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Pobreza e direitos humanos.

O papel da Defensoria Pública na luta para a erradicação da pobreza

Pobreza e direitos humanos. O papel da Defensoria Pública na luta para a erradicação da pobreza

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1. Introdução

Passados mais de 60 anos desde a aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, não se pode ignorar que uma parcela expressiva da população mundial, particularmente dos povos latino-americanos, ainda enfrenta na sua vida cotidiana inúmeras situações de graves violações e privações de direitos inerentes à dignidade humana.

Nestes primeiros anos do século XXI, em que a grande maioria dos países de nosso continente parece estar avançando nos processos de consolidação de regimes políticos que podem ser qualificados como democráticos, ainda há um longo caminho a ser percorrido na direção da efetiva democratização das estruturas e bases de nossas sociedades.

É preciso, notadamente, alcançar níveis mais expressivos de igualdade material no campo econômico e cultural, que possibilite àqueles que se situam nas camadas mais pobres a efetiva inclusão social e o pleno exercício e fruição dos direitos civis e políticos já consolidados no campo formal, da cidadania jurídica e política, e bem assim o pleno desfrute de condições de vida mais compatíveis com o estágio de desenvolvimento e progresso alcançados pelas sociedades globalizadas contemporâneas. A exclusão econômica e social (e por que não dizer, até mesmo a exclusão tecnológica) de uma parte significativa da população latino-americana coloca em xeque as conquistas de liberdades civis e políticas de nossas frágeis democracias.

Com efeito, durante os regimes ditatoriais que macularam a história recente de vários países deste continente, a questão da defesa dos direitos humanos esteve focada principalmente na luta pelo respeito à vida e à integridade física e pelos direitos de liberdade dos que não compactuavam com a ordem política estabelecida. Os agentes estatais eram, então, os grandes responsáveis pelas violações dos direitos humanos. O clamor contra tais violações ganhou repercussão e visibilidade, sobretudo, na medida em que suas vítimas eram também os integrantes da classe média e, em particular, das elites intelectuais e culturais. Quanto aos integrantes das classes populares, especialmente os trabalhadores rurais e as grandes massas de desempregados e subempregados [01] que se concentravam nas periferias das grandes cidades, sempre tiveram seus direitos humanos sonegados, sem que isso suscitasse maiores repercussões na esfera jurídica interna e internacional.

Com os processos de consolidação democrática e de superação dos regimes políticos autoritários, um novo cenário se apresenta em nosso continente. Nesse contexto, o flagelo da pobreza e as precárias condições de vida das populações situadas nos estratos sociais inferiores aparecem dentre os principais desafios a serem vencidos, na luta pela efetivação dos direitos humanos. Tal ocorre tanto na perspectiva interna, em que os direitos fundamentais ganham expressivo destaque nas novas Cartas Constitucionais que são a expressão jurídico-política dos novos regimes, quanto na perspectiva internacional, no contexto dos fenômenos da globalização (em que os avanços tecnológicos facilitam o fluxo de comunicação e de intercâmbio entre os povos) e da integração regional que despertam a atenção para a importância das instâncias supranacionais no alcance daquele desiderato de efetivação dos direitos humanos.

Feitas essas considerações preliminares, podemos passar à discussão específica proposta para o presente estudo, qual seja, uma reflexão acerca das temáticas da pobreza e dos direitos humanos, vinculando-as ao tema geral que é "Defensoria Pública: garantia do acesso à Justiça". Queremos inicialmente propor duas possibilidades de vinculação entre os temas acima mencionados.

Pode-se enunciar a primeira dessas possibilidades do seguinte modo: a garantia do ACESSO À JUSTIÇA é um DIREITO HUMANO consagrado nos principais documentos internacionais que tratam do assunto. Porém, sua efetividade revela-se bastante limitada, na prática, no caso das camadas sociais mais POBRES. Nessa perspectiva, a pobreza é vista como uma verdadeira BARREIRA, que impede ou dificulta o pleno acesso à Justiça.

A outra possível articulação entre os temas se enunciaria nos termos seguintes: a situação de POBREZA em que se encontram grandes parcelas dos povos latino-americanos, por si só, implica quase sempre uma situação de VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS, não apenas sociais e econômicos, mas também civis e políticos, e, na luta pela erradicação da pobreza, a garantia do ACESSO À JUSTIÇA deve ser vista como um instrumento indispensável. Tem-se aqui uma outra perspectiva em que o acesso à Justiça é visto como um MEIO ou instrumento para superação da pobreza.

Confrontadas essas duas assertivas, a impressão que fica é de que se está diante de um paradoxo: se a pobreza é uma barreira para o alcance do acesso á justiça não se pode pretender que este seja um meio para superação daquela. A realidade, porém, indica que esse impasse á apenas aparente.

Cremos que para uma adequada reflexão em torno dessas duas diferentes perspectivas, revela-se oportuno discorrer sobre algumas questões conceituais e terminológicas que poderão ajudar a tornar mais precisa a exposição das ideias.


2. Premissas Conceituais

É necessário definir o sentido da palavra "pobreza" [02], que não pode ser compreendida estritamente na perspectiva econômica, como sinônimo de carência de bens materiais, embora esta seja a maneira mais fácil de se delimitar objetivamente a sua abrangência. Fatores como analfabetismo, doenças crônicas e deficiências (físicas ou mentais), insegurança e vulnerabilidade à violência, suscetibilidade a desastres ou intempéries naturais, isolamento físico ou social às vezes também devem ser considerados para configuração da noção de pobreza. Destarte, é preciso ter presente que não é exclusivamente a condição econômica que explica a maior ou menor incidência de obstáculos para o acesso à justiça por parte das pessoas menos favorecidas, embora esse problema seja mais grave nas classes de baixa renda. Igualmente, não se pode ignorar que a garantia do acesso à justiça contribui não apenas para a superação das desigualdades econômicas, mas também para a inclusão social dos diversos grupos que sofrem algum tipo de marginalização. Por tal motivo, quando se discute a problemática do acesso à justiça para os pobres, é preciso incluir nessa categoria certos grupos considerados socialmente hipossuficientes e/ou vítimas de discriminação, como seria o caso das populações indígenas e minorias étnicas, as mulheres, as crianças e adolescentes, os idosos, os portadores de deficiências, dentre outros.

Também é preciso definir o que se entende por "acesso à justiça". Numa concepção mais estrita, pode-se entender o acesso à justiça como sendo um conjunto de ações e procedimentos voltados para a resolução dos conflitos/controvérsias que possam comprometer a paz e a harmonia social, utilizando-se dos meios próprios previstos e, de fato, disponíveis num determinado ordenamento jurídico. Isto corresponde basicamente à atividade jurisdicional inerente à soberania dos Estados. Nessa perspectiva, que equivale à noção de "acesso aos tribunais" (correspondente à expressão em inglês "access to courts"), trata-se de uma obrigação dos Estados consagrada em vários documentos integrantes do ordenamento jurídico internacional. É preciso salientar que tal obrigação não se dá por cumprida apenas numa ótica formal ou simbólica, mediante a simples criação e funcionamento de órgãos judiciais. O mais importante é a efetiva aptidão dessas ações e procedimentos para resolver conflitos de modo "definitivo" [03], levando à paz social e à segurança jurídica. E, sendo questão de interesse público, não se restringe à atividade exclusivamente estatal, visto que pode envolver em alguns casos certas modalidades de meios extrajudiciais de solução de litígios, como é o caso da arbitragem ou da mediação.

A complexidade das relações sociais e, em consequência, dos conflitos delas emergentes é de tal ordem que se exige cada vez mais a sofisticação e aprimoramento dos aparatos estatais e para-estatais destinados à solução dos litígios. Inúmeros são os obstáculos que se interpõem, impedindo ou dificultando o acesso igualitário de todos à justiça, entendida no sentido acima exposto. Vários estudos vêm sendo publicados, especialmente nas últimas décadas, a respeito dessa questão [04]. Mas não se pode perder de vista outra perspectiva da questão do "acesso à justiça" em que se considera não tanto o aspecto institucional, da atividade e dos procedimentos direcionados à resolução de litígios, mas sim o aspecto material de luta pelo estabelecimento de relações sociais que possam ser qualificadas como "justas", o que envolve o acesso e fruição dos direitos não apenas na dimensão individual mas também coletiva, sobretudo aqueles direitos de cunho social, econômico e cultural [05]. Embora, no passado, tais perspectivas se revelassem como disjuntivas, visto que as ações direcionadas à realização da justiça social eram consideradas alheias à atividade jurisdicional do Estado, nos tempos recentes verifica-se uma convergência nas concepções do significado do "acesso à justiça", eclodindo o fenômeno que se convencionou denominar de "judicialização" das relações sociais e da política, em que os tribunais passam a desempenhar um novo papel no cenário institucional dos Estados Democráticos de Direito.

Importa ainda tecer algumas reflexões conceituais preliminares sobre a expressão "direitos humanos". Originariamente, a formulação da ideia de direitos humanos costuma ser situada no contexto das revoluções liberais que marcaram a cultura ocidental moderna, com suas raízes em concepções filosóficas humanistas da antiguidade clássica e do judaísmo-cristianismo. Entretanto, os ideais humanitários que inspiram os direitos humanos são considerados um autêntico valor universal, presentes nas mais variadas culturas e religiões [06]. Pode-se dizer que a temática dos direitos humanos emerge no debate internacional, de modo mais incisivo, após a Segunda Guerra Mundial. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pela Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) em 10 de dezembro de 1948 converteu-se numa referência fundamental na nova ordem jurídica global que se configurou na segunda metade do século XX. Aos poucos, esse ideário passou a ser adotado também nas esferas das organizações internacionais regionais, como foi o caso do continente americano, com a aprovação da Convenção Americana de Direitos Humanos, em 1969, que é conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica. Nos últimos tempos, cada vez mais se abandona uma visão retórica e simbólica dos direitos humanos em prol de uma luta concreta por sua efetivação, inclusive com a criação de instâncias institucionais dotadas de força cogente para fazer valer os preceitos consagrados nos diversos documentos internacionais.


3. O Acesso à Justiça como Direito Humano: sua abrangência e seus efeitos

Feita essa breve digressão conceitual, podemos retomar a análise das interseções e vinculações entre pobreza, acesso à justiça e direitos humanos, na forma acima indicada. A primeira consiste na premissa de que o ACESSO À JUSTIÇA é um DIREITO HUMANO, consagrado nos principais documentos internacionais que dispõem sobre o tema. Comecemos pelo Artigo VIII da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, que estabelece: "Toda pessoa tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes, remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei.". Esse mesmo preceito, com expressões mais detalhadas, aparece no Art. 14 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, da ONU, que assim dispõe: "Todas as pessoas são iguais ante os tribunais e cortes de justiça. Toda pessoa terá direito a que a sua causa seja apreciada com equidade e publicamente por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, que decidirá sobre o bom fundamento de toda acusação em matéria penal dirigida contra ela quer quanto às contestações sobre seus direitos e obrigações de caráter civil". A norma positivada no Art. 8º, §1º, da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos, correspondente aos dispositivos acima transcritos, é ainda mais pormenorizada: "Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer natureza".

Os dispositivos supramencionados consagram de modo explícito o direito de acesso à justiça como um direito humano inderrogável, que deve ser assegurado a todos os cidadãos, indiscriminadamente. E o consagram não apenas no campo da jurisdição criminal, para defesa dos direitos clássicos de liberdade e preservação da integridade física, mas também para resguardo de direitos e interesses em qualquer instância jurídica seja qual for a natureza dos direitos sob litígio. E, de fato, isso não poderia ser diferente sob pena de comprometer gravemente os postulados que fundamentam a própria noção de Estado de Direito e de Democracia que se traduzem em importantes conquistas da civilização contemporânea. Com efeito, se no ESTADO DE DIREITO somente o Judiciário detém o MONOPÓLIO DA JURISDIÇÃO em TODAS AS ÁREAS JURÍDICAS (não apenas na jurisdição criminal), o acesso ao Judiciário, para ser JUSTO, precisa ser garantido a TODOS igualmente (pobres e ricos), superadas quaisquer barreiras ou obstáculos econômicos ou sociais, em TODAS AS ÁREAS DO DIREITO [07].

Para uma interpretação mais acurada dessas normas dos documentos internacionais que consagram o acesso à Justiça como direito humano é preciso ter presente também o que dizem os demais preceitos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, notadamente o Art. 2º (que veda discriminações de qualquer natureza, inclusive em razão de diferenças de riqueza), o Art. 3º (que resguarda a vida, a liberdade e a segurança pessoal) e o Art. 7º (que resguarda a isonomia jurídica). O direito de acesso à justiça seria na realidade uma "garantia", em primeiro plano, para a proteção desses direitos elementares da pessoa humana, que são verdadeiros pressupostos indispensáveis para os demais direitos que costumam ser qualificados como de segunda, terceira e até de quarta geração [08].

Nesse passo, impõe-se uma reflexão acerca da classificação mais apropriada para o direito de acesso à justiça: seria um direito humano de primeira, de segunda ou de terceira geração? Parece-nos inexorável qualificá-lo como direito de primeira geração. Tanto que sua positivação se deu de modo mais detalhado no bojo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU e não no Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

A correta compreensão do pleno significado desse direito de acesso à justiça não pode limitar-se, porém, à mera existência de normas jurídicas formais na legislação de cada país, prevendo a possibilidade hipotética de que todos os cidadãos possam valer-se do aparato judicial para solução de litígios e controvérsias. É preciso considerar que os sistemas de administração de justiça assumem cada vez mais feições de sofisticada complexidade com procedimentos e formalidades cujo manejo exige especialização técnica, tornando indispensável a assistência de profissionais habilitados e qualificados (advogados ou defensores públicos) para que os pleitos formulados possam receber a devida atenção e encaminhamento. Inúmeras são as barreiras e obstáculos, já mencionados anteriormente, que precisam ser transpostos para que o direito de acesso à justiça não seja um privilégio apenas para uma pequena minoria de cidadãos. A falta de condições econômico-financeiras para arcar com as despesas de contratação de profissional capacitado para postular perante as instâncias jurisdicionais e manejar adequadamente os recursos e procedimentos legalmente estabelecidos para a defesa de interesses em Juízo representa uma das mais graves barreiras para o efetivo acesso à justiça.

Com efeito, a complexidade dos sistemas de administração de justiça exige que não apenas se garanta o acesso aos tribunais, mas principalmente seja garantida a chamada "igualdade de armas" e igualdade de condições efetivas de acesso, superadas todas as barreiras, inclusive as econômicas. Nesse sentido, não basta que os Estados assegurem a existência de tribunais imparciais para julgamentos dos litígios, que sejam formalmente acessíveis/abertos a todos [09]. É igualmente indispensável que disponibilize aos cidadãos menos favorecidos os meios práticos e concretos, necessários para que possam litigar em igualdades de condições com os de poder aquisitivo mais elevado. Isto deve ser feito, seja exonerando-os de despesas e custas judiciais, seja assegurando-lhes meios para dispor de defesa e assistência técnica de qualidade suficiente para a proteção de seus interesses. Essa dimensão do direito de acesso à justiça não pode ser restrita às defesas no campo da jurisdição criminal, como entendem muitos de nossos países, mesmo alguns que são considerados em avançado estágio de desenvolvimento econômico-social, como é o caso dos Estados Unidos [10].

Em suma, mesmo numa perspectiva que compreende que a finalidade do direito de acesso à justiça seria a de garantir apenas a igualdade jurídica de ordem formal entre os cidadãos, parece-nos indiscutível que tal garantia inclui a obrigação de os Estados assegurarem DEFESA PÚBLICA DE QUALIDADE E ESPECIALIZADA (como, aliás, preconizado nas regras de Brasília [11], consoante estabelecido nos itens 28 e 24 daquele documento) não restrita às questões criminais, mas abrangendo todas as áreas do Direito, INCLUSIVE EM QUESTÕES CÍVEIS – MESMO AS DE ORDEM PATRIMONIAL – NOS LITÍGIOS DE FAMÍLIA E NA ÁREA ADMINISTRATIVA (sobretudo nos litígios envolvendo interesses dos cidadãos perante o próprio Estado).

Tendo presente o horizonte do Estado Democrático de Direito, de que adiantaria o direito de participar do processo político, através do exercício do direito do voto, assegurada assim a participação no processo de elaboração das leis, mediante os canais democráticos da representação política, se no momento da aplicação dessas mesmas leis no caso concreto o indivíduo estivesse impossibilitado de participar efetivamente do processo judicial em igualdade de condições (igualdade de armas) por impossibilidade de arcar com despesas de representação técnica especializada para defesa de seus interesses controvertidos? Do mesmo modo que a participação no processo político-eleitoral é reconhecidamente um direito humano de "primeira geração", também o acesso a Justiça (sobretudo para os pobres!), inclusive nas questões não criminais, precisa ser visto primordialmente como instrumento de garantia dos direitos civis e políticos (ditos de primeira geração) [12]. Quanto aos efeitos passíveis de serem alcançados no âmbito da efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais, contribuindo para a melhoria das condições de igualdade material entre os cidadãos, sem negar sua importância, seriam tais efeitos de natureza fundamentalmente reflexa, e não principal. O que está em jogo, na verdade, não é a realização da igualdade na distribuição das riquezas, mas da igualdade "de participação" no processo estabelecido pelo Estado para dirimir os conflitos sociais.

Qual seria, pois, a consequência desse premissa? É que o Estado não pode condicionar ou "contingenciar" [13] a efetivação do direito à defesa pública de qualidade especializada para os pobres, inclusive nas questões não criminais, subordinando-a a prioridades orçamentárias variáveis conforme os humores da política partidária e ideológica de um determinado governo. Para enfatizar o sentido e as implicações dessa assertiva, podemos recorrer a exemplos análogos que servem para reforço da tese aqui sustentada: poderia o Estado suprimir gastos com organização das eleições, comprometendo sua equidade e efetivo acesso dos eleitores ao exercício do direito de voto, deixando, por exemplo, de instalar seções de votação em cidades pequenas sob o argumento de que o custo seria demasiadamente elevado? Ou poderia o Estado suprimir a remuneração dos parlamentares, deixando tal atividade para a dimensão da "caridade pública", numa espécie de regime pro bono (tal como se exige, às vezes, de advogados dativos quando inexistente a defensoria pública estatal)? Será que isso não acabaria por tornar na prática a atividade política exclusivamente viável para os mais ricos, excluindo os mais pobres da possibilidade de se dedicar à vida pública? Finalmente, será que o Estado poderia suprimir o funcionamento de órgãos judiciais e policiais nas zonas menos populosas (por considerar que não se justifica o custo-benefício) ou deixar de instalá-los onde se fizessem necessários, deixando que cada um exerça a autotutela dos seus direitos, na falta de órgão público? A resposta a tais indagações é, necessariamente, NÃO, posto que se tratam de obrigações estatais ligadas todas à concretização dos direitos civis e políticos ditos de "primeira geração", em que a omissão do Estado configuraria efetiva violação dos direitos humanos reconhecidos como tais.

Assim, parece inequívoco que o acesso à justiça traduz-se num direito humano, insuscetível de contingenciamento: os Estados têm a obrigação de remover os obstáculos econômicos (principalmente) e também os obstáculos culturais/educacionais/sociais e prover o instrumental apropriado, inclusive a assistência jurídica gratuita, que se revela indispensável a que os pobres possam ter acesso efetivo à prestação jurisdicional nos casos em que isso for necessário para defesa de seus interesses legalmente protegidos. Em resumo, é preciso remover as barreiras decorrentes do estado de pobreza que impedem a efetividade do direito humano de acesso à justiça.


4. A luta pela erradicação da pobreza e o papel da Defensoria Pública

É chegado, enfim, o momento de desenvolver algumas reflexões sobre a segunda hipótese de análise das interseções e vinculações entre os temas da pobreza, do acesso à justiça e dos direitos humanos, buscando agora um possível nexo com o papel institucional das Defensorias Públicas em nosso continente latino-americano.

Como afirmado anteriormente, a pobreza está muitas vezes diretamente associada a inúmeras modalidades de violações e privação de direitos humanos básicos. E, na luta pela erradicação da pobreza, um possível caminho a ser trilhado consiste exatamente na utilização das vias judiciais, em particular, e de mudanças na ordem jurídica, como um todo. Para tanto, não se pode prescindir da colaboração dos órgãos estatais integrantes do sistema de administração da justiça, sendo que as Defensorias Públicas podem prestar colaboração decisiva.

Parece cabível indagar, de início, acerca da viabilidade de tal empreitada: seria, realmente, possível a erradicação da pobreza? Tivemos oportunidade de discorrer acima a respeito das diversas acepções da noção de pobreza. Ante as limitações da condição humana, é difícil não admitir que, em alguma medida, a pobreza sempre existirá! É utópico pensar que a pobreza será totalmente eliminada. Esse foi, aliás, o projeto que inspirou muitos dos idealistas que pugnaram pela universalização dos regimes comunistas, cujos postulados – ao serem aplicados em sociedades reais - acabaram fazendo nascer outros problemas e distorções tão graves quanto a própria pobreza, sem conseguir erradicá-la totalmente, embora tenham sido feitos consideráveis progressos nesse sentido.

Na atual conjuntura que se revela hegemônica na comunidade internacional, o que se busca fazer é lutar, ao menos, para diminuir as desigualdades e torná-las compatíveis com a dignidade humana. O que se pretende erradicar são, pelo menos, as situações que costumam ser designadas como de "pobreza extrema" ou "pobreza absoluta". Tal como já consignado anteriormente, é preciso ter claro que o conceito de pobre é relativo: depende de circunstâncias culturais e se sujeita a modulações que variam de acordo com o estágio de desenvolvimento econômico-social de cada sociedade. A noção de quem é pobre na Finlândia difere significativamente do que se caracteriza como pobreza na Nigéria, apenas para indicar situações bem extremas.

Estabelecida tal premissa, de que nas sociedades humanas sempre se fará presente a possibilidade de estabelecimento de linha divisória entre os considerados ricos e os pobres, mas admitindo-se também que o estágio civilizatório atual da humanidade é capaz de suscitar uma conscientização acerca das possibilidades de eliminação de situações mais dramáticas de pessoas sobrevivendo em condições incompatíveis com a dignidade humana, surgem as seguintes indagações: a quem cabe a luta pela erradicação da pobreza e quais os meios devem ser empregados para alcance desse objetivo?

É pacífico o reconhecimento de que a erradicação da pobreza está ligada ao alcance de estágios mais avançados de desenvolvimento econômico e social, paralelamente à distribuição mais equitativa das riquezas. Há, também, uma dimensão moral e ética que não pode ser negligenciada, na busca de soluções para essa problemática.

Mas, focando apenas na dimensão pragmática, tradicionalmente as ações que se revelam mais aptas ao combate à pobreza consistem na implementação de direitos sociais, sobretudo relativamente à alimentação, saúde, educação e moradia. Essa é uma tarefa que cabe, primordialmente, aos que exercem funções governamentais em cada Estado, notadamente nos Poderes Legislativo e Executivo, mediante formulação e execução de políticas públicas e programas sociais compatíveis com o nível de desenvolvimento das respectivas sociedades. Tais ações variam de acordo com as concepções ideológicas, especialmente no que se refere aos meios para atingir os fins projetados. Alguns optam por políticas intervencionistas e assistencialistas de redistribuição. Outros acreditam que o fortalecimento dos fundamentos de um sistema econômico regido pelas leis de mercado seria mais eficiente. Nos países ocidentais que hoje são considerados mais desenvolvidos um passo decisivo para a superação das profundas desigualdades sociais foi a expansão do direito à educação, ainda no século XIX.

Estatísticas recentes demonstram que, felizmente, o percentual da população vivendo em estado de pobreza está se reduzindo em vários países latino-americanos. Tal fato resulta de políticas públicas voltadas para a melhoria das condições de vida que têm se revelado bem sucedidas, aliadas à estabilidade econômica, social e política alcançada nos últimos tempos, com iniciativas eficazes de distribuição de renda. Entretanto, o ritmo desses possíveis avanços ainda se mostra bastante lento.

Diante do quadro de urgência no enfrentamento de questões conjunturais de escandalosa desigualdade social e econômica que ainda se fazem presentes em nosso continente, e considerando a notória omissão de muitos dos agentes governamentais que deveriam tomar iniciativas concretas e adequadas para superação desse quadro, a busca de soluções através do acesso á justiça se revela como um possível caminho a ser necessariamente trilhado.

Nesse sentido, é importante lembrar a relevante experiência vivenciada nos Estados Unidos da América em meados da década dos anos sessenta, do século XX, em que o governo federal lançou um ambicioso programa de ações denominado de "War on Poverty" (Guerra contra a Pobreza) que incluía, dentre os diversos programas de ações destinados à lutar contra a pobreza, exatamente a implantação de serviços de assistência jurídica gratuita em questões de natureza cível para as pessoas pobres, subsidiados com recursos financeiros do tesouro nacional [14].

É certo que inúmeros problemas que afetam o cotidiano das pessoas que se encontram em estado de pobreza podem ser resolvidos – ou pelo menos minimizados – através da facilitação no acesso à justiça. Alguns exemplos podem ser indicados: a defesa da moradia em litígios envolvendo questões possessórias ou locatícias; a revisão de cláusulas contratuais abusivas prejudiciais ao consumidor endividado; a investigação de paternidade e cobrança de alimentos contra pais biológicos que se recusam a contribuir para a criação de seus filhos privando-os dos alimentos necessários a sua sobrevivência, etc. Isto sem falar nas ações judiciais que podem ser propostas contra órgãos governamentais, com o objetivo de compelir os poderes públicos a prestarem serviços e benefícios assegurados por lei, sobretudo na área da saúde e da educação. Enfim, faz-se necessário um conjunto estrategicamente planejado de ações e medidas direcionadas à promoção dos direitos de cidadania, que não se reduz às políticas de caráter assistencialista ou filantrópico [15]. E, nessa linha de ação, as Defensorias Públicas cumprem um papel indispensável. Mas cremos que não se pode esperar que esse tipo de iniciativa seja suficiente para alcançar o objetivo de erradicação da pobreza.

A judicialização dos conflitos e das relações sociais não pode, todavia, ser vista como panaceia para todos os males. É preciso evitar o "excesso de acesso" à justiça, como advertiu o ilustre Presidente da Suprema Corte de Justiça da Nação da República Argentina, Dr. Ricardo Lorenzetti, em sua palestra proferida em março de 2008, no encontro preparatório para o Congresso da AIDEF - Associação Interamericana de Defensorias Públicas, realizado na Argentina [16]. O acesso à justiça não pode se converter em frustração. Não se pode perder de vista que o Judiciário é um poder estatal que tem por missão exercer a função jurisdicional destinada à aplicação da lei no caso concreto, primordialmente na perspectiva individual, materializando os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Embora nos tempos recentes cada vez mais o Judiciário seja chamado a dirimir conflitos de âmbito meta-individual, voltando-se para a proteção dos interesses coletivos e difusos, a dinâmica de funcionamento os órgãos jurisdicionais, muitas vezes, carece de elementos para sopesar os desdobramentos de suas decisões num cenário mais amplo. Além disso, embora não se possa negar sua dimensão de caráter político, por se tratar de atividade primordialmente de ordem técnica, a atuação jurisdicional não possui o grau de legitimidade democrática que, em tese, no regime representativo democrático, se faz presente na atuação dos demais poderes estatais. Assim, muitos estudiosos afirmam que o Judiciário não estaria plenamente capacitado para tomada de decisões que configurem a realização de escolhas e opções fundamentais no que tange às políticas públicas de âmbito coletivo. Isto porque a implementação de tais decisões, por repercutir em imposição de ônus para os cofres públicos, considerando-se que as fontes de custeio são limitadas, ante o princípio fundamental da legalidade que rege a cobrança dos tributos, podem acabar inviabilizando a execução de outros projetos democraticamente considerados prioritários pelas instâncias encarregadas de definir a gestão dos recursos públicos. Daí que a facilitação do acesso ao direito e à justiça, através do Judiciário, por intermédio das Defensorias Públicas, não pode ser visto como a via exclusiva e nem principal para se alcançar a erradicação da pobreza.

Sem perder de vista essas limitações da via do acesso à justiça na luta pela erradicação da pobreza, o fato é que no regime democrático as tensões e enfrentamentos são legítimos e podem contribuir para o aprimoramento das instituições. Por tal motivo, assim como o fazem os profissionais da advocacia privada, em prol dos interesses setorizados de grupos econômicos e sociais mais privilegiados, é plenamente legítima e necessária a atuação das Defensorias Públicas na luta pela melhoria das condições de vida dos destinatários de seus serviços, ou seja, da população menos favorecida, notadamente na luta pela efetivação de direitos sociais que contribuam para a superação das desigualdades e redução da pobreza. Em resumo, embora a judicialização efetivamente não possa ser considerada o melhor caminho para o alcance de tais objetivos, em nossos países latino-americanos isso tem sido inevitável.


5. Considerações Finais

Tendo presentes as ponderações acima indicadas, parece que a contribuição da Defensoria Pública na luta para superação da pobreza se revela mais expressiva, sobretudo, mediante a utilização de instrumentos processuais de caráter coletivo. Para maior êxito nessa empreitada, é de grande importância uma atuação estrategicamente ordenada, buscando identificar casos paradigmáticos (os chamados "leading cases" na consagrada expressão em inglês) que possam produzir impacto significativo não só na dimensão concreta mas também na perspectiva simbólica de mudança de mentalidades.

Para concluir estas nossas reflexões, queremos enfatizar, como nos ensina o eminente jurista Antônio Celso Alves Pereira [17], que o acesso à justiça constitui uma das formas mais eficientes de materializar os direitos humanos. E, no caso das populações integrantes dos estratos sociais e econômicos menos favorecidos, é indispensável contar com a assistência jurídica integral e gratuita a ser prestada pelo Estado através da Defensoria Pública, sob pena de afronta ao princípio da não discriminação, que é parte integrante essencial da ideia de direitos humanos.


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MARSHALL, T. H. (1967). Cidadania, Classe Social e Status. Tradução de Meton Porto Gadelha. Rio de Janeiro, Zahar (especificamente o capítulo "Cidadania e Classe Social").

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Notas

  1. No caso dos integrantes das classes trabalhadoras urbanas, inseridas no sistema econômico mediante vínculo empregatício formal, embora tenham sido contemplados com significativo leque de direitos sociais, em especial os de cunho trabalhista e previdenciário, vários autores (apenas para exemplificar, citamos dois autores: CARVALHO, 2004 e SANTOS, 1979) apontam para a ocorrência de situação peculiar no contexto latino americano, em que – diferentemente do que se deu em outros países, notadamente nas sociedades industriais do hemisfério norte, como relatado no célebre estudo do sociólogo T. H. MARSHALL (1967) – a expansão desses direitos trabalhistas e sociais nem sempre se situou no desdobramento de um ciclo de implantação integral dos direitos civis e políticos, sobretudo em razão da predominância de regimes populistas/clientelistas (e à vezes autoritários), como foi o caso, por exemplo, dos governos de Getúlio Vargas no Brasil e de Perón na Argentina. Para um aprofundamento nessa temática, recomenda-se o texto escrito por Elizabeth JELIN (2006), sob o título "Cidadania Revisitada: Solidariedade, Responsabilidade e Direitos", publicado no livro "Construindo a Democracia: Direitos Humanos, Cidadania e Sociedade na América Latina".
  2. Como referência bibliográfica para uma breve sistematização acerca dos vários sentidos da palavra pobreza e sua relevância para o direito, recomenda-se o livro "Les Pauvres et le Droit", de autoria da Prof. Sophie DION-LOYE (1997), integrante da coleção "Que sais-je?" publicada pela PUF-Presses universitaires de France. Numa perspectiva mais técnica, cabe consultar os documentos publicados pelo PNUD, especialmente a edição de Dezembro de 2006 da Revista "Poverty in Focus", dedicada ao tema "What is Poverty? Concepts and Measures" disponível em: http://www.undp-povertycentre.org/pub/IPCPovertyInFocus9.pdf. Para uma reflexão específica sobre a confiabilidade das estimativas de pobreza na América Latina, ver o artigo "As estimativas de pobreza na América Latina são Confiáveis?", disponível em http://www.undp-povertycentre.org/pub/port/IPCOnePager52.pdf.
  3. A respeito dessa noção de "definitividade" da resolução de conflitos, num estudo patrocinado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento e pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos, publicado no ano 2000, sob o título "Acceso a la Justicia e Equidad", José THOMPSON enumera os seguintes elementos que idealmente devem ser fazer presentes para que efetivamente se configure a resolução de conflitos com caráter de "definitividade": "a oportunidade, para ter a capacidade de resposta suficientemente ágil para que a solução seja temporalmente apropriada; a certeza, para que sua relação com as pretensões encontradas sejam clara, direta e definitiva; a idoneidade, para poder cabalmente assumir e dirimir o conflito na sua forma e conteúdo; a acatabilidade, isto é, que seja suscetível de aceitação pelas partes, independentemente de se conformarem ou não com as disposições da decisão; e a executabilidade, se as pretensões são quantificáveis efetiva ou eventualmente.
  4. A obra clássica de referência sobre o tema é a série de publicações denominada "Access to Justice", no âmbito do denominado "Projeto Florença", em cinco volumes, coordenados pelo italiano Mauro CAPPELLETTI. No Brasil, foi publicado um fragmento dessa coleção, que consiste exatamente no texto de introdução aos trabalhos integrantes desses cinco volumes. Trata-se da obra intitulada "Acesso à Justiça", de autoria de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, publicada em Porto Alegre por Sergio Antonio Fabris Editor. A respeito especificamente do Acesso à Justiça para os pobres, o trabalho pioneiro e que se tornou referência mundial consiste no livro "Toward Equal Justice: A comparative study of legal aid in modern societies", publicado originariamente em 1975, que teve como autores o próprio Mauro Cappelletti, juntamente com James Gordley e Earl Johnson Jr.
  5. No ano de 2007 a Organização dos Estados Americanos, através da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, publicou um documento de grande relevância para o tema, cujo título é "El acceso a la justicia como garantia de los derechos econômicos, sociales y culturales – estúdio de los estándares fijados por ele sistema interamericano de derechos humanos". Tal publicação está disponível para download na internet no seguinte endereço eletrônico: http://www.cidh.org/pdf%20files/ACCESO%20A%20LA%20JUSTICIA%20DESC.pdf .
  6. Para um estudo panorâmico acerca do processo de afirmação e positivação dos direitos humanos, na ordem internacional, recomenda-se o verbete "Direitos Humanos", constante do consagrado Dicionário de Política organizado pelos professores italianos Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino (no Brasil, foi publicada uma versão em português, pela Editora da Universidade de Brasília).
  7. Isso é importante que seja destacado pois em muitos dos países latino-americanos as Defensorias têm atuação restrita às questões criminais (alcançando, às vezes, questões "quase-criminais" como seria o caso da defesa de crianças e adolescentes infratores). Parece-nos que essa é uma visão distorcida do papel do Estado na garantia do acesso à justiça. Mesmo entre os próprios defensores públicos costuma haver uma ênfase desproporcionada na atenção à problemática criminal, olvidando-se as violações de direitos patrimoniais, contratuais, trabalhistas, administrativos, previdenciários, familiares, sucessórios e, sobretudo, os direitos sociais (educação e saúde) coletivos, que atingem amplas parcelas de pessoas no estado de pobreza (casos que, quantitativamente são muito mais elevados do que os que sofrem violações de seus direitos no âmbito penal).
  8. Essa classificação teria sido utilizada pela primeira vez pelo jurista tcheco Karal Vasak, naturalizado francês, numa conferência pronunciada em 1979 no Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estrasburgo, na França. Apesar de seu inegável caráter didático, diversos autores passaram a seguir essa classificação que observa um critério de natureza histórico-cronológica em que normalmente foram introduzidos nos ordenamentos positivos das principais sociedades ocidentais. Todavia, muitos pensadores apresentam críticas à ideia de "gerações" de direitos, preferindo utilizar, em seu lugar, a expressão "dimensões" dos direitos fundamentais.
  9. Para expressar, de modo irônico, essa acessibilidade – apenas teórica! – dos tribunais a todas as pessoas, ricos e pobres, há um conhecido provérbio inglês: "The Courts are open to all – like the Ritz Hotel". A frase "Curia Pauperibus clausa est" (o tribunal está fechado para os pobres), de Ovídio, expressa a mesma ideia, dita de forma mais direta.
  10. Os Estados-Unidos somente no ano de 1964 reconheceram, por decisão da Suprema Corte, que todo cidadão processado criminalmente deve ter direito de receber assistência jurídica gratuita custeada pelo poder público, com nomeação de um defensor público, nos casos em que não disponha de condições econômicas para arcar com a contratação de um advogado. Todavia, a cultura jurídico-política norte-americana, marcada pelo liberalismo e pelo pragmatismo, resiste até o presente em reconhecer que a igualdade jurídica dos cidadãos estabelecida na Constituição de 1787 impõe aos poderes públicos a obrigação de prover a assistência de um advogado também para a defesa em Juízo dos interesses de natureza não criminal (civil, família, administrativo, etc) daquelas pessoas que não dispõe de recursos para arcar com as despesas de contratação de um profissional. Em artigo publicado no ano de 2004, o jurista norte-americano Earl Johnson Jr. (um dos companheiros de Mauro Cappelletti na edição das obras sobre o Acesso à Justiça, do Projeto Florença, mencionado na nota nº 4, supra, relata essa incrível resistência dos tribunais norte-americanos de reconhecer a assistência jurídica gratuita em causas cíveis como direito constitucional fundamental das pessoas pobres. O título do artigo é "Access to Justice: Will Gideon´s Trumpet Sound a New Melody? The Globalization of Constitutional Values and Its Implications for a Right to Equal Justice in Civil Cases" In: "Seattle Journal for Social Justice", Fall, 2003/Winter, 2004. Para uma visão mais completa do modelo norte-americano de assistência jurídica gratuita aos pobres, pode-se consultar o livro de nossa autoria: ALVES, Cleber Francisco (2006). Justiça para todos1 A Assistência Jurídica Gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro, Lumen Juris.
  11. Nos dias 4, 5 e 6 de março de 2008 reuniram-se, em Brasília, os dirigentes dos mais importantes órgãos do Poder Judiciário dos países latino-americanos e ibéricos, com a participação também de representações da Defensoria Pública, do Ministério Público e da Advocacia, integrantes da "XIV Cimeira Judicial Ibero-americana". Nesse encontro, os participantes deliberaram pela aprovação das chamadas "Regras de Brasília sobre o Acesso a Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade", cujo texto esta disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.cumbrejudicial.org/eversuite/GetDoc?DBName=dPortal&UniqueKeyValue=2383&ShowPath=false.
  12. Essa afirmação não exclui, naturalmente, a possibilidade de que sejam utilizados os mecanismos de acesso à justiça para assegurar a efetividade dos chamados direitos de segunda geração, de ordem econômica, social e cultural e de dimensão meta-individual.
  13. É consenso na doutrina que os Direitos Civis e Políticos constantes do Pacto Internacional, aprovado pela Assembleia da ONU em 1966, tem caráter auto-aplicável devendo ser assegurados de imediato pelos Estados para todos os cidadãos. Já com relação aos direitos econômicos, sociais e culturais, pelo princípio da progressividade, estabelecido no Art. 2º, § 1º, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, sua realização pode ser implementada de modo diferido, tendo em vista as limitações de recursos econômico-financeiros disponíveis, atendidas prioridades a serem definidas na agenda política nacional.
  14. A inspiração, no campo teórico, para inclusão dos serviços de assistência jurídica para os pobres dentre as ações do programa governamental denominado "War on Poverty" teria resultado de um artigo escrito pelos irmãos Edgar e John CAHN, publicado no "Yale Law Journal" em 1964, sob o título: "The War on Poverty – A civilian perspective". Esse trabalho teve influência decisiva na configuração do modelo norte-americano de Assistência Jurídica Gratuita aos pobres em questões cíveis. Para um estudo pormenorizado, da trajetória histórica do sistema norte-americano, recomenda-se o livro "Justice and Reform", escrito por Earl Johnson Jr. publicado originariamente em 1974, com uma segunda edição em 1978. Igualmente, pode-se consultar o endereço eletrônico: http://www.clasp.org/publications/legal_aid_history_2007.pdf para download do documento "Securing Equal Justice for All – A brief history of civil legal assistance in the United States" de autoria de Alan W. HOUSEMAN e Linda E. PERLE. Em língua portuguesa, pode-se consultar o livro de nossa autoria, mencionado na nota 10, supra.
  15. Como disse Carlos FILGUERA (1997), na América Latina a superação da pobreza passa pelo desenvolvimento dos direitos cidadãos, destacando ainda que "la filantropía no concede derechos, sino que es simplemente um beneficio para aquellos grupos a quienes va dirigida. Tampoco constituyen derechos legales las políticas asistencialistas que se orientan a corregir las condiciones que sufren los sectores llamados vulnerables, sin eliminar las causas estructurales de su vulnerabilidad y por lo tanto, las barreras que limitan el desarollo de sus derechos ciudadanos". (Cf. FILGUEIRA, Carlos. "Bienestar, ciudadanía y vulnerabilidad em Latinoamérica". In: PEREZ BALTODANO, Andrés (ed.). "Globalización, ciudadania y política social em América Latina: tensiones y contradicciones". Caracas, Editorial Nueva Sociedad., 1997, p. 145.)
  16. Eis o que disse o Dr. Ricardo Lorenzetti: "Naturalmente, que el movimiento de acceso puede tener um exceso. Yo voy a mencionar dos problemas que me parecen interesantes. El primero es vinculado a la excesiva judicialización. Porque cuando nosotros abrimos las puertas para que todo el mundo acceda, lo que suele pasar es que los otros poderes del Estado tardan bastante tiempo em tomar conciencia de esto. Y entonces, tenemos los jueces y juzgados saturados de expedientes; se demoran las causas y tenemos que comenzar a hablar de derecho fundamental a um tiempo razonable en el proceso. Y el acceso se vuelve una parodia. Porque, ¿de qué sirve garantizar el acceso a la Justicia que demora cuatro, cinco, diez años? Entoces, este es um tema importantísimo".
  17. Ver: PEREIRA, Antonio Celso Alves. "El acceso a la justicia y los Derechos Humanos en El Brasil". In: "Revista IIDH", Nº 20, San José de Costa Rica, IIDH, Julio-Diciembre de 1994, p. 23.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Cleber Francisco. Pobreza e direitos humanos. O papel da Defensoria Pública na luta para a erradicação da pobreza. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2526, 1 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14957. Acesso em: 23 abr. 2024.