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Atipicidade mista do contrato de utilização de unidade em centros comerciais e seus aspectos fundamentais

Atipicidade mista do contrato de utilização de unidade em centros comerciais e seus aspectos fundamentais

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Parecer sobre a natureza jurídica atípica do contrato de utilização de espaços comerciais em shopping centers.

CONSULTA

Consulta-me a BRASCAN - Empresa de "Shopping Centers", por intermédio de seu Diretor Jurídico Advogado Roberto Wilson Renault Pinto, sobre a natureza jurídica do contrato de utilização de unidade autônoma de "Shopping Centers", solicitando realce de seus aspectos fundamentais.

Feitas as pesquisas necessárias encontro-me apto à elaboração de Parecer, a respeito da solicitação.

Esclareço que esse parecer foi dado de setembro de 1989, estando atualizado em vários pontos.


P A R E C E R

1.- Estudando a respeito das obrigações, que se fazem presentes nos contratos, em geral, pretendo acentuar a necessidade de análise de cada figura contratual, pelas prestações que nela se consignam, para que se possa saber, de antemão, se o pacto se enquadra, ou não, em alguma das convenções reguladas pela legislação.

Isto porque, se tal não se der, estaremos no domínio dos contratos atípicos.

2.- Em seguida, procuro demonstrar, pelo conceito e pela natureza jurídica do contrato de locação, que a ele não se adapta a figura contratual sob exame.

3.- Sendo, portanto, de natureza atípica o contrato sob análise, faço ligeiro estudo sobre os contratos atípicos, promovendo sua classificação.

4.- Analiso, então, as várias posições doutrinárias dos juristas que, de meu conhecimento, trataram da matéria, para concluir que o contrato de utilização de unidade em centros comerciais é atípico misto, procurando justificar meu posicionamento.


II - Principais cláusulas do contrato de utilização de unidade em Centros Comerciais

5 - Os contratos de utilização de unidades em Centros Comerciais, que se realizam para ocupação de seus magazines, lojas, restaurantes e lanchonetes, são, geralmente, chamados, simplesmente, de contratos de locação.

6.- Essa espécie de contrato, principalmente para garantia do locatário, vinha sendo enquadrada, em princípio, embora precariamente, na Lei de Luvas (Decreto nº 24.150, de 20 de abril de 1934), com prazo de cinco anos, para que se possibilitasse sua renovação, por acordo das partes contratantes ou por decisão judicial, em ação renovatória.

Esclareça-se, neste passo, que o aludido Decreto foi revogado pela vigente lei de locação nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, que cuida dessa matéria dos artigos 51 a 57 (locação não residencial).

7.- O aluguel estipula-se, de modo muito particular, compondo-se de uma parte fixa, com valor mínimo, corrigido monetariamente, e de outra variável, à base de um percentual sobre o movimento de vendas, apurado pelos totais diários das negociações realizadas nas caixas registradoras, nos recibos, nos talões nas notas fiscais e nos livros de registro de vendas, tendo o locador livre acesso a toda essa documentação.

Por esse sistema de pagamento de aluguel, o locatário obriga-se a informar ao locador, por escrito, em certo prazo estabelecido no contrato, o volume das vendas realizadas no mês anterior, para que se possa proceder ao cálculo para apuração do valor devido, mensalmente.

8.- Consta, ainda, nessa espécie de contratação, freqüentemente, como obrigação do locatário, o pagamento das despesas lançadas, diretamente, sobre a unidade, tais energia elétrica, gaz e água, também impostos, que recaem sobre o "Shopping Center", despesas ordinárias de condomínio, proporcionalmente às áreas úteis ocupada, e, mais, a parte referente às sua contribuição para o Fundo de Promoções Coletivas, no montante de dez por cento sobre cada aluguel pago e a taxa de serviço de vigilância, em proporção aos metros lineares da fachada da área ocupada.

Esse aludido "Fundo" tem por objeto campanhas, em todos os meios de divulgação, visando ao desenvolvimento geral das vendas do "Shopping Center" tudo, com o intuito de incentivar as vendas, com variadas atividades, como as de publicidade, de policiamento e de decoração, afinal, rateadas.

Existem casos curiosos do locatário pagar mais um aluguel, ao final do ano, para custear despesas com 13º salário dos empregados e do pessoal da administração do edifício.

9.- Integra o contrato verdadeiro sistema normativo, tais a Escritura Declaratória de Normas Gerais Regedoras das Locações dos Salões de Uso Comercial e o Regulamento Interno do Condomínio do "Shopping Center". Assim, considera-se apto a ocasionar a rescisão do contrato o descumprimento de qualquer das obrigações nesses documentos estabelecidas.

Destaque-se que a aludida Escritura Declaratória figura como paradigma contratual, pois nela são fixadas normas a que aderem os contratantes locatários, nos chamados contratos de locação.

Assim, por exemplo, nessa escritura, menciona-se que, nos salões de uso comercial, só se admitem atividades caracterizadas pela adoção das melhores técnicas de comercialização, administração e funcionamento em centros comerciais internacionalmente conhecidos, nessa categoria de "Shopping Center" e, mais, que o locatário deve apresentar à administração do "shopping", para exame e aprovação todos os projetos referentes a instalações comerciais, letreiros luminosos e decoração, elaborados por profissional capaz e idôneo, com exigências e restrições, que nessa Escritura se estabelecem; e, ainda, que o locatário não poderá destinar sua atividade para certos fins, como, venda de artigos de segunda mão, mercadorias recuperadas por seguro, salvados de incêndio; e, também, que o locatário não deixe fechado seu estabelecimento por prazo igual ou superior a trinta dias; dentre outras restrições.

10.- Por sua vez, o locador obriga-se a manter, em perfeito estado, os serviços de limpeza e de conservação das partes comuns do "Shopping Center", zelando pelo bom funcionamento dos aparelhos de iluminação e de hidráulica dessa mesma área.


III - Obrigações nos contratos

11.- As obrigações, após sentidas em sua teoria geral, hão de integrar-se nos contratos, como sua verdadeira parte essencial, determinando sua natureza jurídica.

12.- É bom lembrar, neste passo, de que a obrigação é relação jurídica transitória, de natureza econômica, pela qual o devedor fica vinculado ao credor, devendo cumprir determinada prestação pessoal, positiva ou negativa, cujo inadimplemento enseja a este executar o patrimônio daquele, para satisfação de seu interesse.

Acrescento que, como relação jurídica, a obrigação implica um complexo de direitos e de deveres entre os interessados.

13.- Aliás, essa conceituação encontra raízes já no Direito Romano, quando Paulo (Digesto, Livro 44, título 7, lei 3) mostrou que sua "essência" não consiste em que se faça uma coisa corpórea ou uma servidão, mas em que se obrigue outrem a nos dar, fazer ou entregar alguma coisa ("Obligationum substancia non in eo consistit, ut aliquod corpus nostrum aut servitutem nostram faciant, sed ut alium nobis obstringant ad dandum aliquid, vel faciendum vel prestandum").

Completando essa conceituação assentam os jurisconsultos de Justiniano (Institutas do Imperador Justiniano, Livro III, título XIII, pr.) que obrigação é "o vínculo jurídico por necessidade do qual nos adstringimos a solver alguma coisa, segundo os direitos de nossa cidade (Obligatio est iuris vinculum, quo necessitate adstringimur alicuius solvendae rei, secundum nostrae civitatis iura)."

14.- As características conceituais da obrigação continuaram, praticamente, as mesmas, diferenciando-se a obrigação do Direito Moderno pelo conteúdo econômico da prestação. Se bem que, nessa época romana, já não se cogita de vínculo de natureza pessoal, como mais antigamente (na Lei das XII Tábuas, em 450 a.C.), mas de vinculação jurídica.

15.- Esse conceito de obrigação resta vivo em cada contrato, pois, sempre, neste haverá um credor no aguardo do cumprimento, pelo devedor, de uma prestação jurídica de dar, fazer, ou não fazer, alguma coisa, no interesse daquele, que tem, como garantia dessa execução, o patrimônio do mesmo devedor.

16.- Destaque-se, neste estágio, o princípio constante do artigo 1.092 de nosso Código Civil, segundo o qual nenhuma das partes, que contrata, poderá exigir o cumprimento obrigacional da outra, se não cumprir a sua obrigação.

17.- Sente-se, perfeitamente, essa relação jurídica obrigacional no conceito de contrato, que, primorosamente, por exemplo, se insere no artigo 1.321 do Código Civil italiano, de 1942, a entendê-lo como "o acordo de duas ou mais partes para constituir, regular ou extinguir, entre si, uma relação jurídica patrimonial."

18.- No momento em que se investigam as prestações, contratuais de dar, de fazer e de não fazer, é que a natureza jurídica das contratações surge clara e indene de erros.

Neste estágio, a título de exemplo, não se pode dizer que convenção, em que se mesclem obrigações de dar e de fazer, seja um contrato de compra e venda ou de locação de coisas, que implicam dar contra dar, com regramento próprio na legislação.

Isto, porque, ao se aplicarem as regras da compra e venda, e da locação de coisas, em que se vislumbram prestações de dar, o fazer destoa, sem regra específica a ser aplicada.

19.- Tudo evidenciarei, até o final deste trabalho, principalmente para contestar a natureza de locação, que vem sendo atribuída ao contrato ora estudado.


IV - Conceito e natureza típica do contrato de locação de coisa

20.- Dentre as obrigações, que se contraíam pelo consentimento obligationes consensu contractae, surgiu no Direito Romano, o contrato de locação chamado de locatio conductio, que implicava a contratação para a condução de gado e de escravos, em que figuravam, de um lado, o locador (locator) e de outro, o locatário (conductor). A locação (locatio) nasceu do sistema do ius gentium, das relações entre os habitantes livres de Roma e, particularmente, os estrangeiros.

21.- A par das espécies nascidas no Direito Romano, locatio operarum (locação de serviços), hoje disseminada, também, para o campo do Direito do Trabalho, e da locatio conductio operis (locação de obra ou empreitada), destaco a locatio rerum (locação de coisas), objeto de meu estudo.

22.- Segundo é de deduzir-se, pelos ensinamentos de Gaio (Institutas, Comentário III, 142 a 147), a locatio conductio, englobando as três espécies referidas, era um contrato consensual (Comentário III, 135), pelo qual uma das partes se obrigava a proporcionar à outra o uso e gozo de uma coisa, por determinado tempo, a prestar determinados serviços ou a executar uma obra, mediante retribuição em dinheiro.

23.- No Direito Romano, leciona Andrea Tabet (La Locazione-Conduzione, Ed. Giuffrèe, Milano, 1972, vol. XXV do Trattato di Diritto Civile e Commerciale, sob a direção de Antonio Cicu e Francesco Messineo, p. 159, n. 52), escudado em vários autores, "A locação era um dos quatro contratos consensuais típicos (compra e venda, mandato, sociedade e locação) e o mesmo deve considerar-se no direito vigente".

24.- De referir-se, desde logo, que, na locação de coisas, pode ocorrer a cessão do uso ou do uso e gozo de um objeto móvel ou imóvel; se móvel, deve ser, sempre, infungível, pois, se fungível a coisa, com a transmissão de sua posse, caracteriza-se outra figura contratual, a do mútuo, dado que o mutuário deve restituir ao mutuante outro objeto da mesma espécie, quantidade e qualidade.

25.- Conceituando a locação de coisas, assenta nosso legislador, no artigo 1.188 do Código Civil, que, nesse contrato, um de seus integrantes obriga-se a ceder ao outro, por tempo indeterminado, ou não, o uso ou o uso e o gozo de coisa infungível, mediante certa retribuição, chamada de aluguel.

Ante essa conceituação e percorrendo a escala da classificação dos contratos, dentre outros caracteres, percebemos, nitidamente, que a locação, gerando direitos meramente pessoais, se apresenta como contrato típico, pois se encontra regulamentada, in genere, a partir do artigo 1.188 do Código Civil. Especificamente, a locação predial urbana, é regulada pela Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991.

Essa regulamentação do contrato locatício, pelo Código Civil e por algumas leis extravagantes, leva a que ele se baseia em um modelo que deve ser seguido, com obrigação de dar contra dar, ou seja, cessão do uso ou do uso e gozo de determinado objeto, contra o pagamento de um aluguel.

26.- Portanto, já pela enumeração das principais cláusulas do chamado contrato de locação de unidade em "Shopping Center", no item II, "retro", vê-se, de pronto, que essa figura contratual é bem mais complexa do que um simples contrato típico de locação.

27.- A cognominada locação em "Shopping Center", como já dito, apresenta natureza atípica como será demonstrado adiante, contendo obrigação de fazer e de não fazer, que integram, essencialmente, a contratação. Assim, a obrigação dos contratantes de manterem sua atuação no nível do mesmo "shopping", a do locatário de fornecer elementos de sua contabilidade ao locador, para fixação de parte do aluguel, a do locatário de permitir o controle de suas vendas pelo locador, e tantas outras obrigações que mostram as nítidas diferenças das duas figuras contratuais.


V - Alguns aspectos peculiares dos contratos de utilização de unidade em Centros Comerciais

28.- Por ser oneroso o contrato sob estudo, em correspondência à cessão do uso ou do uso e da fruição da unidade autônoma, loja, por exemplo, pelo empreendedor ao utilizador, deve este pagar àquele uma determinada retribuição, o preço ou o aluguel.

29.- Já dissemos, eu e Rogério Lauria Tucci (Tratado da Locação Predial Urbana, Ed. Saraiva, São Paulo, 1988, 1ª ed., 3ª tiragem, 1º vol., pp. 151 e 152) que nada impede que o pagamento do aluguel se faça por outro objeto, que não dinheiro; entretanto, já àquela época, no âmbito da Lei do Inquilinato, nº 6.649, de 1979, em seu artigo 15, e, atualmente, nos artigos 17 e 18, da Lei nº 8.245, de 1991, está claríssimo que o pagamento é em dinheiro, tanto que permite, como regra generalizada às locações prediais urbanas, a correção monetária do aluguel.

30.- O aluguel, no contrato sob análise, embora pago em dinheiro, é, todavia, "sui generis", pois se apresenta de modo dúplice, com uma parte fixa e outra variável.

A parte fixa é corrigida monetariamente e a variável estabelece-se sobre determinado percentual do faturamento, sendo ambas previstas no contrato por cláusula de escala móvel e como débito de valor, para obviar a perda valorativa de nossa moeda.

31.- Essa cláusula possibilita o ajustamento automático dos valores contratados, de tal forma que, no caso em estudo, as duas partes do aluguel vão sendo corrigidas, sendo devida a fixa, quando o percentual da variável não ultrapassar seu valor.

32.- Conceituando a cláusula de escala móvel também conhecida como cláusula número índice, de escalonamento ou de revisão, entende-a Arnoldo Wald (A Cláusula de Escala Móvel, Ed. Nacional de Direito, Rio de Janeiro, 2ª ed., 1959, pp. 91 e 100) "como sendo aquela que estabelece uma revisão, pré-convencionada pelas partes, dos pagamentos que deverão ser feitos de acordo com as variações do preço de determinadas mercadorias ou serviço ou do índice geral do custo da vida ou dos salários".

Nada há, na lei brasileira, que invalide essa contratação, sendo lícita, portanto, quando não ofende as leis de ordem pública, os bons costumes e os princípios gerais de direito.

33.- Na cláusula de escala móvel está presente dívida de valor, que deve de distinguir-se de dívida em dinheiro.

Nesta, como tive oportunidade de demonstrar (Curso de Direito Civil - Teoria Geral das Obrigações, Ed. Revista dos Tribunais São Paulo, 4ª ed., 1987, pp. 132 e 133, atualmente, em 1999, na 7ª edição, p. 134), o débito representa-se pela moeda consignada em seu valor nominal, ou seja, pelo importe econômico nela consignado; como ressalta claro, nesse débito o objeto é o próprio dinheiro.

Naquela, a dívida é de valor, paga em dinheiro, que visa a medir o real valor do objeto da prestação.

No caso do contrato sob exame, dada sua natureza atípica, que procurarei provar, neste estudo, ajusta-se, perfeitamente, a contratação da referida cláusula com fundamento no princípio da autonomia da vontade.

35.- Sim, porque a correção monetária é, no Direito, imperativo de justiça, para que não se negue o princípio da eqüidade que deve nortear todas as relações humanas.

Estando nosso Direito Civil marcado pela influência do nominalismo, que apresenta o interesse obrigacional pelo valor nominado, retratado no título, vem cedendo à correção monetária, em busca, cada vez mais, de uma justiça social, que se vai implantando por legislação esparsa (meu Curso cit., pp. 234 e 235).

36.- Por isso que correção monetária, no ensinamento de Rubens Limongi França (Manual de Direito Civil, Doutrina Geral dos Direitos Obrigacionais, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1ª ed., 1969, vol. 4º, tomo I, p. 161), "é, em suma, a atualização do valor real da moeda, tendo-se em vista a data do entabulamento do vínculo e a execução da prestação".

37.- Destaque-se, neste passo, como decidiu a Segunda Câmara do Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, sendo Relator o Juiz Moreno Gonzalez (Revista dos Tribunais, vol. 467, p. 148). que "O direito não veda que em contrato de locação se fixe o aluguel em percentagem sobre os resultados do negócio instalado na loja arrendada, nem que se estabeleça um mínimo a ser corrigido anualmente, conforme os índices fornecidos pelo Conselho Nacional de Economia". Esse sistema, "adequado aos empreendimentos 'shopping' não constitui na verdade uma sociedade de fato entre o locador e o locatário, visando, antes, a desenvolver o espírito de cooperação e solidariedade que deve propiciar a harmonia e êxito do empreendimento, no interesse comum das partes. De um lado, o locatário fica a coberto de prejuízos pelo estabelecimento de um aluguel alto, mensalmente, principalmente nos meses de menor movimento comercial e, de outro lado, o locador aufere a compensação nos meses de maior movimento, em que os resultados são mais promissores."

No mesmo sentido, outros dois julgados (Revista dos Tribunais, vols. e pp. 510/209 e 398/249).

38.- Por outro lado, é certo que essa dúplice contratação de aluguel não é peculiar e específica do chamado contrato de locação em "Shopping Center"; todavia, destoando ela da forma corretiva dos alugueis contratados nos moldes da legislação inquilinária no tocante a sua parte variável, apresenta-se com muita originalidade.

Realmente, o valor desse aluguel variável fixa-se, em primeira plana, de acordo com as informações que devem ser prestadas pelo utilizador, sobre seu faturamento, ao empreendedor, por meio de planilhas mensais; em segunda, por providências deste, fiscalizando, diretamente, aquele, quando o utilizador não lhe fornecer elementos seguros e indispensáveis para o aludido cálculo de valor, ainda que por exames de escrituração e por controle, à "boca do caixa".

39.- Referindo-se a essa cláusula, que autoriza o empreendedor em Shopping Center a fiscalizar o faturamento bruto do utilizador, "mediante sua averiguação nos livros e registros que contenham escrituração contábil balanços, inventário e estoque de mercadorias, registro de vendas à vista, a prazo e a crédito, bem como o movimento diário de todas as operações comerciais, além de outros registros que fica obrigado a manter", considerou-a uma das "mais excêntricas Orlando Gomes (Traços do Perfil Jurídico de um "Shopping Center", In "Shopping Centers" - Aspectos Jurídicos Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1984, pp. 108¸ e 109, nº 17). Conclui, ainda, esse saudoso Professor baiano que esse posicionamento contratual "Não deixa ... de levar o shopping center a participar da alea do faturamento que entra na composição do impropriamente denominado aluguel, certo é que, quanto maior for a soma das vendas realizadas no mês, maior será a renda, ou, melhor, a receita‚ do shopping center. Daí o interesse deste em fiscalizar‚ a vendagem das lojas, juridicamente estabelecido no direito de examinar os livros e documentos que a espelham. Esse controle‚ pressupõe uma espécie de colaboração‚ entre o concedente e o lojista, inadmissível em um lídimo contrato de locação."

40.- Nossos Tribunais têm julgado pela validade dessa cláusula, desde que não se cometam abusos, em razão da liberdade dessa fiscalização que chega ao ponto de exercitar-se, na "boca do caixa", como se diz comumente.

41.- Ressalte-se, nesse sentido, venerando acórdão da Quarta Câmara do Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, sendo Relator o Juiz Cunha de Abreu (Apelação nº 200.239/4, da Comarca de São Paulo), em que, por votação unânime, se decidiu que, "instituído pelas partes o sistema de aluguel flutuante, condicionado ao volume de vendas, não tem a locadora outro modo eficaz de aferir a sua renda a não ser auditando o faturamento de suas locatárias quais a apelante, precioso gizar que qualquer outro sistema a exporia, em tese‚ a prejuízos derivados de sub ou não faturamento efetivo, faturamento em outros estabelecimentos das locatárias ou várias outras fórmulas esconsas melhormente conhecidas daquelas que as praticam".

42.- Do mesmo modo, a Primeira Câmara do Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, sendo Relator o Juiz Ruiter Oliva (Apelação nº 196.685/0, da Comarca de São Paulo, "in" Boletim da AASP nº 1.531, pp. 91 e 92, de 20.04.88), decidiu, por unanimidade, que não é abusiva a cláusula que autoriza essa fiscalização direta à atuação comercial do utilizador, assentando que "A averiguação do faturamento do locatário para determinação da base de cálculo do aluguel, cabe praticada, desde que prevista contratualmente, não só pela verificação de livros, registros, balanços, estoque e inventário de mercadorias, como também pela fiscalização dos próprios atos de comércio, na atualidade de seu exercício, especialmente para assegurar que todas as vendas sejam efetivamente registradas".

Destaque-se, ainda, trecho desse julgamento, segundo o qual, "desde que, dentre os sistemas de controle, ficou assentado, com adesão da locatária, o registro de vendas imediato, na presença dos próprios clientes, não se vislumbra como poderiam agir os locadores, para fiscalização de sua correta execução e não com o ingresso de seus prepostos, no interior das lojas, durante o expediente comercial, já que incompatível eventual conferência 'a posteriori' e, ademais, patentemente ineficaz uma sugerida auditoria programada, adrede ajustada entre os interessados. É certo que não se poderia admitir eventual embaraço à própria atividade-fim, interessante não só à locatária, como também aos locadores, quando o procedimento dos prepostos fosse, eventualmente, ostensivo ou perturbador, de forma a criar constrangimentos para a clientela do estabelecimento; mas, nada há que faça ver a presença efetiva de tais inconvenientes apenas temidos e sugeridos, quando, ao revés, se informa que a atuação dos auditores sempre se faz de forma discreta e adequada."

43.- Também a Segunda Câmara do Segundo Tribunal de Alçada Civil, por votação unânime, sendo Relator o Juiz Walter Moraes (Apelação nº 187.519/6, da Comarca de São Paulo), entendeu que a cláusula "que dá ao senhorio o direito de fiscalizar o movimento comercial do inquilino segundo o uso em locações de shopping centers, __ se bem contenha expressões que possam sugerir um poder discricionário de ingresso na escrita e caixa do locatário, na verdade não o tem, como assinalou em 1º grau o Magistrado. A cláusula diz, de fato, 'livre acesso', 'a qualquer tempo' etc., mas também resguarda o inquilino de turbações na ordem e no desempenho de seus serviços e acentuadamente de interferência nos seus negócios e modo de comerciar. É, destarte, entendimento razoável o do M.M. Juiz, o de que o inquilino queira indicar o lugar onde está a sua contabilidade e estabelecer as horas e oportunidades mais apropriadas para o exame da caixa."

44.- Como fácil de perceber, nada impede a clausulação dúplice dos enfocados valores de aluguel, com a possibilidade de fiscalização do rendimento do utilizador pelo empreendedor, nos limites, é claro, do uso normal de seu direito.

Essa fiscalização, para não configurar abuso, deve conter-se nos lindes da discrição, do comedimento e da urbanidade, principalmente quando exercitada no interior do estabelecimento de vendas do utilizador, para que não exista óbice à realização negocial deste.

É perfeitamente possível conviver essa forma de pesquisa com o exercício do comércio, desde que não ocorram os apontados constrangimentos.

45.- Por esse modo de atuação, existe verdadeira participação dos investidores, em "shopping centers", nos lucros dos utilizadores, que exercem seu comércio nesses locais.

b) Fundo de empresa em "Shopping Centers"

46.- Há muito que se vem ampliando o conceito de fundo de comércio, para fundo de empresa.

Realmente, a expressão "fundo de comércio" não é, mais, suficiente para caracterizar um complexo de bens materiais e imateriais (corpóreos e incorpóreos), integrantes, tão somente, do estabelecimento comercial.

Vê-se isso, nitidamente, pela evolução do conceito de fundo de comércio objetivado no Decreto nº 24.150, de 1934 (hoje , revogado).

47.- Realmente, pois a Jurisprudência promoveu essa ampliação conceitual de fundo de comércio para possibilitar a abrangência de um maior número de empresas beneficiárias dessa então chamada Lei de Luvas, estendendo seus efeitos às de atividade tipicamente civil.

48.- Ensina, em complemento, Arnoldo Wald (Obrigações e Contratos, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1983, 6ª ed. p. 277) que "a jurisprudência estendeu o conceito (de fundo de comércio e indústria) a situações assemelhadas. Assim, escolas, hospitais, clínicas, hotéis, pensões, cartórios de notas, oficinas mecânicas, salões de cabeleireiros que vendam produtos de perfumaria, empresas telefônicas; alguns depósitos para guarda de estoques (embora neles não haja fundo de comércio); estabelecimentos e garagens de aluguel."

Comentando, também, essa ampliação jurisprudencial, admite Waldírio Bulgarelli (A Teoria Jurídica da Empresa, Ed. Rumo Gráfica, São Paulo, 1984, pp. 228 e 230) "a influência da doutrina da empresa, forcejando a dos atos de comércio e ainda os exercícios de técnica para enquadrar no conceito de comerciante a atividade de prestação de serviços. A propósito, o Dec. nº 24.150, de 1934, refere-se apenas a 'comércio e indústria' e é curioso que podendo o julgador aplicar, nesse caso, a eqüidade, como expressamente o permite o mesmo Decreto, preferiu recorrer a uma noção mais elástica de ato de comércio".

49.- Nossos Tribunais vinham, assim, admitindo, como entidades enquadradas na proteção então da Lei de Luvas, empresas civis, aptas a receberem o benefício de sua renovação contratual, tais salão de barbeiro ou barbearia e instituto de beleza, oficinas mecânicas, empresas de conservação e limpeza de prédios, clínicas ou consultórios médicos, parques de diversões, estabelecimentos de ensino ou de idiomas, garagens, estacionamentos, sociedade de economia mista (Caixa Econômica Estadual), e casa lotérica, como tive oportunidade de evidenciar (Ação Renovatória requerida por empresa civil, in Repertório IOB de Jurisprudência São Paulo, junho de 1987, nº. 5/87, 3/218, pp. 57 a 59), com farta citação de julgados. O mesmo espírito permanece, atualmente, em face da lei de locação predial vigente.

50.- Assim como as comerciais, essas empresas civis foram consideradas como portadoras de verdadeiro fundo de comércio.

Aliás, a esse respeito é oportuna a ponderação do Juiz Carvalho Pinto (Julgados dos Tribunais de Alçada Civil de São Paulo, Ed. Lex, São Paulo, 1981, vol. 65, p. 239), em voto vencido, quando, reconhecendo que a emissora de rádio presta serviços, com fito de lucro, "configurando autêntica empresa", declara: "Verifica-se, às claras, a tendência para a substituição do conceito de fundo de comércio pelo fundo de empresa. Identifica-se a prestação de serviços com o fundo de indústria. ‘A prestação de serviços é uma indústria à semelhança a do turismo que é indústria e é prestação de serviços. Que faltaria ao prestador de serviço para ter um fundo de indústria? ... ‘A única diferença é que sua mercadoria é o trabalho, imponderável e aleatório. Mas só é imponderável e aleatório antes da prestação, não depois. Depois, ela adere à coisa, sendo dela inseparável. Impossível devolver-se a mercadoria por não corresponder ao pedido’ (cf. Aramy Dornelles da Luz, Prática de Locação Comercial e Ação Renovatória, pág. 47)."

51.- Destaque-se, mais, a propósito, o julgamento do Segundo Grupo da Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sendo Relator ad hoc Roque Batista (Revista de Jurisprudência do TJRJ, vol. 40, p. 191), que, de modo expressivo, reconheceu, nesse mesmo diapasão, que "A sociedade civil de fins econômicos, criando valores negociáveis, forma um fundo de comércio que está sob a proteção da Lei de Luvas". Reconhecendo, desse modo, legitimação ativa do Touring Clube do Brasil à ação renovatória, esse venerando acórdão esclareceu que essa entidade civil tem "um nome, mercadorias, instalações móveis e utensílios, insígnia e freguesia e realiza habitualmente lucros como decorrência necessária e evidente para o seu crescimento e desenvolvimento".

52.- Acrescente-se, nesta feita, julgado mais recente, em 1987, da Quinta Câmara do Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, sendo Relator o Juiz Sebastião Amorim (Revista dos Tribunais, vol. 624, p, 153), em que, embora não se cogite do fundo de empresa, se admite que, relativamente à empresa de serviços, de radiodifusão, existe "verdadeiro fundo de comércio ainda que atípico, caracterizando-se o objetivo de sua atividade implicitamente como comercial, pois visa à obtenção de lucro, cobrando pela propaganda que leva ao ar". Conforme, aliás, relato do mesmo Juiz (Revista dos Tribunais, vol. 614, p. 150).

53.- De considerar-se, nesta oportunidade, para perfeito entendimento dessa posição jurisprudencial, o conceito de empresa que se apresenta como uma atividade exercida pelo empresário.

54.- O projeto de novo Código Civil nº 634-B/75, desde quando aprovado pela Câmara dos Deputados, em 1984 e em seu artigo 969, conceituava o empresário, apontando-o como aquele que "exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. O parágrafo único desse dispositivo já declarava não empresário o que exerce "profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa". A matéria tem idêntica redação, respectivamente, no artigo 965 e parágrafo único, do texto do projeto 118, no Senado, em sua redação final de 1997.

Antes desse diploma pré-legislativo, já a Lei nº 4.137, de 1º de setembro de 1962, que regula a repressão ao abuso do poder econômico, conceituou, objetivamente a empresa, para enquadramento dos faltosos, no artigo 6º, como "toda organização de natureza civil ou mercantil destinada à exploração por pessoa física ou jurídica de qualquer atividade com fins lucrativos".

55.- Aduza-se a essa conceituação a do artigo 2.082 do Código Civil italiano, que considera a empresa uma atividade economicamente organizada para a produção e circulação de bens ou de serviços.

56.- A empresa é, portanto, o exercício de atividade, economicamente organizada, para a produção e circulação de bens ou de serviços, pelo empresário, pessoa física ou jurídica, civil ou comercial. Assim, a empresa exerce atividade produtiva, valendo-se do trabalho de empregados, sob a condução do empresário.

57.- Na realização dessa atividade, a empresa vai acumulando bens materiais (corpóreos) e imateriais (incorpóreos), de seu patrimônio, de seu fundo empresarial, que necessita de uma proteção segura, principalmente quando se desenvolve em imóvel alheio. Daí, o surgimento do Decreto nº 24.150/34, revogado pela Lei nº 8.245/91, que cuidaram de garantir esse fundo acumulado pela empresa locatária, que se acrescenta ao valor do imóvel locado, em benefício do proprietário.

58.- Na ação renovatória, tendo-se em conta esse fundo empresarial, mister se torna que se cogite da locatária como uma empresa produtora de bens, ainda que estes se incorporem a seu próprio patrimônio, sem distribuição de lucros.

59.- Estudando, especificamente, o assunto em pauta, sobre fundo de comércio, acentua Carlos Pestana de Aguiar (O Fundo de Comércio e os "Shopping Centers", "in" "Shopping Centers" - Aspectos Jurídicos, cit., p. 190) que o moderno alcance empresarial "conduz o fundo de comércio para além dos estreitos limites das atividades mercantis, abrangendo outras com fins lucrativos", quais sejam, "estabelecimentos de ensino, casas de saúde, cinemas, teatros, casas de jogos lícitos, de diversões, cinefotos, hotéis, pensões, oficinas mecânicas, salões de barbeiros e cabeleireiros, empresas telefônicas, depósitos destinados à guarda de estaque, academias de dança, ginástica, judô e similares, laboratórios de análises clínicas, alfaiatarias, tinturarias, estabelecimentos de crédito, poupança, seguros, administração de bens, agências de turismo, publicidade, venda de passagens, etc." E continua: "Partindo-se da idéia empresarial do fundo de comércio e verificando-se que algumas das atividades acima podem instalar-se se em um 'shopping center'", conclui que "toda e qualquer atividade empresarial instalada em espaço ou lojas do 'shopping' ostentará necessariamente um fundo de comércio".

60.- Tenha-se presente, assim, que o fundo de empresa existe nos "shopping centers" em relação a todas as utilizadoras, sejam empresas comerciais ou civis.

61.- Todavia, o que caracteriza, também, situação peculiar do contrato, sob enfoque, é que existe, ainda, um fundo de empresa dos "shopping centers", empreendedores.

Realmente, os investidores desses centros comerciais propiciam, dentro de certos padrões de conforto, de segurança, de possibilidade de estacionar e de possuir, reunidas, lojas das mais diversificadas espécies, uma unidade, uma concentração de estabelecimentos, o que, por si, acrescenta valor local de verdadeiro fundo de empresa desses mesmos empreendedores.

62.- Ao iniciarem o empreendimento, os investidores escolhem, cuidadosamente, o local, as chamadas "lojas-âncora", em geral grandes estabelecimentos comerciais, que irão compor com as outras unidades, conhecidas como "magnéticas" ou "satélites", é o futuro "shopping"; selecionam e distribuem os vários setores e ramos de negócio ("tenant mix"); realizam campanhas publicitárias, etc.

Quando os grandes centros comerciais surgem, eles já são, no mais das vezes, sucesso e se mostram como expectativa de ponto de atração. Daí, trazerem, ao nascer, valor econômico considerável, propiciando ao futuro utilizador concreta esperança de lucros. Quando o lojista se instala, ele já tem, como eventuais clientes, os freqüentadores do "shopping".

63.- Em razão desse fundo de empresa, formado pelos empreendedores, têm os "shopping centers" feito incluir, nos chamados contratos de locação de suas unidades, cláusula denominada "res sperata" ("coisa esperada"), que consiste no pagamento, pela utilizadora, além do aluguel, de uma soma em dinheiro, como retribuição das vantagens de participação no centro comercial, dele usufruindo e participando de sua estrutura, enquanto durar seu contrato. Desse modo, com esse pagamento, a utilizadora terá direito a fruir do aludido fundo de empresa do empreendedor, composto de seu patrimônio imaterial.

64.- Como resta evidente, a cláusula "res sperata" difere bastante das constantes dos artigos 1.118 a 1.121 do Código Civil, de caráter aleatório ou de risco.

65.- É necessário, neste passo, que tenhamos uma rápida visão dessas cláusulas aleatórias, para, por método comparativo, estendermos a natureza da cláusula "res sperata".

66.- Às vezes, o valor da prestação jurídica resta indeterminado, momentaneamente, como condição do negócio, tal nos contratos já conhecidos no Direito Romano: "emptio spei" (venda de esperança) e "emptio rei speratae" (venda de coisa esperada). Na primeira categoria, enquadra-se, por exemplo, a venda de uma safra de café, o resultado de uma pesca, quer venham, quer não, a existir. Assim, por este tipo de contratação as partes sujeitam-se a risco total: o vendedor de receber o preço, sem estar determinada, imediatamente, a coisa vendida, e o comprador de, pagando esse preço, correr o risco de nada receber. A safra e o produto da pesca podem ser altamente compensadores, como não, como podem inexistir. Esse risco total está previsto no artigo 1.118 do nosso Código Civil. Este dispositivo legal refere-se, expressamente, ao contrato aleatório de venda de coisas futuras, em que o adquirente deve assumir o risco de que essas coisas não venham a existir, recebendo o alienante, em qualquer caso, a totalidade do preço avençado, desde que não tenha concorrido com culpa.

A venda de coisa esperada, contudo, "emptio rei speratae", não se sujeita a inexistência do bem vendido. É preciso que este, pelo menos, venha a existir, ainda que parcialmente, para que se aperfeiçõe o contrato, tendo o vendedor, nesse caso, direito ao recebimento da totalidade do preço, a não ser que tenha existido culpa de sua parte. O artigo 1.119 de nosso Código Civil trata da matéria, alertando que o adquirente assume o risco de receber o objeto futuro na quantidade que for. O que se vê, aqui, é que, pelo menos, deve existir a coisa, no futuro, que for objeto do contrato. O que se pode admitir, ainda, é que o adquirente, na contratação, fixe o limite de existência do objeto, fazendo constar, por exemplo, no contrato de aquisição de uma colheita, que ela não seja inferior a trinta por cento da que existiu anteriormente.

67.- A seu turno, os artigos 1.120 e 1.121 de nosso Código Civil referem-se à venda de coisas existentes, mas expostas a risco. Assim, se uma das partes vende coisa, que não se encontra em seu poder, assumindo o comprador o risco da existência ou não, total ou parcial, do objeto vendido, no dia do contrato, mesmo inexistindo a coisa, será devido ao alienante todo o preço avençado, desde que não exista dolo por parte deste.

68.- A diferença fundamental entre essas situações do Código Civil e a da cláusula "res sperata" é que aquelas atinem a coisas futuras corpóreas, que podem advir, ou não, de bens materiais; esta, por outro lado, embora surta de bens imateriais, componentes do fundo de empresa do "Shopping Center", é coisa esperada e corpórea, pois o risco, na obtenção das vantagens concretas do exercício negocial, nesse ambiente, é quase nenhum, dado o sólido esquema programado.

69.- A coisa esperada, portanto, é o lucro, a vantagem que advirá do exercício da atividade negocial, na área do "shopping", e que é quase certa, dado que a utilizadora já ingressa na sua atividade com um esquema arquitetado pelos empreendedores e em somatório de outros fundos empresariais concentrados.

70.- A retribuição paga pela utilizadora, em razão da "res sperata", no momento da instalação do "shopping" ou da ocupação da unidade-loja, existe para compensar essa vantagem de não ter a utilizadora de formar, com suas próprias forças, sua clientela, seu fundo de empresa.

71.- Não me parece que a "res sperata" seja a construção do centro comercial, ou a formação do seu fundo de empresa, tanto que a utilizadora, mesmo durante a construção do "shopping", não espera o empreendimento ou o fundo deste, como coisa a ser adquirida, mas, de futuro, espera, sim, auferir lucros, em face de toda a promoção levada a efeito.

Tanto é verdade que essa cláusula continua a existir, do mesmo modo, estando já o "shopping" em funcionamento.

72.- Destaque-se, nessa sede de argumentos, que a complexidade, que dá sustentáculo ao centro comercial, é a existência de três espécies de fundo de empresa: a) o criado pelos empreendedores e que passa a incorporar-se no patrimônio imaterial da empresa "Shopping Center"; b) o trazido pelas empresas-âncora, que ocupam espaços avantajados do centro comercial, com nomes consagrados no comércio; c) e o das empresas-satélites, ou menores, considerados coletivamente, em somatório, ou individualmente.

73.- O sucesso do empreendimento resulta dessa força total, unidade sob uma administração forte e competente, fiscalizada e subsidiada por todos os interessados.

74.- Por tudo quanto dito, não há que sequer pensar em venda e aquisição de fundo de empresa, pelo empreendedor ao utilizador, quando este compensa os empreendedores e investidores por esse serviço de reunião de forças de que, certamente, se esperará lucro.

Dito pagamento nada tem a ver com o aluguel, não se caracterizando, portanto, como "luvas" (espécie de reembolso compensatório).

75.- Finalmente, ressalte-se que, ante tal trabalho de montagem do centro comercial, a beneficiar o utilizador, se este não compensasse tal benefício, que aufere, automaticamente, com seu ingresso na vida do "Shopping Center", haveria verdadeiro locupletamento sem causa, o que repele ao Direito.

c) "Normas Gerais" regedoras do contrato em causa

76.- No sentido de unificar e de facilitar as contratações das unidades do centro comercial, o empreendedor elabora, por escritura pública, "Normas Gerais" complementares dos chamados contratos de locação, que passam a integrá-los, por disposição expressa destes.

77.- Como bem explica Rubens Requião (Considerações Jurídicas sobre os Centros Comerciais - "Shopping Centers" - no Brasil, "in" "Shopping Centers" cit., p. 146, e "in" Revista dos Tribunais, vol. 571, p. 27), "essas Normas Gerais nada mais são do que desdobramentos do contrato de locação, que é, no caso, um instrumento lacônico, de poucas cláusulas, naturalmente contendo as essenciais. Com o instrumento principal de locação, integrando-o, essas normas gerais compõem um contrato bilateral e sinalagmático entre o empreendedor e o comerciante. Mas como o contrato de locação e suas 'Normas Gerais' constituem um contrato-tipo, um contrato-standard, igual para todas as partes, com suas cláusulas e condição impressas, a não ser aquelas que identificam e qualificam o personalismo do contrato, alguns juristas nele têm visto um contrato de adesão".

78.- No contrato de adesão, há que ressaltar-se, primeiramente, que as partes contratantes não discutem o conteúdo negocial, posto que uma organiza suas cláusulas e condição e a outra, sem qualquer possibilidade de alterá-las, concorda, aderindo a elas.

79.- Conceituando esta espécie contratual, Orlando Gomes (Contrato de Adesão, Condições Gerais dos Contratos, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1982, p. 3) entende-a como "o negócio jurídico no qual a participação de um dos sujeitos sucede pela aceitação em bloco de uma série de cláusulas formuladas antecipadamente, de modo geral e abstrato, pela outra parte, para constituir o conteúdo normativo e obrigacional de futuras relações concretas".

80.- Acontece, assim, que a Administração Pública, as concessionárias de serviços públicos, outras, geralmente grandes, empresas, ou, ainda, grupos econômicos, por estarem em posição de oferecimento constante ao público de seus serviços e bens, programam um determinado tipo de contrato, que serve para todos os seus clientes, igualando, desse modo, uma forma de relacionamento. Não podemos negar que, embora oferecendo grave perigo, esse meio de contratação é, extremamente, útil, e, às vezes, até, necessário, pois, em certos casos, seria, sumamente, impossível exigir de uma grande empresa e contratação individual, com cada um de seus incontáveis clientes.

81.- Convenhamos que esse contrato padronizado deve ter seu conteúdo gravado em texto de lei ou, pelo menos, refletir o entendimento coletivo, e racional, do lugar em que surgir, apresentando prudente dose de comutatividade, para que se evite a superioridade escravizante de um sobre o outro que contrata.

82.- Após evidenciar que a expressão "contrato de adesão" tem o "sentido limitado de aceitação inevitável de condições uniformes unilateralmente formuladas", e de lamentar a omissão de nosso sistema legislativo, quanto à regulamentação desse contrato, menciona o mesmo Professor (Contrato de Adesão, cit., pp. 5, 149 a 159), como principais dessa categoria, na área do Direito Privado, entre nós, o contrato de transportes, o de seguros, o de fornecimento, o de crédito e financiamentos, o de trabalho e a promessa de venda.

83.- Com a demonstração dessa unilateralidade de formulação das normas contratuais, poderia parecer que o contrato de adesão se ressente da manifestação bilateral de vontades, pois só uma das partes estaria a exteriorizá-la; entretanto, tal argumento não pode vingar, dado que o contratante, que adere, está, também, manifestando, expressa ou tacitamente, seu consentimento às cláusulas e condições preestabelecidas.

84.- O que ocorre, isto sim, é o imenso perigo de que se imponham à coletividade, por grupos fortes, dominantes do mercado, negócios altamente desvantajosos.

85.- Contudo, para evitar-se que as regras contratuais impostas cristalizem-se em contratos leoninos, é preciso que o Estado intervenha, antes, regulamentando, ainda que genericamente, os contratos de adesão; depois, especificamente, cada um deles que for surgindo, com regulamentação própria; depois, ainda, fiscalizando, com rigor extremo, o desenvolvimento judiciário de cada um deles, devendo, assim, realçar-se, o juiz como figura tutelar da liberdade contratual, e, mais ainda, como esta se vê quase nula diante do contrato de adesão, de proteger o aderente contra os abusos que se possam perpetrar no estabelecimento dessas regras impostas.

86.- Entendendo pela validade dessas "Normas Gerais Complementares dos Contratos de Locação", declara Rubens Requião (obs. cits., respectivamente, p. 147·e p. 28) que, no caso em foco, o comerciante tem a alternativa ou não de realizar o negócio de locação com o ‘centro comercial’ ou realizar com outro locador ou em outro lugar, donde conclui: "inexista, assim, na espécie, o contrato inevitável, de adesão. Existe, às vezes, massa de contratos iguais impressos por conveniência prática das partes: é o contrato-tipo, ou o contrato-standard", a que se referiu esse jurista, antes. Todavia, o contrato de adesão distingue-se do contrato-tipo.

Prossegue o mesmo Professor, a demonstrar que, no caso presente, não existem atividades ou serviços de monopólio estatal ou privado, cuidando-se de contrato normativo em que o contratante tem condições de procurar outras opções o que é impossível no contrato de adesão. A acrescenta: "Todas as partes", no contrato normativo, "se mantém atentas a todas as obrigações no momento da contratação, pois dele decorre não apenas a ocupação de um espaço, mas toda a estruturação de um negócio organizado e complexo. Ambas as partes - locador e locatário - são, naturalmente, experimentados negociantes, que sabem o que desejam e são juízes de seus próprios interesses".

87.- Ressalte-se, neste passo, julgado da Sexta Câmara do Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, sendo Relator o Juiz Macedo Cerqueira ("in" Boletim da Associação dos Advogados de São Paulo, de 19.08.87, nº 1.496, p. 195), em que se reconheceu plena validade às Normas Gerais ou Declaratórias Regedoras das Locação em "Shopping Centers", admitindo: "Validade de cláusula de Contrato Geral que prevê o pagamento em dobro do aluguel do mês de dezembro".

d) Associação dos Lojistas e Fundo de Promoções Coletivas

88.- O utilizador é obrigado, por cláusula específica, no contrato em pauta, a contribuir ao Fundo de Promoções Coletivas, para ensejar a realização de campanhas promocionais do "Shopping Center".

89.- Esse Fundo é administrado pela Associação dos Lojistas, de que deve fazer parte o utilizador, enquanto durar seu contrato de utilização de sua unidade.

90.- O valor dessa contribuição do utilizador é de, geralmente, dez por cento sobre o aluguei, que paga.

Por outro lado, o empreendedor deverá, também, contribuir com a manutenção desse Fundo, geralmente, com importância proporcional à contribuição dos utilizadores.

91.- Resta evidente que a referida Associação, administrando esse Fundo, deve preocupar-se em manter sólida propaganda e promoções, que, realmente, solidifiquem o prestígio do Centro Comercial e aumente o desejo de sua freqüência pelos seus clientes.

92.- Esclarece Rubens Requião (Considerações Jurídicas, cit., pp. 148 e 149 e RT, cit., p. 29) que "essa Associação, de natureza civil, com personalidade jurídica, pois será registrada no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, não é o 'centro comercial', mas um elemento da organização."

E acrescenta: "A origem do 'Fundo de Promoções Coletivas' não é resultante do contrato de locação do 'centro', mas constitui uma criação da 'Associação dos Lojistas', a quem compete angariar suas contribuições e administrá-lo, em proveito coletivo dos lojistas. Daí por que também, o empreendedor deve para ele contribuir, pois as atividades decorrentes da propaganda e das promoções, vão se refletir no prestígio do nome do 'centro comercial', aumentando sua produção, da qual participa o locador".

O mesmo jurista conclui pela "nenhuma ilegalidade na sua criação e manutenção, sendo certo que os propósitos dessa Associação "são lícitos" e o Fundo "se integra no sistema organizacional do centro comercial", citando, em apoio de seu entendimento, vários atos decisórios de nossos Tribunais.

93.- Realmente, o Fundo, como demonstrado, é benéfico para os empreendedores e aos utilizadores dos "Shopping Centers", aumentando seus ganhos e promovendo, cada vez mais, o nome dos referidos Centros.

94.- Como se cuida de contratação, atípica nada que exista em lei especial pode proibir tal atividade, que, decorrendo da livre manifestação da vontade dos contratantes, não afronta norma de ordem pública, nem os bons costumes, nem os princípios gerais de direito.

e) Proibição da cessão do contrato sob estudo

95.- Outra cláusula que entendo lícita é a que proíbe a cessão onerosa ou gratuita do contrato em pauta, pois, quem integra o sistema de um "Shopping Center", adere a uma prévia programação, em que são escolhidas as atividades das empresas integrantes, também, por seu nível e por sua qualidade.

96.- Admitindo, também, a validade dessa cláusula, explica Rubens Requião ("in" obras cits., pp. 151 e 30/31, respectivamente) que vem, convictamente, sustentando que "o perfil do 'centro comercial', com seus elementos, é um resultado de moderna organização tecnológica, no ambiente comercial. Por isso, os conceitos jurídicos e as normas legais tradicionais não previam o seu desdobramento. Daí por que devem os seus problemas ser examinados sob novas luzes e concepções mais modernas".

97.- Por seu turno, Alfredo Buzaid (Da Ação Renovatória, Ed. Saraiva, São Paulo, 1988, 3ª ed., vol. II, apêndice I, p. 668), após evidenciar profunda diferença entre cessão da locação pura e simples e cessão de locação de unidade de centro comercial, afirma que cada qual "tem regime jurídico, próprio, de que resultam importantes conseqüências. Enquanto é ineficaz, na locação comercial comum, a cláusula que proíbe a alienação do contrato de locação juntamente com o fundo de comércio, consoante se deduz do art. 30 do Decreto nº 24.150, atualmente assimilado pela lei inquilinária,"é, ao contrário, válida a cláusula limitativa, que a subordina ao consentimento do proprietário de centro comercial. Da experiência legislativa, doutrinária e jurisprudencial dos povos cultos da Europa, como a França e a Itália, extraímos as lições de que é lícito ao proprietário opor-se à cessão, estribado em motivos graves. Não se trata de oposição ao mero alvedrio do proprietário, por ato de capricho pessoal, nem de proibição absoluta ao direito de o inquilino ceder a locação quando vende o fundo de comércio; cuida-se de limitação relativa, cuja razão de ser está na peculiaridade do centro comercial, que a institui não no interesse pessoal de um contratante, mas para atender ao interesse comum da pluralidade de locatários do edifício".

98.- Cogitando da mesma cláusula proibitiva, Orlando Gomes (Traços do Perfil cit., pp. 106 e 107) adverte que "facultá-la ou vedá-la não faz mal ao direito de renovação, não lesa o direito do locatário ao fundo de comércio. De resto, não há propriamente direito à cessão, e, quando se pense de modo contrário, é incontroverso o entendimento de que seu exercício precisa ser autorizado pelo locador. Aliás, a proibição é um imperativo da própria organização do ‘shopping center'. A cláusula proibitiva é, pelo exposto, não somente uma cláusula lícita, mas, também, inerente às locações em questão".

99.- Está evidente, nesse tipo de contratação, que o utilizador, ao ingressar no centro comercial, está imbuído de que passa a fazer parte de uma engrenagem, como peça insubstituível, a não ser nos casos, expressamente, programados e mencionados no contrato, que o autorizem à dita cessão contratual.

100.- Não se quer, com isso, dizer que o centro deva ser estático, sem alterações. Em verdade, essas alterações ficarão a critério do empreendedor, que dará anuência expressa aos utilizadores, em cada caso, sob pena de sua negativa colocar-se à rigorosa fiscalização do Poder Judiciário.

f) Projetos de instalação e decoração das unidades

101.- As instalações e decorações das lojas, bem como suas reformas, devem obedecer a projetos, elaborados por profissional idôneo e capaz, de acordo com as prescrições constantes do sistema normativo do "Shopping Center", constante da Escritura de Normas Gerais, que integra os contratos de utilização das unidades.

102.- Todas essas exigências contratuais têm razão de ser, e são válidas, pois objetivam uma uniformidade de aparência do centro comercial, por suas unidades e vias de circulação.

Tudo deve estar condizente com uma harmonia geral de aparência, a transmitir bem estar aos freqüentadores, que se sentem atraídos ao local.

103.- O utilizador não é forçado à apresentação desses projetos, pois, quando ele firma o contrato, concordando com essa situação, ele adere ao propósito conjunto dos habitantes do centro comercial de participar de um empreendimento unificado, em que todos têm interesse no seu sucesso.

104.- Logicamente, não pode o empreendedor impugnar os projetos dos utilizadores sem uma razão e indefinidamente.

A Administração tem um prazo, fixado nas Normas Gerais, devendo, nele, formular exigências, sob pena de considerarem-se os projetos aprovados, automaticamente.

Em caso de impasse entre a Administração e o utilizador, a respeito desses projetos, a primeira fornecerá a este, para sua escolha, uma lista de cinco arquitetos de interior, obrigando-se ela, então, a aceitar o trabalho que o escolhido apresentar. Essas obras podem ser, a qualquer tempo, fiscalizadas pela Administradora.

g) Pagamento de 13º salário ao pessoal da Administração

105.- Cláusula bem peculiar é também a que obriga o utilizador a pagar 13º salário aos empregados e ao pessoal da Administração do "Shopping Center".

Também, se convencionada, é válida essa clausulação, em que se objetiva pagamento sem nada ter a ver com o aluguel ou eventuais encargos.


VI - Breves considerações sobre a evolução dos contratos

106.- Ao lado das obrigações de natureza contratual, do "ius civile" ("nexum", empréstimo de dinheiro, e "sponsio", que criava entre as partes um vínculo de natureza religiosa), surgiu o sistema de contratos do "ius gentium", desapegado de formalismos e com base nas relações, que se estabeleceram entre os cidadãos romanos e os estrangeiros.

107.- Por este sistema, os contratos classificavam-se em "re, verbis, litteris et consensu", sendo certo que o primeiro se aperfeiçoava, pela entrega, pela tradição ("traditio"), da coisa ("res"); o segundo, verbalmente (pelo pronunciamento de palavras); o terceiro, por escrito; e o último, pelo consentimento dos interessados.

108.- Esta classificação, que é do Direito Romano Clássico (de fins da República, século II a.C., até fins do Principado, século III d.C.) atribui-se a Gaio (Institutas, Com. 3, par. 89), do século II d.C., falecido após 178 d.C.).

109.- Por sua vez, os contratos "verbis" e "litteris", ambos solenes, com "causa civilis" (com formalidades), coadunavam-se com a noção de contrato do primitivo Direito Quiritário. Assim, essas obrigações contraídas por palavras solenes e por escritos ("obligationes verbis et litteris contractae") acolhiam-se no "ius civile", sendo utilizadas pelos cidadãos romanos ("cives").

110.- Com o passar do tempo, tornaram-se insuficientes esses modelos contratuais, surgindo, então, em suprimento desse sistema, os contratos inominados, que alargaram as possibilidades de contratação, por meio das fórmulas de Paulo (Digesto, Liv. 19, tít. 5, lei 5, pr.): "do ut des (dou para que dês), "do ut facias" (dou para que faças), "facio ut des (faço para que dês) e "facio ut facias" (faço para que faças). Estes contratos eram protegidos por ação de caráter geral ("actio praescriptis verbis"), ao passo que os nominados por ações especiais.

111.- O Direito Romano custou a sair das fórmulas contratuais rígidas dos Quirites, para ir, pouco a pouco, granjeando o ar puro da liberdade, que purificou suas instituições contratuais.

112.- O problema dos contratos nominados e inominados cresceu de tal forma que, por vezes, coloca o estudioso do Direito ante a posição de saber se uma figura contratual é ou não típica ou se a mesma se constitui em um "tertium genus".

113.- Por outro lado, se o problema dos romanos foi o de forçar o aparecimento das formas de contratos atípicos, o nosso é de não deixá-las ao livre arbítrio das partes, ante o perigo de uma liberdade não condicionada.

114.- A importância do assunto é indiscutível, necessitando a matéria de uma regulamentação, para que os contratos atípicos sejam mencionados na lei, por meio de um tratamento genérico de princípios que, orientando sua formação, limitem a autonomia da vontade privada.


VII - Conceito de contrato atípico

115.- Os romanos conheceram os contratos nominados e os inominados, ou seja, os que possuíam e os que não possuíam um nome específico. Então, os contratos nominados tinham um tratamento legislativo próprio; hoje, entretanto, tal nem sempre acontece, sendo, portanto, obsoletss essas expressões.

Assim, a aplicar-se, presentemente, essa terminologia, deverá ela ser entendida com a devida ressalva da doutrina, pois, muitas vezes, o contrato tem nome, no ambiente de sua utilização, e não é nominado, dado que não se encontra, devidamente, regulamentado em lei.

116.- Daí, ser preferível a referência aos contratos típicos e atípicos, sendo certo que os primeiros ajustam-se, os segundos não, em qualquer dos tipos, dos moldes, dos modelos contratuais estabelecidos em lei.

117.- Por isso mesmo que tipicidade significa presença, e atipicidade ausência, de tratamento legislativo específico.

118.- Ressalte-se, neste passo, que a palavra típico advém do termo latino "typus, i", que significa tipo, modelo, molde, original, retrato, forma, exemplar, imagem, classe, símbolo, cunho, representação, que serve de tipo, de característico, sendo certo que "typus" vem do grego "typos" (o que foi forjado, batido), do verbo grego "typto" (bato, forjo).

119.- O artigo 1.322 do Código Civil italiano, segundo parágrafo, a seu turno, aponta, de modo indireto, como inominados ou atípicos, típicos todos os contratos que, ainda, não pertencem aos tipos, que possuem uma disciplina particular, desde que realizem interesses merecedores de proteção pelo ordenamento jurídico.

120.- Para a exata conceituação dessas categorias, devemos referir os ensinamentos de Francesco Messineo (Dottrina Generale del Contratto, Ed. Giuffreè, Milano, 3ª ed., 1948, p. 214), baseados no texto da legislação civil italiana, segundo os quais "o contrato é, ‘in concreto, nominado, quando se enquadra exatamente nas estatuições (cogentes ou imperativas), que disciplinam o correspondente tipo", sendo certo que, "Em verdade, tomada literalmente, a expressão contrato inominado equivale a contrato que não tem um nome no sistema legal; mas, definitivamente, o não ter um nome depende, a seu turno, do fato de que o referido contrato não está sujeito a disciplina própria; e é este último o exato conceito de contrato inominado".

121.- A tipicidade, que distingue os contratos nominados dos inominados, é fator preponderante nesta matéria, sendo certo que a tipicidade advém do elemento causa, do escopo contratual.

122.- Sobre tipicidade, assim se manifesta Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado, Ed. Borsoi, Rio de Janeiro, 1962, vol. 38, par. 4.257, p. 366): "A tipicidade tem causas históricas, por muito fundada no direito romano, porém não só a vida jurídica nos tempos posteriores e nos dias de hoje, atuou e atua, como também o trato dos negócios, em caracterizações inevitáveis. O tráfico jurídico não só tipiciza ou corrige o tipo. Por vezes, suscita tipos novos (e.g., no direito brasileiro, a duplicata mercantil), ou negócios jurídico atípicos. A vida muda. Embora os princípios permaneçam, mudam-se estruturas e conteúdos de negócios jurídicos".

Assim, quando falamos em contrato típico, ministra Angelo Piraino Leto (I Contratti Atipici e Innominati, Ed. Utet, Torino, 1974, pp. 67·e 68), com palavras de Sacco, queremos dizer: "contrato que se insere em uma figura que tem uma disciplina legal particular". Por outro lado, é contrato atípicos aquele que não possui uma disciplina legislativa, possuindo "uma causa nova e diversa, relativamente ao disciplinado pela lei".

123.- Os contratos nominados ou típicos recebem do ordenamento jurídico uma regulamentação particular, apresentando-se com um nome, ao passo que os inominados ou atípicos, embora possam ter um nome, carecem de disciplina particular, estando sujeitos às normas gerais dos contratos, desde que não contrariem a lei, os bons costumes e os princípios gerais de direito.

124.- Como bem sintetizou Silvio Rodrigues (Direito Civil, Dos Contratos e Das Declarações Unilaterais da Vontade, Ed. Saraiva, São Paulo, 1972, 4ª ed. vol. III, p. 35, nº 16), "Contratos nominados ou típicos são aqueles a que a lei dá denominação própria e submete a regras que pormenoriza", prosseguindo a conceituar os contratos inominados ou atípicos como os que "a lei não disciplina expressamente, mas que são permitidos, se lícitos, em virtude do princípio da autonomia privada. Surgem na vida cotidiana, impostos pela necessidade do comércio jurídico".


VIII - Classificação dos contratos atípicos

125.- É por demais complexo o problema da classificação dos contratos inominados ou atípicos, e deve ser compreendido com certa tolerância, uma vez que juristas de nomeada internacional têm trabalhado de forma exaustiva para sua solução, muitas vezes sem resultado prático, mas com contribuição teórica merecedora de aplausos, pois colocam eles, em plano internacional, um problema para ser solucionado e cogitado por outros ângulos de vista, abrindo o campo dos debates livres e construtivos, que é a meta propulsora da Ciência Jurídica.

126.- Colaborando nessa área, Francesco Messineo (Dottrina cit., p. 226) apresenta classificação dos contratos sob exame, adiante resumida.

Contratos inominados em sentido estrito ou puros: a) com conteúdo, completamente, estranho aos tipos legais (ex. contrato de garantia); b) com, somente, alguns elementos estranhos aos legais, enquanto outros, com função prevalente, são legais (ex. contrato de bolsa simples).

Contratos inominados mistos: c) com elementos todos conhecidos (elementos legais), dispostos em combinações distintas (tomadas mais de uma das figuras contratuais nominadas), elementos que podem estar entre si em relações de coordenação ou subordinação. Esta categoria é a mais numerosa sendo integrada por contratos unitários. A causa do contrato misto é, igualmente, mista, que advém de uma ou mais causas heterogêneas entre si.

127.- Por outro lado, o mesmo Francesco Messineo (Enciclopedia del Diritto, Ed. Giuffreè, Milano, 1962, vol. X, pp. 102 e 103) expõe o agrupamento sistemático dos contratos inominados, da lavra de Ludwig Enneccerus, com um pequeno acréscimo de idéias por Heinrich Lehmann, sendo esta sistematização, no seu entender, a que mais se impõe pelo rigor, pela organicidade e pelo fato de ter a mesma recebido maiores adesões, sendo certo que a procurarei sintetizar, na medida do possível, como adiante.

CONTRATOS INOMINADOS‚ (mistos, em sentido amplo: a) Contratos combinados‚ ou contratos gêmeos. Um dos contratantes obriga-se a várias prestações principais, que correspondem a diversos tipos de contrato, enquanto o outro contratante promete uma contraprestação unitária (ex. comida e alojamento por uma contraprestação única; transporte marítimo de pessoa, com alimentação). Compõem-se de dois tipos contratuais mesclados em um todo unitário. (As partes contratuais são inseparáveis); b) Contratos de tipo dúplice, ou contratos híbridos. Todo o conteúdo do contrato se enquadra em dois tipos contratuais diversos, de tal modo que se manifesta como contrato, quer de uma quer de outra espécie (ex. contrato de portaria, onde existem, tanto elementos da locação - uso de local a título oneroso - quanto, também, elementos de contrato de trabalho - prestação de serviços a título oneroso); c) Contratos mistos, em sentido estrito. O contrato contém elementos, que se mostram, cada um derivando de forma autônoma de outro tipo contratual nominado, sendo, pois, elementos legais e conhecidos, dispostos em combinações originais de coordenação ou subordinação. Assim, existe a fusão de causa de dois ou mais contratos nominados, ou de elementos de contratos nominados com atípicos, ou de, somente, elementos atípicos, sendo certo que existem em todos eles, uma causa mista, que deve ser, sempre, unitária (ex. a doação pode conter uma venda – ‘negotium mixtum cum donatione'‚ - ou seja, pode concluir-se, vendendo-se a coisa abaixo de seu valor; um negócio pode implicar uma compra e venda - renúncia de um crédito litigioso para a aquisição de uma coisa; um contrato de trabalho pode conter uma sociedade; o transporte de pessoa em vagão-leito implica não só transporte, mas também locação de coisa).

128.- No Brasil, é de destacar-se a classificação de ORLANDO GOMES (Contratos, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1981, 8ª ed., pp. 116 a 120), segundo a qual os contratos atípicos dividem-se em atípicos propriamente ditos e mistos. E acrescenta: "Ordenados a atender interesses não disciplinados especificamente na lei, os contratos atípicos caracterizam-se pela originalidade, constituindo-se, não raro, pela modificação de elemento característico de contrato típico, sob forma que o desfigura dando lugar a um tipo novo. Outras vezes, pela eliminação de elementos secundários de um contrato típico. Por fim, interesses novos, oriundos da crescente complexidade da vida econômica reclamam disciplina uniforme que as próprias partes estabelecem livremente, sem terem padrão para observar. Os contratos mistos compõem-se de prestações típicas de outros contratos, ou de elementos mais simples, combinadas pelas partes. A conexão econômica entre as diversas prestações forma, por subordinação ou coordenação, nova unidade. Os elementos que podem ser combinados são: contratos completos, prestações típicas inteiras, ou elementos mais simples. Nesses arranjos cabem: um contrato completo e uma prestação típica de outro; prestações típicas de dois ou mais contratos; prestações típicas de contratos diversos e elementos simples de outros. Uma vez que os contratos mistos constituem subdivisão dos contratos atípicos, não se incluem na categoria os que se formam de elementos de outros contratos, mas já se tornam típicos."

Entendo, todavia, "data maxima venia", que os contratos que se formam de elementos de vários contratos típicos não são típicos, mas atípicos mistos, como adiante demonstrarei.

129.- De ver-se, ainda, que Orlando Gomes, em seqüência, enquadra em três classes os contratos mistos: 1) contratos gêmeos; 2) contratos dúplices; 3) contratos mistos "stricto sensu", escudando-se nas lições de Enneccerus.

"Nos contratos gêmeos; e nos contratos dúplices"; continua o saudoso Professor baiano, "há pluralidade de prestações típicas de vários contratos que se misturam. Nos contratos gêmeos, a diversas prestações de uma das partes corresponde contraprestação única, enquanto nos contratos dúplices, a diversas prestações correspondem várias contraprestações. Aqueles são mais simples, estes mais complexos. O contrato misto‚ "stricto senso", segundo Enneccerus, contém elemento que representa contrato de outro tipo. Trata-se de contrato simulado, não o considerando contrato misto‚ alguns escritores. Entre os contratos mistos‚ não devem ser incluídos os que Enneccerus denomina contratos de duplo tipo‚ e contratos típicos com prestações subordinadas de outra espécie. Nos primeiros unem-se dois contratos completos, de modo que se apresentam como contratos tanto de uma espécie como de outra. Visto que o contrato misto resulta da combinação de prestações ou elementos simples de outros contratos, não pode ter essa natureza aquele que é formado pela justaposição de dois contratos completos. Tanto não são contratos mistos, que se lhes aplicam de modo imediato, e não por analogia, as regras de um e outro, como reconhece o próprio Enneccerus. Nos contratos típicos com prestações subordinadas de outra espécie, o contrato básico não se altera em sua natureza pela circunstância de se lhe agregar uma prestação de outro tipo contratual subordinada a seu fim principal. Desde que essa prestação não influi nesse sentido, o contrato não é misto, na acepção técnica da expressão."

De minha parte, continuo entendendo que o somatório, em um, de dois ou mais contratos completos, em que circunstâncias sejam, não possibilita a consideração de cada avença, isoladamente, como típica; isto, porque as prestações desses contratos mesclam-se em um todo, sem possibilidade de separação. Todas as obrigações assumidas formam um só contrato, misto, ensejando sua rescisão, por exemplo, o descumprimento culposo de qualquer delas.

130.- Sem qualquer pretensão de inovar ou de criar polêmicas, já em 1965, apresentei tese sobre a matéria (Contratos Inominados ou Atípicos, Ed. Cejup, Belém, 1988, 3ª ed., especialmente pp. 99 a 102), em que, a par de demonstrar a necessidade de regulamentação dos contratos atípicos, elaborei classificação dos mesmos, segundo critério que me pareceu racional.

131.- Assim, classifiquei os contratos atípicos, (em sentido amplo) em: 1) contratos atípicos, propriamente ditos (em sentido estrito); 2) contratos mistos: a) com elementos, somente, típicos; b) com elementos, somente, atípicos; e c) com elementos típicos e atípicos.

132.- Como resta evidenciado nessa classificação, embora abreviadamente, os contratos atípicos, em sentido amplo, não são mistos, pois eles contêm os contratos atípicos, propriamente ditos, que são formas singulares atípicos, como são formas singulares típicas as dos contratos nominados ou típicos, sendo contratos mistos, tão somente, os que mesclarem formas típicas ou atípicas, mutuamente, ou umas e outras.

133.- Os contratos atípicos mistos formam uma unidade indivisível, um todo uno e complexo.

134.- Existe o contrato atípico em sentido estrito, como o típico, caso contrário, o contrato, que de atípico simples se transplantasse ao direito positivo como típico, perderia suas características próprias.


IX - Natureza jurídica do contrato de utilização de unidade em Centros Comerciais, ao enfoque da Doutrina pátria

135.- Com a instalação, no Brasil, dos "Shopping Centers" e ante a complexidade jurídica das situações por eles criadas, várias manifestações de eminentes juristas vieram a enriquecer o tema, com pareceres, artigos e simpósios.

136.- Dentre os assuntos ventilados e debatidos, encontras-se o relativo à natureza jurídica do chamado contrato de locação nesses centros comerciais.

137.- Analisando essas doutas manifestações por obra especializada ("Shopping Centers" - Aspectos Jurídicos cit., Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1984), composta por acasião do Simpósios sobre os Centros Comerciais, promovido pela Escola Superior de Magistratura Nacional - ESMAN, com a colaboração da Associação Brasileira de "Shopping Centers" - ABRASCE, no Rio de Janeiro, em novembro de 1983, bem como outros trabalhos publicados e os pareceres e artigos, em meu poder, a serem publicados, conclui-se pela existência de correntes de pensamento, a explicarem a aludida natureza jurídica.

a) Teoria da locação

138.- A princípio, a grande maioria dos doutrinadores pátrios considerou esse contrato‚ como de simples locação.

139.- Assim, Caio Mário da Silva Pereira ("Shopping Centers" - Organização econômica e disciplina jurídica "in" "Shopping Centers" cit., pp. 77, 82 e 86) deixou claro que "se trata de um vero e próprio contrato de locação" e que o fato desse contrato, com toda a parafernália de dependências e acessórios, de tipo físico ou intelectual, exigiu modelação específica às contingências mercadológicas do empreendimento não retira" . "a natureza de 'contrato de locação'."

E acrescenta, adiante: "Do que se infere do exame da situações jurídica do 'shopping center' conclui-se que não existe um contrato específico, abrangente de todas as situações que possa ele envolver, e que exibisse o rótulo de 'contrato de shopping center'."

Em outra oportunidade, o mesmo Professor ("Shopping Center" - Lei aplicável à locação de unidades, "in" Revista dos Tribunais, junho de 1985, vol. 596, pp. 9 a 15, especialmente 9) reafirmou: "Contrato de locação que é, oferece, entretanto, certas características que decorrem da natureza especial do próprio 'centro comercial'". Parece, todavia, nesse último enfoque, que existe certa tendência a admitir caracteres modificativos da natureza do contrato locatício, pura e simplesmente considerado.

140.- A seu turno, WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO ("Shopping Centers", "in" "Shopping Centers" cit., p. 166) afirma: "não ouso asseverar seja atípico o contrato celebrado entre o incorporador e os lojistas ou prestadores de serviços. Esse contrato é, desenganadamente, o de locação, embora com algumas peculiaridades que, todavia, não chegam a descaracterizá-lo."

141.- Também, LUÍS ANTONIO DE ANDRADE (Considerações sobre o Aluguel em "Shopping Centers", "in" "Shopping Centers" cit., pp. 169 e 177 e "in" Revista dos Tribunais, vol. 572, pp. 10, 14 e 15) deixa clarividenciada essa posição doutrinária, quando afirma: "Uma das facetas que os "shopping centers" oferecem de modo constante à observação dos juristas deriva dos vínculos locatícios‚ que se estabelecem normalmente entre a pessoa que detém, organiza e administra o centro comercial e as empresas que nele se instalam, exercendo o comércio". E, mais: "Nos contratos com cláusula de aluguel calculada sobre a receita ou o faturamento estão presentes todos os elementos que caracterizam a figura jurídica da locação, tal como resulta do conceito legal, expresso no art. 1.188 do CC. A circunstância, já tantas vezes assinalada, de ajustarem as partes o pagamento do aluguel - ou seja, a retribuição - em percentual sobre o rendimento periódico obtido não desnatura a relação locatícia, nem configura qualquer espécie de sociedade, ainda que em conta de participação."

b) Teoria da locação com atipicidade

142.- Manifestando seu entendimento, IVES GANDRA DA SILVA MARTINS (A Natureza Jurídica das Locações Comerciais dos "Shopping Centers", trabalho a mim exibido, em vias de publicação) explica que, nos contratos "entre lojistas e os 'shopping centers' há sempre uma dupla natureza, que os faz, de um lado, idênticos ao de uma singela locação do espaço físico em contrato de locação comercial, mas que os torna, de outro lado, um contrato atípico, sem nenhuma vinculação com a lei de luvas no concernente à cessão da 'res sparata' ou do uso do 'sobrefundo comercial', representado pelos bens imateriais de que os 'shoppings' são detentores permanentemente", declarando que chegaram às mesmas conclusões os juristas ONURB COUTO BRUNO e JAYME HENRIQUE ABREU, em parecer que lhe foi exibido, mas não publicado.

Como, adiante, procurarei demonstrar, não se cuida, "data venia", de dois contratos separados (um de locação e outro atípico ou, ainda, de um contrato de locação com cláusula atípicas, mas, sim, de um único contrato atípico misto.

143.- Por sua vez, declara-se MODESTO CARVALHOSA (Considerações sobre relações jurídicas em "Shopping Centers", trabalho que me foi exibido e em fase de publicação) contrário à posição, primeiramente, defendida por ORLANDO GOMES, asseverando que "Não pode haver qualquer dúvida de que a cessão de uso desse espaço configura um contrato de locação, conforme definido no artigo 1.188 do Código Civil", existindo nela, "nitidamente a causa típica".

Todavia, o mesmo jurista admite que esse contrato, que "possue todos os elementos essenciais à configuração de um contrato de locação, "apresenta, no entanto, peculiaridades que o diferenciam de um contrato de locação normal", entendendo-o como "um contrato de locação com cláusula atípicas". (grifos do original)

c) Teoria da atipicidade

144.- O primeiro jurista a defender a posição de que o contrato dos "shopping centers" com os lojistas é contrato atípico foi o saudoso ORLANDO GOMES (Traços do Perfil Jurídico de um "Shopping Center", cit., pp. 96 e 113 a 115), quando ensinou, por ocasião do aludido Simpósio sobre Centros Comerciais, em julho de 1983, que essa atipicidade mista decorre da própria causa do contrato em exame.

Depois de analisar todas as peculiaridades do mesmo contrato, admite o mesmo professor que foi levado a concluir que "o contrato estudado não é propriamente de locação, mas, sim, um contrato atípico", mostrando que "Traços da autonomia desse contrato relativamente ao de locação podem, afinal, ser sumariados, projetados de ângulos diversos, todos próprios ou discrepantes, tais como os seguintes: 1) a forma de remuneração do uso e gozo das unidades destinadas a exploração comercial; 2) o reajustamento trimestral do 'soi disant' aluguel mínimo; 3) a fiscalização da contabilidade das lojas pelos concedentes do seu uso para o fim de verificar a exatidão do chamado `aluguel percentual', bem como a sua incidência para a cobrança da diferença no caso de o seu valor ser superior ao do aluguel mínimo; 4) a fixação uniforme e antecipada do critério a ser observado para determinar a majoraração do 'aluguel' mínimo no tempo da renovação do contrato; 5) a incompatibilidade entre o critério de arbitramento do aluguel nas verdadeiras locações para fins comerciais, aplicado nas renovatórias, e o denominado 'aluguel' percentual; 6) o cunho mercantil desse 'aluguel' como suporte da lucratividade do empreendimento; 7) a desvinculação entre a atividade comercial e o uso efetivo da loja para efeito de remuneração deste, exigível antes de ser iniciada aquela; 8) a vigência de proibições e práticas ligadas ao uso da loja, derivadas da circunstância, de se integrarem num sistema; 9) a proibições de cessão da posição contratual, nula ou impugnável na locação, mas admitida no contrato com o 'shopping center', por entender com a sua organização e funcionamento; 10) a ingerência de terceiro no exercício do direito do titular do uso da loja, como sucede com o intrometimento da associação a que é obrigado a se filiar, criando-se um vínculo tão apertado que a sua exclusão é admitida como causa de rescisão do contrato; 11) a cooperação do concedente (o 'shopping center', nas promoções para ativação das vendas e sua participação em campanhas publicitárias; 12) a convergência de interesses no contrato; 13) a imutabilidade orgânica do gênero de atividade do lojista - e tantos outros, significativos da diferença entre o contrato estudado e a locação."

145.- A final, embora salientando que o contrato sob estudo não é muito reiterado, em razão dos poucos Centros Comerciais, à época, já entendia ORLANDO GOMES pela importância econômica dessa contratação, afirmando: "Respondendo, como responde, a uma necessidade distinta daquela a que atende o contrato afim de locação, pode ser enquadrado, na classificação de ARCANGLI, entre aqueles que são considerados uma espécie modificada de um tipo já existente, do qual se devem conservar separados pela falta de qualquer elemento a este essencial, ou entre aqueles nos quais a necessidade que os provoca não é nova, mas neles assume um aspecto particular."

146.- Por outro lado, ressalte-se, neste passo, que, embora votando vencido a denegar o aluguel mínimo calculada sobre o saldo médio dos depósitos diários de uma agência bancária, situada em uma rua da Cidade de São Paulo, o Juiz da Quinta Câmara do Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, GIL DA COSTA CARVALHO (Revista dos Tribunais, vol. 533, p.152), destacou, em seu voto: "Na locação de lojas situadas em vias públicas o locador cede o uso da coisa, e mais não faz. O mesmo não sucede com os 'shoppings'. Neles, o locatário é beneficiário de uma soma de serviços patrocinados e mantidos pela entidade locadora, entidade locadora que inclusive protege o locatário de excessiva concorrência, com a limitação de número de estabelecimentos de um determinado ramo em um conjunto. Aí tem lógica a participação do locador nos lucros do locatário pois ele contribui para os mesmos, com serviços e com a preteção contra a concorrência excessiva. E isso não acontece numa locação pura e simples de loja, como ocorre no presente caso."

147.- Também, RUBENS REQUIÃO (obras citadas, respectivamente, pp. 19, 22, 23 e 133, 138) parece enveredar pela teoria da atipicidade, quando admite, após estudo da organização físico do centro comercial, que "já se entende que o contrato de locação não é um contrato qualquer". E que "Ele está determinado pelo conjunto organizacional para atingir um objetivo da comunidade de empresas que a ele adere".

Em seguida, corroborando seu posicionamento, elogia o pensamento do atrás citado Juiz GIL DA COSTA CARVALHO, como constituindo "um grande avanço na modernização das relações de locação, para por em destaque a efetuada em 'centro comercial'."

148.- Dando mostras de alto espírito científico e de amor à verdade, ALFREDO BUZAID abandonou sua posição anterior ("in" Da Ação Renovatórias, cit., pp. 656 e segs.) para entender o contrato sob análise como "uma figura nova‚ no direito brasileiro, que pode apresentar semelhanças com a locação de imóvel urbano, mas que dele se distingue por seus elementos constitutivos, por suas peculiaridades e por sua natureza jurídica (Estudo sobre "Shopping Center", que me foi exibido, em fase de publicação).

Nesse "Estudo", deixa clarividenciado o mesmo professor, relativamente ao contrato em exame, que denomina de "contrato de estabelecimento", que "não se trata de um contrato de locação de imóvel, regido pelo Código Civil (art. 1.188 e segs.), quer pela Lei 6.649, de 16 de maio de 1979, alterada pela Lei 6.698, de 15 de outubro de 1979, quer pelo Decreto nº 24.150, de 20 de abril de 1934." E acrescenta, mais adiante "Ainda que nele conste a cessão de uso e gozo do imóvel por tempo determinado, este elemento não é fundamental, nem decisivo para configurar o contrato como locação, porque ele não é autônomo, antes integrado num negócio jurídico complexo."

149.- A seu turno, declarando adotar, expressamente, o entendimento de ORLANDO GOMES e de ALFREDO BUZAID, admite FERNANDO ALBINO DE OLIVEIRA (Fundo de Comércio em "Shopping Centers", que me foi exibido, em fase de publicação), que "estamos diante de um novo contrato, atípico e inominado". E aduz: "O seu núcleo é o exercício de atividade comercial sob certas condições em `shopping', para o que há necessidade de cessão de espaço, que ocorre quer por via da locação, com regras atípica, quer por aquisição da propriedade plena."

150.- Na mesma linha de raciocínio, coloca-se J. A. PENALVA SANTOS (Regulamentação Jurídica do "Shopping Center", trabalho que me foi exibido, em vias de publicação), que classifica de contrato atípico o celebrado entre o empreendedor e o lojista, acrescentando que, "para se chegar a essa conclusão há mister de conhecer-lhe a natureza jurídica, a causa, a abrangência e sua possível denominação."

Faz ver esse mesmo jurista, mais, que estaria caracterizada a locação, ante o contrato sob análise "caso o locador se restringisse à mera entrega do imóvel para seu uso e gozo, mediante determinada contribuição, todavia, "Não é bem isso que acontece no caso do centro comercial, porque, ao lado da cessão onerosa do espaço ou loja, o desenvolvedor, em decorrência de sua atividade empresarial criada precisamente para esse fim, fornece ao lojista uma estrutura, através da qual se vislumbra a existência de um verdadeiro estabelecimento comercial". E, mais adiante, após analisar as situações peculiaríssimas do contrato em pauta, afirma que suas cláusulas, "nas quais são inseridas tais disposições descaracterizam a locação, ao dar-lhe cunho de atipicidade; logo, de locação não se cuida".

E termina, em conclusão, depois de estudar várias figuras contratuais: "Afastadas, em princípio, as hipóteses de consórcio, de 'joint venture' e de arrendamento mercantil ('leasing' imobiliário), é possível a adoção de regras próprias do 'franchising', instituto em grande evolução no Brasil".

Do mesmo modo, JOÃO CARLOS PESTANA DE AGUIAR (O Fundo de Comércio cit., pp. 26, 27 e 191; Anotações sobre o Mundo Jurídico dos "Shopping Centers", obra que me foi exibida e está em vias de publicação), embora tenha divergido, inicialmente (no Simpósio de 1983), do posicionamento doutrinário de ORLANDO GOMES.

Isto, porque, declara o mesmo jurista: "Examinando o tema, logo tomamos uma posição, considerando tratar-se de um contrato atípico mas que representa um conglomerado de contratos típicos e atípicos. Dentre eles avulta ..."a locação. Realmente, a idéia central não pode ser outra, pelas características de que se reveste essa relação jurídica" (Súmula do referido Simpósio).

Como visto, em realidade, entendo que não chegou esse jurista a divergir de ORLANDO GOMES, malgrado diferenças secundárias, no posicionamento doutrinário pois este também não nega a figura da locação, compondo a relação jurídica em causa.

Mesmo sendo central o contrato locatício toda a convenção é atípica porque não cumprida qualquer de suas obrigações ainda que secundárias, (a assim admitir-se, "ad argumentandum"), fica totalmente rescindida (por exemplo, não manter-se o locatário ao nível de atividades do centro comercial).

151.- Também o advogado ROBERTO WILSON RENAULT PINTO (O Fundo de Comércio dos "Shopping Centers" e o Decreto 24.150/34, trabalho exibido e em fase de publicação) enfileira-se entre os que admitem a atipicidade do contrato sob cogitação, cognominando-o de contrato de cessão de uso de espaço em "Shopping Center".

152.- Destacando várias peculiaridades do contrato estudado e admitindo sua atipicidade, J. NASCIMENTO FRANCO (A Lei de Luvas e os "shopping centers", em trabalho, que me foi exibido, em fase de publicação) adverte que, "Salvo naqueles casos em que cada lojista é dono do compartimento que ocupa, o mantenedor do 'shopping' outorga aos lojistas um chamado contrato de locação, no qual o locatário adere a diversos outros instrumentos, tais como o regimento interno do 'shopping", a escritura declaratória das normas disciplinadoras das locações escritura de convenção do condomínio (quando o edifício é submetido ao regime da Lei nº 4.591/64), e ao estatuto de uma associação de lojistas, à qual deverá o locatário obrigatoriamente filiar-se enquanto durar a locação. Além desses contratos, outros serão impostos ao locatário como condições do contrato de locação e de sua continuidade."

Evidencia, em seguida, o mesmo jurista outras peculiaridades, dentre as quais a "forma de estipulação do aluguel mensal" (valor mínimo e percentual), a participação dos lojistas nas "despesas promocionais para incentivas as vendas" (publicidade, decoração e policiamento), o pagamento pelos lojistas do "13º salário dos empregados que prestam serviços à administração do edifício e a faculdade que o locador se reserva "singularíssima de pleitear a rescisão da locação se durante determinado lapso de tempo o locatário não mantiver o nível mínimo de vendas" ("o mau desempenho de um lojista repercute em detrimento de todos").

E conclui, após analisar a Jurisprudência francesa, que foram os motivos por ela considerados que o levaram a escrever que "a ocupação da loja num centro comercial não pode ser qualificada como locação nem como sublocação, ou seja: as restrições à gestão completa de seu comércio por parte do lojista, a adesão compulsória a uma associação de ocupantes de centro comercial, a inexistência de uma clientela realmente autônoma e única, a definição do horário de funcionamento pela associação ou pelo administrador geral, etc.".

d) minha posição doutrinária

153.- Aproveitando tudo quanto exposto, e com fundamento na classificação dos contratos atípicos mistos, que ofereci em 1965 (conforme item VIII, "retro"), sempre entendi contrato sob estudo como atípico misto, formado com elemento típico (contrato de locação) e com outros elementos atípicos.

154.- Acontece, que, como deixei claro, o elemento típico quando somado com outro elemento típico ou, mesmo, atípico desnatura-se compondo-se esse conjunto de elementos um novo contrato, uno e complexo, com todas as suas obrigações formando algo individual e indivisível.

155.- "Para delimitar com segurança a atipicidade de um contrato, o verdadeiro critério é o que prescreve o estudo de sua causa‚ ou função econômica-social", diz ORLANDO GOMES (Traços do Perfil Jurídico' cit., pp. 94 a 96); tudo, como admite, "Apesar da nebulosidade que envolve, entre nós, a doutrina da causa".

Adverte, mais: "A relação atípica há de ser monolítica, proveniente de causa única, jamais de uma pluralidade de causas entre si autônomas, nada obstando à sua determinação, que é feita ora pelas próprias partes, ora pelos usos. Exige-se, tão-somente, que seja um 'elemento objetivo e constante', como nos contratos típicos, reconhecido, nos limites de sua validade, pelo ordenamento jurídica (Messineo). Há de coincidir, finalmente, com o chamado 'intento empírico ou escopo prático que as partes pretendem alcançar, ou, em linguagem vulgar, o que querem obter em termos de realização de interesses econômicos".

156.- Sem discordar desses são sábios ensinamentos, o certo é que, na prática, muitas interpretações surgem quanto à aludida tipicidade social, criada pelas próprias partes ou pelos usos e costumes. Também, resta difícil, diante das figuras contratuais novas, em formação, sentir-se, nelas, a chamada "causa única".

157.- Por isso prefiro o método de análise das prestações, que compõem os contratos (dar, fazer e não fazer), para melhor entender sua natureza, já que, como demonstrado, as obrigações integram a essência das convenções.

158.- Aliás, esse tem sido meu proceder científico, que se mostra, com bons resultados práticas em alguns de meus estudos e pareceres.

159.- Destaque-se, nesta feita, parecer por mim exarado (Contrato Atípico no meu livro Direito Privado, Casos e Pareceres, Ed. Cejup, Belém, vol. 1, 1986, pp. 134 a 148), relativo ao Contrato de Fornecimento e Distribuição de Água Mineral, em que essa avença foi, por mim, enquadrada como atípica mista.

A discussão doutrinária foi em torno de considerar esse contrato como típico de compra e venda ou como típico de locação de coisa.

Analisemos suas prestações principais, narrando de modo sucinto, os fatos.

O titular de direitos de exploração de água mineral, que chamaremos de "A", firmou a aludida contratação com empresa distribuidora desse produto, que chamaremos de "B", obrigando-se, reciprocamente, a várias prestações: "A", titular da fonte de água mineral, obrigou-se a extrair essa água, colocando-a no vasilhame de "B", fornecido por "B", entregando "A" o produto, desse modo, a "B", contra o pagamento, por este à aquele, de um preço. Acontece que, ainda, o vasilhame de "B" deveria portar a marca de "A", por rótulo, ficando "B" impedido de comercializar dita água, na região da cidade de Pinhal-SP, e "A" impedido do mesmo comércio fora dessa região; além de outras prestações secundárias.

Realmente, as principais obrigações assumidas pelo fornecedor foram as de captação, industrialização e engarrafamento‚ de água mineral, que são de fazer, e a de entregar‚ esse produto, que é obrigação de dar coisa certa. Em contrapartida, seu direito fundamental é o de receber‚ por essa atuação um pagamento certo, gravado na avença, e reajustado‚ monetariamente, segundo o contratado.

A seu turno, obrigou-se, principalmente, a distribuidora a entregar o vasilhame, dentre outras coisas, para possibilitar o engarrafamento do mencionado produto, a pagar os valores reajustados, como estabelecido no contrato, que são obrigações de dar coisa certa, e a distribuir esse produto, vendendo-o a terceiro, o que importa obrigação de fazer, enquanto não realizada esta venda. Por outro lado, os direitos da distribuidora são: o de retirar a água engarrafada, no setor industrial da fazenda do fornecedor, o que, também é uma obrigação de fazer, o de poder fiscalizar a industrialização da água e o de poder utilizar-se da marca do fornecedor.

A relação jurídica principal, que se insere nesse complexo de direitos e obrigações é a de compra e venda de água mineral, implicando a entrega, pelo fornecedor, deste produto em sua fonte e a remuneração pela distribuidora, pagando o devido preço. Ambas obrigações de dar coisa certa: entrega de água mineral (espécie) com a quantidade‚ mensal prevista no contrato, com mínimo e máximo de fornecimento, presente a qualidade‚ do produto, inconfundível (água mineral das fontes do fornecedor, oriunda da Fazenda, com características medicinais próprias). O caráter de infungibilidade desse produto resulta em corolário, pois jamais poderia o fornecedor substituí-lo por outro, levando-se em conta suas peculiaridades.

Ora, como resta evidente, dito contrato não é nem de compra e venda, nem de locação de coisa, pois, nestes, as prestações são, simplesmente de dar, respectivamente: coisa contra preço e cessão de uso e de gozo contra aluguel. A existência de qualquer outra espécie de prestação, de fazer ou de não fazer, como demonstrado, desnatura toda a contratação.

Realmente, mesmo que vendida a água, em ditos vasilhames, com recebimento do preço, não estaria exaurida a compra e venda, bastando o descumprimento de uma das atrás mencionadas prestações para a rescisão de todo o contrato, como por exemplo, se "B" vendesse sua água na região de Pinhal, ou vice versa.

Por outro lado, nunca existiu locação, na referida avença, porque faltou-lhe o elemento fundamental, cessão do uso da fonte, que permaneceu na posse de "A". Todavia, ainda que "B" pagasse a "A" para utilizar-se de sua fonte, mesmo assim descumpriria todo o contrato se se obrigasse a não comercializar dita água, na região Pinhal, e o fizesse.

160.- Em outro parecer meu (Contratação Atípica Mista. Indivisibilidade. Condição Resolutiva Tácita, no meu livro Direito Privado, Casos e Pareceres, Ed. Cejup, Belém, 1989, vol. 3¬ pp. 80 a 88), concluí, também, pela existência de contrato atípico misto, em que as partes realizaram negócios de venda e compra de área de terra, concomitantemente, com execução de obras, em empreendimento de uma delas.

No caso, a empresa "A" vendeu a empresa "B" duas área de terra, sendo certo que, à época de lavrarem-se as escrituras definitivas, firmaram essas partes um contrato particular de execução de obra, pelo qual a compradora das áreas obrigou-se a realizar trabalho de infra-estrutura de loteamento, gratuitamente, no terreno, restante, da aludida vendedora.

Afora outras situações secundárias, o certo é que restou evidenciado que as partes quiseram os dois negócios, simultaneamente, que, embora típicos, compra e venda e empreitada, restam indivisíveis na aludida relação jurídica (os negócios nasceram juntos, por uma única causa).

Por isso, mesmo que cumpridas as prestações do negócio de compra e venda, ele não se extingue, pois fica dependente do cumprimento das prestações contratadas na empreitada, sob pena de rescisão do negócio todo.

Assim, são indivisíveis todas as avenças dessas mesmas partes, tais as prestações de dar, de ambas, não compras e vendas de áreas de terra; tais as prestações, de dar e de fazer, na empreitada, assumidas pela empresa "B", independentemente de qualquer remuneração. Os negócios formam uma unidade obrigacional só, que não pode ser dividida. As partes, ao contratarem, quiseram o todo das duas contratações.

161.- Em outro meu recente parecer (Natureza atípica da franquia comercial - "franchising" - e "royalties" pagos, de 22 de maio de 1988, ainda não publicado), sustentei que o contrato de uma confeitaria, para revenda de doces, bolos, salgados, sorvetes e demais produtos seus, firmado com seus revendedores, é de franquia comercial; logo, atípico misto, dadas as cláusulas pactuadas, adiante resumidas.

Por esse contrato, dita confeitaria concede direito a suas revendedoras de revender os aludidos produtos, de sua fabricação, devendo estas realizar seus negócios, em seu nome, por sua conta, risco e inteira responsabilidade, sem direito de representação da confeitaria.

A confeitaria obriga-se: a prestar às mesmas revendedoras orientação técnica, relativamente à organização e adequado funcionamento destas empresas; a ceder, por seus departamentos especializados, o "know how" necessário à instalação e montagem das lojas revendedoras, fornecendo plantas, para a execução de suas obras; a orientar sobre a forma de utilização, com o máximo de eficiência, de todas as instalações e montagens das lojas de revenda; a orientar o pessoal técnico das mesmas revendedoras; a visitar, periodicamente, a estas, por meio de seus representantes e auditores, para verificar o aprimoramento das atividades destas.

Por outro lado, as revendedoras obrigam-se: a adquirir os produtos fabricados pela confeitaria, por pedidos diários, aos preços estipulados pela produtora, com uma margem de lucro; a remunerar a confeitaria com um percentual sobre o volume de vendas; a promover os interesses da confeitaria, pela propaganda de seus produtos; a usar o nome da confeitaria, enquanto durar o contrato, sem, entretanto, adquirir qualquer direito quanto a essa marca; a equipar suas dependências, destinadas à revenda, exposição e depósito dos produtos, e a conservá-los nos moldes das orientações da confeitaria, identificando-os com a marca desta; a observar a orientação da confeitaria, quanto às normas de trabalho, manutenção de estoques e vendas desses produtos, bem como no tocante à assistência técnica, propaganda, promoção de vendas e treinamento do pessoal; a manter o atendimento ao público, em todas as suas instalações; a manter a tabela de preços em lugar visível; a manter os produtos sem modificá-los; a zelar pelas marcas, insígnias, sinais, expressões de propaganda ou privilégios industriais da confeitaria; a não fabricar, comercializar e/ou colocar à venda produtos de qualquer natureza, cujas origens não sejam da confeitaria inclusive material de embalagens.

Esse contrato, além de obrigar a revendedora, de modo exclusivo, como visto, quanto à comercialização dos produtos da confeitaria, fixa a zona dessa atividade da revendedora, que não poderá exercê-la fora dela, competindo à confeitaria realizar contratos de idêntica natureza com outras revendedoras.

Cabe, neste ponto, para perfeito entendimento desse contrato de "franchising", diferenciando-o do ora estudado, a mostragem de seus elementos essenciais, cuidados por ITALO GIORGIO MINGUZZI (Lezioni sui contratti commerciali, Ed. Maggioli, Rimini, 1981, pp. 167 e 168), a saber: 1) "existência de um contrato que regule em detalhe todos os aspectos do acordo de colaboração entre a empresa e o operador comercial"; 2) "autorização do operador, por parte da empresa, ao uso da marca e/ou da denominação ou razão social desta última"; 3) "transferência ao operador do conhecimento técnico de propriedade da empresa e do 'know how' comercial idealizado e experimentado pela mesma"; 4) "pagamento à empresa de uma cota da parte do varejista ou do investidor: tal cota representa um correspectivo pelo uso do nome, da marca e da imagem e pelo acesso imediato, oferecido a cada indivíduo ao 'know how' comercial, à assistência, à instrução, à técnica e a todos aqueles serviços que são de propriedade da empresa"; 5) "necessidade de um investimento inicial por parte do operador, para cobertura das despesa de construção, transformação e equipamento do exercício da distribuição"; 6) "interesse contínuo da empresa ao fornecer ao operador toda ajuda possível em todos os campos da gestão comercial: 'layout do ponto de venda, aquisição, rotação do 'stock', 'display', promoção, 'merchandising', publicidade, contabilidade, consulência fiscal, instrução do pessoal, atualização periódica, etc.; 7) "adestramento fornecido pelos técnicos da empresa ao operador logo ao início da atividade do ponto de venda"; 8) "processo e disponibilidade por parte do operador, da unidade de venda e dos requisitos jurídicos pelo exercício do comércio".

Como visto, o mesclado de prestações de dar, de fazer e de não fazer, leva a uma concreta impossibilidade de enquadrar a franquia comercial em qualquer dos tipos regulamentados. Veja-se, mais, que essa diversidade de prestação em sua grande maioria repelem a idéia de considerar o contrato em foco como se franquia fosse.

Destaque-se, só para lembrar de algo fundamental, que, na franquia, não existe cessão de uso de local, pois este é do próprio franqueado; e que embora o utilizador seja obrigado a promover o nome do centro comercial em que se instala, o franqueado zela pelo nome dos produtos do franqueador, que revende ou produz, mas sob total controle deste último.

As diferenças aumentam à análise, sempre, das prestações constantes de uma e de outra contratações.

162.- Resta clarividenciado, pois, que é muito útil, para descobrir a tipicidade ou atipicidade do contrato, á análise, profunda de suas prestações (dar, fazer e não fazer). É certo que podem coexistir essas espécies, todavia os objetos prestacionais são diferentes, o que leva à descoberta da verdadeira causa contratual.

163.- No contrato de utilização de unidade em Centros Comerciais, as prestações são as mais variadas, como visto, e de caráter peculiaríssimo.

164.- Assim, relembrando as prestações peculiares do contrato sob exame, já desfiladas pelos vários juristas que cuidaram da matéria, pondere-se que a contratação tem como cerne a cessão do uso ou do uso e gozo de um determinado espaço em um "Shopping Center", mediante particularíssima retribuição, pelos analisados aluguéis, fixo e variável, por filosofia dos quais o utilizador recebe benefícios daquele e concede vantagens àquele, em razão do dúplice fundo de empresa existente.

O contrato em causa demonstra a preocupação das partes de levarem a cabo um investimento de ambas, com participações recíprocas, em ambiente de alto nível, que deve ser mantido, com todos os sacrifícios.

165.- Relembremos, pois, de que o contrato em estudo apresenta peculiaríssimas obrigações: 1) o utilizador tem de informar o empreendedor sobre seu faturamento, por planilhas, para que se possa elaborar o cálculo do aluguel percentual ou variável (prestação de fazer); 2) o empreendedor, na falta dessa informação ou não se contentando com ela, pode fiscalizar esse faturamento, até na "boca do caixa" (prestação de fazer), sem qualquer impedimento por parte do utilizador (prestação de não fazer), mas agindo com toda a cautela, discrição e urbanidade, por seus prepostos (prestação de fazer, por terceiros); 3) o utilizador deve contribuir para o Fundo de Promoções Coletivas, com o valor, geralmente, de dez por cento sobre o do aluguel pago (prestação de dar, sem ser aluguel), para propiciar campanhas promocionais do Centro Comercial, que reverte em benefício de todos (empreendedor e utilizadores); 4) o empreendedor também deve contribuir para esse Fundo (prestação de dar, afora a cessão do uso ou do uso e gozo da unidade); 5) o utilizador deve pagar 13º salário aos empregados e ao pessoal da administração do Centro Comercial (prestação de dar a terceiros); 6) todos os utilizadores aderem ao sistema normativo criado pelo "Shopping Center", constante da Escritura Declaratória de Normas Gerais Regedoras das Locações dos Salões de Uso Comercial e do Regulamento Interno do Condomínio do Centro Comercial, que deve ser seguido à risca pelos mesmos utilizadores (prestação de fazer); 7) por esse sistema de regras, os utilizadores devem desenvolver atividades, nos moldes das melhores técnicas, para manter o nível de comercialização do "Shopping Center" (prestação de fazer); 8) o utilizador, a não ser com anuência expressa do empreendedor, está proibido de ceder o contrato de utilização de sua unidade (prestação de não fazer); 9) o utilizador deve pagar ao empreendedor, para compensar o fundo de empresa por este criado, uma importância em dinheiro, em razão da "res sperata" (prestação de dar, completamente diferente do aluguel ou de qualquer encargo de eventual locação); 10) o utilizador não pode deixar seu estabelecimento fechado, por mais de trinta dias (prestação de não fazer); 11) o empreendedor obriga-se a administrar o "Shopping Center", mantendo em pleno funcionamento o sistema de iluminação e de hidráulica das áreas comuns (prestação de fazer); 12) o utilizador não pode comercializar objetos de segunda mão, de segunda linha, recuperados por seguro ou salvados de incêndio (prestação de não fazer); 13) o utilizador deve apresentar à Administração do "Shopping", para exame e aprovação, seus projetos de instalações comerciais, letreiros e decoração, elaborados por profissional idôneo e capaz, nos moldes e com as restrições constantes da Escritura normativa (prestação de fazer); dentre muitas outras obrigações.

166.- Como tive oportunidade de demonstrar, com essa multivariedade de prestações, em verdadeiro complexo unitário, não há que falar-se em locação, mas em contrato atípico misto.


X - Explicação sobre o nome do contrato em causa e necessidade de sua regulamentação

167.- Pouca importância tem para mil a nominação do contrato sob estudo, importando, sim, sua perfeita compreensão e enquadramento.

168.- Por isso, para que ele não restasse sem nome, propusemos sua designação por contrato de utilização de unidade em Centro Comercial.

169.- Todavia, a regulamentação desse contrato se faz necessária, para que, no âmbito da manifestação livre das vontades, não surjam abusos.


XI - Conclusões finais

170.- Não se cuida, portanto, como procurei demonstrar, de mera locação, ou de locação, com cláusulas atípicas, pois esses elementos atípicos desfiguram a locação, que não pode viver isoladamente.

171.- Como bem acentua CARLOS GERALDO LANGONI ("Shopping Centers" no Brasil, "in" "Shopping Centers" cit., pp. 56 e 57): "Ao invés de um esquema convencional de remuneração do investimento com base na venda dos imóveis ou no aluguel puro e simples - o que transformaria o empreendimento em mais um negócio imobiliário - o 'shopping center', ao estabelecer uma relação direta entre sua rentabilidade e a rentabilidade das atividades que ali irão se desenvolver, criou as pré-condições para a otimização do 'marketing' a um nível nunca antes imaginado pelo sistema de comércio convencional. Paradoxamente, portanto, o que há, de fato, de inovador nos 'shopping centers' é a relação contratual que assegura a participação dos investidores no faturamento (e, portanto, nos lucros das atividades que ali se desenvolvem. Estabelece-se uma permanente integração entre os interesses dos empreendedores do 'shopping center' e os dos comerciantes, que constitui a base para a realização posterior de ganhos de produtividade, onde parcela significativa é, inclusive, transferida para os consumidores."

172.- Todavia, malgrado estejamos em face de um contrato novo, sem apego à legislação inquilinária vigente os a formalidades para existir, a livre manifestação da vontade das partes deve ser preservada, como lícita, desde que não atinja dispositivo cogente (norma de ordem pública), os bons costumes e os princípios gerais de direito.

173.- Isso não impede que o juiz, ao enfrentar questões a esse contrato relativas, decida aplicando a legislação vigente, por analogia. A tanto ele está autorizado, em qualquer caso, pelo artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.

174.- Ressalte-se, entretanto, que essa aplicação não deve conflitar com a natureza do contrato os provocar a quebra da sua unidade.

175.- Assim, não é incompatível, por exemplo, com a indivisibilidade das prestações do contrato sob exame, a cláusula ou decisão que autoriza o pedido renovatório do contrato ou de sua revisão, nos moldes da Lei de Luvas. No mesmo sentido, desde que justificadamente, o pedido de retomada da unidade pelo empreendedor.

176.- De ver-se, contudo, que qualquer contratação escrita, lícita, exclui a aplicação, ainda que analógica, de qualquer preceito legal da legislação locatícia. As normas cogentes, desta, só atinem aos casos dos contratos de locação por elas previstos.

O contrato atípico misto, em causa, resta indene dessa atuação legislativa.

É o meu parecer,

salvo melhor juízo.

São Paulo, 11 de setembro de 1989

ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO


Autor

  • Álvaro Villaça Azevedo

    Álvaro Villaça Azevedo

    Doutor em Direito. Professor Titular de Direito Civil. Regente de Pós-Graduação e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP. Professor Titular de Direito Romano, de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, em São Paulo. Professor Titular de Direito Romano e Diretor da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP, em São Paulo. Advogado e ex-Conselheiro Federal e Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil. Parecerista e Consultor Jurídico.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Atipicidade mista do contrato de utilização de unidade em centros comerciais e seus aspectos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16405. Acesso em: 25 abr. 2024.