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Umbandistas defendem feriado de Ogum (São Jorge) no STF

Umbandistas defendem feriado de Ogum (São Jorge) no STF

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A Confederação Nacional do Comércio ajuizou ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4092) para suprimir o feriado do dia 23 de abril, no Estado do Rio de Janeiro, em homenagem a São Jorge. Instituições religiosas afro-brasileiras, na condição de "amicus curiae", apresentaram memorial defendendo o feriado, alegando que o santo é sincretizado na figura do Orixá Ogum.

EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO-RELATOR CELSO DE MELLO DO EXCELSO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

CONFEDERAÇÃO NACIONAL DO COMÉRCIO DE BENS, SERVIÇOS E TURISMO - CNC

REQDO: GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO e ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INTDO: CONGREGAÇÃO ESPÍRITA UMBANDISTA DO BRASIL – CEUB

A CONGREGAÇÃO ESPÍRITA UMBANDISTA DO BRASIL – CEUB, nos autos da ADI epigrafada, por seus advogados, vem a Vossa Excelência requer a juntada da manifestação escrita em anexo, contendo as contribuições fáticas e jurídicas do Amicus Curiae em respaldo à constitucionalidade do dia feriado de São Jorge no Estado do Rio de Janeiro consoante segue:

(...) O maior mérito do sistema federal não está no campo da eficácia econômica ou administrativa, mas no campo das relações de poder: a federação, como se procurará demonstrar, é o meio de organização territorial mais apropriado para garantir, via democracia, estabilidade e legitimidade políticas aos governos dos Estados nacionais cujas sociedades são marcadas por grande heterogeneidade de base territorial.

(...) Heterogeneidades territoriais: As forças centrífugas, caracterizadas acima, são decorrentes de um contexto de heterogeneidades territoriais que consiste na existência de focos distintos de solidariedades de base territorial presentes numa sociedade nacional. É aos problemas derivados deste contexto, colocados à formação ou mesmo à manutenção do Estado nacional, que a federação aparece como solução. Estas heterogeneidades podem ter correspondência étnica, lingüística, religiosa ou serem simplesmente clivagens de identidades que se definiram pela ocupação comum de um determinado territorial. [01]

PRELIMINAR: AUSÊNCIA DE REQUISITOS GERAIS DE PROCEDIBILIDADE: ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM E FALTA DE INTERESSE DE AGIR: AUSÊNCIA DE RELAÇÃO DE PERTINÊNCIA TEMÁTICA ENTRE O ATO IMPUGNADO E AS FUNÇÕES DA CAUSA ÀS FINALIDADES ESTATUTÁRIAS. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM A APRECIAÇÃO E JULGAMENTO DO MÉRITO.

1. Sabe-se que, no processo objetivo de fiscalização abstrata de constitucionalidade, as partes são meramente formais, embora "seja possível falar-se em legitimidade ativa e passiva". [02]

1.1. Não se desconhece, ainda, que como regra, não se deve reconhecer, na ação direta de inconstitucionalidade, a possibilidade de aplicação sistemática, em caráter supletivo, das normas concernentes aos processos de índole subjetiva, conforme leciona BARROSO. [03]

1.2. Mas, porque estamos diante de processo objetivo, em que não há partes, algumas singularidades podem ser observadas, com o intuito de instrumentalizar a própria prestação jurisdicional, como a questão da falta de interesse de agir, alçada como condição de ação.

1.3. Em termos de legitimidade ativa para agir na ação direta de inconstitucionalidade, a doutrina nacional, secundando a jurisprudência dessa Excelsa Corte, em exegese do artigo 103 da CRFB, estabelece diferença de tratamento entre os denominados legitimados universais (Presidente da República, as Mesas do Senado e da Câmara, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e o partido político com representação no Congresso Nacional) e os legitimados especiais (Governador de Estado, Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional) [04].

1.4. A importância prática dessa distinção reside em que os primeiros não precisam demonstrar interesse (relação de pertinência entre o ato impugnado e as funções da causa às finalidades estutárias), e os segundos, inevitavelmente, sim. (cf. ADIn 1.184-DF, j. 22.10.1996, Rel. Min. Celso de Mello; ADIn 1.114-DF, Rel. Min. Ilmar Galvão).

1.5. É que a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhece que os legitimados universais têm interesse em preservar a supremacia da Constituição por força de suas próprias atribuições institucionais. Mas quanto aos demais legitimados, os denominados legitimados especiais, o Supremo Tribunal Federal tem estabelecido restrições, pois muitas podem ser propostas por espírito de emulação ou por razões políticas. E com isso não se diga que estaria a Alta Corte brasileira transformando a ação direta em processo subjetivo de tutela de interesse concreto, ainda que coletivo.

1.6. Isso também tem o escopo de se evitar que a ADI se torne uma ação popular, colocando-se "em risco o funcionamento razoável do órgão pela sobrecarga de trabalho e pela ameaça do perigo da litigância aventureira ou de má-fé". [05]

1.7. No caso dos autos não se vislumbra um interesse de agir da Requerente. Isso não está claro, inclusive, pela elasticidade que tentou empregar ao conceito de "pertinência temática". Parece-nos que estes relevantes interesses que a Requerente almeja proteger caberiam melhor em atuação na condição de amicus curiae ou de representante a um legitimado universal para a ADI, e não como requerente de ADI - mais ainda para atuar em situação que envolve problema local.

1.8. Há ainda a circunstância de que, parece-nos, está ocorrendo um desvio de finalidade na utilização da presente ADI, em que a Confederação, de âmbito nacional com direito ao ajuizamento de ADI junto ao STF, está servindo de veículo de atendimento a interesse econômico exclusivo local, de um filiado ou alguns filiados seus, além do que nem todas as atividades econômicas deixam de funcionar em dia feriado local, por força de trato coletivo de trabalho, por motivos de revezamento, compensação de horários etc. Cada caso é um caso.

1.9. Com isso, não se entenda que se negue o direito à atividade econômica, pois o direito à livre iniciativa é protegido constitucionalmente, mas não a ponto de negar vigência ou tornar secundários outros valores e princípios (explícitos e implícitos decorrentes dos explícitos) albergados na Carta da República e ainda aqueles advindos de instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos fundamentais, tais como: dignidade humana; direito aos direitos culturais e religiosos; reconhecimento do pluralismo étnico, cultural e religioso; princípio da subsidiariedade e da federação etc. O que está em questão é a tentativa de se subordinar o interesse público ao interesse privado e o reducionismo de todos os valores sociais gregários aos ditames do interesse econômico, conforme será explicitado.

1.10. Por todos estes motivos, a Manifestante entende que não há relação de pertinência temática entre o ato impugnado e as funções da causa às finalidades estatutárias da Requerente, e por isso requer a extinção do feito, sem a apreciação e julgamento do mérito.

1.11. Por esses motivos, as entidades postulantes requerem o indeferimento do pedido de suspensão provisória da lei estadual impugnada pela presente.


NO MÉRITO:

No mérito, superada a preliminar acima suscitada, melhor sorte não assiste à Postulante.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A DEVOÇÃO A SÃO JORGE (OGUM OU OXOSSI)

2. EXCELENTÍSSIMOS SENHORES MINISTROS: o dia de São Jorge, devido ao sincretismo religioso em nosso país, é cultuado tanto na Umbanda como no Candomblé, duas das maiores religiões de matriz africana em número de adeptos em nosso país: a) na Umbanda, no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, São Jorge é identificado com o Orixá [06] Ogum; b) No Candomblé, no Rio de Janeiro, São Jorge é identificado com o Orixá Ogum. Na Bahia, os adeptos do Candomblé, o identificam com o Orixá Oxossi.

2.1. O dia de São Jorge (Ogum) é um dos dias mais festejados pela população do Estado do Rio, mesmo por aqueles que não são adeptos de religiões de matriz africana, a exemplo dos católicos. A comunidade carioca e o próprio Estado paralisam as suas atividades nesse dia desde o início do Séc. XX: a lei nada mais fez que ratificar a prática social consolidada (princípio da adequação social). Há mais: o comércio e a indústria (especializados ou não em artigos religiosos) e o Fisco têm nos meses de março e de abril substancial aumento de produção e de vendas (velas, roupas, comida, tecidos, bebidas alcoólicas ou não, fogos de artifício, combustível etc.) e arrecadação de tributos (ICMS, IPI, INSS etc.), conforme demonstraremos adiante.

2.2. A história registra que Jorge teria nascido na antiga Capadócia, região do sudeste da Turquia. Ainda criança, mudou-se para a Palestina com sua mãe após seu pai morrer em batalha. Sua mãe possuía muitos bens e o educou com esmero. Ao atingir a adolescência, Jorge entrou para a carreira das armas, por ser a que mais satisfazia à sua natural índole combativa. Logo foi promovido a capitão do exército romano devido a sua dedicação e habilidade - qualidades que levaram o imperador a lhe conferir o título de conde da Capadócia. Aos 23 anos passou a residir na Roma, exercendo a função de Tribuno Militar.

2.3. O imperador Diocleciano tinha planos de matar todos os cristãos e no dia marcado para o senado confirmar o decreto imperial, Jorge levantou-se no meio da reunião declarando-se espantado com aquela decisão, e afirmou que os ídolos adorados nos templos pagãos eram falsos deuses. Todos ficaram atônitos ao ouvirem estas palavras de um membro da suprema corte romana, defendendo com grande ousadia a fé em Jesus Cristo. Indagado por um cônsul sobre a origem dessa ousadia, Jorge prontamente respondeu-lhe que era por causa da Verdade. O tal cônsul, não satisfeito, quis saber: "O que é a verdade?". Jorge respondeu-lhe: "A Verdade é meu Senhor Jesus Cristo, a quem vós perseguis, e eu sou servo de meu redentor, e Nele confiado me pus no meio de vós para dar testemunho da Verdade."

2.4. Como Jorge mantinha-se fiel ao critianismo, o imperador tentou fazê-lo desistir da fé torturando-o de vários modos. E, após cada tortura, era levado perante o imperador, que lhe perguntava se renegaria Jesus para adorar os ídolos. Todavia, Jorge reafirmava sua fé, tendo seu martírio aos poucos ganhado notoriedade e muitos romanos tomado as dores daquele jovem soldado, inclusive a mulher do imperador, que se converteu ao cristianismo... Finalmente, Diocleciano mandou degolá-lo no dia 23 de abril de 303, segundo a tradição católica.

2.5. Os restos mortais de São Jorge foram transportados para Lídia, cidade em que crescera com sua mãe. Lá ele foi sepultado, e mais tarde o imperador cristão Constantino, mandou erguer suntuoso oratório aberto aos fiéis para que a devoção ao santo fosse espalhada por todo o Oriente.


DA DISSEMINAÇÃO DA DEVOÇÃO A SÃO JORGE

2.6. Na Itália, era padroeiro da cidade de Gênova. Frederico III da Alemanha dedicou a ele uma Ordem Militar. Na França, Gregório de Tours era conhecido por sua devoção ao santo cavaleiro; o Rei Clóvis dedicou-lhe um mosteiro, e sua esposa, Sainte Clotilde, mandou erguer várias igrejas e conventos em sua honra. A Inglaterra foi o país ocidental onde a devoção ao santo teve papel mais relevante. O monarca Eduardo III colocou sob a proteção de São Jorge a Ordem da Jarreteira, fundada por ele em 1330. Por considerá-lo o protótipo dos cavaleiros medievais, o rei inglês Ricardo I, comandante de uma das primeiras Cruzadas, constituiu São Jorge padroeiro daquelas expedições que tentavam conquistar a Terra Santa dos muçulmanos. No século XIII, Inglaterra já celebrava o dia dedicado ao santo e, em 1348, criou a Ordem dos Cavaleiros de São Jorge. Os ingleses acabaram por adotar São Jorge como padroeiro do país, imitando os gregos que também trazem a cruz de São Jorge na sua bandeira.

2.7. O culto do Santo chegou ao Brasil com os portugueses, mas a popularização de São Jorge no Brasil, por força do sincretismo religioso, se deu pelos cultos afrobrasileiros.


SÃO JORGE NA CULTURA POPULAR

- "Jorge de Capadócia" é uma música de Jorge Ben, interpretada também por Caetano Veloso, Fernanda Abreu e pelos Racionais MC’s..

- As tatuagens com o santo estão entre as que fazem mais sucesso no Brasil.

- Atualmente existe uma grande variedade de produtos de moda que possuem a estampa de São Jorge, desde simples camisas até mesmo bolsas de marcas famosas.

- São Jorge é tido como o padroeiro do Corinthians. Acredita-se que sua história de devoção e fidelidade à verdade cristã até o fim de seu martírio seja a origem do termo "Fiel", popular entre os torcedores e presente em várias agremiações corintianas.

- O escritor italiano Tito Casini escreveu um romance sobre São Jorge chamado Perseguidores e Mártires, editado no Brasil pelas Edições Paulinas, 1960.

- A banda inglesa "Iron Maiden" fala de São Jorge na música "Flash of the Blade" no álbum Powerslave;

- A banda brasileira Angra utilizou a imagem do Santo na capa do álbum Temple of Shadow.;

- O filme O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro de Glauber Rocha, ficção inspirado em São Jorge.


FERIADO DO DIA 23 DE ABRIL

2.8. Ainda bem que o dia de São Jorge é feriado no Rio de Janeiro. Senão, a maior parte dos devotos do Santo Guerreiro não poderia enfrentar a enorme fila registrada para entrar na igreja do Campo de Santana, no Centro do Rio. Segundo aGuarda Municipal do Rio de Janeiro, a fila de fiéis ultrapassa os mil metros, pegando um trecho da Avenida Presidente Vargas. O tempo médio para conseguir entrar na igreja é de três horas. Uma multidão de devotos lota também a Igreja Matriz de São Jorge, em Quintino, no dia dedicado ao santo guerreiro. Do lado de fora, nas escadarias, um mar vermelho de pessoas caminha lentamente em ritmo de procissão até o interior da igreja, para prestar homenagem ao santo.

2.9. Em frente à imagem de São Jorge, uma aglomeração para receber a bênção com a espada de São Jorge tem grande simbolismo: corte do mal, vitória sobre o demônio e abertura dos caminhos. Muitos devotos aguardam essa bênção especial, com a espada de São Jorge, para resolverem seus problemas e dificuldades. A espada na mão de São Jorge significa luta contra o mal. Para os fiéis, o poder da espada pode cortar doenças, vinganças, invejas. A espada abre os caminhos para a vitória, prosperidade e realizações.


NO SINCRETISMO RELIGIOSO, NO RIO DE JANEIRO, SÃO JORGE CORRESPONDE AO ORIXÁ OGUM

2.10. Divindade masculina iorubana, figura que se repete em todas as formas mais conhecidas da mitologia universal, Ogum é o arquétipo do guerreiro. A relação de Ogum com os militares, que é considerado o protetor de todos os guerreiros, tanto vem do sincretismo realizado com São Jorge, sempre associado às forças armadas, como da sua figura de comandante supremo Iorubá.

2.11. Ogum é o Deus do ferro, a divindade que brande a espada e forja o ferro, transformando-o no instrumento de luta. Assim seu poder vai-se expandindo para além da luta, sendo o padroeiro de todos os que manejam ferramentas: ferreiros, barbeiros, tatuadores, e, hoje em dia, mecânicos, motoristas de caminhões e maquinistas de trem. É, por extensão, o Orixá que cuida dos conhecimentos práticos, sendo o patrono da tecnologia. Do conhecimento da guerra para o da prática: tal conexão continua válida para nós, pois também na sociedade ocidental a maior parte das inovações tecnológicas vem justamente das pesquisas armamentistas, sendo posteriormente incorporada à produção de objetos de consumo civil, o que é particularmente notável na indústria automobilística, de computação e da aviação.


OGUM (SÃO JORGE), OFICIAL DA MARINHA DO BRASIL

2.12. Ogum é um dos Orixás mais populares no Brasil. Em função do sincretismo e da forte presença negra entre as tropas brasileiras, esses santos passaram a receber honras militares, o que incluía até mesmo patentes de oficial no Exército e na Marinha, com direito a soldo!

2.13. Cabe lembrar que os negros (pardos e pretos) constituíam maioria entre os soldados e marinheiros que lutaram na Guerra do Paraguai. As tropas jamais deixaram de invocar a proteção de Ogum, seja diretamente ao Orixá, seja na forma de São Jorge, o que talvez explique algumas expressões presentes nos pontos cantados, como Ogum jurou bandeira nos campos do Humaitá. A hipótese se torna ainda mais forte quando lembramos que Humaitá é o nome de uma localidade onde ocorreu uma das mais importantes batalhas daquela guerra, sendo ao mesmo tempo o nome atribuído à região do mundo invisível - o orum - que se acredita seja a morada de Ogum.

2.14. O ideal de liberdade é inerente à própria condição do ser humano. Mesmo o mais vil dos assassinos sonha com a liberdade. O que se dizer então do homem que, nascendo livre nas savanas africanas, acabou reduzido à humilhante condição de escravo, sem nada ter feito para merecer tal castigo. Assim, em seus sonhos de liberdade, o negro africano via em OGUM, o Orixá da guerra, a força que necessitava para conseguir sua liberdade. Sonhava o negro que um dia empunharia a lança e a espada de OGUM, mataria os brancos, vingando amigos e parentes mortos por estes e tomaria de uma de suas grandes canoas (caravelas) e voltaria à sua terra natal. Diante do exposto, cultuar OGUM era, para o negro africano, vital. Era ele quem os ajudaria na batalha, lhe daria forças e, talvez, lhe emprestasse a coragem de que tanto necessitava.

2.15. A figura de SÃO JORGE nos mostra um homem todo coberto com uma armadura de aço, ferindo com uma lança o dragão, símbolo do mal. O OGUM que o negro conhecia, e que era o Orixá do ferro, era um Orixá guerreiro. O branco lhe impunha a imagem de SÃO JORGE dizendo-lhe que esquecesse o Orixá guerreiro o continuasse humildemente cultuando OGUM "disfarçado" na imagem do Santo Católico.

2.16. As imagens tão populares, no período colonial, eram na sua grande maioria, esculpidas em madeira. O negro africano, quando cumpre uma obrigação, retira do lugar sagrado, onde foi dada a obrigação, um pedaço de solo, geralmente uma pedra, a qual se dá o nome de OTÁ e que é cultuada como objeto sagrado pelo resto dos dias do devoto. Para não trair seus Orixás de origem, o negro habilmente, escavava a imagem do Santo Católico e introduzia nessa escavação o OTÁ correspondente ao Orixá. Desta forma, ele poderia voltar-se para uma imagem do Santo Católico e reverenciar o Orixá Africano.


ANÁLISE DE UM PONTO CANTADO

2.17. Os pontos (cantigas litúrgicas) dedicados a Ogum na Umbanda revelam, para além da simplicidade e trivialidade de seus versos, um sentido alegórico mais amplo, que tanto remete aos fundamentos da cosmovisão afrobrasileira, quanto às inesperadas conexões astrológicas, como veremos a seguir. Analisemos alguns pontos:

Ô Jorge, Ô Jorge,

vem de Aruanda

pra salvar os vossos filhos

no terreiro de Umbanda.

Ogum, Ogum,

Ogum meu pai,

o senhor mesmo é quem diz:

filho de Umbanda não cai.

2.18. Aqui, como em muitos outros pontos, Ogum aparece identificado como São Jorge, o santo guerreiro do catolicismo. O simbolismo, aliás, não poderia ser mais adequado: São Jorge veste uma armadura de guerra (a proteção necessária para atuar em ambientes inferiores) e monta um cavalo branco (as forças da matéria e o lado animal da personalidade, já purificados - por isso a cor branca - e colocados a serviço de desígnios elevados). Utiliza a lança e a espada (um símbolo do direcionamento da energia) e consegue vencer o dragão (as forças das trevas). Jorge, ou melhor, Ogum, vem de Aruanda - termo bantu que significa céu ou plano espiritual.


O MÊS DO DIA FERIADO DE SÃO JORGE E A ATIVIDADE EMPRESARIAL

2.19. A indústria, o comércio e a prestação de serviços têm segmentos totalmente voltados para o Santo Guerreiro: moda através das estampas em camisetas, camisas, bolsas, toalhas, cangas, etc., medalhas, fitas, velas, fogos, artigos religiosos em geral (santinhos, livros, orações, etc.), flores, bebidas, refrigerantes, charutos, cigarros, ervas, música, CDs, DVDs etc. Alguns destes artigos são vendidos durante todo o ano, porém, na semana que comemoramos o seu dia, as vendas são incrementadas. Assim, a indústria destes segmentos tem sua produção aumentada alguns meses antes.

2.20. Em 2007 o crescimento das vendas no Brasil foi de 9,6% e, no Rio de Janeiro, 6,1%, com direito a recorde segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Conforme os analistas do setor, 2008 terá, no mínimo, o mesmo desempenho. Enquanto São Paulo avançou 12,5%, Minas, 7,0 % e Espírito Santo, 9,1%, o Rio de Janeiro ficou em 6,1%. A Distância de 6,4 pontos de São Paulo pode ser encurtada este ano, com algumas poucas e boas medidas.

2.21. O comercio varejista do país manteve-se com resultado positivo no mês de abril de 2008, assinalando taxas de 0,2% no volume de vendas e de 0,6% na receita nominal, ambas as variações com relação ao mês anterior (ajustadas sazonalmente). O varejo nacional obteve, em termos de volume de vendas, acréscimos da ordem de 8,7% sobre abril do ano anterior e de 11% e 10,3% nos acumulados do primeiro quadrimestre e dos últimos 12 meses, respectivamente. Para os mesmos indicadores, a receita nominal de vendas apresentou taxas de variação de 13,8%, 15,8% e de 13,9%, respectivamente.

2.22. A participação na composição da taxa do comércio varejista de abril08/abril07, para o Rio de Janeiro, ficou em 6,5%. Em relação ao varejo ampliado, a taxa de desempenho no volume de vendas, também no Rio de Janeiro, foi de 11,30%.


DA PRETENSÃO AUTORAL E PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES DO AMICUS

3. Com o escopo de obter a declaração de inconstitucionalidade formal e material do inteiro teor da Lei nº 5.198, de 05 de março de 2008, do Estado do Rio de Janeiro, que instituiu o feriado estadual, dia 23 de abril, "dia de São Jorge", publicada no dia 06 de março de 2008, aprovada pela Assembléia Legislativa e sancionada pelo Exmo. Senhor Governador do Estado do Rio de Janeiro, a CONFEDERAÇÃO NACIONAL DO COMÉRCIO DE BENS, SERVIÇOS E TURISMO – CNC propõe a presente ação direta, indicando, como parâmetro de confronto, o artigo 22, inciso I, da Carta da República.

3.1. Mas, o que nos parece, a presente ADI objetiva - à brasileira (indireta e sutil) - a prevalência da lógica meramente econômica em detrimento dos valores sócio-comunitários e religiosos, senão vejamos:

A - PREVALÊNCIA DE OBJETIVOS MERAMENTE ECONÔMICOS SOBRE VALORES SÓCIO-COMUNITÁRIOS: às fls. 03 da inicial ("das considerações fáticas iniciais") a CNC diz que apesar de louvável

(...) a iniciativa de se homenagear São Jorge (...) a verdade é que os demais estados estão trabalhando, (...) principalmente quando se pensa em desenvolvimento e crescimento econômico.

3.2. Não surpreende que a CNC enfatize o aspecto econômico na presente causa, mais ainda porque representa um conjunto de entidades empresariais numa sociedade orientada por valores capitalistas. Nem a Postulante é, frize-se, contra a livre iniciativa. Mas isso não quer dizer que, mesmo no capitalismo, o único objetivo a ser buscado seja o da prevalência do econômico ou do lucro; o lucro em si mesmo. A dimensão humana é composta por valores materiais e espirituais.

3.3. Max Weber, no seu clássico, A Ética Protestante e o Espírito Capitalista [07] alertou aos possíveis leitores da sua obra, mais de uma vez, na Introdução do Autor, que se o capitalismo era a "mais decisiva força da nossa vida moderna", também explanou que o fato de que o "impulso para o ganho, a persecução do lucro, do dinheiro, da maior quantidade possível do dinheiro, não tem, em si mesmo nada a ver como capitalismo", afirmando que isso se trata de idéia ingênua e "coisa do jardim de infância da história cultural". Enfatiza Weber que "a ganância ilimitada de ganho não se identifica, nem de longe, com o capitalismo, e menos ainda com o seu "espírito".

3.4. O capitalismo, porém, diz ele, "identifica-se com a busca do lucro, do lucro sem renovado por meio da empresa permanente, capitalista e racional". Weber finaliza seu entendimento definindo o capitalismo como "ação econômica" que "repousa expectativa de lucros pela utilização das oportunidades de troca, isto é, nas possibilidades (formalmente) pacíficas de lucro".

3.5. A proposta de equilíbrio entre o direito à acumulação individual de riquezas e a manutenção de valores humanitários e sociais está consagrado na Constituição brasileira de 1988, mais de uma vez, quando os constituintes originários garantiram o direito à livre iniciativa (artigos: 1o., IV; 170 e seus incisos e Parágrafo único); o direito à dignidade humana, à promoção do bem-estar de todos sem preconceito, numa sociedade justa e solidária, com vistas à erradicação da pobreza (artigo 1º, inciso III; 3º, I, III e IV; 193 e 194), bem como a função social da propriedade (artigo 5º, XXIII), aliás tudo isso principiado pelo seu Preâmbulo...

3.6. Sempre que a lógica mercantil das coisas tentou sobrepujar imoderadamente os valores humanitários ou de responsabilidade coletiva, as conseqüências foram as mais drásticas possíveis para o sistema econômico, exemplo do que aconteceu nos EUA em 1929...

3.7. De outra parte, o conjunto de fatores acima relatados revela como o Direito Constitucional – e em última instância a própria Constituição – foi atingido mortalmente pelas transformações econômicas e políticas nas duas últimas décadas.

3.8. O Direito Constitucional é criação da engenharia política liberal-burguesa do século XIX, que desenvolveu a idéia de Constituição como centro irradiador do ordenamento jurídico. Como enuncia José Eduardo de Faria, esse ramo do Direito principiou o século XX como sinônimo de segurança e legitimidade, "delimitando o exercício dos mecanismos de violência monopolizados pelo Estado; institucionalizando os seus procedimentos decisórios, legislativos e adjudicatórios; e estabelecendo formas de participação política".

3.9. No novo Milênio que se inicia, entretanto, a idéia de Constituição cada vez mais é apontada como entrave ao funcionamento do mercado, como freio da competitividade dos agentes econômicos e como obstáculo à expansão da economia. Com isso, o constitucionalismo – e o próprio direito público – teve um refluxo sem precedentes, permitindo as pretensões hegemônicas do direito privado, por excelência de cunho liberal-burguês.

3.10. O fato é que, continua Faria, os princípios e mecanismos básicos criados pelo constitucionalismo, lastreados no ideário dos direitos individuais edificados pela burguesia, eram capazes de enfrentar a crescente complexidade sócio-econômica gerada pelo capitalismo mercantil. Atualmente, com a "globalização dos mercados e a internacionalização do sistema financeiro, valores como ganhos incessantes de produtividade, acumulação ilimitada e livre circulação de capitais" impuseram-se como única lógica, transcendendo os limites da economia e contaminando todas as esferas da vida social.

3.11. Na ordem política, essa contaminação atinge a ordem jurídica criada pelos Estados-Nação com base nos princípios da soberania e territorialidade. Faria diz que com o advento da globalização e a internacionalização do sistema financeiro, as fronteiras se dissolvem e os governos têm relativizada a sua capacidade de gerir livremente seus instrumentos de política monetária, fiscal, trabalhista e previdenciária. As conseqüências sociais, políticas e jurídicas são as piores possíveis: o encolhimento do Estado diminui o alcance do direito público; a substituição predatória do trabalho humano pela informática e pela robótica precariza as condições sociais dos trabalhadores, o que aumenta a desigualdade social e o surgimento de atividades informais ou mesmo ilegais.

3.12. Nessa busca incessante de novos ganhos de produtividade, os valores do individualismo possessivo se sobrepõem ao da solidariedade, levando à redução da responsabilidade coletiva; enfim, à quebra do contrato social. Nesse ínterim, a justiça fiscal fica cada vez mais longe; os investimentos sociais são encarados como despesas; os mecanismos de proteção ao trabalho são submetidos a um processo de flexibilização, desregulamentação e desconstitucionalização; a revogação dos monopólios públicos e os programas de privatização convertem as obrigações do Estado perante os cidadãos em negócio empresarial; a educação, a saúde, e previdência submetem-se à lógica mercantil, passando a simples mercadorias.

3.13. Mas, apesar do quase desmantelamento da sociedade civil, vem surgindo reações a todas as essas mudanças, promovidas, por exemplo, pelos intelectuais, políticos e empresários progressistas, os diversos segmentos do movimento social e os grupos que quase impedem as reuniões entre os grandes Estados capitalistas, o FMI e o Banco Mundial na Europa e nos EUA, na tentativa de se retornar às questões sobre o reconhecimento da dignidade humana, da manutenção das redes sociais de produção, dos direitos dos pobres e das minorias, do papel do Estado na equalização de oportunidades, da justiça e do bem comum.

B – MENOSCABO AOS VALORES RELIGIOSOS DO POVO BRASILEIRO: às fls. 03 da inicial ("das considerações fáticas iniciais") a CNC alude a que São Jorge é santo guerreiro

(...) com grande número de devotos dentro do sincretismo religioso brasileiro (...).

4.Todos sabemos a importância da religião no âmbito da tradição e da cultura. Aos nossos Constituintes originários de 1988 esse fato não passou despercebido. Tanto que ao finalizarem o Preâmbulo fizeram uma invocação a Deus. O Estado é laico, mas não é ateu. Ao longo do Texto Maior, em diversos momentos, a religião foi devidamente preservada, a exemplo do artigo 5º, onde a maioria deles está concentrada. Por exemplo: o Inciso VI preceitua, como direito fundamental das religiões e da dignidade humana dos religiosos (artigo I, Inciso III), a proteção aos locais de culto e das suas liturgias. Assim, a instituição do feriado estadual está relacionada à guarda de dia santo, da liturgia e dos rituais praticados na religião.

4.1.A ascensão do positivismo científico e a decretação da República no Brasil - que passou a valorizar apenas os feriados cívicos – produziu alguns reclamos contra o feriado religioso, mas nada muito importante. Talvez porque, em compensação, como aludimos acima, as festas religiosas estimulam o consumo e aumentam a arrecadação fiscal nos meses em que ocorrem. Imagine-se então um feriado como o de São Jorge no Estado do Rio de Janeiro, que conta com diversos templos da Igreja Católica dedicadas ao santo, bem como mais de 3.000 casas dedicadas aos cultos afrobrasileiros.

4.2. Ora, todos sabem que esse "grande número de devotos dentro do sincretismo religioso brasileiro" citado pela CNC SÃO OS MINISTROS RELIGIOSOS E OS RELIGIOSOS E SIMPATIZANTES DAS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA (principalmente a Umbanda e o Candomblé), cuja maioria são afrobrasileiras [08].

4.3. A proteção das práticas culturais e religiosas de grupos afrobrasileiros e indígenas não é elemento fortuito de nossa Constituição Federal. Ele está para marcar o forte caráter pluricultural de nossa Carta Maior. Ou seja, devemos entendê-la como medida que visa reparar, através da proteção dessas práticas, o dano e a opressão sofrida por tais parcelas da população no processo de formação de nossa nação.

4.4. Nesse aspecto é importante notar que a religião cristã, ainda que majoritária, deve dar espaço para outras práticas religiosas, principalmente daquelas parcelas da população que contribuíram tanto para a formação de nosso povo e da nossa cultura, como africanos e indígenas. Ou seja, o país se torna mais democrático à medida que permite a liberdade de práticas religiosas e também reconhece publicamente a contribuição de determinados grupos à formação da nação. [09]

4.5. Os feriados de nosso calendário, retirando-se aqueles de caráter estritamente cívico, independência e república, são hegemonicamente cristãos. O feriado de São Jorge é, portanto, uma inovação que deve ser preservada, pois ajuda a lembrar a todos os brasileiros, e não somente aos afrodescendentes, que nosso país é plural, e não exclusivamente cristão e europeu, e que essa pluralidade de crenças e práticas é algo enriquecedor, e não algo do qual devemos nos envergonhar. Isso é particularmente verdadeiro nas regiões do país onde a população afrodescendente é mais numerosa, como no Rio de Janeiro. [10]

4.6. Em suma, o que está em questão aqui é o reconhecimento, por parte da sociedade e de suas instituições, de um grupo social que sofreu injustiças históricas e perseguições nas quais pessoas foram muitas vezes proibidas de praticar sua religião, apesar de nossa tradição de laicidade estatal, e forçadas a adotar as práticas do catolicismo, ainda que contra sua vontade. [11]

5. As Constituições sul-americanas promulgadas por poderes constituintes democráticos nos últimos 10 anos têm trazido em seus Textos regras, princípios e valores que reconhecem direitos especiais, civis, políticos, culturais e sociais a diversos grupos sociais sujeitos à vulnerabilidade sócio-política, como os afrodescendentes, mulheres, indígenas, pessoas com deficiência, minorias religiosas etc. É preciso ressaltar que o destaque a esses temas não é casual, pois ele atende à continuada luta dos movimentos sociais organizados representativos desses segmentos sociais, que acabam por obter do Estado e da sociedade em geral o devido reconhecimento.

5.1. Essas Cartas constitucionais, em consonância com as melhores experiências de sociabilidade advindas da sociedade internacional, têm primado pela diversidade étnico-racial e cultural-religiosa, correspondentes à realidade populacional de seus países. A Carta da República brasileira, promulgada a 05 de outubro de 1988, é bom exemplo: reconhece a dignidade universal da pessoa humana; protege e garante a liberdade e a igualdade dos cidadãos, sem considerar sexo, raça e religião; e implicitamente reconhece a diversidade étnica e o pluralismo cultural.

5.2. Jacques d’Adesky [12] observa que, por meio de diversas cláusulas constitucionais, o Estado brasileiro se reconhece como sendo produto de uma nação formada por diferentes etnias, que o mesmo tem o dever de proteger. Por exemplo, no Título VIII, Da Ordem Social, admite implicitamente a existência de um pluralismo étnico, ao tratar da questão indígena. Por sua vez, o artigo 215 - que se refere à etnia usando a expressão "segmentos étnicos nacionais" -, nos parágrafos 1º e 2º, reconhece a realidade de uma sociedade pluricultural cujas diversas manifestações populares e religiosas, indígenas e afrobrasileiras devem ser protegidas.

5.3 Nesse diapasão, por fim, D’Adesky, doutrina que a Constituição Brasileira de 1988 é orientada por três concepções: a) a primeira, ao se referir à pessoa humana, remete a um universalismo fundamental que define o cidadão enquanto tal, sem distinção de raça, religião, sexo e cultura; b) a segunda, usando nominalmente as expressões "populações indígenas" e "segmentos étnicos nacionais", reconhece implicitamente a diversidade étnica da nação, admitindo particularmente a especificidade dos indígenas, aos quais consagra todo um capítulo e; c) a terceira concepção confirma o pluralismo cultural visto como patrimônio comum da nação e como tal devendo ser protegido.

5.4. Com base em tudo o que foi acima ponderado, sem exagero ou demasiada ilação pode-se mesmo considerar o dia feriado de São Jorge, instituído pela Lei Estadual ora impugnada, um tipo de política pública de ação positiva (reparatória) [13], com permissivo legal na Carta Política de 1988, que reconhece a nação brasileira como pluriétnica, pluricultural e plurireligiosa, e na Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CIETFDR), senão vejamos:

CRFB:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

CIETFDR:

Art. 1º, item 4: não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos e indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contando que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.


DEMAIS CONSIDERAÇÕES DO AMICUS

6. Na inicial da ADI, a CNC, alega vício de competência da Lei Estadual, argumentando que somente a União poderia legislar sobre Direito do Trabalho. Mas a instituição de feriado não é matéria afeta diretamente ao Direito do Trabalho. Apenas gera, reflexamente, efeitos trabalhistas. De outra parte, o motivo do feriado de São Jorge tem caráter cultural, religioso, e não apenas gerar efeitos trabalhistas.

6.1. Para ilustrar a tese retro mencionada, vamos supor que um circorequeira à prefeitura municipal uma autorização de uso para instalar a lona em uma praça. Dentro do seu campo de discricionariedade, se a prefeitura municipal conceder a autorização de uso restringindo o funcionamento do circo apenas para depois das 22:00h, acabará, ainda que reflexamente, adentrando em matéria trabalhista, eis que indiretamente tornou obrigatório para o circo o pagamento de adicional noturno e proibiu o trabalho de menores. Há mais: no exemplo citado, sequer há lei formal, e sim mero ato administrativo precário gerando efeitos trabalhistas. Em tese, ninguém poderia dizer que tal ato administrativo estaria usurpando a competência da União de legislar sobre direito do trabalho...

6.2. Haveria inconstitucionalidade, por exemplo, se uma lei municipal ou estadual legislasse especificamente sobre direito do trabalho, como instituindo uma nova obrigação trabalhista não prevista em lei federal. Por exemplo, Lei Municipal estabelece que o adicional de periculosidade passe a ser de 50%.

6.3. A Lei Estadual que institui feriado não cria novas obrigações trabalhistas, pois o dever do empregador de pagar em dobro, por exemplo, já está previsto em lei federal. Em muitos casos, sequer é pago qualquer acréscimo devido à existência de tratos coletivos de trabalho, escalas de revezamento ou mesmo acordo de compensação de horas... O que não pode é a Lei Estadual que institui feriado exigir que o pagamento seja feito em triplo, ou que ao menos não haja pagamento em dobro.

6.4. Além disso, em feriados municipais, por exemplo, as repartições públicas federais e estaduais do respectivo município não funcionam, e nunca se cogitou que a lei que instituiu tal feriado estaria legislando sobre direito administrativo...

6.5. Assim, considerando que o feriado de São Jorge tem cunho religioso e, portanto, cultural, incidiria o disposto no artigo 215 CRFB:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Ou seja, o Estado (todos os entes) tem o dever de proteger a difusão de manifestações culturais, tais como os dias de preceito religioso, de modo que um estado membro poderia decretar um feriado tal fim.

6.6. Essa Excelsa Corte proferiu um acórdão em 2005, citado pela CNC, que reitera o caráter trabalhista da instituição de feriados, afirmando a competência da União. Mas tal precedente se refere ao "dia do comerciário". E no feriado de São Jorge o que se defende é a manifestação da religiosidadede diferentes religiões, principalmente as afrobrasileiras, que pelo art. 215, § 1º CF receberão especial proteção do Estado (todos os entes) em suas manifestações.

6.7. Há mais: toda regra jurídica pode ser decomposta em seus preceitosprimário e secundário. O preceito primário se refere às questões fáticas, jurídicas, situações previstas nanorma que ensejam sua aplicação. Grossomodo, o preceito primário é a "hipótese de incidência" daregra. O preceito secundário se refere às conseqüências jurídicas da ocorrência do preceito primário na realidade fática.

6.8. Assim, no ramo juslaboral, um preceito primário seria a realização de trabalho noturno; o secundário, a obrigatoriedade do adicional. Uma Lei Estadual que institui um feriado estaria apenas prevendo uma situação fática, um preceito primário. Os efeitos jurídicos de tal feriado -ou seja, o preceito secundário -estão previstos em lei federal.

6.9. A lei estadual do feriado não pretende modificar o preceito secundário da lei federal; apenas prevê uma hipótese em que incidiria a legislação da União, isto é, apenas prevê um preceito primário. Por esses e outros motivos, é possível se defender que a competência privativa da União se resume ao preceito secundário das normas trabalhistas, e não ao preceito primário.

6.10. Ora, se os particulares podem firmar relações trabalhistas - preceitos primários-cujos efeitos legais estão na lei federal, outros entes da federação - para fomentar a defesa da cultura de seu povo - poderiam criar feriados - preceito primário -, cujos efeitos trabalhistas - preceito secundário -estão na lei federal. O que é proibido a Estados e Municípios é legislar sobre preceitos secundários da legislação trabalhista. Ao se impedir que tais entes possam legislar sobre preceitos primários, poder-se-ia chegar ao extremo dese proibir que tais entes firmem relações trabalhistas (como contratar trabalhadores pelo sistema celetista - preceito primário), já que estariam produzindo efeitos típicos de tal ramo do direito.

6.11. Somente assim, com o devido respeito, seria possível defender a inconstitucionalidade da lei federal 9.093/95 por restringir a atuação dos demais entes da Federação na promoção da cultura de seus povos (violação do princípio federativo e da subsidiariedade).


DIA FERIADO, ESTADO-MEMBRO, AUTONOMIA E DESCENTRALIZAÇÃO: O PRINCÍPIO DA FEDERAÇÃO

7. Enunciam Mendes, Coelho e Branco [14], referindo-se às características básicas do Estado Federal, que a "autonomia importa, necessariamente, descentralização do poder". Essa descentralização, dizem eles, é "não apenas administrativa, como, também, política". Assim, os Estados-membros não "apenas podem, por suas próprias autoridades, executar leis, como também é-lhes reconhecido elaborá-las. Isso resulta em que se perceba no Estado Federal uma dúplice esfera de poder normativo sobre um mesmo território e sobre as pessoas que nele se encontram, há a incidência de duas ordens legais: a da União e do Estado-membro".

7.1. A princípio, podemos dizer, considerando os argumentos explanados ao longo do item 06 da presente e aqueles enunciados pelos constitucionalistas citados neste item 07, que falece razão à CNC na peça vestibular, quando suscita vício de competência supostamente contido na Lei Estadual impugnada. Em termos psicanalíticos poderíamos dizer que a CNC quer "tirar a potência" do Estado-membro ao tentar impedi-lo de exercer o seu direito à autonomia legislativa, para legislar sobre feriado, por via da presente ADI...

7.2. No mesmo sentido, Baracho [15], no clássico O Princípio de Subsidiariedade: conceito e evolução, ao comentar os temas: SUBSIDIARIEDADE E FEDERALISMO, à luz dos autores que tratam do federalismo alemão, aponta os pontos essenciais do federalismo: a) o federalismo preserva a diversidade histórica e a individualidade; b) facilita a proteção de minorias; c) aplica o princípio da subsidiariedade; d) o federalismo é um meio de proteção da liberdade; e) o federalismo encoraja e reforça a democracia, facilitando a participação democrática (...), que também são princípios (explícitos ou implícitos), regras e valores esposados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, invocados ao longo do presente texto em favor do Estado que legislou o dia feriado de São Jorge, bem assim para os devotos de todas as religiões que se identificam com esse santo.


DAS CONSIDERAÇOES (QUASE) FINAIS DO AMICUS CURIAE

8. As diversas considerações formuladas ao longo deste memorial pretenderam demonstrar, em caráter interdisciplinar [16] - para além do positivismo jurídico, que a tudo pretende solucionar pelo método lógico-dedutivo ou da subsunção automática da lei aos fatos - que a Lei nº 5.198, de 05 de março de 2008, do Estado do Rio de Janeiro, que instituiu o feriado, no dia 23 de abril, "dia de São Jorge", publicada no dia 06 de março de 2008, além de formal e materialmente ajustada, à fiveleta, à Carta Federal em vigor, cumpre outras finalidades programáticas, principiológicas e valorativas previstas na nossa Constituição Dirigente, tais como: o princípio da federação; da subsidiariedade; da democracia, da dignidade humana; do direito à religião e seus consectários; da pluralidade religiosa, étnica e racial etc.

8.1. E, quase finalizando, a entidade Amici reproduz os trechos do artigo de Márcia Miranda Soares, intitulado Federação, Democracia e Instituições Políticas, destacado no início deste memorial, pois consoante e totalmente aplicável ao caso sob censura, "tendo em vista a composição pluralista, preferivelmente subsidiária, de entes autônomos, o Estado federal possui a peculiaridade capaz de assim se transformar num agente regulador da convivência harmônica entre os grupos territoriais, reunidos para tanto num pacto federativo, mas também nacional e de união perpétua".

(...)

O maior mérito do sistema federal não está no campo da eficácia econômica ou administrativa, mas no campo das relações de poder: a federação, como se procurará demonstrar, é o meio de organização territorial mais apropriado para garantir, via democracia, estabilidade e legitimidade políticas aos governos dos Estados nacionais cujas sociedades são marcadas por grande heterogeneidade de base territorial.

(...)

Heterogeneidades territoriais: As forças centrífugas, caracterizadas acima, são decorrentes de um contexto de heterogeneidades territoriais que consiste na existência de focos distintos de solidariedades de base territorial presentes numa sociedade nacional. É aos problemas derivados deste contexto, colocados à formação ou mesmo à manutenção do Estado nacional, que a federação aparece como solução. Estas heterogeneidades podem ter correspondência étnica, lingüística, religiosa ou serem simplesmente clivagens de identidades que se definiram pela ocupação comum de um determinado territorial.


DOS PEDIDOS:

9. Diante do exposto, a entidade amici requerer:

a.indeferimento do pedido de concessão de medida liminar, em face da ausência de motivos de ordem pública ou periculum in mora; conhecimento e deferimento da preliminar suscitada, de carência de ação, com decretação da extinção do processo sem a apreciação e julgamento do mérito, ou, no mérito, seja julgada improcedente a presente ação direta de inconstitucionalidade.

Pede Deferimento.

Rio de Janeiro, RJ, 30 de outubro de 2008.

Luiz Fernando Martins da Silva

Adv. Insc. nº 57.095. OAB-RJ

Pedro Ivo Martins Caruso D’Ippolito

Adv. Insc. Nº 153.196. OAB-RJ


Notas

  1. SOARES, Márcia Miranda. Federação, Democracia e Instituições Políticas. In: Instituições. Revista de Cultura a Política, nº 44. ISSN 0102-6445. São Paulo: CEDEC. 1988.
  2. CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Direito brasileiro. 2ª. ed. revista e atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 159.
  3. BARROSO, Luis Roberto. Conceitos fundamentais sobre o controle de constitucionalidade e a jurisprudência. In SARMENTO, Daniel (org.). O controle da constitucionalidade e a Lei no 9.868/99. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002.
  4. V. por todos, CLÈVE, ob.cit., p. 165.
  5. V. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. 3.a ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 61.
  6. ORIXÁ: Segundo o Dicionário Aurélio, entre os iorubas e nos ritos religiosos afro-brasileiros, como o candomblé, a umbanda, etc., personificação ou deificação das forças da natureza ou ancestral divinizado que, em vida, obteve controle sobre essas forças; guia, encantado.
  7. WEBER, Max, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martin Claret. 2002, p. 23,
  8. É sempre oportuno lembrar que os autodeclarados pretos e pardos no Brasil somam quase a metade de nossa população que é de cerca de 170 milhões de pessoas. O censo de 2000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constatou que a soma da porcentagem de pretos (6,21%) e pardos (38,45%) é de 44,66% perfazendo algo em torno de 76 milhões de pessoas, constituindo a maior população de origem africana fora da África. É a segunda maior população negra do mundo, só inferior numericamente ao mais populoso país africano, a Nigéria.
  9. Ver Harding, Rachel E. 2000. A refuge in thunder : Candomblé and alternative spaces of blackness, Blacks in the diaspora. Bloomington: Indiana University Press; Omari-Tunkara, Mikelle Smith. 2005. Manipulating the sacred : Yoruba art, ritual, and resistance in Brazilian Candomble, African American life series. Detroit: Wayne State University Press.
  10. Ver Falola, Toyin, and Matt D. Childs. 2004. The Yoruba diaspora in the Atlantic world, Blacks in the diaspora. Bloomington: Indiana University Press; Johnson, Paul C. 2002. Secrets, gossip, and gods : the transformation of Brazilian Candomblé. Oxford ; New York: Oxford University Press.
  11. Sobre a teoria do reconhecimento ver Feres Júnior, João, and Bethania Assy. 2006. Reconhecimento. In Dicionário de Filosofia do Direito, edited by V. d. P. Barretto. Rio de Janeiro; Honneth, Axel. 1992. Integrity and disrespect: principles of a conception of morality based on the theory of recognition. Political Theory 20 (2):187-202; e Honneth, Axel. 1995. The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts. Cambridge, UK; Oxford ; Cambridge, MA: Polity Press - Blackwell.
  12. d´ADESKY, 2001, 185-187.
  13. Para reforço da Identidade dos praticantes de religiões de matriz africana, especialmente os afro-brasileiros, que são cotidianamente discriminados e, portanto, sem possibilidades de elaborar e superar a vulnerabilidade subjetiva decorrente da prática reiterada da discriminação. Sobre o termo ação afirmativa, vide o verbete "ação afirmativa" in: FERES JÚNIOR e SILVA, Luiz Fernando Martins da. Dicionário De Filosofia Do Direito, Vicente de Paulo Barretto (Coord). São Leopoldo e Rio de Janeiro: Editora Unisinos e Editora Renovar, 2006.
  14. MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO. Curso de Direito Constitucional. 2ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 798.
  15. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 43.
  16. Colaboraram para a produção do presente Memorial as seguintes pessoas: Luiz Fernando Martins da Silva (Ogã confirmado para Xangô do Ilê Axé Oxumarê, Salvador (BA), advogado, pesquisador e ex-professor da Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas – SUESC-Pitágoras); Prof. Dr. Jaques d’Adesky (economista e antropólogo, pesquisador e Professor da Universidade Candido Mendes - RJ- UCAM e Coordenador do Programa Sul-Sul/CLACSO); Prof. Dr. João Feres Junior (cientista político, pesquisador e professor do Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ); Prof. Mestre José Henrique Motta de Oliveira (Umbandista e sacerdote da Cabana de Pai Pescador das Almas, situado em Campo Grande (RJ), jornalista, historiador e pesquisador); Pedro Ivo Martins Caruso D’Ippolito (advogado), Bela Balassiano (contadora e acadêmica de Direito da Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas – SUESC-Pitágoras); Margarete Alves dos Reis de Sousa (professora da rede municipal da cidade do Rio de Janeiro, Licencianda em História do Instituto Metodista Bennett) e Jorge Mattoso (secretário da Congregação Espírita Umbandista Do Brasil – CEUB

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luiz Fernando Martins da. Umbandistas defendem feriado de Ogum (São Jorge) no STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2149, 20 maio 2009. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16892. Acesso em: 18 abr. 2024.