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Denúncia anônima virtual não significa rumo ao Estado policial

Denúncia anônima virtual não significa rumo ao Estado policial

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Após ler texto de lavra do advogado criminalista Diogo Bianchi Fazolo, batizado "Denúncia Anônima Virtual: outro passo rumo ao Estado Policial", me senti compelido a redigir as seguintes linhas.

O discurso do nobre causídico, a despeito dele invocar sólidas argumentações jurídicas, peca pelo silogismo na utilização das mesmas e por ignorar a realidade social em nome de uma tese que visualiza exclusivamente seu ponto de vista e exalta as normas e princípios jurídicos que atendem apenas aos interesses da defesa.

O texto ignora por completo que Segurança Pública é princípio consagrado pela Constituição Federal como dever do Estado e responsabilidade de todos e parece partir da premissa que todo delator anônimo deseja, na verdade, causar sofrimento ao delatado, açulando o Poder Público contra ele.

Nada mais destemperado.

É evidente que existem pessoas maliciosas o suficiente e dispostas a incitar autoridades policiais contra desafetos por toda e qualquer razão. Também é possível que tais desafetos sejam inocentes e acabem injustamente submetidas a procedimentos investigatórios que ao final revelarão que não há materialidade ou autoria.

Mas reduzir todo o universo de delatores anônimos ao defendido pelo autor é tratar pessoas de bem, que convivem ou sobrevivem assombradas pela criminalidade, como se fossem canalhas ou delas exigir desapego à própria vida e incolumidade física ou de familiares nos parece exagero.

Será razoável exigir o sacrifício da dignidade humana de vítimas e testemunhas ao antagonizá-las à dignidade humana de autores de crimes?

Será razoável ignorar delação anônima vinda de comunidade dominada por traficantes de drogas ou ignorar delação anônima de vizinho que ouve todas as noites os gritos de uma mulher e filhos espancada por um marido alcoólatra e violento? Seria lógico uma pessoa presenciar um crime ou ouvir um criminoso tecer detalhes sobre como o cometeu e não puder delatá-lo às autoridades policiais competentes sem se identificar?

É legítimo contrapor o dever ético à própria dignidade humana ou estabelecer a passividade social diante de agressões à direitos e garantias alheios em nome da dignidade humana daqueles que roubam, matam e corrompem? E mais, que isso seria indício de que caminhamos para uma forma de Estado Policial?

Asseguro que vivemos em um Estado Democrático de Direito e que estamos muito longe daquilo que se convencionou chamar de Estado Policial.

A violação da privacidade dos cidadãos é na vigente ordem constitucional, medida absolutamente excepcional. Os órgãos policiais responsáveis pelo fase extrajudicial da persecução criminal nunca tiveram tanta dificuldade na realização de seu dever frente aos inúmeros obstáculos postos adiante de si e em defesa da intimidade e privacidade. Sequer informações cadastrais em estabelecimentos de consumo ou em nosocômios são obtidos pela polícia sem a intervenção judicial. Os sigilos financeiro, fiscal, de correspondências e comunicações são ampla e solidamente protegidos. As residências e os escritórios são indevassáveis sem ordem judicial.

Possuímos hoje o mais extenso rol de direitos e garantias individuais que construiu em torno dos cidadãos uma ampla proteção contra a ingerência estatal. Há ampla liberdade de expressão. A esfera de direitos individuais é hoje mais consistente do que jamais foi em toda a nossa história. Vivemos a mais sólida Democracia que jamais experimentamos.

Temos hoje normas que eficientemente proscrevem provas e evidências obtidas ilicitamente. A responsabilidade civil do Estado não esteve tão consolidada, construída em sólidas bases doutrinários e jurisprudenciais.

Que raio de Estado Policial é este?

Distorções e abusos por parte de membros das polícias e do Ministério Público sempre existiram e infelizmente ocorrerão. As violações de direitos individuais praticadas por agentes policiais são excepcionais, isoladas, e em regra punidas exemplarmente. Entretanto estão muito longe de comprometer a ordem constitucional e justificar a existência ou o advento do um Estado policialesco.

O devido processo penal deve ser garantista até o ponto em que permita aos acusados meios que lhe assegurem ampla defesa e o contraditório e estabeleça mecanismos contra abusos por parte do Estado. Tudo o que vá além disso pode comprometer sua eficácia e a Segurança Pública de modo geral ao fazer da impunidade a regra.

Além disso, o continuo enfraquecimento das forças policiais com a crescente interposição de obstáculos ao desempenho de suas atividades somado ao tratamento discriminatório recebido por Governadores de Estado e parte da classe política, tem afastado os melhores profissionais e acaba por comprometer a própria funcionalidade do processo penal.

O atual sistema processual brasileiro, fruto de contínuas modificações de um processo penal originalmente autoritário e que após a redemocratização foi pontuado com alterações para aproximá-lo do modelo adotado pela Constituição Federal de 1988, fez dele um sistema confuso e ineficaz.

O Código de Processo Penal é hoje uma curiosa amálgama de normas autoritárias e libertárias com hipertrofia seletiva em relação à defesa. A hipertrofia é seletiva pois só é desfrutada por parcela dos acusados - aquela capaz de contratar bons advogados e de suportar os ônus financeiros do processo, ao contrário da grande maioria dos acusados que padece sob as rigidez sob os vícios do sistema.

Impunidade causa insegurança social e jurídica e compromete a Prevenção Geral, razão de ser do sistema penal na opinião de abalizada e sólida doutrina e jurisprudência. Para nada serve um sistema penal que é incapaz de proteger os bens jurídicos mais importantes que ele mesmo selecionou.

Esperamos que o vindouro Código não herde tais vícios.

Não existe Democracia neste planeta que prescinda de corporações policiais eficientes, técnicas e bem remuneradas.

O uso da delação anônima, ao contrário do que supõe o autor do texto que confrontamos com estas linhas, sempre foi um dos mais importantes meios de interação entre as forças policiais e os cidadãos.

Diariamente milhares de pessoas ligam para os serviços de emergência das polícias militares apontando e descrevendo autores de crimes. Milhares destas delações são determinantes para a identificação, localização e persecução criminal destes indivíduos. Todos os dias milhares de pessoas ligam para serviços sociais como Disque-Denúncia, geridos por organizações não governamentais cônscias de sua responsabilidade com a Segurança Pública.

Todos os dias brasileiros batem às portas de gabinetes de Delegados de Polícia e de Promotores de Justiça, temerosos por sua integridade física, sem heroísmos, em nome da responsabilidade e da cidadania que carregam para delatar condutas, criminosos e organizações criminosas. O anonimato é para estes a melhor forma de lhes proteger a própria dignidade. Exigir deles que forneçam nomes e endereços significa sacrificar-lhes a própria dignidade humana.

Não concordamos com a tese de que a delação anônima se insere como parte do devido processo penal.

Toda e qualquer noticia criminis, anônima ou não, deve ser recebida com reservas e ser seguidas de diligências mínimas que a corroborem ou afastem antes de se adotar qualquer providência em relação ao delatado.

Delação anônima nem de longe configura sacrifício de direitos fundamentais. Já o exigir da identificação formal do delator, isso sim configura grave exposição e sacrifício de seus direitos fundamentais ao exigir dele que se exponha às retaliações daqueles que não possuem qualquer rebuço em violar direitos alheios.

Enfim, o uso da internet pela Polícia Federal é apenas mais uma iniciativa louvável que estende às camadas sociais com acesso à informação um instrumento que lhe permita cumprir com a responsabilidade determinada pela Constituição Federal e nada tem a ver com Estado Policial.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CINTRA, Luciano Henrique. Denúncia anônima virtual não significa rumo ao Estado policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2496, 2 maio 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14793. Acesso em: 23 abr. 2024.