Conclusão parcial
1.À luz, portanto, da análise do ato sob foco sob o prisma da Teoria dos Planos, demonstra-se que ela não pode ser reputado existente já que não obstante o "suporte fático" haja existido, ou seja, o ato foi assinado, o Autor retirado da folha de pagamentos, etc., faltou-lhe um elemento reputado essencial pela Constituição para que ele se constituísse que é , justamente a observância do devido processo legal e da asseguração do contraditório e ampla defesa. Sob a interpretação de que a um ato jurídico realizado sob esse vício falta condições de existência, concluir-se-á que ele é inexistente.
2.Se, por outro lado, considerarmos que a questão de direito, consistente na resposta à indagação sobre se o ato de exclusão pode considerar-se válido diante do direito só pode ser negativa, razão pela qual a conseqüência dessa inadvertência é a identificação da absoluta nulidade do ato de exclusão disciplinar do Autor, na forma da Lei.
3.Sucede que, nada obstante contenha o gérmen da nulidade, o ato, uma vez submetido ao crivo do Poder Judiciário, não foi assim reconhecido. Como revela o histórico da demanda instaurada a propósito do caso vertente, fixou-se a dialética do processo num aspecto meramente acidental, no que olvidou-se que atos nulos não estão sujeitos a prescrição, relegando-se, portanto, a esquecimento o verdadeiro cerne da discussão. Passou, portanto a existir coisa julgada inconstitucional, assunto a cujo respeito nos ocuparemos a seguir.
Da coisa julgada inconstitucional e sua declarabilidade como forma de saneamento de absurdos jurídicos
1.A coisa julgada detém a feição de autêntico dogma jurídico. Açodadamente, julga-se que teria ela condão de fazer, como já se disse, "do preto, branco e do quadrado, redondo". No entanto a consciência jurídica inerente ao atual estágio de compreensão do Direito enquanto fator de distribuição de Justiça evoluiu no sentido de abandonar essa obediência cega à sua ocorrência, a partir do momento em que a prática dos Tribunais revelou situações desconcertantes, como a de exames de DNA, posteriores ao trânsito em julgado de sentenças denegatórias de reconhecimento de paternidade perseguido, revelarem que o suposto pai, assim ‘reconhecido’ por sentença, não é o pai biológico do "filho "reconhecido". Sabe-se que o instituto da coisa julgada visa a escopo político, de pacificação de ânimos, impedindo a eternização de lides. Mas, seria justo atribuir paternidade inexistente apenas porque o manejo dos meios de prova não foi correto? HUMBERTO THEODORO JÚNIOR em artigo doutrinário [27], narra outro exemplo estarrecedor, oriundo de sua militância como parecerista. Constatou-se a multiplicidade e superposição de sentenças transitadas em julgado condenando o poder público a indenizar a mesma área expropriada,mais de uma vez, ao mesmo proprietário, numa conjuntura em que já não cabia ação rescisória. Diante de tais fatos, colaciona asserto de PAULO OTERO, constitucionalista português quando, em abono da relativização da intangibilidade da coisa julgada, giza que tal "como sucede com os outros órgãos do poder público, também os Tribunais podem desenvolver uma actividade geradora de situações patológicas, proferindo decisões que não executem a lei, desrespeitem os direitos individuais ou cujo conteúdo vá ao ponto de violar a Constituição" [28], escólio que vem a calhar com as circunstâncias do caso vertente. Ora, obtempera THEODORO, deparando-se com uma decisão judicial que contempla flagrante inconstitucionalidade quais os instrumentos para promover a sua adequação aos ditames máximos da Constituição? Após relembrar o aparato recursal constante do Códex processual, transfere a indagação para situações – como a ora examinada – em que tais remédios restam inócuos para as quais aponta a necessidade de remédios destinados a solver a aparente insolvabilidade da coisa julgada, em prol da Justiça. Para CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, a coisa julgada, em refletindo os efeitos do ato de julgar revela fenômeno processual vinculado ao aspecto da indiscutibilidade da decisão sentencial.
"Revestida de força normativa, encontra resistência de rescindibilidade nos termos da legislação adjetiva. Essa fórmula, segundo se diz, objetiva resguardar o princípio da segurança jurídica, a fim de evitar, como refere MARIA HELENA DINIZ, a ‘anarquia, a lesão de direito e o descrédito da justiça’".
2.Complementa seu raciocínio gizando que, todavia,
"a coisa julga é intocável, tanto quanto os atos executivos e legislativos se, na sua essência NÃO DESBORDAR DO VÍNCULO QUE DEVE SE ESTABELECER ENTRE ELA E O TEXTO CONSTITUCIONAL, NUMA RELAÇÃO DE COMPATIBILIDADE para que possa revestir-se de eficácia e, assim, existir sem que contra a mesma se oponha qualquer mácula de nulidade".
"Essa conformação de constitucionalidade", arremata,
"tem pertinência na medida em que não se pode descartar o controle do ato jurisdicional, sob pena de perpetuação de injustiças. Por esse motivo, nula é a sentença que não de adequa ao princípio da constitucionalidade, porquanto impregnada de carga lesiva à ordem jurídica. Impõe, desse modo, sua eliminação do universo processual com vistas a restabelecer o primado da legalidade. Assim, não havendo possibilidade de sua substituição no mundo dos fatos e das idéias, deve ser decretada sua irremediável nulidade"(NASCIMENTO,CARLOS VALDER DO, in. "Coisa Julgada Inconstitucional", coord.CARLOS VALDER DO NASCIMENTO, Rio de Janeiro: América Jurídica, 3 ed. 2004, pág. 14.) .
3.Além dos Autores antes referidos, na doutrina brasileira merece destaque a posição de CÂNDIDO RALGEL DINAMARCO, para quem, diante de precedentes da jurisprudência e de preciosas técnicas de hermenêutica constitucional, "os princípios existem para servir à justiça e ao homem, e não para serem servidos como fetiches de ordem processual". Por isso, não se pode reconhecer caráter absoluto à coisa julgada, nem se pode deixar de subordinar sua autoridade aos condicionamentos dos princípio da razoabilidade e da proporcionalidade" [29].
4.Acontecendo, como ora vem de ocorrer na espécie vertente, a consolidação de uma situação afrontosa à Constituição, é de ser reconhecida a possibilidade de afastamento da autoridade da coisa julgada, reconhecendo, como afirma DINAMARCO, "a relatividade da coisa julgada como valor inerente à ordem constitucional-processual, dado o convívio com outros valores de igual ou maior grandeza e necessidade de harmonizá-los". Da contraposição do julgado a algum preceito constitucional decorre, segundo aduz o referido e festejado doutrinador, uma impossibilidade de efeitos substanciais. Materialmente, não se poderia reconhecer efeito algum, porque o pedido acolhido pela sentença seria juridicamente impossível em face da ordem constitucional, raciocínio que conclui afirmando que "da inexistência desses efeitos juridicamente impossíveis decorre logicamente a inexistência da coisa julgada material sobre a sentença que pretenda impô-los" [30].
5.Ora, a sentença que sepultou a pretensão do ora Autor de ver anulado o ato de sua exclusão, feita à revelia dos princípios constitucionais suso mencionados se apoiou em um raciocínio que reconhece validade a ato nulo de pleno direito. Tanto é que deu provimento a pedido do ex adverso para decretar a incidência da prescrição a seu respeito, algo que afronta, como acima exposto, a opinião doutrinária do mais ilustre segmento de doutrinadores pátrios e alliunde , de evidência tão marcante que veio a ser consagrada no Art. 169 do novo Código Civil Brasileiro, quando giza que "O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo." Se o fez, criou situação de disparate tão gritante quanto os dos leading cases acima referidos, relativos à paternidade "jurídica" dissonante da biológica e das desapropriações múltiplas de uma mesma área.
6.A esse respeito são lapidares as palavras do Ministro JOSÉ DELGADO, quando, em palestra, afirmou que,
"... não posso conceber o reconhecimento de força absoluta da coisa julgada quando ela atenta contra a moralidade, contra a legalidade, contra os princípios maiores da Constituição e contra a realidade imposta pela natureza. Não posso aceitar, em sã consciência,, que, em nome da segurança jurídica, a sentença viole a Constituição Federal, seja veículo de injustiça, desmorone ilegalmente patrimônios, obrigue o Estado a pagar indenizações indevidas, finalmente, desconheça que o ‘branco é branco’ e que a vida não pode ser considerada morte, nem vice versa". (DELGADO, JOSÉ, "Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais", palestra proferida em Fortaleza, em 20.12.2000, no I Simpósio de Direito Público da Advocacia Geral da União, 5ª Região, promovido pelo Centro de Estudos Victor Nunes leal)
, palavras que fazem coro com escólio de eminente jurista d’além mar, o português MANOEL ANDRADE:
"A coisa julgada não assenta numa ficção ou presunção absoluta de verdade, por força da qual, como diziam os antigos, a sentença faça do branco preto e do quadrado redondo(...) Trata-se antes de que, por uma fundamental exigência de segurança, a lei atribui força vinculante ao acto de vontade do juiz"(ANDRADE, MANUEL, "Noções elementares de processo civil". Reimp. Coimbra, 1979, pág. 306/307)
7.Para CARLOS VALDER, se a sentença vai de encontro à Constituição, é nula e se é nula, em princípio não cabe, contra ela, rescisória, por incabível lançar-se mão dos recursos previstos na legislação processual, os quais têm como objeto sentenças válidas, embora inquinadas de vício que as tornam rescindível. "Na espécie", afirma, "pode-se valer, sem observância de lapso temporal, da ação declaratória de nulidade da sentença, tendo presente que ela não perfaz a relação processual, em face de grave vício que a contaminou, inviabilizando seu trânsito em julgado. Nesse caso, há de se buscar suporte na actio querela nullitatis" [31].
8.Num brilhante artigo a respeito do tema sub judice o Promotor de Justiça e doutorando RICARDO DE BARROS LEONEL expende interessantes considerações num artigo doutrinário, que valem a pena incorporar à presente petição, em que pese seu alongado teor.
9.Para ele,
"O ordenamento jurídico brasileiro estabelece expressamente, ao menos em um dispositivo, a possibilidade da impugnação de decisão aparentemente "coberta" pela eficácia da coisa julgada, que não se confunde com os recursos e tampouco com a ação rescisória: trata-se da hipótese dos embargos à execução fundados na falta ou nulidade da citação no processo de conhecimento, se a ação correu à revelia do executado. [32] Para tal afirmação é necessário partir da premissa de que a ação rescisória, como regra, serve de instrumento para impugnação de julgados cobertos com a eficácia da coisa julgada formal, cujo vício, embora justifique tentativa de rescisão, poderá tornar-se inquestionável pelo decurso do prazo decadencial para sua desconstituição (formação da coisa julgada material). Diversamente, a querela afigura-se viável para os casos em que sequer há a possibilidade de formação da coisa julgada formal ou mesmo material, justificando-se a impugnação a qualquer tempo. [33] (LEONEL, RICARDO DE BARROS, "Fatos e atos jurídicos - planos de existência, validade, eficácia, e a questão da querela nullitatis " (Publicada no Juris Síntese nº 42 - JUL/AGO de 2003)
10.Restringir, todavia, esse remédio jurídico a apenas esta situação, vislumbrando que só por meio dos embargos fundados na ausência ou nulidade da citação no processo de conhecimento seria viável a utilização da querela seria, para o articulista, reduzir excessivamente a análise do instituto, deixando sem a possibilidade de proteção jurisdicional inúmeras outras situações. Há, nesse passo, necessidade de distinguir o continente do conteúdo: a melhor interpretação para o problema, é no sentido de que o conteúdo é a querela nullitatis, meio autônomo de impugnação para casos em que sequer se forma a coisa julgada; enquanto o continente é o "veículo" processual por meio do qual a impugnação é formulada. Tal raciocínio permite sistematizar como visão panorâmica que a querela torna-se cabível sempre que não se forma a coisa julgada, pelos motivos que sejam identificáveis em cada caso concreto, bem como que pode ser instrumentalizada por qualquer meio processual pelo qual seja invocável a tutela jurisdicional.
11.Desse raciocínio advém o asserto de que a querela nullitatis pode ser proposta como demanda declaratória autônoma, tese ora encampada pelo Autor na presente pretensão. Aliás, diga-se de passagem que a conclusão vem apenas a confirmar o pensamento da processualística moderna, no sentido da atipicidade do direito constitucional de ação. Mas a construção acima deve ser levada mais longe. Situações podem ocorrer em que, exigir-se a propositura de demanda declaratória autônoma seria mero formalismo. Basta pensar que a gravidade da situação identificada no caso da querela nullitatis é de tal sorte insanável, insuscetível de convalidação, não sujeita a prazo prescricional ou decadencial, reconhecível de ofício, para concluir que pode ser veiculada por qualquer meio, ou seja aquele que se mostre mais apropriado, eficaz, econômico processualmente, diante da situação concreta. Em outras palavras, é correto concluir que a querela nullitatis pode ser veiculada por meio de embargos à execução ou mesmo de exceção de pré-executividade, ação declaratória autônoma, simples petição, mandado de segurança, e até mesmo na própria ação rescisória na hipótese de dúvida objetiva a respeito do cabimento ou não desta demanda. Tem-se aí o que autorizada doutrina denominou de "concurso eletivo de ações", valendo-se o interessado do modo que se mostre mais apropriado, na situação especificamente considerada, para instrumentalizar sua reclamação contra vício processual insanável. [34]
12.Dito de outro modo, todo e qualquer processo deve ser considerado adequado para constatar e declarar que um julgado meramente aparente é na realidade inexistente e de nenhum efeito, podendo o vício ser alegado em defesa contra quem pretende beneficiar-se da sentença, como ainda em demanda autônoma. Não se trata de reformar ou desconstituir uma decisão, mas de reconhecer que ela inexiste, e não produz seus efeitos jurídicos próprios. [35]
13.Em síntese, a querela nullitatis, que, em essência é reclamação ou impugnação em face de vício insuperável do julgado, que implica sua inexistência jurídica ou do processo no qual foi proferido, pode ser veiculada por qualquer via processual. Isso em virtude possibilidade de conhecimento de ofício e emissão judicial de simples declaração reconhecendo que determinado aparente julgado inexiste juridicamente, embora o pedido de declaração dessa patologia ocorra após esgotado o prazo possível para a ação rescisória. Demonstremos em que medida é inobjetável a prescrição da presente pretensão.