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A transcendência das questões constitucionais

A transcendência das questões constitucionais

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No intuito de averiguar a existência da repercussão geral e, conseqüentemente, proporcionar a viabilidade do conhecimento do recurso extraordinário, a Lei n.º 11.418/2006, que disciplina e regulamenta a repercussão geral como requisito obrigatório de admissibilidade do recurso extraordinário, propôs a harmonização dois institutos [01]: a relevância e a transcendência.

Além de ser relevante sob a perspectiva econômica, social, política ou jurídica, há necessidade da matéria em discussão transcender o interesse subjetivo das partes. Para Marinoni, a questão controversa deve corroborar para a persecução da "unidade do Direito no Estado Constitucional brasileiro", de forma a desenvolver e compatibilizar soluções de ordem constitucional [02]. De fato, as matérias com repercussão geral assim definidas igualmente se dispõem a "uniformizar a interpretação constitucional sem exigir que o Supremo Tribunal Federal decida múltiplos casos idênticos sobre a mesma questão constitucional". [03]

Assim como a relevância das questões constitucionais possui conceitos jurídicos indeterminados, o mesmo fator se visualiza quanto ao instituto da transcendência. Segundo afirma Marinoni, citando Karl Engisch [04], para a definição desses conceitos jurídicos indeterminados, "há de se cometer um esforço de objetivação valorativa", no sentido de esculpir com objetividade e valoração o que se apresenta, a priori, indeterminado e abstrato. Certamente, há necessidade que os conceitos jurídicos indetermináveis sejam determináveis face ao caso concreto.

Entretanto, Marinoni ressalta que para a consecução desta tarefa faz-se imprescindível não se considerar exclusivamente um só ponto de vista [05]. Utilizando-se dessa metodologia no caso concreto, pode-se inferir que não há margem à discricionariedade, sobremaneira quando se utiliza mais de uma variável para a locupletação dos conceitos jurídicos indeterminados contidos na repercussão geral.

De outro ponto, Arruda Alvim explicita que os conceitos jurídicos vagos que envolvem o instituto da repercussão geral são propositadamente intencionais [06]. A ausência dessa conceituação na Lei n. º 11.418/2006, que regulamentou o § 3º do art. 102 da Constituição Federal - que instituiu a repercussão geral -, revela esse raciocínio. Com razão, o autor defende que caso fosse delimitada a conceituação daquele instituto, não haveria a esperada exegese da Corte Constitucional, o que acabava por contrariar a dinamicidade e a flexibilidade pretendida pelo legislador.

Com efeito, reiterando o posicionamento de Arruda Alvim

"Há ‘idéias’ que, em si mesmas, dificilmente, comportam uma definição. Mais ainda, se definidas forem, seguramente – agora no campo da operatividade do Direito – passam a deixar de ensejar, só por isso, o rendimento esperado de um determinado instituto jurídico que tenha sido traduzido através de conceito vago. Com os valores, que são idéias indefiníveis (inverbalizáveis, ou utilmente insuscetíveis de verbalização) o que ocorre é que devem ser propriamente conceituados, mas devem ser apenas referidos, pois é intensa a interação entre eles e a realidade paralela a que se reportam".

Nesse sentido, uma delimitação exaustiva e taxativa dos aspectos conceituais da repercussão geral não só engessaria o sentido do texto constitucional e, por conseguinte, a atuação do Supremo Tribunal Federal, bem como poderia ensejar a própria limitação do objeto [07] a ser definido no caso concreto. A "decantação permanente" do sentido e da conceituação do instituto, conforme antevê Arruda Alvim, é justamente a riqueza e a variedade almejada pelo legislador para o ordenamento jurídico brasileiro.

É, inclusive, por este motivo que a repercussão geral não pode ser considerada como ato de julgamento [08] com procedimentos inflexíveis e numerus clausus, mas sim como ato de avaliação política sujeito à renovação, à evolução e à adequabilidade de competência da Corte Constitucional brasileira.

Ainda quanto ao objeto da repercussão geral, cabe frisar que a estruturação analítica constante da Constituição Federal não permite a possibilidade de o intérprete ser negligente, sobretudo quando do emprego de conceitos vagos sem a observância de determinadas características [09].

Para a consecução dessa tarefa, a própria Carta Política indica as matérias que lhe são relevantes e transcendentes no momento em que dispõe acerca dos títulos "Da ordem econômica e financeira", "Da ordem Social", da parte que trata da organização de poderes ("Da ordem Política") e dos direitos e garantias fundamentais uma vez que são matérias de interesse nacional. Seria razoável concluir, por exemplo, que a exigência dos institutos relevância e transcendência para a caracterização da repercussão geral nada mais é que formalização já indicada pela própria Constituição Federal.

Com efeito, o rol incluído pela Lei n.º 11.418/2006, qual seja, "questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa" não foi estipulado aleatoriamente. De fato, a utilização de requisitos para se verificar a relevância da questão constitucional foi direcionada pela Constituição Federal.

Ultrapassadas essas considerações, observa-se que, uma vez assinalados os conceitos valorativos e caracterizada a relevância e a transcendência face ao caso concreto, resta patente a repercussão geral. Dessa forma, tão logo seja confirmada a presença deste instituto e não haverá dúvidas para se conhecer o recurso extraordinário. É, neste caso, dever do Supremo Tribunal Federal conhecê-lo, não havendo discricionariedade nessa providência.

Nessa esteira, para a configuração da repercussão geral, além de patente a relevância da questão constitucional, é imprescindível que a questão debatida ultrapasse o âmbito de interesse das partes. Tal assertiva, como já observado, decorre naturalmente da exigência da própria Constituição Federal, vez que a defesa da ordem econômica, da ordem social, dos poderes e dos direitos e garantias fundamentais são, fundamentalmente, transcendentes aos interesses das partes.

Adicionalmente, Arruda Alvim ressalta que a repercussão geral, segundo o aspecto da transcendência na repercussão geral, está presente em matéria discutida de caráter geral

"que diga respeito a um grande espectro de pessoas ou a um largo segmento social, uma decisão sobre assunto constitucional impactante, sobre tema constitucional muito controvertido, em relação à decisão que contrarie orientação do Supremo Tribunal Federal; que diga respeito à vida, à liberdade, à federação, à invocação do princípio da proporcionalidade, etc., ou, ainda outros valores conectados a texto constitucional que se albergue debaixo da expressão repercussão geral." [10]

Outro fator importante quanto à transcendência da controvérsia constitucional trata a caracterização de duas perspectivas balizadas por Marinoni, a qualitativa e quantitativa. [11]

Segundo o autor, a perspectiva qualitativa importa em sobrelevar a transcendência para a sistematização e desenvolvimento do direito, proporcionando um debate profícuo e valoroso no mundo jurídico.

A perspectiva quantitativa, por sua vez, vislumbra o número de pessoas suscetíveis de alcance daquela questão constitucional, considerando-se, inclusive, a natureza do direito posto em causa – direito difuso ou coletivo [12].

É neste sentido que a dimensão objetiva proposta por debates que envolvem violação frontal dos direitos fundamentais remetem perfeitamente à transcendência, haja vista que as discussões resultantes da questão ultrapassam qualitativamente ao interesses subjetivos das partes.


NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. MARINONI, Luiz Guilherme e Mitidiero, Daniel. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.33.
  2. MARINONI, Luiz Guilherme e Mitidiero, Daniel. Op. cit., p. 33.
  3. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão geral: apresentação do instituto. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaRepercussaoGeral&pagina=apresentacao.
  4. ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Trd. João Batista Machado.8.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p.236 Apud MARINONI, Luiz Guilherme e Mitidiero, Daniel. Op. cit., p.34.
  5. MARINONI, Luiz Guilherme e Mitidiero, Daniel. Op. cit., p.34.
  6. ALVIM, Arruda. A Emenda Constitucional 45 e a repercussão geral. Revista de Direito Renovar, n.31, p. 75-130, jan/abr 2005, p.91.
  7. ALVIM, Arruda. Op. cit., p.91-92.
  8. ALVIM, Arruda. Op. cit., p.92.
  9. MARINONI, Luiz Guilherme e Mitidiero, Daniel. Op. cit., p.35.
  10. ALVIM, Arruda. Op. cit., p.76.
  11. MARINONI, Luiz Guilherme e Mitidiero, Daniel. Op. cit., p.37.
  12. MARINONI, Luiz Guilherme e Mitidiero, Daniel. Op. cit., p.37.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BELMONTE, Luciana Lombas. A transcendência das questões constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2516, 22 maio 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14887. Acesso em: 20 abr. 2024.