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Nova redação dos crimes sexuais: rigor ou favor legal?

Nova redação dos crimes sexuais: rigor ou favor legal?

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Primeiramente ressalto que conheço a seriedade do trabalho do Senador Magno Malta e que ninguém questiona a relevância da CPI da Pedofilia no Congresso Nacional, que deu visibilidade a um tema tabu nas famílias e na sociedade brasileira.

Contudo, a reforma do código penal, introduzida pela Lei nº 12.015/09, que a partir de 10 de Agosto de 2009, alterou a capitulação dos crimes contra a liberdade sexual, criada certamente para dar mais proteção às pessoas, assegurando-lhes a dignidade sexual e a punição mais rigorosa ao infrator, infelizmente, em razão de sua redação deficiente e dúbia, acabou surtindo efeito inverso, beneficiando abusadores sexuais e pedófilos de todo o país.

É claro que parte das alterações foram positivas, mas estas não serão objeto desta reflexão, até porque os pontos negativos da alteração legislativa são superiores em importância e impacto.

O legislador certamente não teve tal intenção, mas esqueceu que dispositivos legais, sobretudo os componentes do Código Penal Brasileiro, devem ser muito claros e específicos, ignorando que no meio do caminho existem os juristas e operadores do direito, com sua independência funcional e peculiares formas de interpretação da norma, razão pela qual a tipificação das condutas deve ser a mais clara possível, pois sempre que houver dúvida, muitos desses intérpretes, ao invés de considerar os direitos humanos das vítimas e toda a tutela estatal a que fazem jus, vão certamente pender para a garantia dos direitos humanos de suas majestades: os réus! E aqueles que assim o fazem estão respaldados em farta legislação, doutrina, jurisprudência e princípios constitucionais.

Neste momento faço um adendo para mencionar que muitas vezes, parlamentares bem intencionados se equivocam e acabam aprovando leis, imaginando estarem de fato levando maior rigor para os autores de crimes em defesa da sociedade e do povo que representam, mas acabam na verdade beneficiando-os, como no caso da alteração legislativa dos crimes sexuais e da reforma do Código de Processo Penal em andamento, em que o Senador Renato Casagrande, sério e íntegro, certamente pensa estar inovando de forma positiva contra as mazelas criminosas que assolam nosso país, quando na verdade está criando uma legislação absolutamente benéfica para os criminosos, como, por exemplo, extirpando a prisão em flagrante do ordenamento jurídico; marcando tempo exíguo para as prisões preventivas e o pior de tudo: tornando os delitos contra o patrimônio, condicionados a representação das vítimas. É isso mesmo! O cidadão de bem, vítima de um furto, terá de decidir se deseja processar ou não aquele que subtraiu seus bens, muitas vezes fruto de anos de seu trabalho, e o bandido, claro, saberá que está sendo processado, se for o caso, por desejo único e exclusivo da vítima, que, por sua vez, saberá que o ladrão estará solto... É IMPUNIDADE certa! Ou você representaria?

É a saída do Poder Estatal dos crimes contra o patrimônio cometidos sem violência ou grave ameaça. É como se o Estado dissesse: Furtem, danifiquem, subtraiam... Eu não tenho nada a ver com isso! Tão simples continuar como está, pois aquele que não se sente lesado por ter seu patrimônio subtraído, simplesmente deixa de registrar a ocorrência.

O grande paradoxo é que, muitas vezes, nós, Promotores de Justiça e Juízes de Direito, somos cobrados por uma atuação mais incisiva por esses mesmos parlamentares, que esquecem que somos meros aplicadores da legislação por eles criada.


COM QUANTOS CRIMES SE COMETE UM ESTUPRO?

Retornando à questão da nova capitulação dos crimes sexuais, vejamos o artigo que mais beneficia os abusadores e pedófilos: Estupro. Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

Anteriormente tínhamos os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, previstos no ordenamento jurídico, sendo que o primeiro se referia a conjunção carnal propriamente dita e o segundo a qualquer ato libidinoso, diverso da conjunção carnal. Assim, quando o abusador obrigava a vítima à prática de sexo vaginal, seguido de sexo anal, respondia pelas duas condutas, pois, tratava-se de crimes distintos e a jurisprudência majoritária reconhecia a existência de concurso material de crimes, o que implicava na somatória das penas previstas para ambos.

Hoje, infelizmente, a nova capitulação, quiçá no intuito de simplificar o tipo penal, acabou na verdade por abrandar a pena prevista para tais adjetas condutas, pois grande parte dos operadores jurídicos está entendendo que o abusador que praticar, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, contra a mesma vítima, duas ou mais condutas da mesma espécie (sexo oral, vaginal e anal, por exemplo), estará sujeito a uma única pena, por tratar-se, segundo eles, de crime único, de múltiplas condutas, nos termos da redação dúbia prevista para tipificar o procedimento delitivo.

Evidentemente que não concordo com essa interpretação, que transforma o novo tipo penal de estupro em crime de ação múltipla, como se diferença alguma fizesse para sua pena, se o abusador passar as mãos nas pernas e partes íntimas na vítima, ou penetrá-la com sexo vaginal, seguido de sexo oral e anal. Porém, tenho que concordar que o tipo penal pode induzir a tal interpretação, que ademais, tem levado centenas de pedófilos e abusadores sexuais a pedirem a revisão de suas penas, já que a lei mais benéfica retroage para beneficiar o criminoso e muitos tribunais têm julgado procedentes tais revisionais. Penas que antes eram de no mínimo 14 anos, quando praticado o estupro mais atentado violento ao pudor, estão sendo baixadas para 6 anos, deixando-nos estarrecidos e entristecidos com o desfecho de uma legislação bem intencionada, mas mal redigida.


PESSOAS OFERECIDAS EM SACRIFÍCIO PARA SATISFAÇÃO DA LASCÍVIA ALHEIA

Outro grave erro da legislação em comento reside na parte que trata da ação penal, no artigo 225, que reza: "Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação. Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável".

Observem que o legislador dispôs que nos crimes de estupro previstos no capítulo I, praticados contra maiores de 18 anos e não vulneráveis, seria indispensável a representação desses para que o criminoso seja processado ... e pasmem!!! Ainda que do estupro resulte lesão corporal de natureza grave (art.213§1º) e muito PIOR: ainda que da conduta resulte morte! (art.213§ 2º).

Tal dispositivo é absurdo! Exigir representação de vítima morta ou gravemente lesionada para se iniciar um processo contra um pedófilo ou abusador é simplesmente abandoná-las à própria sorte (ou melhor: a falta dela...), como se não merecessem a tutela estatal, permitindo-se que sejam oferecidas em sacrifício para satisfação da lascívia alheia.

Imagino que o resultado prático da Lei nº 12.015/09 esteja muito distante do que fora inicialmente desejado pelo legislador, asseverando que é com tal legislação, deficiente e dúbia, que nós operadores temos que trabalhar...


COM A PALAVRA: O STJ

Evidentemente que as mazelas trazidas pela nova legislação já chegaram ao Superior Tribunal de Justiça, que possui atualmente dois entendimentos diametralmente opostos sobre o tema, um calcado na interpretação literal da legislação mais benéfica para os abusadores e outro levando em conta os direitos humanos das vítimas, reiteradamente maltratadas pelo parlamento e pelos operadores jurídicos em nosso país. Vejamos o triste entendimento da Sexta Turma daquela Corte:

"HABEAS CORPUS. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CRIME CONTINUADO x CONCURSO MATERIAL. INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 12.015/09. MODIFICAÇÃO NO PANORAMA. CONDUTAS QUE, A PARTIR DE AGORA, CASO SEJAM PRATICADAS CONTRA A MESMA VÍTIMA, NUM MESMO CONTEXTO, CONSTITUEM ÚNICO DELITO. NORMA PENAL MAIS BENÉFICA. APLICAÇÃO RETROATIVA. POSSIBILIDADE.1. A Lei nº 12.015/09 alterou o Código Penal, chamando os antigosCrimes contra os Costumes de Crimes contra a Dignidade Sexual.2. Essas inovações, partidas da denominada "CPI da Pedofilia", provocaram um recrudescimento de reprimendas, criação de novos delitos e também unificaram as condutas de estupro e atentado violento ao pudor em um único tipo penal. Nesse ponto, a norma penal é mais benéfica.3. Por força da aplicação do princípio da retroatividade da lei penal mais favorável, as modificações tidas como favoráveis hão de alcançar os delitos cometidos antes da Lei nº 12.015/09. 4. No caso, o paciente foi condenado pela prática de estupro e atentado violento ao pudor, por ter praticado, respectivamente,conjunção carnal e coito anal dentro do mesmo contexto, com a mesma vítima.5. Aplicando-se retroativamente a lei mais favorável, o apensamento referente ao atentado violento ao pudor não há de subsistir. 6. Ordem concedida, a fim de, reconhecendo a prática de estupro e atentado violento ao pudor como crime único, anular a sentença no que tange à dosimetria da pena. HC 144870 / DF. 2009/0159450-5T6 - SEXTA TURMA09/02/2010".

Em julgado recente, de acórdão ainda não publicado, efetivado no dia 22 de junho de 2010, a Quinta Turma do STJ , mesmo diante da nova lei que trata dos crimes sexuais, esposou entendimento no sendido da impossibilidade de reconhecer continuidade delitiva entre as condutas que antes tipificavam o estupro e o atentado violento ao pudor, hoje previstas apenas como "estupro", muito menos de reconhecer diversas condutas contra a mesma vítima , no mesmo contexto. como crime único.

Ao interpretar a Lei n. 12.015/2009, adotou-se a tese de que o novo crime de estupro é um tipo misto cumulativo, e que as condutas de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso diverso, embora reunidas em um mesmo artigo do Código Penal, com uma só cominação de pena, devem ser punidas individualmente, caso o agente pratique mais de uma conduta, somando-se as penas.

Para nossa felicidade, o bom senso prevaleceu e o colegiado entendeu que ocorrendo condutas com modo de execução distintos, ainda que da mesma espécie (crimes sexuais) e mesmo que contra a mesma vítima, não se pode reconhecer a continuidade delitiva entre os delitos, nem tampouco considerá-lo crime único, sujeito a uma só pena.

Sengundo notícia publicada no site do STJ [01], o tema foi discutido no julgamento de um pedido de habeas corpus de um homem condenado a 15 anos de prisão por estupro e atentado violento ao pudor, na forma continuada, contra menor de 14 anos, segundo tipificação do Código Penal, antes das alterações introduzidas pela Lei n. 12.015/2009.

O autor da tese foi o Ministro Felix Fischer, para quem não é possível reconhecer a continuidade delitiva entre diferentes formas de penetração. O ministro entende que constranger alguém à conjunção carnal não seria o mesmo que constranger algém à prática de outro ato libidinoso de penetração, como sexo oral ou anal, por serem condutas distintas.

A ministra Laurita Vaz foi relatora de processo similar julgado na mesma sessão em que a tese foi aplicada por unanimidade e ressaltou que, "antes da edição da Lei n. 12.015/2009, havia dois delitos autônomos, com penalidades igualmente independentes: o estupro e o atentado violento ao pudor. Com a vigência da referida lei, o art. 213 do Código Penal passa a ser um tipo misto cumulativo, com condutas e modo de execução distintos, com aumento qualitativo do tipo de injusto, não havendo a possibilidade de se reconhecer a continuidade delitiva entre a cópula vaginal e o ato libidinoso diverso da conjunção carnal, mesmo depois de o legislador tê-las inserido num só artigo de lei".

A interpretação da Quinta Turma diverge completamente da esposada pela Sexta Turma, que já proferiu inúmeras decisões no sentido de que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor praticado contra a mesma vítima, em um mesmo contexto, constitui crime único segundo a nova legislação, permitindo ainda a continuidade delitiva, diminuindo sobremaneira a pena de grande número de pedófilos e abusadores condenados.

Este perigoso entendimento enfraquece, em muito, a proteção da liberdade sexual das pessoas, ignorando a hediondez do crime e as marcas permanentes que deixam no corpo e na mente das vítimas.

Evidentemente que os jurisdicionados não podem permanecer a mercê desse ou daquele entendimento, razão pela qual o ideal seria a correção de tais equívocos, certamente involuntários, em nosso ordenamento jurídico (Código Penal), o que pode ser feito de forma muito simples e certamente levará justiça para milhares de casos de pedofilia e abuso sexual, não se permitindo que alterações equivocadas continuem tão malévolas para o combate de tais crimes e muito menos que sejam introduzidas justamente através do trabalho da CPI da Pedofilia, que tanto fez e faz para enfrentar tal mazela em nossa sociedade.


Nota

01 http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=97838, acessado em 28/06/2010. Grifo nosso.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Lindinalva Rodrigues Dalla. Nova redação dos crimes sexuais: rigor ou favor legal?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2578, 23 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17040. Acesso em: 19 abr. 2024.