Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/peticoes/16686
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Ato administrativo nulo.

Imprescritibilidade. Relativização da coisa julgada

Ato administrativo nulo. Imprescritibilidade. Relativização da coisa julgada

Publicado em . Elaborado em .

Petição, fundamentada em abrangente doutrina, que aborda o polêmico tema da relativização da coisa julgada, em decorrência de nulidade de ato administrativo, mesmo quinze anos após o prazo prescricional. O pedido se encontra tramitando.

EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DA CAPITAL

em face do Estado da Bahia, pessoa jurídica de direito público interno representada, ex vi a previsão normativa do Art. 12 do CPC, pelo seu Procurador Geral, cujo endereço para intimações fica na sede da Procuradoria Geral do Estado, localizada na Praça Dois de Julho, nº 382, Campo Grande, o que passa a fazer com espeque na previsão normativa constante do Art. 93 da Constituição de República, Art. 4º do Código de Processo Civil , bem como nas razões de fato e de direito a seguir aduzidas.


Dos fatos

1.O Autor é ex-policial-militar. Tendo ingressado no serviço ativo na Polícia Militar do Estado da Bahia em data de 10.12.1982 nele permaneceu até a data de 15 de junho de 1984, quando, mediante ato administrativo publicado no Boletim Geral Ostensivo nº 112, da referida data (pág. 1.915) veio a ser excluído disciplinarmente, por aplicação de preceito contido na Lei estadual nº 3.933/81, o Estatuto dos Policiais Militares então vigente.

2.Sucede que a mencionada medida não foi cercada do respeito devido ao direito do então PM ao contraditório e ampla defesa, que constava do Art. 153, § 15, da Constituição vigente à época dos fatos e veio a ser confirmada na atual Constituição, precisamente no inciso LV do Art. 5º, onde se lê que "aos litigantes, em processo judicial ou Administrativo e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes" e se complementa pela previsão do inciso LIV do mesmo Artigo que assegura ao cidadão o devido processo legal sempre que se cuidar de restringir seus direitos. Sem propiciar oportunidade para que o servidor apresentasse argumentos em abono de sua defesa a draconiana medida baseou-se em singela praxe então vigente, de proceder à exclusão com base em singelo levantamento de faltas acumuladas – simples sindicância a respeito dos registros da conduta do servidor - sem, portanto, assegurar-lhe direito de defesa.

3.Objetivando demonstrar a ilegalidade e injustiça de que foi presa, em data de 02.08.1994 o ora Autor ajuizou uma Ação Ordinária de Reintegração de Cargo que, distribuída à Sexta Vara da Fazenda Pública da Comarca da Capital, ali foi tombada sob o nº 140.94.411387-1. A tese encampada pelo ilustre advogado que funcionou como patrono do Acionante foi, como seria indefectível, a do cerceamento de defesa no procedimento administrativo conducente à exclusão. Em sua contestação, o Estado da Bahia concentrou sua retórica na defesa indireta do processo, vindicando a rejeição da pretensão mercê de duas preliminares: alegada ocorrência de prescrição qüinqüenal, a seu sentir representativa de fato impeditivo do direito do Autor, já que entre o ato de exclusão e o ajuizamento transcorreram pouco mais de dez anos e suposta inadequação da via eleita (a seu sentir, equivocada, pois em razão do valor da causa indicado pelo Autor, o rito adotado deveria ser sumaríssimo). Invocando, em abono do primeiro enfoque, o texto do Decreto nº 20.910/32 nada objetou quanto ao mérito, vale dizer, não apresentou provas de que a formalidade essencial do devido processo legal e da amplitude de defesa fora cumprida pelo Acionado, daí resultando que o único arrimo jurídico da denegação foi, tão somente a argüição do exaurimento do prazo prescricional.

4.O Magistrado de primeira instância, então Juiz de Direito RUBEM DÁRIO PEREGRINO CUNHA refutou as preliminares e, quanto ao mérito decretou a nulidade do ato disciplinar questionado, determinou a re-incorporação do Autor e o seu direito ao pagamento de todas as vantagens pecuniárias que lhe foram recusadas durante o período em que esteve afastado do seu cargo, mais honorários de sucumbência. Submetida à Segunda Instância, entretanto, a sentença do a quo veio a ser desautorada, prevalecendo a tese do Estado da Bahia, manifestada em recurso de apelação (Apelação Cível nº 36.104-6), no sentido do reconhecimento da incidência da prescrição qüinqüenal, mais uma vez não tendo sido mencionado o mérito. Interposto Recurso Especial com espeque na subsunção ao Art. 105-III da CF, decorrente de vulneração do Art. 3º do Decreto nº 20.910/32 e da Súmula 443 do STF (!), este veio a ser rejeitado com base na aplicação da Súmula nº 126 do Pretório Excelso, invocando, como fundamento da sua inadmissibilidade o fato de o acórdão recorrido haver-se assentado em fundamentos constitucional e infraconstitucional, qualquer deles suficiente, por si só, para mantê-lo, mas a parte vencida não manifestara recurso extraordinário. Debalde a interposição de Agravo de Instrumento para o STJ, o qual foi tombado sob o nº 394728(2001/0075364-4). Pela pena do Relator HAMILTON CARVALHIDO, a 17.08.2001 este veio a ter negado provimento, ao fundamento, mais uma vez, da prevalência da prescrição qüinqüenal, tendo, nesta data, transitado em julgado a Ação interposta para reverter, judicialmente, a situação do ora Autor.

5.Sucede que, nada obstante a apreciação do fato jurídico sob comento haja sido marcada pela participação de ilustres operadores do Direito, a nenhum ocorreu observar que, em tendo se tratado de ato desprovido de formalidade essencial e atentatória a princípio constante da própria Constituição da República, a exclusão disciplinar fora tisnada por definitiva nulidade. Nem ao ilustre patrono do Autor, nem aos igualmente ilustres julgadores que se debruçaram sobre o caso ocorreu observar que, a teor do Art. 145 do Código Civil então vigente, por não haver o ato de exclusão se revestido da forma prescrita em lei, e haver sido marcado pela preterição de solenidade que a lei considere essencial para a sua validade - no caso a asseguração de ampla defesa e contraditório - nada obstante a ação desconstitutiva tenha sido ajuizada dez anos depois do ato, descaberia a suscitação da prescrição, já que, em verdade, o ato jamais lograra existir juridicamente, o que faz com que o foco da análise haja sido desviado para aspecto de menor importância, qual seja a da tempestividade da ação quando, por questões de direito material o ato poderia e deveria ter sido invectivado com base na simples observação de que atos jurídicos desconformes à Constituição não podem ser reputados como existentes e muito menos como válidos, já que foram plasmados sobre definitivo erro material. Falto, portanto, lembrar que, em tema de privação de função pública a inobservância do devido processo legal e da asseguração de amplitude do direito de defesa tem a marca da nulidade porque infringe forma "ad substantiam" do ato. Inexiste, portanto, o ato de exclusão como instrumento de demissão no serviço público sem ampla defesa, ou, para a corrente doutrinária que resiste ao conceito de ato inexistente, este seria nulo de pleno direito. Os efeitos desta nulidade, por negarem a confirmação de sua validade pelo ordenamento jurídico são ex-tunc, já que descaracterizam, ab initio, a aparência de liceidade que o ato assumiu enquanto vigente. Assim, o ato formalizado sem observância dos incisos LIV e LV da Constituição da República está fulminado de nulidade desde a origem, não podendo ser convalidado, nem mesmo pelo decurso do tempo. Aliás, justiça se faça, referência a esta situação houve, sim, só que isso foi feito por ocasião da impetração do Agravo de Instrumento em face da denegação do Recurso Especial, mediante a menção e colação de aresto provindo do STJ ,da lavra do Ministro FERNANDO GONÇALVES, no qual consta que ‘o decurso do tempo não convalida o que nasceu inválido’, asserto que viria a ser incluído no novo Código Civil Brasileiro, no Art. 169, em texto que giza que "o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo".

6.Esta opinião é confirmada pela mais da autorizada doutrina. Da lavra do decano CAIO MÁRIO, por exemplo, provém o asserto de "o ato nulo é frustro nos seus resultados, nenhum efeito produzindo: quod nullum este nullum producit effectum. (...) Nem a vontade das partes nem o decurso do tempo pode sanar a irregularidade. A primeira, para tanto, é ineficaz, por não ser o ato nulo passível de ratificação. O segundo não opera o convalescimento, senão longi temporis, porque o defeito de origem subsiste, até que a autoridade judiciária pronuncie a ineficácia: quod ab initio vitiosum este non poteste tractu temporis convalescere". (MÁRIO DA SILVA PEREIRA, CAIO, instituições de Direito Civil – Introdução ao Direito Civil, vol. 1, 20 ed. Rio de Janeiro: FORENSE, 2004, pág. 641/642).

7.Nada mais coerente se se tomar por base a própria definição do que vem a ser um ato jurídico, aplicável a qualquer negócio jurídico, estabelecida doutrinariamente como "toda declaração de vontade emitida de acordo com o ordenamento e legal e geradora de efeitos jurídicos pretendidos" [01]. Somente será legítimo o negócio jurídico que guardar conformidade com o ordenamento jurídico, quando deterá o poder de gerar efeitos jurídicos inter partes ou erga omnes. Na hipótese de sua realização fora das hipóteses albergadas pela Lei, passará à condição de ato nulo de pleno direito, como, na espécie vertente, vem de ocorrer.

8.Sendo certo que houve, a respeito da situação do Autor, sentença transitada em julgado, não é menos certo, de acordo com prestigiosa corrente doutrinária que paulatinamente vem se formando na consciência jurídica nacional que, em tendo se referido a situação afrontosa à Constituição, nem por isso possa restar imune a discussão a respeito de sua eficácia impeditiva da declaração da nulidade do ato. A tese a seguir encampada, que dá sustentação ao pedido alfim deduzido, se apóia nas considerações teóricas referentes à Teoria das Nulidades, enriquecida com a contribuição dos elaboradores da Teoria dos Planos da existência, da eficácia e da validade dos atos jurídicos em geral. A estas somar-se-á a concepção hodierna que vislumbra a relativização da coisa julgada sempre que seus termos implicarem na afirmação de uma situação contrária ao Direito, já que, em casos tais faltaria à sua convalidação o fundamento constitucional a que se referiu o legislador constituinte no Art. 93-IX da Carta Magna. Delas tratar-se-á seqüencialmente, demonstrando que o ato administrativo que alijou o Autor de sua função pública, em não tendo observado a concessão de amplitude de defesa cuja exigência consta da própria Constituição da República é um não-ato, senão um ato inexistente, razão pela qual, nada obstante passado tanto tempo e a despeito de, a seu respeito, existir uma sentença transitada em julgado, persiste o vício da invalidade, a impor a declaração de sua incapacidade de impor efeitos à esfera jurídica do Autor. Importante observar que brevitatis causa, será feita constante alusão a negócio jurídico aplicando as conclusões dela dimanentes ao ato administrativo da exclusão disciplinar do Autor, forte na de acordo, no disposto no art. 185 do próprio Código de 2002, no qual, resta estabelecido que as considerações feitas aos atos conformes à lei se aplicam, no que couber, aos atos jurídicos não negociais, in verbis.

Código Civil. Art. 185. "Aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título anterior".

É o que a seguir se demonstrará, desde já pedindo vênia o Autor pelo alongado da exposição o que, posto seja indesejável, é inevitável ante a complexidade da matéria enfocada.


O Direito

1.Como professa prestigiosa doutrina, o negócio jurídico, considerado como fenômeno deve ser convalidado em face dos chamados planos de existência, de validade e de eficácia. Para ser reputado perfeito, anota o jurista baiano e ex-Desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia JOSÉ ABREU FILHO é necessário que

"reúna todas as condições necessárias para torná-lo existente, isto é, dotado de forma e de conteúdo, apresentando-se, ademais, afinado com as exigências do ordenamento e preenchendo as condições que o façam válido e, finalmente, existente e válido, que produza os efeitos normais a que se destina, ou, em outras palavras, que se torne eficaz. Em sentido oposto, o negócio jurídico será reputado como imperfeito se ele não atinge as suas finalidades embora esta imperfeição possa resultar, como é óbvio, de motivos os mais diversificados. Assim, a imperfeição pode resultar de um defeito de constituição, que o torna inexistente; pode derivar, outrossim, de um ato que não se afina comas as exigências do ordenamento conduzindo-o à invalidade ou constituído validade, o negócio deixe de produzir os seus efeitos normais, o que o faz ineficaz". (ABREU FILHO, JOSÉ "O negócio Jurídico e sua Teoria Geral", 4 ed. 1997, São Paulo. Saraiva, pág. 334)

2.Adverte ABREU que inexiste platitude quanto ao emprego das expressões que titulam os planos a que se referiu. Propugnando o confronto de diversas concepções a esse respeito, relata que, no direito comparado, CASTRO Y BRAVO, "após advertir que a distinção entre invalidade e ineficácia vem fazendo-se desde WINDSCHEID, assinala que o negócio será inválido, se não reúne os requisitos impostos por lei; será ineficaz quando por qualquer motivo, não produza efeitos, por fim, haveria negócio jurídico inexistente – cuja admissão é contestada por alguns – ocorreria quando identificada a carência de um dos elementos indispensáveis para sua própria configuração como figura negocial, quais sejam a vontade e o objeto, o qual não poderia consistir em algo vedado por Lei".

3.A tese ora encampada consiste na observação de que, se a Constituição da República Federativa do Brasil, estabelece, nos incisos LIV e LV do Art. 5º que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" e que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" resulta óbvio que, se um servidor público é privado de sua função sem que lhe haja sido assegurado o devido processo legal já que não lhe foi facultado exercer o contraditório e a ampla defesa a que fazia jus, tal negócio jurídico carece das condições necessárias para torná-lo existente, já que se entremostra desafinado com as regras do ordenamento constitucional que o tornariam válido; é, dentro da lógica do referido doutrinador um ato imperfeito, já que sua concepção foi abastardada por sério defeito de constituição que o torna inexistente, impedindo, por esta razão, que produza os efeitos normalmente reconhecidos aos atos hígidos, numa situação que não se convalida com o tempo.

4.Pelo fato de o Código Civil impedir que o decurso do tempo torne válido algo a que falta um dos seus elementos essenciais, são inobjetáveis à pretensão ora defendida eventuais ilações relativas à prescrição, assunto a seguir enfocado em separado, à guisa de prolepse; por outro lado, em razão de o amadurecimento da consciência jurídica haver dado seus primeiros passos em relação à inaceitação da coisa julgada desconforme ao Direito, relativiza-se o fato de a situação do Autor já haver restado definida mediante sentença passada em julgado.

5.Na vigência do Código Civil revogado – momento em que ocorreram os fatos e o ato visado pela presente Ação - o Art. 145 estabelecia, claramente, que o ato jurídico: (1) praticado por pessoa absolutamente incapaz (artigo 5º); (2) vincado a objeto ilícito, ou impossível; (3) desvestido de forma prescrita em lei (artigo 82 e 130) e (4) a cujo respeito haja sido preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade, bem como aqueles a que (5) a lei taxativamente declarar nulo ou lhe negar efeito, era NULO, ou seja, deveria ser tido como um não ato.

6.Outro doutrinador que se ocupou deste aspecto da Teoria do Direito é o conhecido jurista JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, fazendo-o sob o viés do novo Código Civil, em artigo em que o compara com o enfoque do Código Civil revogado [02]. Para ele, ressentia-se o antigo Código Civil de gritantes imperfeições no tratamento da matéria sob foco. O art. 147 [03] dizia anulável o ato jurídico no caso de incapacidade relativa do agente e no de vício resultante de erro, dolo, coação, simulação ou fraude. Contudo, lia-se no art. 152, caput [04]: "As nulidades do art. 147 não têm efeito antes de julgadas por sentença, nem se pronunciam de ofício". Patente, segundo afirma, a falta de sintonia: se os atos eram anuláveis, não cabia falar de nulidade a respeito deles. Fazê-lo incorria em confundir dois tipos distintos de conseqüências de vício. Corretamente, se referia a nulidades o art. 146 [05], já que aí as hipóteses eram mesmo de atos nulos, os arrolados no art. 145 [06]. Essa terminologia equívoca, para o conhecido ex-Ministro do STF, terá provavelmente contribuído para a freqüência com que a linguagem forense, e às vezes a doutrinária, incorria no erro de misturar as duas figuras, empregando promiscuamente os substantivos "nulidade - anulabilidade", os adjetivos "nulo - anulável" e as expressões "declarar nulo - anular". O problema não seria grave, se a disciplina fosse igual num e noutro caso; mas não era, conforme ressaltava, antes de mais nada, segundo os termos no disposto nos Arts. 146 e 152.

7.Outro defeito relacionava-se com a questão da eficácia do ato jurídico. No próprio art. 145, V, fine, incluía entre os atos nulos aqueles aos quais a lei negasse efeito, o que implicava em nova confusão, desta vez entre invalidade e ineficácia. Tomada literalmente a disposição, ter-se-ia de concluir que era nulo o ato subordinado a condição suspensiva, enquanto esta não se verificasse, já que, nesse ínterim, aquele não produzia efeitos (arts. 114 e 118). A confusão manifestava-se também no art. 257, II, onde se estabelecia que a convenção antenupcial seria nula se não se lhe seguisse o casamento. O que se queria dizer é que, não vindo a casar-se os nubentes, a convenção ficaria sem efeito, sem eficácia, isto é, seria ineficaz. A confusão, destaca, era multifária. Encambulhavam-se referências à nulidade e à anulabilidade com alusões à eficácia (ou ineficácia). Falava-se de "nulidade relativa" como se fosse sinônimo de "anulabilidade". E ainda se introduzia mais um conceito, o de "rescisão", equiparado ao de "anulação". Na verdade, foi preciso esperar várias décadas até que a doutrina brasileira alcançasse nível mais elevado na sistematização da matéria. Após digressionar a respeito da concepção dada a estes institutos no direito comparado, BARBOSA MOREIRA emite seu parecer a respeito do tema sob foco. Para ele, o texto do Novo Código Civil, em boa parte escoimado dos defeitos do antigo, harmoniza-se com a sistematização científica que distingue três planos - o da existência, o da validade e o da eficácia - se bem que se ressinta de ausência de referência expressa ao primeiro. Não obstante tal silêncio é intuitivo que, para se pôr a questão relativa à validade, ou a relativa à eficácia, é preciso que nos encontremos diante de negócio jurídico existente. A destacar, forte em prestigiosa doutrina que as categorias relacionadas aos fatos e atos jurídicos, bem como os planos da existência, validade e eficácia, foram estudadas de forma prevalente por cultores do direito privado, com o enfoque próprio a tal ramo da ciência jurídica. Nota, entretanto que, em verdade, tratam-se de superconceitos, na medida em que não se prendem só àquele ramo do ordenamento, sendo mais apropriado seu estudo do ponto de vista da teoria geral do direito [07].

8.Demonstremos a seguir de que modo a teoria dos Planos revela que o ato administrativo que alijou o Autor das fileiras da Polícia Militar do Estado da Bahia é inexistente, senão nulo e, por isso, jamais se convalidou de molde a adquirir consistência jurídica, tornando, por via de conseqüência, absolutamente discutível o valor do trânsito em julgado de decisão que recusou-se a invalidá-lo com base na incidência da prescrição, sem, portanto,dissecar o mérito da medida administrativa visada.

9.Análise do ato objurgado à luz do Plano da Existência - falar de negócio inexistente soa a BARBOSA MOREIRA um tanto contraditório na medida em que, tomado ao pé da letra, o adjetivo a rigor destrói o substantivo: se algo não existe, não há negócio. Seria um oximoro. Segundo aduz, a doutrina foi levada a utilizar essa nomenclatura - e não apenas quanto ao negócio jurídico, ou ao ato jurídico em geral - para designar acontecimentos da vida em que, à primeira vista, seria possível vislumbrar negócio (ou ato), mas o exame atento evidenciava a falta de elemento reputado essencial pela lei para que o negócio (ou ato) se constituísse; ou, em dicção mais rigorosa, para que se compusesse o "suporte fático" indispensável à incidência de norma jurídica atinente ao negócio. É histórica a contribuição de VON ZACHARIÆ ao formular esta tese ao analisar a situação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, no ambiente normativo e sócio-cultural do século XIX. Àquela época, prevalecia a idéia de que inexistia nulidade sem prévia cominação legal: pás de nullité sans texte, ou seja, inexistiria nulidade sem previsão que legal que a estabelecesse. Como, todavia, equacionar situações como o casamento homossexual, ocorridas no plano dos fatos que, embora não havendo texto que declarasse a nulidade, não contavam com previsão legal para sua invalidação? A solução foi a de reputar tal negócio jurídico simplesmente inexistente, ou seja, algo que, a despeito da aparência de realidade, não poderia subsistir por que de impossível convalidação por subsunção a alguma previsão legal.

10.A esse respeito anota JOSÉ ABREU que, como observa JUAN ALFONSO SANTAMARIA PASTOR nos estudos sobre a nulidade de pleno direito que, "o ponto de partida de ZACHARIÆ foi o de que a idéia do legislador – deixando de prever e catalogar vícios de gravidade incontestes em matéria de casamento par relacioná-los como causas de nulidade, textualmente apontadas – não se traduziria na afirmação de uma renúncia a sancionar tais vícios. Em tais situações, impendiria levar em conta que, entre as condições fixadas pela lei para a consubstanciação dos matrimônios, estariam certos pressupostos que resultariam da ordem natural, como, por exemplo, a diferença de sexo entre os contraentes. Daí a diferenciação, de um lado, entre as chamadas condições de existência do ato e, de outro, suas condições de validade. As primeiras se vinculariam a uma questão de ordem fática, a de saber se o fato qualificado pela lei como matrimônio tenha realmente ocorrido; as segundas se prendem a uma questão de direito, consistente na indagação sobre se o casamento consumado de fato pode considerar-se como válido diante do direito". E conclui, lastreado na lição de ZACHARIÆ: "a ausência da primeira condição (fática) traz como conseqüência a inexistência; a segunda (indagação jurídica) produzirá a invalidade". (PASTOR, JUAN ALFONSO SANTAMARIA, "La nulidad de pleno derecho de los actos administrativos", Madrid, Instituto de Estúdios Administrativos, 1972, p.144-5).

11.Com base nestas considerações é cabível, então a alusão, commoditatis causa, a negócio inexistente, a ato inexistente - como se alude, no direito processual, com naturalidade à sentença inexistente. Importa, pois, identificar os elementos essenciais de cada negócio: faltando algum, o negócio é inexistente. Por exemplo, contrato de compra e venda em que não se fixou preço; sentença prolatada ou casamento celebrado por juiz falso etc. Jungindo estas considerações à espécie vertente, o mesmo pode ser dito em relação ao ato administrativo que procede à exclusão, do serviço ativo, de servidor público. Pelo fato de a Constituição assegurar o contraditório e ampla defesa aos litigantes em processo administrativo, e assegurar a todos os cidadãos o direito ao devido processo legal resulta óbvio que um processo desvestido desta garantia equivale a um negócio desprovido de um de seus elementos essenciais, o que, se antes não implicar em definitiva nulidade, atribuirá ao ato a índole irrecusável de ato inexistente.

12.Nesta ordem de idéias fica evidenciado que a existência de determinado ato depende da presença dos elementos que o compõem. É como se passa no estabelecimento de condutas estereotipadas a que se convencionar rotular de tipos. Recorde-se que, ao estabelecer tipos (fattispecie), a lei fixa, a seu respeito, a previsão genérica do mínimo essencial para que o ato, sendo praticado, esteja plenamente configurado, subsumindo-se à moldura normativa. Assim, como se colhe de escólio de CATAUDELLA [08], independentemente da concepção doutrinária adotada, a identificação dos elementos da fattispecie considerada será necessária para o reconhecimento da condição mínima para a produção dos efeitos almejados. Daí a possibilidade de focar-se o ato jurídico quanto à sua existência ou inexistência, do ponto de vista da presença ou não dos elementos da respectiva fattispecie no caso concretamente considerado. Se reconhecidos, numa situação determinada, todos os elementos abstratamente previstos no tipo legal, o ato existe. Na hipótese de estarem parcialmente presentes, o ato ou fato reconhecível será outro, pois não integrada, na hipótese concreta, todos os elementos essenciais previstos na lei para aquele modelo. Em inexistindo os elementos, inexistente o ato. Assim, oportuna a asserção de ROQUE KOMATSU de que é a incidência da norma jurídica sobre certa situação que faz transportar a parte relevante do suporte fático para o mundo jurídico, o que gera o ingresso dos atos ou fatos no plano da existência, não se realizando, nesse momento, qualquer cogitação a respeito da validade ou eficácia. Trata-se de mera verificação quanto à ocorrência ou não do suporte fático, ou seja se ocorreu ou não a incidência do tipo. Essa a razão pela qual a existência é premissa da qual decorrem as demais questões a serem examinadas nas situações da vida. [09] Esse também o pensamento de ELIVAL DA SILVA RAMOS, ao aduzir que sem os elementos estruturais a todo o negócio jurídico, não se pode reconhecer sua presença. [10] CALMON DE PASSOS, a seu turno, também ressalta a importância dos elementos do ato ou fato para o reconhecimento de sua existência, como pressuposto dos demais aspectos subseqüenciais. Aduz, contrario sensu, que se a situação de fato invocada como suposto e prescrita pela norma não é comprovada materialmente, há inexistência material da base fática. De outro lado, é necessário o prévio reconhecimento do ato ou fato pelo sistema normativo, a fim de que possa ser compreendido como jurídico. Por isso, se o fato ou ato verificado mostra-se inapto a ser juridicamente reconhecido como qualificado pelo sistema, o que se tem é ato ou fato materialmente presente, mas juridicamente inexistente. [11] O que fica claro na lição do referido mestre é que não se discute, nesse momento inicial, quanto à produção ou não de efeitos ou mesmo quanto à regularidade ou não do ato ou fato, mas apenas quanto ao seu reconhecimento como evento ocorrido, com todos seus elementos constitutivos, que ao menos a priori se amoldam à previsão normativa contida no ordenamento jurídico. E para que o ato exista, portanto, é imprescindível que haja um sujeito ou agente, um objeto, que tenha sido perpetrado com determinada forma, bem como em determinadas circunstâncias (em certo lugar e tempo). Sem retomar aqui a discussão a respeito da delimitação de tais elementos, o certo é que na ausência de algum deles não se pode falar em ato jurídico. Exemplificando: não se pode falar em compra e venda se o negócio é feito sem nenhum bem móvel ou imóvel, mas apenas de forma fictícia (ausência do objeto); não se pode falar em casamento se o simulacro de ato é praticado entre pessoas do mesmo sexo; não se pode falar em doação, se ela não passa do plano das intenções, por não ter o doador manifestado sua vontade (ausência da forma, que da vida à vontade, com sua manifestação), etc.Daí a afirmação de JUNQUEIRA de que o elemento do negócio jurídico é tudo aquilo que compõe sua existência no mundo do direito. [12]

13.Mas, sigamos. Admitindo, sob o ponto de vista doutrinária que resiste à acepção de um negócio inexistente, que o ato visado pela presente ação houvesse sido contemplado com todos os elementos essenciais, o negócio jurídico pudesse ser reputado como existente o próximo passo seria verificar se ele é ou não válido. Correta,neste sentido, a acepção de SALVATORE TONDO, de que a existência jurídica do negócio - acrescente-se, do próprio ato ou fato jurídico - é pressuposto da análise de sua validade ou invalidade. Decorre daí a utilidade da distinção entre inexistência e invalidade: apenas à guisa de exemplificação, basta pensar na possibilidade de convalidação do ato ou negócio viciado, e na eventualidade de produção de efeitos do ato ou negócio inválido, o que não ocorreria na hipótese de ato ou negócio inexistente juridicamente.

14.Análise à luz do Plano da Validade - Os requisitos de validade são qualificações ou adjetivações dos atos jurídicos. Ou melhor, são qualidades de seus elementos, sem as quais embora o ato exista, não será apto a produzir os efeitos jurídicos que lhe são típicos. Partindo dos elementos indicados tradicional e predominantemente pela doutrina como constitutivos do ato jurídico, bem como da disciplina legislativa a respeito, pode-se afirmar que são requisitos da validade do ato jurídico: a capacidade com relação ao agente; a licitude, moralidade, possibilidade, e certeza com relação ao objeto; e a admissibilidade quanto à forma. Essa idéia é sintetizada por KOMATSU, ao afirmar que os requisitos implicam preparação e aperfeiçoamento indispensáveis para que o ato esteja apto a operar, produzindo os efeitos no mundo jurídico [13]. Do mesmo modo, JUNQUEIRA DE AZEVEDO anota claramente que os requisitos são condições e exigências a serem satisfeitas para o alcance de certos fins, fazendo menção à capacidade do agente, licitude do objeto, e à admissibilidade da forma. [14] É importante observar que a menção à admissibilidade da forma ou à forma admitida é expressão síntese. Aplica-se tanto ao direito privado, em que a regra é a liberdade das formas salvo exceções legais, como ao direito público (v.g. o direito processual, o direito administrativo), em que a regra é a legalidade das formas. Quando se examina determinado evento (ato ou fato) sob o prisma da validade, observa-se que ele existe, pois seus elementos estão presentes, sendo necessário analisar se ostentam qualidade para serem reconhecidos como adequados. Daí a idéia de que o estudo da validade do ato ou fato invoca o cumprimento de requisitos (qualidades) dos elementos, para sua adequação à tipologia prevista na norma que regula tal situação. Assim, como anota KOMATSU, é imperativo que o agente seja capaz, que o objeto seja lícito, possível, determinado ou determinável, bem como que a forma seja permitida ou não defesa em lei. Anota também o Mestre que a validade deve ser examinada só com relação aos atos e negócios jurídicos, estando excluídos de tal plano os fatos jurídicos em sentido estrito, para os quais não concorre a vontade humana, dependendo de um simples acontecimento da natureza reconhecido pelo ordenamento como apto à produção de efeitos jurídicos. [15]

15.O mesmo raciocínio é esposado por CALMON DE PASSOS, para quem a validade, no campo da dogmática jurídica, é o reconhecimento daquilo que como direito foi produzido, segundo o processo para isso politicamente institucionalizado na organização do grupo social [16], reflexão que calha perfeitamente com a abordagem ora efetuada quanto ao ato de exclusão disciplinar de servidor sem o devido processo legal e ampla defesa: trata-se de medida apartada do processo politicamente institucionalizado para que se proceda à medida, a qual somente se terá por válida se obedecido ao figurino adrede estabelecido na Constituição da República. Esta situação, portanto se equipara, em termos de invalidade a exemplos como, v.g.: do casamento do incapaz; da venda do ascendente ao descendente sem a anuência dos demais; da escritura de compra e venda de um imóvel não realizada em forma pública; do contrato escrito pelo qual alguém se comprometa a trabalhar na condição de escravo, etc..

16.A questão da validade, portanto, não diz respeito aos elementos considerados em sua mera presença, senão a atributos desses elementos. No exemplo da compra e venda são três os elementos essenciais da compra e venda: a coisa (res), o preço (pretium) e o consenso das partes (consensum). Se concorrem os três, há compra e venda. Se não, não. Algum dos elementos, contudo, pode, aparentemente existir mas não ter atributo necessário: por exemplo, a coisa pode não ser alienável. Nesse caso, a compra e venda, conquanto exista, não é válida, quer dizer, não tem valor perante o direito, ou não tem todo o valor que normalmente teria. Para valer, ou para valer plenamente, cumpriria que o negócio (ou o ato) seja praticado em conformidade com o direito objetivo [17].

17.Ora, na situação que nos interessa, pode-se vislumbrar que na aplicação da sanção administrativa da exclusão disciplinar, três são seus elementos essenciais: (1) a condição de servidor, do punido; (2) o cometimento de uma falta, cuja materialidade e autoria hajam sido apuradas, por imperativo constitucional, sob efetivo contraditório e amplitude de defesa e (3) a aplicação da medida expulsória, fundamentada no segundo elemento. Numa simetria perfeita com o exemplo antes adotado, se concorrem os três, nenhum reparo há a fazer. O ato é pleno, válido e eficaz, nada podendo lhe ser contraposto, até porque configuraria exemplo rematado de ato jurídico perfeito. Ausente, todavia, um desses elementos, o ato resvala para a invalidade, exatamente o que ocorreu em relação ao Autor. Ou seja, se os elementos do negócio, todos eles, se revestem da índole de atributos necessários, e o negócio os contém, ele tem validade (é válido). Basta, entretanto, que a um deles falte atributo necessário para que o negócio não valha (seja inválido): bonum ex integra causa, malum ex quocumque defectu.

18.Adverte ainda a doutrina, a respeito de validade que, em vez de falar-se de elementos, melhor seria falar-se de requisitos, sendo de observar, sempre com base nas eruditas considerações de BARBOSA MOREIRA, que não há, a esse respeito, uniformidade na linguagem doutrinária. MARCOS BERNARDES DE MELLO, no seu "Teoria do fato jurídico", (São Paulo, 6. ed., 1994, p. 42 e 43), por exemplo, usa a expressão "elementos nucleares" com relação ao plano da existência (eles "têm sua influência diretamente sobre a existência do fato jurídico, quer dizer: a sua falta não permite que se considerem os fatos concretizados como suporte fático suficiente à incidência da norma jurídica"; e fala de "elementos complementares" para designar os que "têm suas conseqüências quanto à validade ou à eficácia do negócio jurídico, apenas, sem influírem quanto à sua existência". ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, ob. cit., p. 35 e ss., a seu turno, fala de "elementos de existência, requisitos de validade e fatores de eficácia".

19.No sistema do novo Código Civil, como no do antigo (apesar dos deslizes terminológicos), a questão da validade se relaciona ao modo pelo qual se dá efetividade à conseqüência do defeito. A nulidade pode ser alegada "por qualquer interessado, ou pelo MP, quando lhe couber intervir", e deve ser pronunciada "pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes" (art. 168 e seu parágrafo único). Já "a anulabilidade – forma mais branda de invalidade - não tem efeito antes de julgada por sentença, nem se pronuncia de ofício; só os interessados a podem alegar, e aproveita exclusivamente aos que a alegarem, salvo o caso de solidariedade ou indivisibilidade" (art. 177). Isto significa que o negócio simplesmente anulável subsiste enquanto não for anulado e, em regra, nesse meio-tempo, produz os efeitos a que visava. PONTES DE MIRANDA afirmou certa feita que "o anulável produz efeitos. Só os deixa de produzir quando transita em julgado a sentença constitutiva negativa" [18]. Ou seja, pode ocorrer que ninguém tome a iniciativa de promover a anulação; vencido o prazo de decadência, se existente, o negócio prevalece e torna-se inatacável por aquele fundamento. A eficácia será plena, a menos que regra legal a exclua ou a restrinja. Por outro lado, é possível sanar o defeito causador da anulabilidade, mediante confirmação pelas partes, salvo direito de terceiro (art. 172; o diploma de 1916 empregava "ratificado" no art. 148 e "ratificação" nos Arts. 149 e 150). Admite-se a confirmação tácita, como no direito italiano, dizendo-se "escusada a confirmação expressa, quando o negócio já foi cumprido em parte pelo devedor, ciente do vício que o inquinava" (art. 174). O Código Civil Brasileiro antigo era silente acerca da conversão. O Código novo, à semelhança dos ordenamentos italiano e alemão, só se refere a essa possibilidade a propósito do negócio nulo: após dizer que este "não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo" (art. 169) - ressalva importante para afastar eventual menção à prescrição como impediente à pretensão ora submetida a juízo, assunto que terá destaque, a seguir, em abordagem específica – deixa claro que, por maior que seja o tempo decorrido, o que não é válido jamais adquirirá validade.

20.Análise do Ato à luz do Plano da Eficácia – A ineficácia não é, necessariamente, conseqüência de um vício. O negócio pode ser perfeito e, não obstante, ineficaz. Em regra, o negócio válido é eficaz, e o negócio inválido é ineficaz. A eficácia é a capacidade de produzir mudanças no mundo sensível. Escreve JOSÉ ABREU, ob. cit., p. 313, que "todo negócio inválido é dotado de ineficácia, ao passo que nem todo ato ineficaz é necessariamente inválido". No mesmo sentido o magistério de RAFFAELLE TOMMASINI que a clara distinção entre os planos considerados, particularmente entre o da validade e da eficácia, fica evidenciada na acepção de que da invalidade pode derivar a ineficácia (ou uma eficácia precária, que é também uma ineficácia potencial), mas da ineficácia não se deduz obrigatoriamente a invalidade. Justa a conclusão de que os momentos relacionados à relevância (existência) de um fato e da sua idoneidade para produzir seus típicos efeitos não são coincidentes. A relevância, como conformidade ao tipo normativo, distingue-se da eficácia, com relação à qual tem autonomia lógica e dogmática. Enquanto a relevância ou existência é a qualificação reservada aos fatos que concretizam determinado modelo legal, a eficácia acaba relacionando-se com o problema do ponto de vista prático (efeitos). [19]

21.O pressuposto para o exame dos fatos, atos e negócios jurídicos é a sua existência - cabendo também quanto aos dois últimos a análise de sua validade - para então verificar-se a ocorrência ou não dos efeitos almejados pelo evento no mundo jurídico. Este último aspecto envolve o que se convencionou denominar de eficácia do evento no âmbito do ordenamento.

22.Como anota ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, este plano de análise dos fenômenos no mundo do direito não trata de toda e qualquer possível eficácia prática do negócio, mas tão-só da sua eficácia jurídica, e especialmente da sua eficácia típica ou própria, vale dizer daquela relativa aos efeitos previstos e determinados na lei (no caso dos fatos e atos jurídicos) e da relacionada aos efeitos pretendidos pelo agente (na hipótese dos negócios jurídicos). [20] Isso, na medida em que não só o evento ocorrido (fatos) ou realizado (atos e negócios) validamente podem produzir efeitos, sendo possível que estes advenham também no caso de atos e negócios praticados em desconformidade com o modelo previsto em lei, ou seja, eivados de vícios aptos a conduzir ao reconhecimento de sua invalidade.

Daí falar-se na eventual eficácia do inválido. [21]

23.De todo modo, é necessário precisar que o conceito de eficácia não diz respeito apenas à aptidão do evento para a produção dos seus efeitos típicos e próprios. Trata-se de algo que pode ser reconhecido como a força jurídica do ato, em ação, não só potencialmente, ou seja, a realização efetiva dos efeitos relacionados ao evento. [22] Nesse prisma, fala a doutrina em fatores ou condições de eficácia, pois aquilo que existe e é válido deverá ou não produzir efeitos, de conformidade com a presença ou não destes aspectos determinantes (fatores). [23] Esta situação, às vezes não muito clara do ponto de vista dogmático, pode ser identificada de modo mais nítido pensando em situações concretas. É o que faz J.J.CALMON DE PASSOS ao observar que normalmente aquilo que é válido possui natural eficácia, mas isso nem sempre ocorre. Em certas situações, a eficácia pode estar vinculada a algum evento posterior, que embora não integre a estrutura executiva do ato cuja eficácia se pretende, integra o seu tipo e é reclamado para o pleno atendimento do modelo legal. Daí que a condição seja imprescindível apenas em termos de eficácia, ficando clara assim a distinção entre esta e a validade do evento considerado. [24]

24.Desse raciocínio partem também autores do direito comparado como SALVATORE TONDO, ao sinalizar que a distinção entre invalidade e ineficácia decorre de que na primeira, o vício é intrínseco com relação ao ato, e incide sobre este de forma radical, deixando entrever que na segunda o problema é de natureza extrínseca com relação ao evento jurídico considerado. [25] SCALISI, a propósito ainda da questão da eficácia do ato jurídico, anota contrariu sensu que a ineficácia nada mais é que falta de produção de efeitos jurídicos, entendendo contudo que esta indicação sintética é incompleta, pois acaba por confundir as conseqüências da irrelevância ou inexistência e da ineficácia. Assim, procurando suprir tal deficiência, acrescenta que a ineficácia seria a falta dos efeitos dessumidos do conteúdo do ato, ou seja dos seus efeitos típicos. Não haveria porém ineficácia quando o ato realizasse seus efeitos próprios, ainda se dispostos em via integrativa, ou mesmo não queridos. Diversamente, estaria configurada a ineficácia mesmo na hipótese da ocorrência de efeitos jurídicos preliminares, diversos dos típicos, previstos na regulamentação legal da espécie. [26]

25.No caso vertente, em se tratando de Direito Administrativo, sem dúvida houve, pela incidência da força cogente dos atos administrativos, a aparente eficácia do ato de exclusão disciplinar; falta-lhe, todavia, a convalidação pela conformidade com os demais elementos essenciais, o que conduz ao inteiro cabimento de sua declaração de absoluta nulidade.


Conclusão parcial

1.À luz, portanto, da análise do ato sob foco sob o prisma da Teoria dos Planos, demonstra-se que ela não pode ser reputado existente já que não obstante o "suporte fático" haja existido, ou seja, o ato foi assinado, o Autor retirado da folha de pagamentos, etc., faltou-lhe um elemento reputado essencial pela Constituição para que ele se constituísse que é , justamente a observância do devido processo legal e da asseguração do contraditório e ampla defesa. Sob a interpretação de que a um ato jurídico realizado sob esse vício falta condições de existência, concluir-se-á que ele é inexistente.

2.Se, por outro lado, considerarmos que a questão de direito, consistente na resposta à indagação sobre se o ato de exclusão pode considerar-se válido diante do direito só pode ser negativa, razão pela qual a conseqüência dessa inadvertência é a identificação da absoluta nulidade do ato de exclusão disciplinar do Autor, na forma da Lei.

3.Sucede que, nada obstante contenha o gérmen da nulidade, o ato, uma vez submetido ao crivo do Poder Judiciário, não foi assim reconhecido. Como revela o histórico da demanda instaurada a propósito do caso vertente, fixou-se a dialética do processo num aspecto meramente acidental, no que olvidou-se que atos nulos não estão sujeitos a prescrição, relegando-se, portanto, a esquecimento o verdadeiro cerne da discussão. Passou, portanto a existir coisa julgada inconstitucional, assunto a cujo respeito nos ocuparemos a seguir.


Da coisa julgada inconstitucional e sua declarabilidade como forma de saneamento de absurdos jurídicos

1.A coisa julgada detém a feição de autêntico dogma jurídico. Açodadamente, julga-se que teria ela condão de fazer, como já se disse, "do preto, branco e do quadrado, redondo". No entanto a consciência jurídica inerente ao atual estágio de compreensão do Direito enquanto fator de distribuição de Justiça evoluiu no sentido de abandonar essa obediência cega à sua ocorrência, a partir do momento em que a prática dos Tribunais revelou situações desconcertantes, como a de exames de DNA, posteriores ao trânsito em julgado de sentenças denegatórias de reconhecimento de paternidade perseguido, revelarem que o suposto pai, assim ‘reconhecido’ por sentença, não é o pai biológico do "filho "reconhecido". Sabe-se que o instituto da coisa julgada visa a escopo político, de pacificação de ânimos, impedindo a eternização de lides. Mas, seria justo atribuir paternidade inexistente apenas porque o manejo dos meios de prova não foi correto? HUMBERTO THEODORO JÚNIOR em artigo doutrinário [27], narra outro exemplo estarrecedor, oriundo de sua militância como parecerista. Constatou-se a multiplicidade e superposição de sentenças transitadas em julgado condenando o poder público a indenizar a mesma área expropriada,mais de uma vez, ao mesmo proprietário, numa conjuntura em que já não cabia ação rescisória. Diante de tais fatos, colaciona asserto de PAULO OTERO, constitucionalista português quando, em abono da relativização da intangibilidade da coisa julgada, giza que tal "como sucede com os outros órgãos do poder público, também os Tribunais podem desenvolver uma actividade geradora de situações patológicas, proferindo decisões que não executem a lei, desrespeitem os direitos individuais ou cujo conteúdo vá ao ponto de violar a Constituição" [28], escólio que vem a calhar com as circunstâncias do caso vertente. Ora, obtempera THEODORO, deparando-se com uma decisão judicial que contempla flagrante inconstitucionalidade quais os instrumentos para promover a sua adequação aos ditames máximos da Constituição? Após relembrar o aparato recursal constante do Códex processual, transfere a indagação para situações – como a ora examinada – em que tais remédios restam inócuos para as quais aponta a necessidade de remédios destinados a solver a aparente insolvabilidade da coisa julgada, em prol da Justiça. Para CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, a coisa julgada, em refletindo os efeitos do ato de julgar revela fenômeno processual vinculado ao aspecto da indiscutibilidade da decisão sentencial.

"Revestida de força normativa, encontra resistência de rescindibilidade nos termos da legislação adjetiva. Essa fórmula, segundo se diz, objetiva resguardar o princípio da segurança jurídica, a fim de evitar, como refere MARIA HELENA DINIZ, a ‘anarquia, a lesão de direito e o descrédito da justiça’".

2.Complementa seu raciocínio gizando que, todavia,

"a coisa julga é intocável, tanto quanto os atos executivos e legislativos se, na sua essência NÃO DESBORDAR DO VÍNCULO QUE DEVE SE ESTABELECER ENTRE ELA E O TEXTO CONSTITUCIONAL, NUMA RELAÇÃO DE COMPATIBILIDADE para que possa revestir-se de eficácia e, assim, existir sem que contra a mesma se oponha qualquer mácula de nulidade".

"Essa conformação de constitucionalidade", arremata,

"tem pertinência na medida em que não se pode descartar o controle do ato jurisdicional, sob pena de perpetuação de injustiças. Por esse motivo, nula é a sentença que não de adequa ao princípio da constitucionalidade, porquanto impregnada de carga lesiva à ordem jurídica. Impõe, desse modo, sua eliminação do universo processual com vistas a restabelecer o primado da legalidade. Assim, não havendo possibilidade de sua substituição no mundo dos fatos e das idéias, deve ser decretada sua irremediável nulidade"(NASCIMENTO,CARLOS VALDER DO, in. "Coisa Julgada Inconstitucional", coord.CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, Rio de Janeiro: América Jurídica, 3 ed. 2004, pág. 14.) .

3.Além dos Autores antes referidos, na doutrina brasileira merece destaque a posição de CÂNDIDO RALGEL DINAMARCO, para quem, diante de precedentes da jurisprudência e de preciosas técnicas de hermenêutica constitucional, "os princípios existem para servir à justiça e ao homem, e não para serem servidos como fetiches de ordem processual". Por isso, não se pode reconhecer caráter absoluto à coisa julgada, nem se pode deixar de subordinar sua autoridade aos condicionamentos dos princípio da razoabilidade e da proporcionalidade" [29].

4.Acontecendo, como ora vem de ocorrer na espécie vertente, a consolidação de uma situação afrontosa à Constituição, é de ser reconhecida a possibilidade de afastamento da autoridade da coisa julgada, reconhecendo, como afirma DINAMARCO, "a relatividade da coisa julgada como valor inerente à ordem constitucional-processual, dado o convívio com outros valores de igual ou maior grandeza e necessidade de harmonizá-los". Da contraposição do julgado a algum preceito constitucional decorre, segundo aduz o referido e festejado doutrinador, uma impossibilidade de efeitos substanciais. Materialmente, não se poderia reconhecer efeito algum, porque o pedido acolhido pela sentença seria juridicamente impossível em face da ordem constitucional, raciocínio que conclui afirmando que "da inexistência desses efeitos juridicamente impossíveis decorre logicamente a inexistência da coisa julgada material sobre a sentença que pretenda impô-los" [30].

5.Ora, a sentença que sepultou a pretensão do ora Autor de ver anulado o ato de sua exclusão, feita à revelia dos princípios constitucionais suso mencionados se apoiou em um raciocínio que reconhece validade a ato nulo de pleno direito. Tanto é que deu provimento a pedido do ex adverso para decretar a incidência da prescrição a seu respeito, algo que afronta, como acima exposto, a opinião doutrinária do mais ilustre segmento de doutrinadores pátrios e alliunde , de evidência tão marcante que veio a ser consagrada no Art. 169 do novo Código Civil Brasileiro, quando giza que "O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo." Se o fez, criou situação de disparate tão gritante quanto os dos leading cases acima referidos, relativos à paternidade "jurídica" dissonante da biológica e das desapropriações múltiplas de uma mesma área.

6.A esse respeito são lapidares as palavras do Ministro JOSÉ DELGADO, quando, em palestra, afirmou que,

"... não posso conceber o reconhecimento de força absoluta da coisa julgada quando ela atenta contra a moralidade, contra a legalidade, contra os princípios maiores da Constituição e contra a realidade imposta pela natureza. Não posso aceitar, em sã consciência,, que, em nome da segurança jurídica, a sentença viole a Constituição Federal, seja veículo de injustiça, desmorone ilegalmente patrimônios, obrigue o Estado a pagar indenizações indevidas, finalmente, desconheça que o ‘branco é branco’ e que a vida não pode ser considerada morte, nem vice versa". (DELGADO, JOSÉ, "Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais", palestra proferida em Fortaleza, em 20.12.2000, no I Simpósio de Direito Público da Advocacia Geral da União, 5ª Região, promovido pelo Centro de Estudos Victor Nunes leal)

, palavras que fazem coro com escólio de eminente jurista d’além mar, o português MANOEL ANDRADE:

"A coisa julgada não assenta numa ficção ou presunção absoluta de verdade, por força da qual, como diziam os antigos, a sentença faça do branco preto e do quadrado redondo(...) Trata-se antes de que, por uma fundamental exigência de segurança, a lei atribui força vinculante ao acto de vontade do juiz"(ANDRADE, MANUEL, "Noções elementares de processo civil". Reimp. Coimbra, 1979, pág. 306/307)

7.Para CARLOS VALDER, se a sentença vai de encontro à Constituição, é nula e se é nula, em princípio não cabe, contra ela, rescisória, por incabível lançar-se mão dos recursos previstos na legislação processual, os quais têm como objeto sentenças válidas, embora inquinadas de vício que as tornam rescindível. "Na espécie", afirma, "pode-se valer, sem observância de lapso temporal, da ação declaratória de nulidade da sentença, tendo presente que ela não perfaz a relação processual, em face de grave vício que a contaminou, inviabilizando seu trânsito em julgado. Nesse caso, há de se buscar suporte na actio querela nullitatis" [31].

8.Num brilhante artigo a respeito do tema sub judice o Promotor de Justiça e doutorando RICARDO DE BARROS LEONEL expende interessantes considerações num artigo doutrinário, que valem a pena incorporar à presente petição, em que pese seu alongado teor.

9.Para ele,

"O ordenamento jurídico brasileiro estabelece expressamente, ao menos em um dispositivo, a possibilidade da impugnação de decisão aparentemente "coberta" pela eficácia da coisa julgada, que não se confunde com os recursos e tampouco com a ação rescisória: trata-se da hipótese dos embargos à execução fundados na falta ou nulidade da citação no processo de conhecimento, se a ação correu à revelia do executado. [32] Para tal afirmação é necessário partir da premissa de que a ação rescisória, como regra, serve de instrumento para impugnação de julgados cobertos com a eficácia da coisa julgada formal, cujo vício, embora justifique tentativa de rescisão, poderá tornar-se inquestionável pelo decurso do prazo decadencial para sua desconstituição (formação da coisa julgada material). Diversamente, a querela afigura-se viável para os casos em que sequer há a possibilidade de formação da coisa julgada formal ou mesmo material, justificando-se a impugnação a qualquer tempo. [33] (LEONEL, RICARDO DE BARROS, "Fatos e atos jurídicos - planos de existência, validade, eficácia, e a questão da querela nullitatis " (Publicada no Juris Síntese nº 42 - JUL/AGO de 2003)

10.Restringir, todavia, esse remédio jurídico a apenas esta situação, vislumbrando que só por meio dos embargos fundados na ausência ou nulidade da citação no processo de conhecimento seria viável a utilização da querela seria, para o articulista, reduzir excessivamente a análise do instituto, deixando sem a possibilidade de proteção jurisdicional inúmeras outras situações. Há, nesse passo, necessidade de distinguir o continente do conteúdo: a melhor interpretação para o problema, é no sentido de que o conteúdo é a querela nullitatis, meio autônomo de impugnação para casos em que sequer se forma a coisa julgada; enquanto o continente é o "veículo" processual por meio do qual a impugnação é formulada. Tal raciocínio permite sistematizar como visão panorâmica que a querela torna-se cabível sempre que não se forma a coisa julgada, pelos motivos que sejam identificáveis em cada caso concreto, bem como que pode ser instrumentalizada por qualquer meio processual pelo qual seja invocável a tutela jurisdicional.

11.Desse raciocínio advém o asserto de que a querela nullitatis pode ser proposta como demanda declaratória autônoma, tese ora encampada pelo Autor na presente pretensão. Aliás, diga-se de passagem que a conclusão vem apenas a confirmar o pensamento da processualística moderna, no sentido da atipicidade do direito constitucional de ação. Mas a construção acima deve ser levada mais longe. Situações podem ocorrer em que, exigir-se a propositura de demanda declaratória autônoma seria mero formalismo. Basta pensar que a gravidade da situação identificada no caso da querela nullitatis é de tal sorte insanável, insuscetível de convalidação, não sujeita a prazo prescricional ou decadencial, reconhecível de ofício, para concluir que pode ser veiculada por qualquer meio, ou seja aquele que se mostre mais apropriado, eficaz, econômico processualmente, diante da situação concreta. Em outras palavras, é correto concluir que a querela nullitatis pode ser veiculada por meio de embargos à execução ou mesmo de exceção de pré-executividade, ação declaratória autônoma, simples petição, mandado de segurança, e até mesmo na própria ação rescisória na hipótese de dúvida objetiva a respeito do cabimento ou não desta demanda. Tem-se aí o que autorizada doutrina denominou de "concurso eletivo de ações", valendo-se o interessado do modo que se mostre mais apropriado, na situação especificamente considerada, para instrumentalizar sua reclamação contra vício processual insanável. [34]

12.Dito de outro modo, todo e qualquer processo deve ser considerado adequado para constatar e declarar que um julgado meramente aparente é na realidade inexistente e de nenhum efeito, podendo o vício ser alegado em defesa contra quem pretende beneficiar-se da sentença, como ainda em demanda autônoma. Não se trata de reformar ou desconstituir uma decisão, mas de reconhecer que ela inexiste, e não produz seus efeitos jurídicos próprios. [35]

13.Em síntese, a querela nullitatis, que, em essência é reclamação ou impugnação em face de vício insuperável do julgado, que implica sua inexistência jurídica ou do processo no qual foi proferido, pode ser veiculada por qualquer via processual. Isso em virtude possibilidade de conhecimento de ofício e emissão judicial de simples declaração reconhecendo que determinado aparente julgado inexiste juridicamente, embora o pedido de declaração dessa patologia ocorra após esgotado o prazo possível para a ação rescisória. Demonstremos em que medida é inobjetável a prescrição da presente pretensão.


Sobre a inimpugnabilidade da pretensão declaratória, por incidência de prescrição

1.De duas maneiras é possível profligar eventual suscitação de impossibilidade jurídica da presente demanda, com base em alegada prescrição. A primeira, de ordem material decorre do já mencionado Art. 169 do Código Civil Brasileiro ou, sob outro enfoque, da impossibilidade de reconhecimento de validade a atos nulos de pleno direito, única forma de, a partir de seu advento, reputar iniciado o cômputo do prazo prescricional. A segunda, de ordem processual decorre da consagrada concepção de que ações declaratórias não estão sujeitas a prazos prescricionais.


Da ação declaratória como instrumento de oposição de querela nullitatis à decisão que, julgando a situação do Autor, produzir sentença passada em julgado

1.É imperativo concluir que sempre que o vício de determinado julgamento for de tal gravidade que afete um elemento essencial à própria existência jurídica do processo ou da sentença, ter-se-á mera aparência a ser desfeita mediante declaração judicial, implementada pela querela. Servirá para tal fim o meio mais adequado na hipótese concretamente considerada, v.g. os embargos do executado na hipótese da falta ou nulidade de citação no processo de conhecimento, ação declaratória autônoma, simples petição, mandado de segurança, defesa em demanda ajuizada por quem pretenda tirar proveito do julgado "aparente", ação rescisória, etc.

2.Esse raciocínio deixa claro também que não é possível pensar em um rol exaustivo de hipóteses em que seja cabível o reconhecimento do processo ou do julgado inexistente. A premissa é esta: sempre que ausente ou afetado com tamanha gravidade um dos elementos essenciais do processo ou da sentença, será o caso de reconhecer-se sua inexistência jurídica. Partindo daí a doutrina aponta inúmeros exemplos de situações processuais de inexistência jurídica a ser declarada judicialmente. São exatamente essas o objeto da impugnação via querela.

3.Assim, TEREZA ALVIM refere-se à inexistência da decisão por motivos intrínsecos (falta elemento essencial à própria decisão) ou extrínsecos (proferidas em processos inexistentes), apontando v.g. os seguintes casos: a) sentença sem decisório; b) sentença sem condições materiais de produzir efeitos, porque incerta ou impossível (v.g. sentença que extingue o processo sem julgamento do mérito e julga a demanda); c) sentença proferida por um "não juiz" (v.g. juiz aposentado ou afastado), por estar ausente um pressuposto processual de existência, qual seja a "jurisdição"; d) sentença pronunciada contra pessoa inexistente ou sem legitimidade para a causa; e) sentença não assinada (embora seja discutível a possibilidade de comprovar-se sua existência por outros meios); f) sentenças ilegíveis; g) sentença não publicada; h) sentença não escrita. [36]

4.CALMON DE PASSOS, de forma semelhante, refere-se às seguintes hipóteses: a) sentença proferida a non judice; b) não subscrita; c) desprovida de conclusão; d) sentença impossível (v.g., entre nós, decisão que condenasse alguém à morte); e) proferida contra quem não foi parte ou não tinha capacidade para ser parte. Sintetiza, estabelecendo como premissa que a inexistência processual ocorre porque não há agente, objeto ou forma processualmente reconhecíveis, elementos que são essenciais à juridicidade do evento [37], hipóteses às quais se afilia a hipótese vertente, que é a de sentença denegatória de pretensão de ato nulo de pleno direito sob o argumento da prescrição, a qual, como demonstrado, não incide em atos eivados por inexistência jurídica.

5.De destacar que, embora da análise menos atenta dos argumentos acima referidos, fique a primeira impressão que apenas do ponto de vista formal poder-se-ia falar em inexistência do processo e da sentença, e que, desse modo, só com relação à ausência de elementos essenciais e formais seria possível o exercício da querela com a finalidade de obter-se a declaração judicial da inexistência do julgado, a doutrina moderna, todavia, vem procurando demonstrar de forma enfática que a análise do problema pode ser realizada do ponto de vista da substância, e não só da forma, tese, justamente que corresponde à aqui encampada. Embora CÂNDIDO DINAMARCO coloque o problema sob o prisma mais da ineficácia dos efeitos programados que da inexistência, é possível afirmar que há, na hipótese em exame, inexistência jurídica, e não simples ineficácia. Assim, a sentença que contém julgado inconstitucional e portanto impossível juridicamente, embora exista materialmente, como contém objeto juridicamente impossível é inexistente juridicamente. Tanto assim que o próprio Mestre, com amparo em julgados do Pretório Excelso e do Col. STJ, admite expressamente a impugnação, na espécie, através de meios como nova demanda autônoma (até mesmo igual à primeira), resistência à execução por meio dos embargos ou incidentes ao próprio processo executivo, alegação incidenter tantum em outro processo (inclusive em peças defensivas), ação rescisória, mandado de segurança, ação declaratória, etc., sem excessivo rigor formal quanto à escolha da via processual. [38] Essa construção feita por CÂNDIDO DINAMARCO, lógica e politicamente sólida, com a parcimônia, coerência e razoabilidade que tornam consistentes seus argumentos e resultados, demonstra linha de pensamento evolutivo da ciência processual que tem recebido contribuição de outros juristas e doutrinadores.

6.Conhecido é o posicionamento do Ministro do Col. STJ JOSÉ AUGUSTO DELGADO, declinado tanto em sede doutrinária como jurisprudencial. Nesse sentido o voto do i. Ministro ao reconhecer a necessidade de afastar-se a coisa julgada material em hipótese evidente de verificação, em "ação declaratória de nulidade", que anterior condenação da Fazenda do Estado de São Paulo ao pagamento de desapropriação indireta referia-se a área de terras que pertencia à própria vencida na demanda originária. [39]

7.Segundo o pensamento de JOSÉ DELGADO, embora a coisa julgada seja reconhecida pela Constituição Federal, como visa em última análise à proteção do valor "segurança", não ostentando caráter absoluto, merece ser posta em confronto com outros valores também assegurados pela Carta. Daí concluir entre outras coisas que: a) a segurança jurídica cede quando princípios de maior hierarquia, postos no ordenamento constitucional, são violados pela sentença; b) a sentença não pode expressar comando acima das regras constitucionais, nem violar a própria natureza, como ocorre v.g. quando a decisão determina que uma pessoa seja filha de outra, quando na realidade não é (o que é apurado posteriormente, em virtude de evolução da própria ciência, com a prova v.g. do DNA). Pelo que se vê, para o i. jurista não se forma a coisa julgada quando ela atenta contra a moralidade, a legalidade, os princípios maiores da Constituição, e a realidade imposta pena natureza. (DELGADO, JOSÉ AUGUSTO, Pontos polêmicos das ações de indenização de áreas naturais protegidas (efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais), RePro 103, p.21, 28 e passim )

8.FRANCISCO BARROS DIAS também argumenta no sentido da inexistência de sentença e de coisa julgada, na hipótese de afronta a princípios constitucionais, invocando como vias processuais aptas a equacionar o problema a evolução da jurisprudência, admitindo no caso a utilização da ação rescisória, bem como da "ação declaratória de inexistência da coisa julgada" [40]. HUMBERTO THEODORO JÚNIOR chega a semelhante resultado pelo exame de caso concreto. Foi analisada situação em que duas ações de indenização foram julgadas procedentes, apurando-se posteriormente a ocorrência de sobreposição parcial de áreas nas duas demandas. Assim, fosse inviável questionar a segunda decisão, supostamente já transitada em julgado, ter-se-ia que a Fazenda pública estaria sendo compelida a pagar duas vezes a mesma indenização. Em síntese, chegou o i. doutrinador à conclusão de que como a sentença foi prolatada com base em erro material da perícia ela ficou contaminada, e não se formou a coisa julgada, podendo o erro ser corrigido a qualquer tempo. Ademais, não haveria só o simples erro material aí, mas sim divórcio entre a vontade do julgador e sua declaração formal na sentença. Isso porque a volição do julgador era direcionada a resolver sobre o verdadeiro objeto da demanda, e não sobre aquele viciado pelo laudo, gerando a dupla indenização.(THEODORO JÚNIOR, HUMBERTO, Embargos à execução contra a Fazenda Pública - extensão da matéria argüível - princípios constitucionais em conflito - proporcionalidade ou razoabilidade - coisa julgada e justa indenização - princípio de justiça e moralidade - parecer, Revista de direito ambiental, n.12, ano 3, out/dez. 1998, p.203/209.)

9.ADA PELLEGRINI GRINOVER encaminha seu raciocínio e sua argumentação no mesmo sentido, mas com outras bases ou premissas. A í. Professora parte dos conceitos relacionados ao objeto litigioso do processo e aos elementos de identificação das demandas, para concluir em resumo que a improcedência de demanda anulatória de negócio jurídico consistente em escritura pública de reconhecimento de filiação, não impede a propositura e procedência da ação declaratória da inexistência da relação de paternidade, fundada não na falsidade da declaração (como na primeira demanda), mas na ausência do vínculo biológico, demonstrado com prova cabal. Julgada procedente a ação declaratória, demonstrada assim a inexistência do vínculo de filiação, não poderia prevalecer a escritura de reconhecimento do filho.(GRINOVER, ADA PELLEGRINI, Coisa julgada. Limites Objetivos. Objeto do processo. Pedido e causa de pedir. Trânsito em julgado de sentença de improcedência de ação de nulidade de escritura pública de reconhecimento de filiação. Possibilidade de ajuizamento de ação declaratória de inexistência de relação de filiação, fundada em ausência de vínculo biológico. Revista Forense, 353, ano 1997, jan/fev. 2001, p.241/242.) Embora não trate a hipótese de inexistência jurídica da sentença anterior, em razão da diversidade de demandas (os elementos de identificação de uma e de outra, especialmente a causa de pedir e o pedido, são diferentes), na prática o que ocorre com a procedência da ação declaratória posteriormente aforada é a desconsideração da decisão anterior, ou ainda, da eficácia preclusiva da decisão anterior. [41]

10.Em suma, vista a temática aqui analisada sob o enfoque dos planos a que se sujeita o ordenamento e os eventos na vida de relação, ou seja, existência, validade e eficácia, é possível concluir que a inexistência do processo e (ou) da sentença pode decorrer tanto da falta de elementos essenciais formais como substanciais, imprescindíveis para o reconhecimento da fattispecie tipificada pelo legislador, com aptidão a determinar a produção dos efeitos para ela programados, tese correspondente à tese ora esposada.

11.Verificada assim a inexistência jurídica, por qualquer dos motivos invocados, tem-se como conseqüente a viabilidade de, a qualquer tempo, ser proposta a querela nullitatis pela via processual mais adequada ao caso concreto: embargos à execução, exceção de pré-executividade, ação declaratória autônoma, mandado de segurança, respostas à ação aforada (contestação, reconvenção), simples petição nos próprios autos da demanda já julgada, etc., entendimento em que se baseia a pretensão ora veiculada.


Conclusões.

1.A exposição dos fundamentos jurídicos do pedido, admite-se, ao tempo em que se clama por condescendência, peca por sua exagerada dimensão. Justifica-a, entretanto o inusitado do tema e a necessidade de aplicarem-se eventuais contraposições, o que, em termos de retórica somente é possível mediante exaustiva análise de todas as variáveis possíveis e correlata dissecação, de molde a subsidiar ao máximo o julgador com argumentos e elementos de convicção. Da análise expendida ao longo da exordial, que evidentemente não tem outra pretensão senão a de colaborar para o convencimento desse julgador, merecem ser ressaltadas algumas observações conclusivas, a seguir expostas.

a)À doutrina contemporânea assoma importante o estabelecimento da distinção, com relação aos fatos, atos e negócios jurídicos, dos três diferentes momentos ou planos no reconhecimento de sua relevância para o ordenamento, a fim de que não se incorra na confusão, comum na doutrina, entre conceitos que em verdade são distintos. Assim, no exame dos eventos jurídicos (fatos, atos e negócios), para concluir com seu efetivo ingresso ou não no ordenamento, deve-se analisar separadamente as questões da existência, da validade, e da eficácia.

b)No plano da validade é necessário analisar os requisitos do evento, que são qualidades dos elementos de existência do evento jurídico. Assim, são requisitos de validade a capacidade do agente, a licitude, moralidade, legalidade e possibilidade do objeto, e a admissibilidade da forma. Os fatos jurídicos não comportam verificação quanto à validade: os fatos, que se produzem independentemente da vontade humana, ou são jurídicos, e produzem efeitos relevantes para o ordenamento, ou são naturais e simples, não produzindo efeito algum.

c)Num último momento ou plano, a verificação recai sobre os fatores de eficácia jurídica do evento, vale afirmar, efetiva produção de efeitos relevantes no âmbito do ordenamento.

d)A existência é o pressuposto básico e essencial para que seja possível ingressar na análise dos planos da validade e da eficácia. Todavia, nem sempre o válido é eficaz, e nem sempre o inválido é ineficaz. Pode-se assim ter situações diversas com relação aos eventos jurídicos, no plano dos atos e negócios: a) existente, inválido e ineficaz; b) existente, inválido e eficaz; c) existente, válido e ineficaz; d) existente, válido e eficaz. Já no plano dos fatos jurídicos: a) existente e ineficaz; b) existente e eficaz.

E)Estas idéias têm relevante função no âmbito do processo, especialmente no estudo das nulidades e da querela nullitatis. Sobre o tema é possível separar duas situações extremas no processo: inexistência e irregularidade. A inexistência significa a atipicidade absoluta do evento, do ponto de vista processual, tornando-o inapto por conseqüência à produção de efeitos jurídicos. A simples irregularidade macula o ato, não impedindo que ele produza seus típicos efeitos, sendo secundária e praticamente irrelevante. Quanto às nulidades, podem ser absolutas, relativas ou simples anulabilidades. Na nulidade absoluta há violação de norma que tutela o interesse público. Na nulidade relativa há violação de norma que tutela o interesse privado (das partes), mas tem caráter cogente. Na anulabilidade há violação de norma que tutela o interesse privado, mas de caráter dispositivo.

f)Necessário recordar que a coisa julgada material possui eficácia sanatória geral com relação às nulidades do processo e da sentença. Dito de outro modo, após o trânsito em julgado as nulidades transformam-se em rescindibilidades, e com o decurso do prazo decadencial para a ação rescisória, embora subsistam eventuais vícios não estarão mais sujeitos a qualquer espécie de impugnação.

g)De outro lado, a idéia da inexistência do processo ou da sentença é o pressuposto do emprego da querela nullitatis. Parte-se da premissa de que tratando-se de casos de inexistência (ausência dos elementos essenciais para o reconhecimento do evento processual típico - o próprio processo ou a própria sentença -, apto a produzir os efeitos para ele programados pelo ordenamento), há simples aparência de processo ou sentença. Desse modo, a inexistência jurídica pode ser reconhecida (rectius, declarada) a qualquer tempo. Não se forma a coisa julgada, com eficácia sanatória geral, sobre efeitos jurídicos que em verdade não existem, por serem apenas aparentes.

h)A querela nullitatis é, em essência, impugnação voltada para os casos de inexistência jurídica do processo ou da sentença. Tem expressa previsão legal no art. 741 I do CPC, que trata dos embargos à execução decorrentes da ausência ou nulidade de citação no processo de conhecimento, mas seu emprego não se limita a essa hipótese. A querela pode ser veiculada por qualquer meio hábil e adequado à situação específica, de conformidade com o caso concreto, v.g.: exceção de pré-executividade, defesa em demanda promovida por terceiro que se valha da sentença "aparente"; mandado de segurança; ação declaratória autônoma; na própria ação rescisória (há dissenso na doutrina e na jurisprudência a respeito); simples petição no processo de conhecimento, mesmo após a sentença já transitada em julgado (v.g. no caso de sentença declaratória, constitutiva, executiva lato sensu ou mandamental, em que não há espaço para a execução ex intervalo).

i)A inexistência pode decorrer da ausência dos elementos formais ou substanciais do processo ou da sentença. Esta observação dá margem para a admissibilidade do questionamento do julgado inexistente por razões de ordem formal, que são tradicionalmente indicadas pela doutrina e na jurisprudência, como: ausência de citação no processo de conhecimento; decisão proferida por quem não é juiz; sentença ilegível; sentença sem dispositivo; sentença com contradição lógica insuperável (que extingue sem julgamento do mérito e julga o mérito); entre outras. Contudo, a inexistência por ausência de elemento essencial ou substancial do processo ou da sentença é questão cuja discussão é relativamente recente, ainda não pacificada. O tema vem sendo abordado sob o enfoque da relativização da coisa julgada material. Em verdade não se trata propriamente de "relativizar", mas sim admitir que em certos casos não se formou a coisa julgada material. Nesses casos, a inviabilidade do reconhecimento do elemento essencial ou substancial do processo ou da sentença decorre do fato de que o objeto da demanda ou da decisão é impossível do ponto de vista material ou jurídico. São as impossibilidades materiais ou jurídico-constitucionais do objeto.

j)Para admitir sem maior resistência tal raciocínio, basta pensar em situações extremas: sentença que reconhecesse o direito de secessão de algum Estado brasileiro; sentença que condenasse uma pessoa a dar a outrem, em cumprimento de cláusula contratual, determinado peso de sua própria carne; sentença que condenasse uma mulher a prestar serviços como prostituta.136, elenco de teratologias à qual, pro domo sue incorpora o Autor a situação a que foi submetido, de servidor público perder sua função sem a observância do devido processo legal e sem a concessão de amplitude de defesa e contraditório. Nessas hipóteses, tratando-se de objeto juridicamente impossível, não seria viável afirmar a formação da coisa julgada material, pois a própria garantia constitucional com relação à res iudicata seria superada por valores superiormente protegidos pela Carta Magna, como a indissolubilidade do vínculo federativo (art. 1º da CF/88), a integridade física e a dignidade da pessoa (art. 1º III e 5º vários incisos da CF/88), entre outros.

k)Não se pode deixar de reconhecer o avanço nessas idéias, que buscam resolver problemas aparentemente insolúveis se examinados a partir de conceitos tradicionais e de princípios acolhidos, de forma sólida, pela doutrina e pela jurisprudência. Todavia, o caráter excepcionalíssimo da solução alvitrada deve ser posto sempre em evidência. O remédio cientificamente adequado para situações extraordinárias não pode ser desvirtuado, nem invocado e utilizado como regra geral, sob pena de colocar-se por terra uma das pilastras indispensáveis ao convívio social, qual seja a segurança jurídica, que decorre entre outras coisas da perenização das decisões judiciais em razão da coisa julgada material.


Do pedido e suas especificações

1.Diante do acima exposto, é, portanto, a presente Ação para pleitear o Autor a esse MM Juízo provimento jurisdicional que declare a absoluta nulidade do ato administrativo prolatado em data de 15 de junho de 1984, publicado no Boletim Geral Ostensivo nº 112, da referida data (pág. 1.915) veio a ser excluído disciplinarmente, por aplicação de preceito contido na Lei estadual nº 3.933/81, o Estatuto dos Policiais Militares então vigente, declarando, ainda, incidentalmente, a ineficácia da coisa julgada existente em face de iniciativa anterior com vistas ao desfazimento do referido ato.

2.Pari passu, propugna a condenação do Estado da Bahia à obrigação de fazer consistente em propiciar os meios para a imediata recondução do Autor ao serviço ativo da Polícia Militar do Estado da Bahia bem como ao pagamento dos valores acumulados a partir do momento em que, indevidamente, foi privado de seus vencimentos, acrescido, o montante acumulado a ser estimado em liquidação e monetariamente corrigido, de juros legais e honorários de sucumbência, na ordem de 20% do valor da condenação.


Do valor da causa

1.Não logra a pretensão do Suplicante subsumir-se em nenhuma das categorias expressamente gizadas pelo legislador no Art. 259 do CPC. Pelo fato de o valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo acionado, (o que conduz à subsunção à previsão constante do Art. 286 do CPC), essa circunstância impede concluir-se, ao menos no presente momento, o preciso valor da causa, atraindo, por essa razão a condição jurídica de causa de valor inestimável. Adimplindo, todavia, ao que estatui o Art. 258 do referido diploma legal, atribuem os demandantes, à causa, o valor de R$ 100,00 (cem reais), para efeito das exações legais.


Das provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados

1.De expressão meramente documental, a realidade posta sob julgamento não admite outro meio de prova senão o que se revela nas cópias dos atos administrativos que acompanham esta exordial, integradas aos Autos do processos em cujo âmbito a situação do Autor foi exaustivamente discutida e analisada, as quais se encontram devidamente autenticadas ou no seu original. Não obstante, por mera eventualidade, protesta o Autor pela produção de todas as provas em direito admitidas, em especial a possibilidade estampada no Art. 355 c/c com Art. 382 do Código de Ritos, já que, como é cediço, todas as informações cadastrais a respeito dos servidores estaduais se encontra sob a guarda do Estado da Bahia, determinando Vossa Excelência, se assim entender necessário, que a parte acionada exiba ao Juízo a documentação do Autor existentes em seus arquivos.


Do requerimento para citação do réu

1.Por fim, adimplindo ao que lhe obriga o Código de Ritos, requerem os Autores seja o Acionado citado no endereço do seu representante legal, mencionado no intróito desta primígena, a saber, na sede da Procuradoria Geral do Estado, localizada na Praça Dois de Julho, nº 382, Campo Grande, nesta capital, para responder aos termos da presente ação, devendo ser-lhe cientificado a propósito do teor do Art. 285 do CPC, o qual reputa aceitos pelo réu, como verdadeiros, os fatos articulados pelo Acionante, se não contestados.

Termos em que

Pedem deferimento.

Salvador, 10 de maio de 2006.

Roberto de Oliveira Aranha

OAB 14.9030


Notas

01 PEREIRA, CAIO MÁRIO, op. cit., pág. 478.

02 MOREIRA, JOSÉ CARLOS BARBOSA, "Invalidade e ineficácia do negócio jurídico" (Publicada na Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil nº 23 - MAI-JUN/2003, pág. 118)

03 Código Civil revogado (Lei nº 3.071/16) Art. 147. "É anulável o ato jurídico: I - por incapacidade relativa do agente (artigo 6º). II - por vício resultante de erro, dolo, coação, simulação, ou fraude (artigos 86 a 113)".

04 Código Civil de 1916, Art. 152. "As nulidades do artigo 147 não têm efeito antes de julgadas por sentença, nem se pronunciam de ofício. Só os interessados as podem alegar, e aproveitam exclusivamente aos que as alegarem, salvo o caso de solidariedade, ou indivisibilidade. Parágrafo único. A nulidade do instrumento não induz a do ato, sempre que este puder provar-se por outro meio".

05 CC/1916, Art. 146. "As nulidades do artigo antecedente podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir. Parágrafo único. Devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do ato ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda a requerimento das partes".

06 CC/ 1916, Art. 145. "É nulo o ato jurídico: I - quando praticado por pessoa absolutamente incapaz (artigo 5º). II - quando for ilícito, ou impossível, o seu objeto. III - quando não revestir a forma prescrita em lei (artigo 82 e 130). IV - quando for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade. V - quando a lei taxativamente o declarar nulo ou lhe negar efeito".

07 Nesse sentido o magistério de ROQUE KOMATSU, no seu "Da invalidade no processo civil", São Paulo, RT, 1991, p.25.

08 CATAUDELLA, ANTONINO. Fattispecie. Enciclopedia del diritto. vol. XVI. Milano: Giuffrè, 1967, cit., p.940

09 KOMATSU, ROQUE, Da invalidade..., cit., p.31.

10 RAMOS, ELIVAL DA SILVA, A inconstitucionalidade das leis (vício e sanção), São Paulo, Saraiva, 1994, p.8.

11 CALMON DE PASSOS, J. J., Esboço..., cit., p.36/37.

12 AZEVEDO, ANTÔNIO JUNQUEIRA DE, Negócio..., cit., p.31.

13 KOMATSU, ROQUE, Da invalidade..., cit., p.107

14 AZEVEDO, ANTÔNIO JUNQUEIRA DE, Negócio..., cit., p.26 e ss.

15 KOMATSU, ROQUE, Da invalidade..., cit., p.34.

16 CALMON DE PASSOS, J.J., Esboço..., cit., p.21.

17 BARBOSA MOREIRA faz remissão a escólio de ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, para quem, na ob. cit., p. 53: "A validade é, pois, a qualidade, que o negócio deve ter, ao entrar no mundo jurídico, consistente em estar de acordo com as regras jurídicas (´ser regular´). Validade é, como o sufixo da palavra indica, qualidade de um negócio existente" (grifado no original).

18 MIRANDA, PONTES DE, "Tratado de Direito Privado", t. IV, Rio de Janeiro, 1954

19 TOMMASINI, RAFFAELE, Invalidità (diritto privato), na "Enciclopedia del diritto", vol. XXII, Milano, Giuffrè, 1972, p.576 e 580.

20 AZEVEDO, ANTÔNIO JUNQUEIRA DE, Negócio..., cit., p.49.

21 Nesse sentido: AZEVEDO, ANTÔNIO JUNQUEIRA DE, Negócio..., cit., p.49; KOMATSU, ROQUE, Da invalidade..., cit., p.37.

22 É o que pensa KOMATSU, ROQUE, no seu Da invalidade..., cit., p.36/37.

23 Nesse sentido: AZEVEDO, ANTÔNIO JUNQUEIRA DE, Negócio..., cit., p.49 e ss; KOMATSU, ROQUE, Da invalidade..., cit., p.37 e ss.

24 CALMON DE PASSOS, J. J., Esboço..., cit., p.36.

25 TONDO, SALVATORE, Invalidità..., cit., p.995.

26 SCALISI, VINCENZO, Inefficacia (diritto privato), "Enciclopedia del diritto", vol. XXI, Milano, Giuffrè, 1971, p.322.

27 THEODORO JÚNIOR, HUMBERTO, Coisa Julgada inconstitucional: um convite à reflexão, in. "Coisa Julgada Inconstitucional", coord.CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, Rio de Janeiro: América Jurídica, 3 ed. 2004, pág. 81.

28 OTERO,PAULO, Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional, Lisboa: LEX, 1993, pág. 32.

29 DINAMARCO, CÂNDIDO RANGEL, Relativizar a coisa julgada- I, in Meio Jurídico, ano IV, nº 43, março 2001.

30 Ibidem, nº 44, pág. 23

31 NASCIMENTO, CARLOS VALDER, "Coisa Julgada Inconstitucional", coord.CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, Rio de Janeiro: América Jurídica, 3 ed. 2004, pág. 24.

32 Cf. art.741 I do CPC. Nesse sentido: ADROALDO FURTADO FABRÍCIO, Réu revel não citado, "querela nullitatis" e ação rescisória. In RePro 48, p.36; ROGÉRIO MARRONE DE CASTRO SAMPAIO, "Querela nullitatis", Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura, v.2, n.4, São Paulo, mar/abr 2001, p.107.

33 Nesse sentido ADROALDO FURTADO FABRÍCIO, Réu revel..., cit., p.31.

34 Nesse sentido: ADROALDO FURTADO FABRÍCIO, Réu revel..., cit., p.39; CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Litisconsórcio, cit., p.303 e 308, mencionando também a possibilidade da ação reivindicatória para o litisconsorte necessário não citado na ação de usucapião, p.307; CLÁUDIO F. PENNA FERNANDES, A ação declaratória..., cit., p.178.

35 Cf LIEBMAN, ENRICO TULLIO, Nulidade da sentença proferida sem citação do réu, Estudos sobre o processo civil brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1947, p.186.

36 ALVIM PINTO, TEREZA ARRUDA, Nulidades..., cit., p.203/204, reportando-se ao magistério de LUÍS A. RODRIGUEZ, ADA PELLEGRINI GRINOVER, e COQUEIJO COSTA.

37 CALMON DE PASSOS, J. J., Esboço..., cit., p.102/103.

38 Idem, ibidem, p.29/30 e passim.

39 RESP nº240.712/SP, 1ª T. do STJ, rel. Min. José Augusto Delgado, m.v., j. em 15.02.2000.

40 DIAS, FRANCISCO BARROS, Breve análise sobre a coisa julgada inconstitucional, RT 758, ano 87, dez. 1998, p.41.

41 Sobre esse conceito, v. por todos JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, A eficácia preclusiva da coisa julgada material no sistema do processo civil brasileiro, Temas de direito processual (primeira série), 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1988, p, 97/109.


Autores


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

Ato administrativo nulo. Imprescritibilidade. Relativização da coisa julgada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1058, 25 maio 2006. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16686. Acesso em: 26 abr. 2024.