despendida por ele por dia. É verdade que tanto Adam Smith quanto Karl Marx denunciavam este trabalho, chamando-o de perverso e desumano, analisando apenas esta forma de trabalho em situações em que o trabalhador controlava o seu processo de trabalho e tinham, ao final do dia, pleno conhecimento do valor que tinham ganho, isto porque conheciam o valor do trabalho executado. No corte de cana é diferente, porque os trabalhadores só sabem quantos metros de cana cortaram num dia, mas não sabem, a priori, do valor do metro de cana para aquele eito cortado por ele, este desconhecimento é devido a que o valor do metro de cana do eito depende do peso da cana, que varia em função da qualidade da cana naquele espaço e a qualidade da cana naquele espaço depende, por sua vez de uma série de variáveis (variedade da cana, fertilidade do solo, sombreamento etc.). Nestas condições, as usinas pesam a cana cortada pelos trabalhadores e atribuem o valor do metro, através da relação entre peso da cana, valor da cana e metros que foram cortados. Tudo isto é feito nas usinas, onde estão localizadas as balanças, sem controle do trabalhador. Portanto, entre aquelas situações de trabalho analisadas pelos dois pensadores nos séculos XVIII e XIX e as praticadas na cana nos séculos XX e XXI há uma enorme distância, que é o não controle do salário e do processo de trabalho pelos trabalhadores, este é controlado pelas usinas" (Professor Francisco Alves. Artigo "Por que morrem os cortadores de cana?" publicado na revista Saúde e Sociedade. V. 15 , n. 3, p. 90-98, set-dez de 2006).

Ao analisar a exigência de produtividade, torna-se necessário apresentar o segundo maior problema do atual sistema: a ausência de controle da produtividade pelo trabalhador. Conforme leciona o Professor Francisco Alves, e conforme tem sido verificado nas inspeções do GEFM e, também, pela FUNDACENTRO, o trabalhador não tem controle efetivo de sua produtividade. Não há segurança nas medições feitas pelos fiscais das usinas e a pesagem da cana não é acompanhada pelos trabalhadores ou um representante dos mesmos.

"Na apuração da produção do corte de cana, cada trabalhador contratado diretamente pela Usina ...omissis... tem acesso ao apontamento da sua produção diária ao final do dia, por meio de anotação conhecida por "pirulito", onde a base do peso da cana é feita por amostragem, permitindo ao empregado um acesso mais rápido ao resultado da sua produção (...) Por outro lado, para os trabalhadores contratados por intermédio dos fornecedores, a produção diária é anotada em folhas que ficam com o fiscal de turma. Desta forma, o trabalhador não consegue ter acesso rápido à sua produção diária, na medida em que não recebe qualquer anotação para seu controle pessoal. Ressalte-se que, conforme informação prestada à fiscalização, a relação "peso por metro de cana cortada", muitas vezes, só é repassada para os trabalhadores ao final do mês, ou nem é repassada" (Operação do GEFM n. 67/2007).

"Junto aos trabalhadores os fiscais da empresa faziam a medição da produção (fotos 07, 08 e 09). Para tanto, utilizavam uma espécie de ‘compasso’. O instrumento não apresenta rigor técnico para a medição. As medições eram lançadas em caderno. A auditoria encontrou rasuras nos mesmos. (...) Não é fornecido cópia das anotações aos empregados" (Operação do GEFM n. 31/2005).

Uma outra dimensão do problema se refere ao controle dos trabalhadores sobre a sua produção diária, sobre o cálculo do preço da cana cortada. Este controle não existe. A transformação de tonelada de cana em metro, que deveria ser fiscalizada pelos trabalhadores, não ocorre em muitas usinas, nem ao menos a colheita realizada pelo "campeão" e as três áreas de amostragem que deveriam ser escolhidas com participação dos trabalhadores. Quem decide o preço do metro de cana é o departamento agrícola da usina. Tem se constatado diferenças de mais de 30% entre o preço do metro aferido com rigor e o preço estipulado pelas usinas. É comum os trabalhadores serem informados do preço da cana depois do trabalho realizado. Estes procedimentos geram perdas irrecuperáveis para os trabalhadores, suspeitas de fraudes, indignações e algumas vezes "paradeiros" (Fonte: Dissolvendo a Neblina: O Encontro dos Trabalhadores Canavieiros da Região Sudeste: Saúde, Direito, Trabalho. São Carlos, 26 a 28 de Outubro de 2004. FUNDACENTRO).

O Princípio da Boa-fé Objetiva, encampado pelo Direito do Trabalho, traduz o dever de lealdade e informação entre os contratantes. Havendo obscuridade no aferimento da produção, o dever de informação é infringido, o que resulta, conforme art. 8º e 9º da CLT c/c art. 122, 123, III e 187, in fine, do CC, em nulidade.

Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.

Art. 123. Invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados: III - as condições incompreensíveis ou contraditórias.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Nos termos da doutrina de DALLEGRAVE [34], a boa-fé subjetiva é verificada na intenção daquele que age "acreditando não estar prejudicando ninguém". Doutra banda, a boa-fé objetiva é regra de conduta que obriga a parte a agir "pensando no outro" e "respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis". Enfim, a boa-fé objetiva verifica-se no cumprimento do dever de lealdade para com a outra parte contratual, coibindo o abuso de direito, o "puro arbítrio" e as condições incompreensíveis.

Verificada a desinformação do trabalhador em relação à sua produtividade (seja pela ausência de comunicação; seja por ser incompreensível o método de apuração; seja por não poder acompanhar ou ser representado na pesagem da cana) e o puro arbítrio nos fatores que levam ao cálculo da produtividade (como a técnica de estimativa baseada na experiência do fiscal da usina), há ilicitude do procedimento.

Reforça-se que há casos em que é assegurado FORMALMENTE ao trabalhador acompanhar a pesagem da cana. Entretanto, materialmente isto não ocorre. O trabalhador que ganha por produção não pára sua atividade para verificar a pesagem. É dever da empresa assegurar que, pelo menos, um representante dos trabalhadores (se for empregado deverá ter o salário garantido conforme a média de sua produtividade) acompanhe a pesagem.

"Uma experiência do Sindicato dos Empregados Rurais Assalariados de Cosmópolis, no Estado de São Paulo foi apresentada como opção concreta para monitorar o controle da produção no corte manual da cana, já que nessa experiência a pesagem da cana cortada é feita pelo Sindicato junto às balanças das usinas, no momento da chegada do caminhão, permitindo o monitoramento das áreas da colheita ao longo da safra" (ENCONTRO DOS TRABALHADORES CANAVIEIROS DA REGIÃO NORDESTE - Organização do Trabalho e Controle da Produção, Acidentes e Doenças, Migração e Transporte, Terra e moradia. Data: 22 e 23 de novembro de 2005. FUNDACENTRO).

Concluindo o tema, é importante informar outras irregularidades no sistema de pagamento por produção: paralisação do corte por problemas na usina; técnica de aliciamento que promete "cana boa para o corte".

Os art. 2º, caput, e 468 da CLT sustentam o Princípio da ALTERIDADE, que tem por corolário o caráter forfetário do salário – o salário é "obrigação absoluta do empregador, independentemente da sorte de seu empreendimento" [35]. A alteridade informa que o risco do negócio não pode ser repassado ao trabalhador, principalmente através de redução da remuneração, em decorrência de fatores estranhos ao labor do trabalhador.

A redução salarial indireta, conforme esclarece Godinho (2005, p. 1034), "ocorre em derivação de mudança em cláusula contratual distinta da regulatória do salário, mas que repercute no nível remuneratório". Ou seja, é aquela que, alterando ponto diverso do salário em si, acaba por repercutir neste. Exemplo dado é a diminuição do trabalho em contrato com salário por unidade de obra, que, por afrontar o princípio da inalterabilidade contratual lesiva, é proibida.

Assim, havendo redução/paralisação do corte da cana por conta de problemas na usina ou por outro motivo inerente ao risco do negócio, isto não pode significar ausência de pagamento ou pagamento de diária em valor inferior à média do corte, sob pena de, num só proceder, se repassar ao trabalhador o risco do negócio e realizar alteração contratual lesiva (esta última, caso perdure a situação).

Da mesma forma, tal como tem sido encontrado pela inspeção, a punição de trabalhador com o corte de cana que permite pouca produtividade não encontra respaldo na CLT que não prevê tal forma de punição, caracterizando, assim, assédio moral. E ainda, falsas promessas de "cana boa para o corte", ou seja, que permite alta produtividade, feitas por arregimentadores de mão-de-obra migrante, implicam em aliciamento.


7.PROCEDIMENTO DA FISCALIZAÇÃO.

A Auditoria-Fiscal do Trabalho, uma vez encontrando trabalhadores em condições análogas à de escravo, têm o dever legal [36] de realizar o RESGATE. Este procedimento é disciplinado pela Instrução Normativa do MTE n. 65:

Art. 20 As fiscalizações previamente planejadas deverão prever a participação de representantes do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal.

§1º Havendo informações prévias de ilícitos relacionados à posse da terra ou ao meio ambiente, deverão ser previamente contatados representantes do IBAMA e/ou do INCRA.

§2º Quando for detectada a existência de trabalho análogo ao de escravo, haverá a rescisão indireta dos contratos de trabalho. O coordenador da equipe determinará ao empregador que providencie a imediata paralisação das atividades, a regularização dos contratos e a anotação nas CTPS, as rescisões contratuais e o conseqüente pagamento dos créditos trabalhistas e do FGTS, bem como as providências para retorno dos trabalhadores aos locais de origem, além de proceder às necessárias autuações e notificações.

Assim, constatado o trabalho escravo, o GEFM deve determinar a rescisão indireta. Tal procedimento decorre da exigência legal de resgate, com concessão do seguro-desemprego, que é incompatível com a continuidade do contrato de trabalho (art. 483 da CLT c/c art. 2º-C da Lei n. 7998/90). Como conseqüência da rescisão indireta, há a paralisação das atividades e acerto das verbas rescisórias. Se não há registro dos trabalhadores, ou há incorreção no mesmo, deve haver regularização. Havendo trabalhador migrante, a empresa deve garantir o retorno do mesmo.

Além disso, a inspetoria procede às autuações necessárias, bem como a embargos e interdições, inclusive em relação à planta industrial da usina, caso encontre risco grave e iminente para o trabalhador (art. 9º da IN n. 65/2006, NR n. 3 e art. 161 da CLT).

Por fim, na forma da Portaria n. 540 de 15/10/2004 do MTE, a empresa infratora é inscrita no CADASTRO DE EMPREGADORES QUE TENHAM MANTIDO TRABALHADORES EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO. Este cadastro tem finalidade informativa e tem sido utilizado, por exemplo, por instituições financeiras, que levam em conta este dado para analisar os riscos de investimentos/empréstimos a empresas que se utilizaram deste tipo de mão-de-obra.

A inclusão da infratora só se dá após o julgamento definitivo, no âmbito administrativo, dos autos de infração que, em seu conjunto ou separadamente, pelo seu conteúdo resultam na caracterização da condição análoga à de escravo. Já a exclusão dá-se após dois anos, desde que não tenha havido reincidência; haja o pagamento das multas; e comprovação da quitação dos débitos trabalhistas e previdenciários.


8.CONCLUSÃO.

Retomando os termos da introdução, é possível concluir que o Auditor-Fiscal do Trabalho tem o poder/dever de interpretar e integrar o ordenamento jurídico, buscando, na definição do Código Penal e amparado na doutrina e jurisprudência trabalhista, o conceito administrativo de trabalho escravo.

Tal conceito é diverso do trabalho forçado informado pela Organização Internacional do Trabalho. O conceito brasileiro de trabalho escravo moderno abrange o trabalho forçado, que é aquele com restrição de liberdade, bem como outros tipos que, não fosse o esforço legislativo, não seriam abarcados; e que, simplesmente, mascaram a liberdade de laborar em virtude do aproveitamento da pobreza.

Diante da elasticidade do conceito nacional, deve-se primar pelo princípio republicano da razoabilidade e avaliar, no conjunto de infrações perpetradas, a coisificação do ser humano e, por conseguinte, a caracterização do trabalho análogo ao de escravo.

E ainda, o movimento migratório gerado pelo setor sucroalcooleiro não é definitivo, mas apenas sazonal, em regra. Portanto, é o empreendimento que deve arcar com os custos da habitação do operário migrante temporário. Sob pena de se perpetuar a exploração da pobreza do trabalhador que, não podendo firmar residência no município, despreparado para recebê-lo, é posto em condição sub-humana. Neste contexto, a discriminação positiva em prol da mão-de-obra local é autorizada visando um crescimento urbano sustentável.

Na esperança de abrir caminhos para o reforço do trabalho brilhante do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, encerra-se este estudo.


BIBLIOGRAFIA

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VELLOSO, Gabriel, FAVE, Marcos Neves (coords.). Trabalho escravo contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006.


Notas

  1. Destilaria Gameleira paga R$ 1,45 milhão por trabalho escravo. Disponível em: http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=401. Acesso em: 04/11/2009.
  2. 16ª Proposta da Comissão 2. http://www.anamatra.org.br/jornada/propostas/com2_proposta16.pdf. Acesso em 04/11/2009.
  3. Conforme dito a este estudante pela colega Dra. Maria Christina Toniato e Silva, Médica e Auditora-Fiscal do Trabalho.
  4. Fiscais resgatam 831 indígenas de usina de cana-de-açúcar no MS. Disponível em: http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1233. Acessado em: 04/11/2009.
  5. Ministério da Previdência Social. Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho : AEAT 2007. Brasília: MPS, 2008.
  6. Pela pertinência, transcrevo o trecho abaixo sobre a forma do levantamento dos dados pelas entidades estatais:

    "Embora tradicionalmente sejam apresentados no AEAT dados dos últimos três anos, nessa edição os dados se referem apenas aos anos de 2006 e 2007. Isso decorre do fato de que em janeiro de 2007 foi introduzida uma nova versão da Classificação Nacional de Atividade Econômica – CNAE. Devido a dificuldades operacionais, optou-se por converter apenas o ano e 2006 para a nova versão da CNAE, com o objetivo de permitir algum grau de comparabilidade com os dados de 2007. São, portanto, apresentadas informações sobre a quantidade de acidentes do trabalho, para os anos de 2006 e 2007, segundo: a) motivo do acidente e CNAE para o Brasil, Grandes Regiões e Unidades da Federação; b) motivo do acidente e grupos de idade e sexo para o Brasil e Unidades da Federação; e, c) dados mensais por motivo do acidente para o Brasil e Unidades da Federação. Deve ser observado que para os acidentes de trabalho sem CAT, não é possível fazer a classificação por tipo de acidente, uma vez que a metodologia utilizada pelo INSS não permite esse grau de detalhamento.

    Cabe ressaltar que os dados relativos ao ano de 2007 são preliminares, ou seja, tabulações posteriores podem gerar números diferentes, uma vez que algumas CATs poderão ser registradas posteriormente à data da leitura inicial.".

  7. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Balanço nacional de cana-de-açúcar e agroenergia. Brasília: Secretaria de Produção e Agroenergia, 2007.
  8. Ministério do Trabalho e Emprego. Manual de procedimentos para ações fiscais de combate ao trabalho escravo. Brasília: Secretaria de Inspeção do Trabalho, 2005.
  9. Organização Internacional do Trabalho. Uma Aliança Global Contra o Trabalho Forçado – Relatório Global do Seguimento da Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho. Brasília: OIT, 2005.
  10. http://www.mte.gov.br/trab_escravo/lista_suja.pdf. Conforme atualização de 01/10/2009.
  11. Fiscais resgatam 831 indígenas de usina de cana-de-açúcar no MS. Disponível em: http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1233. Acessado em: 04/11/2009.
  12. O sitio http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u474969.shtml acessado em 12/12/2008 informa acidente com ônibus que transportava cortadores de cana, ocorrido em 03/12/2008, com duas mortes e 32 pessoas feridas.
  13. sítio http://oglobo.globo.com/sp/transito/mat/2008/07/06/acidente_com_onibus_de_cortadores_de_cana_fere_23_em_colina-547120021.asp relata acidente ocorrido com ônibus que transportava cortadores de cana em 06/07/2008 e que feriu 23 trabalhadores.

    sítio http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1302200831.htm noticiou a morte 03 pessoas em acidente envolvendo ônibus que levava 70 trabalhadores cortadores de cana ocorrido em 13/02/2008.

  14. A Integração da Norma Jurídica e a Hermenêutica em face do Princípio da Legalidade na Administração Pública Brasileira. Disponível em: http://www.amatra18.org.br. Acesso em: 03/11/2009.
  15. Art. 8º - As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.
  16. Código Tributário Nacional. Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:
  17. I - a analogia;

    II - os princípios gerais de direito tributário;

    III - os princípios gerais de direito público;

    IV - a eqüidade.

    § 1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei.

    § 2º O emprego da eqüidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido.

  18. FERNANDES, Fábio de Assis Ferreira. O princípio da prevenção no meio ambiente do trabalho. Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasília, n. 28, set. 2004, p. 99 e ss.
  19. Resolução n. 1 de 23/01/1986 do CONAMA Publicada no DOU, de 17 de fevereiro de 1986, Seção 1, páginas 2548-2549:
  20. Art. 1o Para efeito desta Resolução, considera-se impacto ambiental qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam:

    I - a saúde, a segurança e o bem-estar da população;

    IV - as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente;

    Art. 2o Dependerá de elaboração de estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto ambiental - RIMA, a serem submetidos à aprovação do órgão estadual competente, e da Secretaria Especial do Meio Ambiente - SEMA em caráter supletivo, o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, tais como:

    XII - Complexo e unidades industriais e agro-industriais (petroquímicos, siderúrgicos, cloroquímicos, destilarias de álcool (...).

    Art. 5o O estudo de impacto ambiental, além de atender à legislação, em especial os princípios e objetivos expressos na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, obedecerá às seguintes diretrizes gerais:

    II - Identificar e avaliar sistematicamente os impactos ambientais gerados nas fases de implantação e operação da atividade;

  21. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 4. ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 773.
  22. FERNANDES, Fábio de Assis Ferreira. O princípio da prevenção no meio ambiente do trabalho. Revista do Ministério Público do Trabalho, Brasília, n. 28, set. 2004, p. 51 e ss.
  23. OLIVEIRA, Sebastião Geraldo. Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional. 2. ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 170 e 171.
  24. OLIVEIRA, Sebastião Geraldo. Ob. cit., p. 95 e ss.
  25. DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho. 1. ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 113.
  26. MELO, Raimundo Simão de. Direito Ambiental do Trabalho e a Saúde do Trabalhador. 3. ed. São Paulo: LTr, 2008, p. 270 e ss.
  27. OLIVEIRA, Sebastião Geraldo. Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional. 2. ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 95 e ss.
  28. PALO NETO, Vito. Conceito jurídico e combate ao trabalho escravo contemporâneo. São Paulo: LTr, 2008, p. 63 e ss.
  29. Trabalho Escravo Contemporâneo: o desafio de superar a negação. 1. ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 125 e ss.
  30. Ação recorde resgata 1108 trabalhadores da cana no Pará. Disponível em: http://www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=1102. Acessado em: 04/11/2009.
  31. 26/06/2008 - Trabalho Escravo - Fiscais resgatam 118 em grandes usinas na divisa entre SP e MG. Disponível em: http://www.sinprocampinas.org.br/?q=node/1908. Acessado em: 04/11/2009.
  32. CARLOS, Vera Lúcia in VELLOSO, Gabriel, FAVE, Marcos Neves (coords.). Trabalho escravo contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo: LTr, 2006, p. 273.
  33. "... direitos revestidos de indisponibilidade absoluta (e não indisponibilidade relativa). Tais parcelas são aquelas imantadas por uma tutela de interesse público, por constituírem um patamar civilizatório mínimo que a sociedade democrática não concebe ver reduzido em qualquer segmento econômico-profissional, sob pena de se afrontarem a própria dignidade da pessoa humana e a valorização mínima deferível ao trabalho (arts. 1º, III, e 170, caput, CF/88)" (DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 4. ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 117).
  34. Organização Internacional do Trabalho. Possibilidades Jurídicas de Combate à Escravidão Contemporânea. Brasília: OIT, 2007, p. 112.
  35. Organização Internacional do Trabalho. Possibilidades Jurídicas de Combate à Escravidão Contemporânea. Brasília: OIT, 2007, p. 45.
  36. Os art. 58, caput e 59, caput, da CLT e art. 7º, XIII, da CF/88 informam a carga horária máxima que o trabalhador pode ser submetido. Estes parâmetros somados às demais condições de trabalho podem levar à caracterização da jornada exaustiva.
  37. A não observância do descanso para refeição apresenta duplo motivo: empresas que não concedem o intervalo e trabalhadores que não querem diminuir produção. Aqueles que querem descansar, não descansam por medo de perder o emprego em decorrência da comparação de sua produtividade com a produtividade do trabalhador que não interrompe a jornada.
  38. DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho. 1. ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 276.
  39. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 4. ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 707.
  40. art. 2º-C da Lei n. 7998/90.

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CARVALHO, José Luciano Leonel de. A auditoria-fiscal do trabalho no combate ao trabalho escravo moderno no setor sucroalcooleiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2493, 29 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14741. Acesso em: 23 abr. 2024.