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Da competência penal na Justiça do Trabalho

Da competência penal na Justiça do Trabalho

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Parecer elaborado por solicitação da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (ANAMATRA), a respeito da polêmica competência penal da Justiça do Trabalho, tendo em vista a ADIN nº 3684/2006, ajuizada pelo Procurador Geral da República. A análise se baseia na interpretação sistemático-construtiva do art. 114, I, IV e IX da Constituição Federal.

Referência: Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3684/2006 (do Exmo. Procurador-Geral da República)

Consulta: Presidência da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA)

Objeto: Parecer 01/2006.

Data: 24.03.2006.

O Exmo. Juiz Diretor-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), Dr. JOSÉ NILTON PANDELOT, dirige-me a presente consulta, com respeito ao objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3684/2006, de 08.03.2006, ajuizada pelo Exmo. Procurador-Geral da República, Dr. FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA. Solicita-me a opinar sobre o teor da referida ação e a correspondente tese de inconstitucionalidade sem redução de texto do art. 114, I, da CRFB, no que toca à competência criminal da Justiça do Trabalho e à garantia do juiz natural.

Para tanto, formula basicamente os seguintes quesitos:

(a) A Justiça do Trabalho detém competência penal estrita sob a égide da Emenda Constitucional n. 45/2004?

(b) O entendimento de que os juízes do Trabalho exercem competência penal estrita fere as garantias do devido processo legal, do juiz natural e/ou do promotor natural?

(c) Essa interpretação atrai, em tese, a pecha da inconstitucionalidade material, apta a engendrar, a propósito, interpretação conforme ou declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto do artigo 114, I, da CRFB?

Examinados os termos da ADIn n. 3684/2006 e os demais subsídios de informação coligidos, passo a dar o meu parecer, para efeitos "interna corporis" e exclusivo uso associativo, sem natureza própria de consultoria (ut artigo 1º, II, da Lei 8.906/94, "a contrario").


P A R E C E R

Em 08.03.2006, o Procurador-Geral da República ajuizou ação direta de inconstitucionalidade com fundamento nos artigos 102, I, "a" e 103, VI, da CRFB, requerendo a declaração de inconstitucionalidade formal do artigo 114, I, por violação do artigo 60, §§ 2º e 4º, IV, da CRFB, e ? sucessivamente ? a declaração de sua inconstitucionalidade material sem redução de texto, bem como a dos incisos IV e IX do mesmo artigo 114, por violação do artigo 5º, caput e inciso LIII, da CRFB, com vistas a afastar qualquer interpretação que reconheça competência criminal à Justiça do Trabalho. Aduziu pedido de concessão liminar da tutela, atribuindo-se-lhe, em qualquer caso, eficácia "erga omnes" e "ex tunc", com efeitos plenamente vinculantes.

1.2. O Parquet entende, sucintamente, que o artigo 114, I, da CRFB padece de inconstitucionalidade formal, porque o dispositivo aprovado no Senado Federal, em primeiro turno, excetuava expressamente "os servidores ocupantes de cargos criados por lei, de provimento efetivo ou em comissão, incluídas as autarquias e fundações públicas dos referidos entes da federação". Esse trecho foi depois suprimido no Parecer n. 1.747/2004, que baseou a redação votada e aprovada em segundo turno. A supressão teria relevância para o objeto da ADIn n. 3684/2006, na medida em que o excerto expurgado parametrizaria o alcance da expressão "ações oriundas das relações de trabalho", revelando que a competência material da Justiça do Trabalho não iria além da superação de

uma pretensão resistida do trabalhador quanto à observância de direitos trabalhistas descumpridos pelo empregador, salvo quando esse trabalhador fosse um servidor público estatutário ou comissionado. Noutras palavras, ações trabalhistas! [01]

1.3. Por outro lado, advoga o Parquet que a interpretação sistemática a conferir competência penal estrita à Justiça do Trabalho padeceria de inconstitucionalidade material, por malferir o artigo 5º, LIII, da CRFB, já que o juízo natural para o processo e o julgamento das infrações penais jamais poderia ser um órgão da Justiça do Trabalho: ora seria um órgão da Justiça Comum Federal, ora da Justiça Eleitoral, ora da Justiça Militar e, nos demais casos, órgãos da Justiça Comum Estadual (competência residual). A Justiça do Trabalho, porém, não deteria, em qualquer hipótese, competência penal "stricto sensu" ? à diferença de todos os demais ramos do Poder Judiciário nacional. A par disso, as ações penais ajuizadas por órgãos do Ministério Público do Trabalho feririam o princípio do promotor natural. Tal desordem institucional culminaria por incutir sentimento de insegurança jurídica e facilitar prescrições, fato especialmente grave nos casos de "trabalho escravo" contemporâneo. Donde a necessidade da concessão liminar requerida.

1.4. O inteiro teor da peça "sub examinen" demonstra que todos os argumentos expendidos ? da inconstitucionalidade formal à inconstitucionalidade material ? convergem para uma única preocupação, estribada na Representação PGR n. 1.00.000.001257/2006-27, da Associação Nacional dos Procuradores da República: pacificar a tese da incompetência material da Justiça do Trabalho para lides de natureza penal estrita. Preocupação que ganha corpo à mercê das decisões pontuais que vêm reconhecendo aquela competência no âmbito da Justiça do Trabalho, como apontado ilustrativamente no item n. 24 da ADIn n. 3684/2006.

1.5. Diante disso, o cerne da insurgência reduz-se à questão da incompetência material da Justiça Obreira e, paralelamente, à tese de que a admissão de uma competência penal estrita exercitável pelos órgãos da Justiça do Trabalho feriria, a um tempo, os princípios do juiz natural e do promotor natural (i.e., o devido processo legal formal). O problema da inconstitucionalidade formal do artigo 114, I, da CRFB é, a bem dizer, objeto de outra ação direta de inconstitucionalidade (ADIn n. 3395/2005, de iniciativa da AJUFE), na qual se concedeu tutela liminar para afastar quaisquer interpretações que incluam, no âmbito de competência material da Justiça do Trabalho, as causas entre o Poder Público e os servidores a ele vinculados por relação de natureza estatutária ou jurídico-administrativa. Não há, porém, decisão definitiva a reconhecer a inconstitucionalidade formal do artigo 114, I (ao revés, deu-se-lhe interpretação conforme, o que significa reconhecer, "in limine litis", a sua validade em tese). Logo, essa matéria já está "sub judice", não esgrime as principais razões que importam à questão da ADIn n. 3684/2006 e, de resto, não foi objeto de consulta (supra). Ater-nos-emos, por isso, ao "thema" da inconstitucionalidade material sem redução de texto e do conseqüente pleito de interpretação conforme.


II. COMPETÊNCIA PENAL-TRABALHISTA APÓS A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004

Afirmar que a competência material da Justiça do Trabalho cinge-se às "ações trabalhistas", assim entendidas as ações que manifestam conflitos de interesses qualificados por pretensão resistida de observância de direitos trabalhistas (item n. 09 da ADIn n. 3684/2006) é, "concessa venia", um equívoco notável.

2.2. Mesmo antes da EC n. 45/2004, a Justiça do Trabalho já detinha competência material que ultrapassava indelevelmente os lindes de sua competência basal histórica (dissídios contratuais na esfera individual e coletiva). O próprio Supremo Tribunal Federal já havia afirmado a competência material da Justiça do Trabalho para conhecer e julgar ações de indenização por danos materiais e morais no marco da relação de emprego (STF, RE n. 238.737-SP, 1ª T., rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 17.11.1998 [02]), conquanto se compreendesse, com ressalva do pensamento minoritário [03], que tais indenizações têm natureza aquiliana (= extracontratual) e não contratual. Na ementa, lê-se que

Compete à Justiça do Trabalho o julgamento de ação de indenização por danos materiais e morais, movida pelo empregado contra seu empregador, fundada em fato decorrente da relação de trabalho […], nada importando que o dissídio venha a ser resolvido com base nas normas de Direito Civil [grifos nossos].

2.3. Na mesma ensancha, a Justiça do Trabalho passou a ser competente para executar, de ofício, as contribuições sociais decorrentes das sentenças que profere (EC n. 20/98), passando a deter competência executiva em matéria tributária, sem qualquer substrato contratual (ut artigo 3º do CTN) e sem conexões diretas com os direitos trabalhistas estritamente considerados (artigo 7º da CRFB).

2.4. Após a entrada em vigor da EC n. 45/2004, essa competência atípica foi dilargada para alcançar virtualmente todas as ações de representação sindical (artigo 114, III), as ações relativas às penalidades administrativas aplicadas no exercício da fiscalização do trabalho (artigo 114, VII) e, para mais, remédios constitucionais tão excelsos quanto o "habeas data" e o "habeas corpus" (artigo 114, IV). Essas ações servem, respectivamente, à tutela de direitos civis de representação associativa e do próprio direito constitucional de livre associação na órbita sindical, com todos os seus consectários positivos e negativos (artigo 5º, incisos XVII a XXI); ao resguardo dos interesses públicos e dos direitos individuais do cidadão ao ensejo do exercício do poder de polícia nas atividades administrativas de fiscalização do trabalho (Direito Administrativo sancionador [04]); à salvaguarda do direito geral de informação mínima e do direito de saber ou registrar a verdade sobre si mesmo [05]; e, finalmente, à preservação da liberdade espacial-corporal de tantos quantos se sintam constrangidos por atos de império imbricados com matérias afetas à jurisdição da Justiça do Trabalho.

2.5. Por conseguinte, não se pode mais afirmar que a competência material da Justiça do Trabalho esteja adstrita às lides tipicamente trabalhistas, i.e., à observância/inobservância de direitos trabalhistas "stricto sensu" (artigo 7º da CRFB). A jurisprudência consolidada no âmbito dos tribunais superiores e o "telos" da Reforma do Poder Judiciário (EC n. 45/2004) demonstram, à saciedade, que a Justiça do Trabalho deixou de ser a «Justiça do trabalhador» (ou quiçá «Justiça do empregado») e passou a ser, propriamente, a Justiça do Trabalho. De uma perspectiva tuitiva "a parte subjecti" (a do trabalhador subordinado), evoluiu para uma perspectiva funcional "a parte objecti" (a do trabalho como projeção da personalidade humana), com "vis atractiva" para toda a matéria concernente ao trabalho humano de fundo consensual (elemento volitivo), com pessoalidade mínima (elemento tendencial) e caráter continuativo ou coordenado (elemento funcional) [06].

2.6. Tampouco se pode afirmar, em bom Direito, que a Justiça do Trabalho não detém competência penal estrita. Possui-a, por expresso comando constitucional, ut artigo 114, IV, da CRFB. Como é sabido, o "habeas corpus" nada mais é que uma ação penal popular. É essa a sua matriz ontológica, ainda que o constrangimento subjacente admita as mais diversas morfologias: cumprimento de pena (em sede de execução penal), prisão cautelar (em sede processual penal), inadimplemento de deveres familiares jusfundamentais (alimentos), inadimplemento de obrigações contratuais estritas (infelidelidade depositária), etc. Não é outro, aliás, o entendimento do Excelso Pretório:

Sendo o habeas corpus, desenganadamente, uma ação de natureza penal, a competência para seu processamento e julgamento será sempre do juízo criminal, ainda que a questão material subjacente seja de natureza civil, como no caso de infidelidade de depositário, em execução de sentença. [07]

No mesmo sentido e "ad exemplum", vejam-se, na jurisprudência nacional, os seguintes arestos: STJ, CC n. 2459/SP, 3ª S., rel. Min. Francisco de Assis Toledo, j. 20.02.1992 [08]; TRF 4ª Reg., HC n. 944.2.173-1 [09]; TRF 1ª Reg., HC n. 92.01.27.236-7 [10].

Na doutrina, confiram-se, entre outros, TOURINHO FILHO [11], MIRABETE [12], ALEXANDRE DE MORAES [13], ADA GRINOVER, GOMES FILHO e SCARANCE FERNANDES [14].

2.7. Já por isso, pedir que o Supremo Tribunal Federal declare a incompetência penal "tout court" da Justiça do Trabalho é pedir, "a fortiori", a declaração da inconstitucionalidade parcial do artigo 114, IV, da CRFB, com redução de texto. Se não, vejamos.

2.8. Prover a ADIn n. 3684/2006 nos precisos termos das alíneas "b" e "c" do seu capítulo VI é repelir, "in totum", a competência constitucional da Justiça do Trabalho para o processo e o julgamento de "habeas corpus", que é ação penal liberatória (tópico 2.6, supra). Suprimir-se-ia obliquamente a validade e a eficácia jurídica de uma parcela do texto normativo vazado no inciso IV do artigo 114; e, por essa via, conceder-se-ia ao Parquet mais do que foi pedido, com violação do princípio da correlação entre a demanda e a sentença (artigo 460, caput, do CPC). É que a declaração de inconstitucionalidade com redução de texto circunscreve-se à hipótese do artigo 114, I, da CRFB, nos exatos termos da alínea "a" do referido item VI (inconstitucionalidade formal). Conseqüentemente, deferir «interpretação conforme» nos moldes dos pedidos "b" e "c" terminaria por violar a cláusula do devido processo legal (artigo 5º, LIV, da CRFB) ? cláusula que, ironicamente, fora evocada em defesa da medida (item n. 32 da ADIn n. 3684/2006).

2.9. Ademais disso, há razões ponderáveis para crer que, a par do remédio penal liberatório previsto no artigo 5º, LXVIII, da CRFB, também as ações penais condenatórias passaram à esfera de competência material da Justiça do Trabalho, quando a "persecutio in judicio" referir-se àquelas infrações penais (= crimes e contravenções) oriundas da relação de trabalho, seguindo a dicção do artigo 114, I, da CRFB. Essa compreensão dimana da perspectiva funcional "a parte objecti" chancelada pelo Poder Legislativo reformador ao ensejo da EC n. 45/2004 e abrange, notadamente, os crimes contra a organização do trabalho (Título IV da Parte Especial do Código Penal, artigos 197 a 207) e as contravenções relativas à organização do trabalho (Capítulo VI da Parte Especial da Lei de Contravenções Penais, artigos 47 a 49) [15], quando não estiver em causa lesão a interesses coletivos e difusos e/ou atentado à organização geral do trabalho como sistema institucionalizado. Com efeito, na esteira da inteligência da Súmula n. 115 do extinto Tribunal Federal de Recursos (que ainda se conserva [16]), "compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes contra a organização do trabalho, quando tenham por objeto a organização geral do trabalho ou direitos dos trabalhadores considerados coletivamente" [grifos nossos]. Assim deve ser compreendida a norma de competência inserta no artigo 109, VI, 1ª parte, da CRFB ? tanto antes, quando a competência residual pertencia às Justiças estaduais (Súmula n. 115/TFR), como agora, em se admitindo que a competência residual tenha se trasladado para a Justiça do Trabalho, "ex vi" do artigo 114, I e IV, da CRFB.

2.10. A abonar essa tese ? não apenas mais acertada do ponto de vista político-judiciário, como também mais defensável constitucionalmente ?, há fortes argumentos de caráter jusfundamental. A par do quanto já se escreveu a respeito (em torno da teoria da «adequação legítima» entre a competência penal-trabalhista e a Justiça do Trabalho, que a nós diz bem pouco), existe um aspecto jusfundamental que, com razões melhores e mais nítidas, parece afinal justificar a exegese da outorga, à Justiça do Trabalho, de competência para o processo e o julgamento das infrações penais indicadas no tópico 2.9 (supra). Vejamos.

2.11. Impende reconhecer, com ALEXY, que a teoria abstrata da ação (DEGENKOLB, 1877) não pode levar à extrema conseqüência de apartar, qual compartimentos estanques, o processo/procedimento (incluído, no binômio, o conceito de competência, que é um dos institutos fundamentais da Teoria Geral do Processo) e o direito material resistido, especialmente em se tratando de direitos humanos fundamentais. Bem ao revés, há uma conexão fundamental entre os direitos fundamentais ? entre os quais os direitos sociais positivados no artigo 7º da CRFB ? e os procedimentos jurídicos predispostos para a sua satisfação, de modo que "o aspecto procedimental e o material têm de ser reunidos em um modelo dual que garanta o primado do aspecto material" [17]. De outra forma, o processo perderia, pela abstração, a sua mais evidente característica contemporânea, a saber, a instrumentalidade [18]. Conseqüentemente, ali onde as normas processuais e/ou procedimentais podem aumentar a proteção de determinado direito fundamental, tais normas estão exigidas "prima facie" por princípios jusfundamentais [19] (entre os quais o da unidade da Constituição, o da máxima efetividade e o da força normativa da Constituição [20]). Mesmo argumento serve às diversas interpretações possíveis de uma norma constitucional de competência (que não é uma norma de procedimento, mas é uma norma de processo). Pelo princípio hermenêutico da força normativa da Constituição, é cediço que,

como a Constituição quer ser atualizada, mas as possibilidades e condições históricas dessa atualização se transformam, deve, na resolução de problemas jurídico-constitucionais, ser dada a preferência àqueles pontos de vista que, sob os respectivos pressupostos, proporcionem às normas da Constituição força de efeito ótima [grifos nossos]. [21]

Logo, uma interpretação constitucional só tem legitimidade jusfundamental se der "primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a «actualização» normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua eficácia e permanência" [22].

2.12. Não é outra a função social e histórica da tendência jurisprudencial atacada na ADIn n. 3684/2006, cujas fileiras, ao se avolumarem, talvez arranhem interesses corporativos. Procede-se ali à atualização normativa da Constituição, consumando o que o legislador possivelmente temeu fazer por expresso. Compreende-se a historicidade do sistema constitucional de competências e da sua estrutura, soerguida em um tempo menos virtuoso, quando os órgãos da Justiça do Trabalho ainda possuíam representação classista e pouco avançavam além dos restritos contornos da relação empregatícia (mesmo em matéria sindical); compreende-se, ainda, a dificuldade discursiva em se alterar esse paradigma no texto normativo. E entrevê-se, no vazio textual, a brecha contextual legislativa para uma nova competência material, apta a assegurar eficácia ótima aos direitos materiais em jogo (direitos sociais "stricto sensu"), por duas perspectivas:

(a) na medida em que o processo penal-trabalhista vincule, do ponto de vista humano, um corpo de magistrados peritos na figura elementar dos tipos penais (relação de subordinação laboral) e historicamente comprometidos com a resolução eqüidistante dos conflitos entre o capital e o trabalho;

(b) na medida em que a violação cabal dos bens jurídico-penais visados pelas normas de proteção social desafie, do ponto de vista estrutural, os rigores de uma jurisdição mais célere e menos formalista, sem prejuízo da estrita observância do devido processo penal.

Basta ver, quanto à última, a capacidade média de absorção da demanda judiciária na Justiça Federal comum (com efeitos funestos no quadro de prescrições), por um lado, e a capacidade de absorção na Justiça do Trabalho, em primeira e segunda instâncias, por outro [23]. Com a nova exegese, revitaliza-se a jurisprudência em seara penal-trabalhista. Repele-se, no mesmo âmbito, algum sentimento de anomia e impunidade que porventura haja. E recompõem-se, nesse campo, os efeitos de prevenção especial e geral negativa ? e mesmo os de prevenção geral positiva [24] ? que devem acompanhar as sanções penais em geral. Em resumo, a nova regra de competência, adscrita à norma do artigo 114 da CRFB, passa a garantir mais fielmente o primado dos direitos materiais diretamente envolvidos.

2.13. As decisões jurídicas em matéria de direitos fundamentais (como é o direito ao juiz natural e ao devido processo legal) sujeitam-se à racionalidade possível, não admitindo «exatidão de resultados» à maneira das ciências naturais [25]. Ou seja: tais decisões não são "verdadeiras" ou "falsas", mas legítimas ou ilegítimas. E a legitimidade, no processo de argumentação jusfundamental, diz com a sua controlabilidade racional [26]. Nesse caso, a teoria da argumentação jurídica ganha especial relevo. Na exegese do artigo 114 da CRFB, há um argumento que se atém à vontade histórica do legislador, tal como manifestada nos trabalhos legislativos (rejeição das emendas que conferiam expressamente a competência penal condenatória à Justiça do Trabalho), e a associa à literalidade do texto constitucional. Esse argumento está vazado na ADIn n. 3684/2006. Mas há outro argumento que considera os fins mirados pelo legislador em 2004, ao ampliar a competência material da Justiça do Trabalho: revalorizar o trabalho humano, humanizar as relações de trabalho "lato sensu" (i.e., relações de emprego e relações de trabalho não subordinado) e otimizar a satisfação dos direitos a prestações em sentido estrito [27]. Quanto à competência penal da Justiça do Trabalho, o legislador positivou-a, no que toca à ação penal liberatória por excelência ("habeas corpus"); e, de resto, calou-se. O silêncio poderia significar vedação; mas isso seria incomum, já que a competência penal foi conferida noutra circunstância, para processo e julgamento da ação penal popular. Nada obstante, o silêncio também pode significar a permissão jusfundamental para que a jurisprudência dos tribunais adira ao texto da Reforma a competência penal necessária para realizar aqueles fins ínsitos à EC n. 45/2004, desde que residual (i.e., não atribuída a outro ramo do Judiciário no próprio texto constitucional). Com isso, corrige-se o argumento genético-literal e obtém-se uma solução hermenêutica dotada de maior legitimidade social, engendrada por uma regra de inferência dialética de justificação externa. No modelo de ALEXY:

(a) o fato de o legislador querer R com a intenção de que ele seja interpretado segundo W (IRW = R’) é uma razão da validade de R’.

[...]

(b) O fato de o legislador querer R como meio de chegar a Z é um motivo para sustentar que é obrigatório aplicar R de tal modo a realizar Z.

(c) Se é obrigatório realizar Z, então quaisquer meios que sejam necessários para a realização de Z são obrigatórios também.

[...]

(a) e (b) receberam uma formulação muito fraca. A intenção do legislador é somente uma razão para a interpretação. Isso possibilita a apresentação de razões contrárias. A regra de inferência (c) é de grande interesse [grifos nossos]. [28]

Avaliza-se, assim, a competência penal estrita da Justiça do Trabalho pela legitimidade sócio-discursiva da correta argumentação jusfundamental, identificando, como norma adscrita aos incisos I e IV do artigo 114 da CRFB [29], uma regra concreta de competência material para ações penais condenatórias (tópico 2.9, supra).

2.14. O Supremo Tribunal Federal brasileiro chegou a empregar raciocínio semelhante, porém inverso, quando provocado a se manifestar sobre o órgão jurisdicional competente para o processo e o julgamento de "habeas corpus" impetrado contra ato de promotor de Justiça. A Constituição Federal é silente, pois só estabelece foro penal privilegiado para o caso de crimes comuns e de responsabilidade (artigo 96, III); i.e., para as ações penais condenatórias. Entendendo, porém, que a decisão do "habeas corpus" poderia, nessas hipóteses, importar em afirmação de prática de ilegalidade ou abuso de poder pela autoridade ministerial (no limite, prática de infração penal), a Corte concluiu que o órgão competente para o julgamento do writ haveria de ser o mesmo a que competiria, em tese, julgar a ação penal condenatória pela prática da infração penal em tese configurada ? ou seja, os órgãos de segunda instância (Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais Eleitorais, Tribunais militares). In verbis:

[...] 4. Tanto mais se legitima a norma questionada da Constituição local quanto é ela que melhor se ajusta ao correspondente modelo federal, no qual ? com a única exceção da hipótese de figurar como coator um Ministro de Estado ? o princípio reitor é conferir a competência originária para o "habeas-corpus" ao Tribunal a que caiba julgar os crimes de que seja acusado a autoridade coatora. [...]  Em matéria de competência para o habeas corpus, o sistema da Constituição Federal - com a única exceção daquele em que o coator seja Ministro de Estado (CF, arts. 105, I, c, e 102, I, c) - é o de conferi-la originariamente ao Tribunal a que caiba julgar os crimes de autoridade que a impetração situe como coator ou paciente (CF, arts. 102, I, d; 105, I, c). O princípio tem óbvia explicação sistemática: a decisão concessiva de habeas corpus traduz, com freqüência, provimento mandamental, a ser cumprido pela autoridade coatora, sob pena de prisão por desobediência [grifos nossos]. [30]

Ou ainda:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. COMPETÊNCIA. HABEAS CORPUS CONTRA ATO DE PROMOTOR DE JUSTIÇA. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 96, III). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO PARA QUE O TRIBUNAL A QUO PROSSIGA NO JULGAMENTO DO HABEAS CORPUS. [...] o fundamento dessa jurisprudência foi sempre o de que da decisão do habeas corpus pode resultar afirmação de prática de ilegalidade ou de abuso de poder pela autoridade. [31]

A legitimidade do argumento exposto no tópico 2.13 (supra) tem, seguramente, a mesma matriz, posto que às avessas. Se o juiz do Trabalho possui, "mutatis mutandi", competência constitucional expressa para proferir decisão concessiva de "habeas corpus" em matéria sujeita à sua jurisdição (artigo 114, IV, da CRFB), e se nessa sede pode vir a reconhecer incidentalmente ilícitos ou abusos idôneos a configurar crimes ou contravenções em tese, há também «óbvia explicação sistemática» a escorar o entendimento de que, nesses nichos, a decisão penal condenatória deve lhe estar igualmente acometida. "Ubi eadem ratio, ibi idem jus".

2.15. Diga-se, por fim, que a tese da competência penal-trabalhista tem precedentes concretos no Direito comparado. Em Portugal, p. ex., conquanto não existam ramos judiciários autônomos do ponto de vista funcional, administrativo e orçamentário, há tribunais e juízos de competência especializada (Secção III do Capítulo V da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais ? Lei n. 3/99, de 13 de janeiro). O artigo 78º relaciona expressamente os tribunais de instrução criminal, os de família, os de menores, os do trabalho, os de comércio, os marítimos e os de execução das penas. E, na regra de competência dos tribunais do trabalho, estabelece o artigo 86º da Lei n. 3/99:

Competência contravencional. Compete aos tribunais do trabalho conhecer e julgar, em matéria contravencional:

a) As transgressões de normas legais e convencionais reguladoras das relações de trabalho;

b) As transgressões de normas legais ou regulamentares sobre encerramento de estabelecimentos comerciais ou industriais, ainda que sem pessoal ao seu serviço;

c) As transgressões de normas legais ou regulamentares sobre higiene, salubridade e condições de segurança dos locais de trabalho;

d) As transgressões de preceitos legais relativos a acidentes de trabalho e doenças profissionais;

e) As infracções de natureza contravencional relativas à greve;

f) As demais infracções de natureza contravencional cujo conhecimento lhes seja atribuído por lei.

Trata-se de competência eminentemente penal, embora não extensível aos crimes [32]. Tanto que a competência administrativa ? similar àquela inserta no artigo 114, VII, da CRFB ? é objeto do artigo 87º (impugnação das decisões das autoridades administrativas em processos de contra-ordenação nos domínios laboral e de segurança social), enquanto a competência estritamente cível é objeto de tratamento exauriente no artigo 85º (questões emergentes das relações de trabalho subordinado e dos contratos individuais de trabalho, anulação e interpretação dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho, questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, questões emergentes de contratos de aprendizagem e tirocínio, questões entre associações sindicais e sócios ou pessoas por elas representados, questões entre comissões de fábrica e as respectivas comissões coordenadoras, os trabalhadores ou as empresas, etc.). E, na linha do cabal reconhecimento daquela competência penal, a franca doutrina aponta a adstrição dos tribunais do trabalho, nessa matéria, às normas constitucionais do devido processo penal (artigos 29º, 30º e 32º da CRP) [33]. Tratamento semelhante pode ser vislumbrado nos sistemas jurídicos espanhol, italiano e alemão (embora a tendência legislativa, em toda a Europa, seja a progressiva eliminação do ilícito contravencional, em favor de um sistema administrativo-sancionador de mera ordenação social [34]). Como se vê, a experiência jurídica alienígena legitima o modelo de repartição coerente das competências "a parte objecti", reservando para os juízes e tribunais do trabalho certa competência penal (ações condenatórias inclusive), em maior ou menor escala, e uma ampla competência contra-ordenacional, precisamente naquilo que se relaciona ao principal objeto fenomenológico de sua atuação jurisdicional (a saber, as relações de trabalho).


III. DA INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO E DA DECLARAÇÃO PARCIAL DE NULIDADE SEM REDUÇÃO DE TEXTO: DESCABIMENTO. «PROCEDURAL DUE PROCESS» E GARANTIA DO JUIZ NATURAL (CARÁTER PRINCIPIOLÓGICO)

O pedido deduzido na ADIn n. 3684/2006 visa a uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto ("Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung"), como resultado de uma interpretação conforme à Constituição ("verfassungskonforme Auslegung"). Na verdade, tais figuras não se confundem. Como pondera BRUN-OTTO BRYDE,

A semelhança de efeitos dos dois instrumentos não altera a fundamental diferença existente entre eles. Eles somente poderiam ser identificados se se considerasse a interpretação conforme à Constituição não como regra normal de hermenêutica, mas como um expediente destinado a preservar "leis inconstitucionais". Não se tem dúvida, outrossim, de que a Corte Constitucional utiliza, muitas vezes, a interpretação conforme à Constituição com esse desiderato. É certo, também, que nesses casos, mais adequada seria a pronúncia da declaração de nulidade parcial sem redução de texto. Se utilizada corretamente, a interpretação conforme à Constituição nada mais é do que interpretação da lei (Gesetzesauslegung), uma vez que qualquer intérprete está obrigado a interpretar a lei segundo as decisões fundamentais da Constituição [grifos nossos]. [35]

3.2. Tal é o caso dos autos. A rigor, o Parquet não pretende obter uma interpretação conforme à Constituição ? que, na acepção técnica, importaria em obter uma única interpretação do artigo 114, I, conforme à Constituição (declarando, por conseqüência, a incompatibilidade de todas as outras interpretações possíveis) ?, mas uma declaração parcial de nulidade sem redução de texto. Nessa última, os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública ficam proibidos de perfilhar determinadas interpretações, sem prejuízo de todas as demais; já na interpretação conforme à Constituição, o Poder Judiciário e a Administração Pública estão proibidos de veicular toda e qualquer interpretação diversa daquela declarada pelo STF [36]. Como a preambular da ADIn n. 3684/2006 não apresenta um conceito ontológico exauriente para a locução "ações oriundas da relação de trabalho" (artigo 114, I), limitando-se a repelir a tese da competência penal residual, está claro que a hipótese não pode ser de interpretação conforme à Constituição ("stricto sensu").

3.3. A interpretação conforme à Constituição encontraria, de resto, limites na expressão literal do texto normativo ("Wortlaut"), em face da primazia e da presunção de constitucionalidade dos atos do legislador democrático (o que inclui, "in casu", as emendas constitucionais) [37]. Com efeito, não somente os propósitos perseguidos pelo legislador, mas também a letra do enunciado normativo impõe limites ao controle de constitucionalidade via interpretação conforme. Isso porque "o princípio da interpretação conforme a Constituição não contém [...] uma delegação ao Tribunal para que proceda à melhoria ou ao aperfeiçoamento da lei". [38] Ora, a considerar os termos dos tópicos 2.7 e 2.8 (supra), uma interpretação conforme que recusasse competência penal estrita à Justiça do Trabalho importaria em redução do texto do artigo 114, IV, da CRFB, comprometendo sua expressão literal. E esse limite não pode ser transposto pela "verfassungskonforme Auslegung", como outrora decidiu o Excelso Pretório (ADIn n. 1.417/87-DF [39]).

3.4. Por outro lado, tampouco a declaração parcial de nulidade sem redução de texto se afigura correta, mercê da norma constitucional evocada pelo Exmo. Procurador-Geral da República para justificar a medida. O princípio do juiz natural (artigo 5º, LIII, da CRFB), assim como o correlato princípio do promotor natural, são corolários do "procedural due process" (= devido processo legal formal [40]), insculpido no artigo 5º, LIV, da CRFB [41].

3.5. É que a garantia do devido processo legal formal, como em geral toda norma de direito fundamental, tem natureza própria de princípio jurídico [42]. À diferença das regras, que são proposições normativas aplicáveis em regime de "all-or-nothing", os princípios são normogenéticos e contêm carga valorativa, fundamento ético ou decisão política relevante que indicam uma direção a seguir [43]. Por isso, ALEXY os define como mandados de otimização, que

ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. [...] estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais, senão também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos. [44]

3.6. Nesse encalço, se o devido processo legal e os seus consectários imediatos (imparcialidade, contraditório, juiz natural, etc.) têm natureza de princípios, não se pode pretender excluir "prima facie" uma alternativa hermenêutica que, por um lado, não encontra objeções expressas no texto constitucional e, por outro, tende a convergir para a realização de dois princípios conexos tão importantes como o princípio material da eficiência administrativa (artigo 37, caput, in fine, da CRFB) ? dada a maior capilaridade dos órgãos da Justiça do Trabalho no interior do país e a ótima interação do binômio oralidade/celeridade nos processos judiciais correspondentes ? e o princípio hermenêutico da máxima efetividade ? pelo qual "a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda" [45] (o que significa, neste caso, potencializar o respeito e a satisfação dos direitos sociais "stricto sensu", em face da sensibilidade epidérmica do juiz laboral para o trato das questões relativas ao trabalho humano e, bem assim, dos contundentes efeitos de prevenção negativa geral e especial que a aplicação efetiva da legislação penal-trabalhista deverá produzir nas comunidades laborais dominadas pela sensação de anomia).

3.7. A cláusula do devido processo legal deve ser interpretada numa perspectiva pós-positivista, sensível ao programa normativo (i.e., à Constituição e às leis) e ao domínio normativo (i.e., à realidade social) [46]. Daí porque não se pode tolher com efeitos "erga omnes" uma interpretação que, se não tem assento em texto constitucional expresso, tampouco contraria proibição literal. Mais do que isso, admitindo-se a ascendência axiológica do princípio da valorização do trabalho humano (artigos 1º, IV, 1ª parte, e 170, caput, da CRFB) como fundamento maior da própria instituição da Justiça do Trabalho, será forçoso reconhecer a eficácia interpretativa desse princípio em matéria penal estrita, autorizando que

o intérprete faça a opção, dentre as possíveis exegeses para o caso, por aquela que realiza melhor o efeito pretendido pelo princípio constitucional pertinente [grifos nossos]. [47]

3.8. Seguramente não há, nesse campo, interpretação mais adequada para a (re)valorização do trabalho humano que a exegese que acomete à Justiça do Trabalho a competência para o processo e o julgamento dos crimes contra a organização do trabalho de afetação individual. Tal competência dispensa a literalidade, pois se trata de competência penal residual (que, a exemplo da exercida pela Justiça Estadual Comum, pode exsurgir implícita no texto constitucional). E tampouco o elemento genético-histórico evocado no item n. 23 da ADIn n. 3684/2006 (rejeição, no Senado, nas emendas e destaques que pretendiam positivar a competência criminal da Justiça do Trabalho) tem o condão de repelir essa linha interpretativa: como se sabe, a norma desprega-se do legislador no momento em que entra em vigor, deixando de ser um repositório formal das vontades históricas do corpo legiferante. Do contrário, não haveria ensejos para a interpretação histórico-evolutiva e textos normativos como o Código Civil de 1916, o Código Penal de 1940 (com Parte Geral de 1984) ou a Consolidação das Leis do Trabalho de 1943 não comportariam sobrevida dão extensa. Ou, no escólio de DINIZ DANTAS (com fundamento em DWORKIN),

Não existe algo como o significado objetivo, entendido como atribuição de sentido definitivo. Do ângulo da "teoria subjetiva", embora seja importante a investigação dos motivos e circunstância que impulsionaram a sua criação [das disposições legislativas], "a intenção do autor", quando se torna um método, implica as convicções do intérprete. [...] A interpretação é por natureza o informe de um propósito: propõe uma maneira de ver aquilo que se está interpretando ? no caso do Direito, uma prática social argumentativa que se enuncia em textos ? como se isso fosse o produto da decisão de buscar um conjunto de temas, visões ou propósitos [...] [grifos nossos]. [48]

Em síntese: a despeito dos trabalhos prévios, das motivações e dos materiais legislativos que cercaram as primícias da EC n. 45/2004, após a sua edição há que buscar, em primeiro lugar, a "mens legis" (e não, mecanicamente, a "mens legislatoris").

3.9. Por tudo isso, é indene de dúvidas que a cláusula do devido processo legal ou os princípios do juiz natural e do promotor natural não impõem e nem poderiam impor, ao artigo 114, I, IV e/ou IX da CRFB, interpretação conforme ou declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto. No primeiro caso, chegar-se-ia a um engessamento impraticável do conteúdo de princípios que, por definição, atuam no sistema jurídico como mandados de otimização com caráter "prima facie". Cingi-los a um único conteúdo seria conspurcar-lhes a natureza mesma de princípio. No segundo caso, recusar toda e qualquer competência penal à Justiça do Trabalho ? sobre aviltar, à vista do artigo 114, IV, a expressão literal do texto como limite jurídico-funcional da interpretação constitucional "in genere" (HESSE) ? seria referendar sem mais a tradição do Judiciário brasileiro e romper com o paradigma da Reforma do Judiciário (competências "a parte objecti"), fazendo tábula rasa de princípios como o da eficiência administrativa, o da máxima efetividade (dos direitos sociais "stricto sensu") e a própria eficácia interpretativa do princípio da valorização do trabalho humano.

3.10. Deve-se confiar ao sistema judiciário brasileiro e à sua jurisprudência a consolidação do alcance e do conteúdo das normas de competência do artigo 114, I, IV e IX da CRFB. Como outrora pontificou o Min. MOREIRA ALVES (noutro contexto),

Quando declaro que uma interpretação é razoável, nem por isso estou declarando que outra interpretação, sobre o mesmo dispositivo, também não possa ser razoável. A razoabilidade de uma não implica, necessariamente, a desarrazoabilidade da outra. [49]

Assim também há de ser agora. Se a interpretação conforme e/ou a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto houvesse sido aplicada nas origens dos debates judiciais em torno da competência da Justiça do Trabalho para o processo e o julgamento de ações rescisórias (Enunciado n. 144 do C.TST [50]) ou para as ações de indenização por danos morais e materiais decorrentes de acidentes de trabalho (artigo 114, VI, da CRFB; Conflito de Competência n. 7.204-1/MG, rel. Min. Ayres Britto), a jurisprudência nacional não teria evoluído e tais matérias não estariam aduzidas em definitivo à competência material dos juízes do Trabalho. Que a História judiciária recente sirva-nos, pois, de lição.


IV. CONCLUSÕES

À guisa de conclusão, passo de imediato à apreciação dos quesitos formulados alhures, para respondê-los nos seguintes termos.

(a) Sim, a Justiça do Trabalho detém competência penal estrita sob a égide da Emenda Constitucional n. 45/2004. Detém-na, por expressa letra constitucional, para uma típica ação penal liberatória (o "habeas corpus", do inciso IV do artigo 114, que é ação penal popular constitucional); e, por interpretação construtiva de fundo histórico-sistemático, para as ações penais condenatórias diretamente «oriundas da relação de trabalho» (artigo 114, I).

(b) Não. A Constituição não veda expressamente o exercício da competência penal-trabalhista pelos órgãos da Justiça do Trabalho (o que significa que, pela aplicação "a contrario" do princípio da conformidade funcional, não se exige do Tribunal constitucional uma interpretação manietadora). Também não a atribui expressamente ? mas tampouco a atribui aos órgãos das Justiças estaduais, que, todavia, exercem-na desde a aurora do Estado brasileiro independente. Por outro lado, as garantias do devido processo, do juiz natural e do promotor natural têm caráter principiológico, tal como os outros direitos fundamentais expressos ou adscritos à Carta de 1988. Tais garantias devem ser concretizadas segundo os princípios de interpretação constitucional, entre os quais o da unidade da Constituição, o da máxima efetividade, o da "justeza" ou conformidade funcional e o da força normativa da Constituição; devem, ainda, convergir para outros princípios materiais da Constituição, como o princípio da eficiência administrativa (artigo 37, caput, in fine) e o princípio da valorização do trabalho humano (artigos 1º, IV, 1ª parte, e 170, caput). Reconhecer a competência penal estrita da Justiça do Trabalho atende melhor àqueles princípios hermenêuticos e, a médio e longo prazos, otimiza a realização desses últimos.

(c) Não, em termos. A declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, tal como pedida na ADIn n. 3684/2006, importaria em retirar obliquamente a eficácia do artigo 114, IV, da CRFB, no que atine ao "habeas corpus". Paradoxalmente, traria redução de texto, justamente onde não se suscitam dúvidas quaisquer de constitucionalidade. De outra parte, engessaria a legítima construção jurisprudencial das instâncias de base, romperia com o padrão ideológico da Reforma do Judiciário (competências "a parte objecti") e aviltaria a natureza mesma dos princípios evocados na ação, por enquadrar indevidamente a cláusula do devido processo legal, com prejuízo do seu caráter de mandado de otimização "prima facie". Já quanto à interpretação conforme à Constituição, por tudo quanto se expôs, se o artigo 114, I, da CRFB de algum modo a desafia, será para, ao contrário, referendar a competência penal estrita da Justiça Obreira, inclusive quanto a certa gama de ações penais condenatórias.

É, s.m.j., o que me parece.

GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO


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NOTAS

01 ADIn n. 3684/2006, p.04, item n. 09 (negritos no original).

02 In Informativo STF n. 132, 16 a 20.11.1998.

03 Cfr., por todos, José Cairo Júnior, O Acidente de Trabalho e a Responsabilidade Civil do Empregador, São Paulo, LTr, 2003, pp.69-73 e 92 (sustentando a natureza contratual ? e não aquiliana ? da responsabilidade civil do empregador pelos danos materiais e morais suportados por empregado acidentado).

04 Cfr. Guilherme Guimarães Feliciano, "Outros horizontes: sobre a competência da Justiça do Trabalho para causas de Direito Administrativo sancionador", in Revista Trabalhista: Direito e Processo, Rio de Janeiro, Editora Forense, 2005, v. 14 (abril-junho), pp. 91-115.

05 Cfr. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª ed., São Paulo, Malheiros, 1993, pp.396-397 (com supedâneo no escólio de FIRMÍN MORALES PRATS, da Universidade de Barcelona). Cfr., ainda, Guilherme Guimarães Feliciano, "Tutela Processual dos Direitos Humanos nas Relações de Trabalho", in Jus Navigandi, Teresina, a.10, n. 910, 30.12.2005, disponível em <http://jus.com.br/artigos/7810> (acesso em 24.03.2006).

06 Cfr. Guilherme Guimarães Feliciano, "Justiça do Trabalho: nada mais, nada menos", in Justiça do Trabalho: Competência Ampliada, Grijalbo Fernandes Coutinho, Marcos Neves Fava (coord.), São Paulo, LTr/ANAMATRA, 2005, pp.125-127.

07 STF, Conflito de Competência n. 6979-1/DF, rel. Min. Ilmar Galvão, 15.08.1991). Foi vencido o Min. Carlos Velloso. Em sentido contrário, afirmando a competência da Justiça do Trabalho (sem, todavia, controverter o caráter penal do remédio), cfr., por todos, TST, RO-HC n. 167.113/95.1, rel. Min. Indalécio Gomes Neto, ac. SDI 4.148/95). Apesar da jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, o próprio Regimento Interno do Tribunal Superior do Trabalho previa, mesmo antes da EC n. 45/2004, a tramitação de habeas corpus nos tribunais do trabalho (cfr. o artigo 184, IV, do RITST, tal como aprovado pela Resolução Administrativa n. 908/2002).

08 In DJU 16.03.1992, p.3075. Ementa: "ATO COATOR ATRIBUIDO A PRESIDENTE DE JUNTA DE CONCILIAÇÃO E JULGAMENTO. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL, E NÃO DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO, PARA JULGAMENTO DO «HABEAS CORPUS». PRECEDENTE JURISPRUDENCIAL".

09 In DJU (2ª S.) 26.10.1994, p. 61.623.

10 In Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Revista dos Tribunais/IBCCrim, 1993, n. 2, p.244.

11 Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, 16ª ed., São Paulo, Saraiva, 1994, v. 4, pp.443-444: "Então, se o habeas corpus não é um recurso, no sentido técnico da expressão, qual seria sua natureza jurídica? Às vezes, como nas hipóteses dos incs. II, III, IV e V do art. 648, é uma verdadeira ação penal cautelar, pois visa a impedir que o desenrolar moroso do processo, ou de outra qualquer providência que possa ser tomada, venha acarretar maior restrição ao status libertatis do paciente. Nas hipóteses dos incs. VI e VII, se houver sentença com trânsito em julgado, funciona ele como verdadeira ação penal constitutiva, pois visa a extinguir uma situação jurídica. [...] E, dependendo da hipótese concreta, o habeas corpus, com fundamento no inc. I, poderá ter a natureza de ação penal cautelar, de ação penal constitutiva ou até mesmo declaratória" [grifos nossos].

12 Julio Fabbrini Mirabete, Processo Penal, 3ª ed., São Paulo, Atlas, 1994, p.681: "Trata-se realmente de ação penal popular constitucional, embora por vezes possa servir de recurso" [grifos nossos].

13 Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, São Paulo, Atlas, 1999, p.128.

14 Os autores propugnavam, antes da EC n. 45/2004, ser da competência dos Tribunais Regionais Federais o processo e o julgamento das ações de habeas corpus em que se discute coação atribuída a juiz do Trabalho de primeiro grau (o que significa, indiretamente, reconhecer o caráter estritamente penal do remédio, já que o fundamento da tese era a aplicação analógica, à hipótese, do artigo 108, I, "a", da CRFB ? que trata de competência criminal). Cfr. Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes, Recursos no Processo Penal, 3ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2001, p.367.

15 Mas não se resume a eles. Na perspectiva funcional em testilha, também passam à esfera de competência da Justiça do Trabalho outros delitos, em cuja configuração elementar esteja a relação de emprego ou o seu objeto fenomenológico (prestação de trabalho sob subordinação). Tal é o caso, p. ex., do crime de plágio ou redução à condição análoga a de escravo (artigo 149 do Código Penal) e, bem assim, do crime de assédio sexual (artigo 216-A do Código Penal), exceto na hipótese de ascendência inerente a cargo ou função estatutários (diante dos efeitos reflexos da liminar deferida pelo Min. Nelson Jobim nos autos da ADIn n. 3395/2005, rel. Min. Cezar Peluso ? ajuizada pela AJUFE).

16 Nesse sentido, cfr. por todos, mais recentemente, o ac. STJ n. HC 601/RS, 5ª T., rel. Min. Francisco de Assis Toledo, j. 01.04.1991, in DJU 29.04.1991, p.5276. Ementa: "CRIME DE FRUSTRAÇÃO DE DIREITO TRABALHISTA. NÃO HAVENDO OFENSA A ORGANIZAÇÃO GERAL DO TRABALHO OU A DIREITO DOS TRABALHADORES COLETIVAMENTE CONSIDERADOS, COMPETE À JUSTIÇA COMUM ESTADUAL O PROCESSO E JULGAMENTO DO FATO. «HABEAS CORPUS» CONCEDIDO PARA TRANCAR O INQUÉRITO QUANTO À FALSIFICAÇÃO E AO CONSTRANGIMENTO ILEGAL, DETERMINANDO-SE A REMESSA DO INQUÉRITO, RELATIVAMENTE À PARTE RESIDUAL, PARA A JUSTIÇA ESTADUAL".

17 Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, 3. Aufl., Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1996, pp.446. No original: "Der prozedurale und der materiale Aspekt sind also, was den Zusammenhang von Grundrechten und rechtsförmigen Verfahren anbelangt, in einem duelen Modell zu vereinigen, das den Primat des materiales Aspekts wahrt". O autor trata, aqui, dos procedimentos judiciais e administrativos como objetos dos chamados «direitos fundamentais de organização e procedimento» (Rechte auf Organisation und Verfahren).

18 Sobre o princípio da instrumentalidade processual, cfr., por todos, Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do processo, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 1994, passim. Manifesta-se, na legislação, em diversos dispositivos, como, p. ex., nos artigos 244, 249, §§ 1º e 2º, e 250, par. único, todos do CPC.

19 Robert Alexy, Theorie..., p.446 (conquanto fale apenas em Verfahrennormen).

20 Cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 1999, pp.1148-1151.

21 Konrad Hesse, Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha, trad. Luís Afonso Heck, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p.68.

22 J. J. Gomes Canotilho, op.cit., p.1151.

23 Cfr. Ministério da Justiça, "Diagnóstico do Poder Judiciário", Brasília, Governo Federal, 2004, pp.37-39 (<http://www.mj.gov.br/reforma/index.htm>, acesso em 24.03.2006). Consoante as estatísticas da Secretaria da Reforma do Judiciário, válidas para o ano-base 2003 (dados oficiais do Ministério da Justiça), "o índice médio de 57% de processo julgado por processo distribuído, registrado na 1ª instância da Justiça Federal foi o mais baixo entre todos os tipos de tribunais de julgamento do país. Apenas três estados julgaram mais do que dois terços dos processos distribuídos" (p.43), embora o estudo não tenha considerado os números dos Juizados Especiais Federais (p.38). Já na Justiça do Trabalho (1ª instância), "todos os índices são altos e acima de 87%, o que indica a capacidade desta instância da Justiça trabalhista de absorver a demanda de processos" (p.47). Na 2ª instância trabalhista, a média chegou a 97% de processos julgados por entrados, "evidenciando ser satisfatório o atendimento da demanda nesta instância da Justiça trabalhista" (p.49). Na Justiça Federal, essa média caía para 92,4% (p.44), anotando-se, porém, que a melhor proporção entre julgados e distribuídos era do TRF da 2ª Região, cujo volume de processos representava apenas 11,3% do total. E, como nota conclusiva, registrou-se que "a Justiça do Trabalho em 1ª e 2ª instâncias é a que menos acumula estoque de processos, levando-se em consideração a relação processos entrados/julgados" (pp. 11 e 37). Diga-se, por oportuno, que a intenção do presente cotejo é tão-só demonstrar a aptidão estrutural e funcional da Justiça do Trabalho para absorver a competência penal-trabalhista, com ganhos efetivos na realidade social brasileira. Os números não servem para eleger a "melhor" ou a "pior" Justiça, mesmo porque cada ramo do Poder Judiciário tem suas mazelas, seus pontos fortes e suas idiossincrasias.

24 Revitalizam-se, sobretudo, os efeitos de prevenção geral positiva fundamentadora; e, num segundo momento, os de prevenção geral positiva limitadora. Sobre esses conceitos, cfr., por todos, Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000, v. 1, pp.84-90.

25 Konrad Hesse, op.cit., p.68.

26 Robert Alexy, Theorie..., pp.520-521 (o neologismo deve-se à expressão alemã "Kontrollierbarkeit").

27 Leitsungsrechte im engeren Sinne, que correspondem aos soziale Gundrechte (Robert Alexy, Theorie..., pp.454-472).

28 Robert Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica, trad. Zilda Hutchinson Schild Silva, São Paulo, Landy, 2001, p.230. Na configuração de ALEXY, «R» é a norma (no nosso caso, a norma de competência do artigo 114/CRFB) e «I» é a sua interpretação; «W» é o argumento semântico (= "regra do uso da palavra", segundo o costume lingüístico); «R’» é a norma «R» interpretada; « IRW = R’» significa que a interpretação de «R» pelo argumento «W» conduz a «R’»; «Z», por fim, é o objetivo maior visado pelo legislador ("telos"). ALEXY demonstra, por essa via, as dificuldades da argumentação semântico-genética e a legitimidade de sua superação, com melhores razões, visando aos fins («Z») da norma positiva («R»). Na hipótese "sub examinen" (artigo 114/CRFB), a premissa «(a)», baseada no argumento semântico-genético «W» ? pelo qual o legislador, ao não referir textualmente a competência da Justiça do Trabalho para ações penais condenatórias e ao rejeitar as emendas que a conferiam por expresso, teria querido «R» (= artigo 114/CRFB) com a intenção de ser interpretado restritivamente (= sem competência penal) ? sequer é racionalmente demonstrável, já que se baseia em um psicologismo intuitivo.

29 Normas jusfundamentais adscrita (= Zugeordnete Grundrechtsnormen), segundo ALEXY, são aquelas que não estão diretamente expressadas pelos enunciados da Lei Fundamental, mas estão em conexão teleológica com o seu texto e, por isso, têm status constitucional. O intérprete chega a elas através da chamada «relação de precisão» («Präzisierungsrelation») entre a norma "escrita" e a adscrita. Cfr. Robert Alexy, Theorie..., pp.57-63.

30 STF, RE n. 141.209-7-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 04.02.1992, in DJU 20.03.1992, p. 3326. A ementa está negritada.

31 STF, RE n. 141.211-SP, rel. Min. Néri da Silveira, j. 26.05.1992, in DJU 28.08.1992, p. 13.456; RTJ 144/340. A ementa está negritada.

32 Evocando a célebre lição do Min. NELSON HUNGRIA, crimes e contravenções são ontologicamente iguais, distinguindo-se apenas na gravidade ou intensidade da lesão jurídica ? donde falar que a contravenção penal seria, por si, um "crime-anão". Consoante BASILEU GARCIA, "as infrações penais dividem-se em crimes ou delitos e contravenções (divisão bipartida) ou, pelo sistema tricotômico, em crimes, delitos e contravenções. [...] No Brasil, a dicotomia é tradição do sistema jurídico, tal como acontece em Portugal, na Itália e em muitos outros países" (Basileu Garcia, Instituições de Direito Penal, 4ª ed., 31ª tiragem, São Paulo, Max Limonad, 1959, v. I, t. I, p.197 ? grifos nossos). Na jurisprudência portuguesa, aplicando o princípio penal da retroatividade da lei mais benigna ("novatio legis in mellius") em matéria contravencional, cfr., por todos, o ac. STJ, nº convencional JSTJ00002754, rel. Cons. Costa Ferreira, documento n. SJ198206160366583, j. 16.06.1982, v.u. (in Boletim Mensal de Jurisprudência n. 318, ano 1982, p. 291). In verbis: "A doutrina e a jurisprudência admitem que, excepcionalmente, em contravenções puníveis com pena de multa, sejam responsáveis pessoas colectivas. II - A contravenção prevista e punível pelas disposições combinadas dos artigos 2, n. 1, alínea d), artigo 1, e 15, n 2, do Decreto-Lei n. 260/77, de 21 de Junho, e, quanto aos seus elementos essenciais, a mesma que passou depois a ser prevista e punível pelos preceitos conjugados do artigo 2, alínea b), artigo 1, n. 1, e artigo 17, n. 1 do Decreto-Lei n 98/80, de 5 de Maio, e, actualmente pelo artigo 2, n. 1, alínea b) e n. 3, e artigo 1, n. 1 do Decreto-Lei n. 189-C/81, de 3 de Julho, pois, em qualquer dos três diplomas, pune-se o facto da não comunicação, no prazo legal, pelas entidades singulares ou colectivas, gestores de prédios rústicos ou nacionalizados ou expropriados, com montados de sobro, das quantidades previsíveis de cortiça disponível para extracção. III - Assim, aplicando o artigo 6º do Código Penal, o infractor beneficia da alteração da lei, estabelecendo pena mais leve".

33 A rigor, advoga-se já a extensão "in integrum" das regras do devido processo penal aos próprios procedimentos administrativos que apuram contra-ordenações, conquanto regidos, em tese, pelo Código de Processo Administrativo (Decreto-lei n. 442/91, de 15 de novembro). Fundamenta-se a idéia no artigo 32º, 10, da CRP ("Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao argüido os direitos de audiência e defesa") e, bem assim, na sua "ratio juris" fundamental. Veja-se, p. ex., o caso do artigo 125º do CPA, que autoriza a condenação administrativa por mera «remissão fundamentadora» à proposta do instrutor. Sobre isso, na perspectiva juslaboral, JOÃO RATO observou, com a doutrina dominante, que os tribunais do trabalho portugueses, "quando chamados em sede de recurso de impugnação judicial das questionadas decisões administrativas, vêm propendendo para as considerar nulas ou mesmo inexistentes, sufragando a tese de que o direito de mera ordenação social, qualquer que seja a perspectiva de intervenção, sendo direito sancionatório público, participa ainda que de certa forma da natureza própria do direito penal, devendo, por conseguinte, o correspondente processo, pelo menos no que interfira com o direito de defesa dos argüidos, obedecer a trâmites iguais ou próximos do processo penal, que obriga à expressa fundamentação de todas as decisões, como impõe o artigo 374º do Código de Processo Penal, sendo para alguns indubitável que nele têm aplicação subsidiária, mas integral, as regras do Direito Penal e do Processo Penal, quanto mais não seja por força do disposto nos artigos 32º e 41º da Lei Quadro das contra-ordenações, consagrada pelo Decreto-lei nº 433/82, de 27-10, também aplicável naturalmente no domínio das contra-ordenações laborais, afastando liminarmente e em qualquer caso a aplicação ao processo contra-ordenacional do regime estabelecido no CPA" (João Rato, "Contra-ordenações laborais", in Questões Laborais, Coimbra, Associação de Estudos Laborais (A.E.L.), 2005 (ano X), n. 21, pp.112-113 – grifos nossos). No mesmo sentido, ANTÓNIO BEÇA PEREIRA (Questões Laborais, 2003 (ano VIII), n. 18, pp. 142 e ss.). O Tribunal Constitucional português, todavia, ainda parece sufragar a tese oposta (ac. 50/2003 e 62/2003, de 29 de janeiro e de 04 de fevereiro, respectivamente).

34 Em Portugal, veja-se, e.g., a Lei Quadro das Contra-Ordenações (Decreto-lei n. 433/82, de 27 de outubro), o Programa do X Governo Constitucional ? que prevê a "progressiva eliminação do ilícito contravencional, embora conferindo um sentido coerente ao sistema de mera ordenação social" (in <http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT/Governos/Governos_Constitucionais/GC10/Programa/>, acesso em 24.03.2006) ? e, no caso específico dos ilícitos rodoviários, o teor do novo Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de maio (que transformou em contra-ordenação administrativa a antiga contravenção de condução sob influência de álcool em via pública ou equiparada). Na Alemanha, vejam-se as OwiG ("Gesetz über Ordnungswidrigkeiten", ou Lei de Infrações Administrativas, editadas entre 1952 e 1987), que substituíram paulatinamente as contravenções penais alemãs.

35 Brun-Otto Bryde, Verfassungsentwicklung, Stabilität und Dynamik im Verfassungsrecht der Bundesrepublik Deutschland, p.411, apud Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 1999, p.236.

36 Cfr., por todos, Eduardo Fernando Appio, Interpretação conforme a Constituição, Curitiba, Juruá, 2002, pp.75-79.

37 Cfr. Konrad Hesse, op.cit., pp.73-75; Gilmar Ferreira Mendes, op.cit., p.232.

38 Gilmar Ferreira Mendes, op.cit., p.232.

39 "[...] Por isso, se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme a Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo" (STF, Tribunal Pleno, Min. José Carlos Moreira Alves, 09.12.1987, in DJ 15.04.1988, p.8397). Na doutrina, cfr. Luís Roberto Barroso, Ana Paula de Barcellos, "O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro", in Revista Forense, Rio de Janeiro, Forense, jan./fev. 2004, v. 371, p.193: "Em qualquer de suas aplicações, o princípio [da interpretação conforme à Constituição] tem por limite as possibilidades semânticas do texto, para que o intérprete não se converta indevidamente em um legislador positivo". Com isso, resguarda-se o princípio da independência e harmonia entre os Poderes da República (artigo 2º da CRFB).

40 Que não se confunde com o devido processo legal substantivo (= "substantive due process"), conexo ao princípio da proporcionalidade e, nessa medida, implicitamente acolhido na CRFB/88. Na dicção de BARROSO, "o princípio do devido processo legal, nos Estados Unidos, é marcado por duas grandes fases: a primeira, onde se revestiu de caráter estritamente processual (procedural due process), e uma segunda, de cunho substantivo (substantive due process), que se tornou fundamento de um criativo exercício de jurisdição constitucional. De fato, ao lado do princípio da igualdade perante a lei, esta versão substantiva do devido processo legal tornou-se importante instrumento de defesa dos direitos individuais, ensejando o controle do arbítrio do Judiciário e da discricionariedade governamental. É por seu intermédio que se procede ao exame de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality) das normas jurídicas e dos atos do Poder Público em geral" (Luís Roberto Barroso, "Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no Direito Constitucional", in Revista do Ministério Público, Rio de Janeiro, MPERJ, jul./dez. 1996, n. 4, pp.160-161).

41 "Um princípio mais geral ? como o do «devido processo legal» ? pode fundamentar, seguindo esse método [= elaborar normas que se supõem instrumentais à atuação de outras normas], outro mais específico, como o da «ampla defesa» ou o da «imparcialidade do juiz»" (Thomas da Rosa de Bustamante, "Sobre o reconhecimento e a fundamentação de normas implícitas no Direito brasileiro", in RT 829/90-102 (p.99). O mesmo se diga dos princípios do juiz natural e do promotor natural.

42 Cfr., por todos, Robert Alexy, Theorie..., pp.71-72.

43 Cfr. J. J. Gomes Canotilho, op,cit., pp.1086-1087; Luís Roberto Barroso, Ana Paula de Barcellos, op.cit., pp.182-183.

44 Robert Alexy, Theorie..., p.75. No original: "[...] daβ etwas in einem relativ auf die rechtlichen und tatsächlichen Möglichkeiten möglichst hohen Maβe realisiert wird. […] die dadurch charakterisiert sind, daβ sie in unterschiedlichen Graden erfüllt warden können und daβ gebotene Maβ ihrer Erfüllung nicht nur von den tatsächlichen, sondern auch von den rechtlichen Möglichkeit abhängt. Der Bereich der rechtlichen Möglichkeiten wird durch gegenläufige Prinzipien und Regeln bestimmt".

45 Alexandre de Moraes, Direitos Humanos Fundamentais, 3ª ed., São Paulo, Atlas, 2000, p. 23. No mesmo sentido, no Direito alienígena, J. J. Gomes Canotilho, op.cit., 1149: "Este princípio, também designado por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efectiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvida deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais)" [grifos nossos].

46 Luís Roberto Barroso, Ana Paula de Barcellos, op.cit., p.178, nota n. 7.

47 Luís Roberto Barroso, Ana Paula de Barcellos, op.cit., p.197.

48 David Diniz Dantas, Interpretação Constitucional no Pós-Positivismo: Teoria e Casos Práticos, 2ª ed., São Paulo, Madras, 2005, p.246. Em sentido semelhante, leia-se ainda Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação, São Paulo, Atlas, 1991, pp.246-247.

49 RTJ 92/1129. Debatia-se, entre outras coisas, o teor da Súmula n. 400 do STF.

50 Ex-prejulgado n. 16, hoje cancelado pela Resolução n. 121/2003.


Autor

  • Guilherme Guimarães Feliciano

    Professor Associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Juiz Titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Doutor pela Universidade de São Paulo e pela Universidade de Lisboa. Vice-Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELICIANO, Guilherme Guimarães. Da competência penal na Justiça do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1010, 7 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16676. Acesso em: 19 abr. 2024.