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Regulando a publicidade de alimentos nocivos à saúde.

Idéias preliminares sobre a RDC nº 24/2010 da ANVISA

Regulando a publicidade de alimentos nocivos à saúde. Idéias preliminares sobre a RDC nº 24/2010 da ANVISA

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Causou um grande impacto nos meios de comunicação social brasileiros a recente publicação da Resolução nº 24, de 06 de junho de 2010, da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, dispondo sobre informações a serem prestadas quando da publicidade comercial de alimentos ricos em sódio, açúcar, gordura saturada e bebidas com baixos valores nutricionais.

Uma das mais constantes afirmações dos detratores da norma editada pela autarquia diz respeito ao suposto caráter de censura do ato estatal, no sentido de que este suprimiria a publicidade de produtos cuja comercialização é lícita no país.

O presente texto tem como propósito expor algumas premissas fático-jurídicas que, embora indispensáveis para a compreensão racional da questão, parecem ter sido omitidas pelos críticos mais acerbos da medida comentada.

Antes de voltar os olhos à RDC nº 24/2010 da ANVISA, cumpre elucidar o substrato fático que a precede e motivou sua edição, ao menos segundo alegado pela própria autarquia no processo administrativo que antecedeu a publicação da norma.

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), o mundo experimenta atualmente um sério desafio no âmbito alimentar. Desconsiderados os países onde a fome é um problema endêmico, a OMS já demonstra séria preocupação com os riscos à saúde humana advindos de uma dieta rica em calorias, sódio, açúcar e gordura saturada.

De fato, já em seu relatório anual sobre a saúde mundial elaborado no ano de 2002, a OMS alertava que meio milhão de pessoas morriam por ano apenas na América do Norte e Europa Ocidental de doenças relacionadas à obesidade [01]. No mesmo documento, a OMS não deixou dúvidas quanto à relação entre uma dieta nutricionalmente desequilibrada e a obesidade e, por conseguinte, a riscos de doenças não-transmissíveis advindos desta última.

Sendo organismo internacional de caráter técnico do sistema das Nações Unidas, a OMS carece de qualquer poder jurídico real para decidir sobre políticas públicas para seus Estados-membros, limitando-se, na maioria das vezes, a traçar recomendações de estratégias fundadas nos resultados de suas pesquisas científicas.

Nesse passo, pelo menos desde o ano de 2002 a OMS já vem alertando os países do mundo, em especial aqueles do dito "Ocidente", para que estipulem políticas públicas de combate à obesidade e ao consumo de alimentos nutricionalmente pobres ou potencialmente lesivos à saúde.

Em verdade, no mesmo relatório citado anteriormente (WHR 2002), a Organização Internacional conclamou seus países membros a: a) participar de forma mais ativa na formulação de políticas públicas de prevenção de risco sanitário, incluindo mais auxílio para pesquisas científicas, melhoras nos sistemas de vigilância e melhor acesso a informações gerais; e b) dar prioridade máxima ao desenvolvimento de políticas públicas eficientes e comprometidas para a prevenção do crescente risco global para a saúde advindo do consumo de tabaco, do sexo de risco em conexão com HIV/AIDS e, em algumas populações, de dietas não equilibradas e obesidade [02].

O Brasil, por sua vez, encontra-se já incluído na situação fática descrita pela OMS em seu relatório no que tange aos riscos decorrentes de uma dieta desequilibrada e da obesidade.

Dados do Ministério da Saúde demonstram que 13% dos brasileiros eram considerados obesos em 2008, percentual que vem crescendo de forma constante nos últimos anos [03].

Assim, temos desde já uma relação de causa e efeito cientificamente comprovada pelas mais altas instâncias técnicas mundiais: uma dieta desequilibrada, com um consumo imoderado de alimentos ricos em calorias, sódio, açúcar e gordura saturada representa risco à saúde individual, sendo, portanto, caso passível de ser enfrentado por meio de políticas públicas traçadas pelo Estado.

Cabe aqui demonstrar ainda mais uma premissa fática de suma importância para a discussão racional e desapaixonada do tema levantado pela multicidada Resolução da ANVISA. Trata-se de aferir se a publicidade comercial produz ou pode produzir efeitos sensíveis na decisão pelo consumo de um determinado tipo de alimento.

Ora, sem que seja necessário um maior aprofundamento, pode-se afirmar que a publicidade comercial é uma técnica de venda. Existe e é exercida, com maestria no caso brasileiro, para influenciar o consumidor no processo de seleção de um produto. É, portanto, uma função de venda.

Não parece ser outra, aliás, a opinião do renomado Professor VIDAL SERRANO NUNES Jr. no trecho de sua obra adiante transcrito [04]:

"Do ponto de vista econômico, o termo publicidade traduz a atividade desenvolvida para fomentar o consumo ou para seduzir o consumidor para a aquisição de determinado produto ou serviço."

Interessante, ainda, a posição do Ministro do Superior Tribunal de Justiça ANTÔNIO HERMAN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN em trabalho seminal no direito brasileiro sobre publicidade comercial, de que se pinça o seguinte trecho [05]:

"Entende-se por publicidade qualquer forma de oferta, comercial e massificada, tendo um patrocinador identificado e objetivando, direta ou indiretamente, a promoção de produtos ou serviços, com utilização de informação e/ou persuasão".

Vê-se, portanto, ser da essência da publicidade comercial incutir nos indivíduos o desejo de consumir, de adquirir bens e serviços ofertados por meio de técnicas cada vez mais sofisticadas e sedutoras.

O impacto de práticas publicitárias na decisão sobre o consumo de alimentos está longe de ser ponto ignorado pelas autoridades sanitárias internacionais. Novamente, a Organização Mundial de Saúde já manifestou por diversas vezes preocupação quanto aos efeitos da publicidade de alimentos não saudáveis nas dietas dos indivíduos, em especial nas dietas adotadas por crianças.

De fato, em relatório de comissão científica incumbida de estudar o impacto da publicidade comerciail de bebidas não alcoólicas e comidas para crianças, técnicos da OMS assim se manifestaram, ainda em 2006 [06]:

"Dietas ricas em calorias, gordura saturada, açúcares, sal e pobres em determinados nutrientes colocam as crianças em risco de sobrepeso, obesidade e outras doenças relacionadas com a alimentação, aumentando os problemas de saúde pública em todo mundo.

O marketing e a publicidade comercial de comidas e bebidas ricas em calorias e pobres em micronutrientes tem sido identificada como um dos muitos fatores contribuindo para isso [os problemas de saúde pública mencionados no parágrafo anterior] em uma série de estudos de especialistas. Estes incluem a Consulta Conjunta OMS/FAO [Agência das Nações Unidas para Alimentos e Agricultura] sobre Dieta, Nutrição e Prevenção de Doenças Crônicas em 2002 e o Encontro da OMS com especialistas sobre obesidade infantil em 2005".

Assim, temos também por esclarecida a seguinte premissa: a publicidade comercial é um fator relevante para a decisão por consumo de alimentos não – saudávies, contribuindo, ainda que pelo menos parcialmente, para o aumento dos riscos para a saúde decorrentes de uma dieta desequilibrada nutricionalmente.

Fica, assim, esclarecido de uma forma técnica e isenta de paixões o quadro fático que serviu de fundamento (segundo alegado no preâmbulo do ato) para a edição da RDC nº 24/2010 da ANVISA.

Passemos, pois, aos argumentos propriamente jurídicos da questão.

Os detratores da norma baixada pela ANVISA parecem focar sua atenção à suposta imposição de censura prévia sobre publicidade de alimentos, conduta, segundo entendem, atentatória contra a liberdade de expressão.

Ora, em que pese sua gravidade, a acusação não parece ter fundamento sólido.

De fato, em nenhum de seus 17 artigos a norma regulamentar mencionada trata de proibição, vedação ou mesmo autorização prévia pelo Estado de qualquer prática publicitária. Limita-se, em posição não isenta de crítica por parte de entidades mais combativas pelos direitos coletivos [07], a determinar que a publicidade de alimentos "com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio, e de bebidas com baixo teor nutricional" (alimentos não saudáveis) tragam avisos quanto ao risco associado ao seu consumo imoderado.

Assim, não houve censura, quer prévia quer superveniente, de publicidade. Apenas se requer que esta traga informação relevante sobre os riscos para a saúde (como visto nas premissas acima, cientificamente comprovados) relacionados com o consumo dos alimentos propagandeados.

Não havendo, pois, controle ou limitação da atividade comercial de publicidade, não vinga a acusação tão alardeada de censura.

Por outro lado, há de se ter em mente que o direito à saúde encontra-se albergado em diversos dispositivos da Constituição Federal [08] e já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal como direito fundamental em mais de um julgado [09]. E, se é direito público de caráter fundamental, é, reversamente, dever do Estado, a ser protegido por meio de políticas públicas que não apenas tratem a doença, mas reduzam o risco de sua ocorrência, como expressamente salientado no artigo 196 da CF/88:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Desse modo, não se mostra irrazoável a priori imaginar o dever de informar os potenciais consumidores quanto aos perigos para à saúde decorrentes do consumo imoderado de alimentos ricos em açúcar, sódio e gordura como política pública de prevenção de risco sanitário, coerente, portanto, com o disposto no artigo 196 da CF/88 acima transcrito.

Ressalte-se, dessa forma, que a RDC nº 24/2010 da ANVISA não veda, limita ou censura a publicidade, como afirmado amiúde na mídia nacional, mas, de forma razoável, garante aos brasileiros informação sobre o risco a que se expõem ao consumir imoderadamente alimentos ricos em açúcar, sódio, gordura ou com baixo valor nutritivo.

Por certo, há outras questões jurídicas despertadas pela norma em comento. Mas estas serão abordadas em outros artigos específicos apresentados mais adiante. O objetivo declarado deste trabalho era simplesmente trazer alguns fatos que, aparentemente ignorados nas muitas opiniões já veiculadas na mídia nacional, mostram-se imprescindíveis para compreender a justificativa e a finalidade da recente RDC nº 24/2010 da ANVISA.


Notas

  1. World Health Report 2002: pág. 7.
  2. Idem. Pág.10. Tradução livre. Original em inglês: "Governments, especially health ministries, should play a stronger role in formulating risk prevention policies, including more support for scientific research, improved surveillance systems and better access to global information.
  3. Countries should give top priority to developing effective, committed policies for the prevention of globally increasing high risks to health, such as tobacco consumption, unsafe sex in connection with HIV/AIDS, and, in some populations, unhealthy diet and obesity".

  4. Fonte: Ministério da Saúde. Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas Por Inquérito Telefônico. Notícia acessada no http://portal.saude.gov.br/portal/aplicacoes/reportagensEspeciais/default.cfm?pg=dspDetalhes&id_area=124&CO_NOTICIA=10078, em 09/08/2010, às 20:21.
  5. NUNES Jr., Vidal Serrano. Publicidade Comercial: Proteção e Limites na Constituição de 1988. São Paulo: 2001. Pág. 07.
  6. BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. O controle jurídico da publicidade. BDJur, Brasília, DF. Pág. 8. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/8981>. Acesso em: 11 de agosto de 2009, às 15:20.
  7. Fonte: OMS. Marketing of Food and Non-Alcoholic Beverages to Children. Report of a WHO Fórum and Technical Meeting. Oslo, Norway, 2-5 May 2006. Pág 28. Tradução livre. Texto original: "Diets high in energy, saturated fat, free sugars, salt and low in certain nutrients are putting children at risk of overweight and obesity and other diet-related diseases which are increasing public health problems worldwide.[...]. The marketing and advertising of energy-dense, micronutrient-poor foods and beverages to children has been identified as one of the many factors contributing to this in a series of expert consultations. These include the 2002 joint WHO/FAO Expert Consultation on Diet, Nutrition and the Prevention of Chronic Diseases and the 2005 WHO Expert Meeting on Childhood Obesity
  8. Vide, por exemplo, comunicado no sítio eletrônico do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, de que pinçamos o seguinte trecho: "Embora o Idec tenha feito ressalvas ao texto final da resolução da Anvisa, por ter perdido a oportunidade de regular especificamente a propaganda de alimentos dirigidas às crianças, as regras representam um avanço significativo para a sociedade brasileira, pois reconhecem a influência da publicidade sobre o perfil alimentar da população e garantem que o consumidor receba informações sobre as características não saudáveis dos alimentos e bebidas anunciados, respeitando um direito fundamental previsto no Código de Defesa do Consumidor." Retirado do sítio: http://www.idec.org.br/emacao.asp?id=2389 em 09/08/2010, às 20:49.
  9. Os mais relevantes e diretos: artigos 6º e 196 da CF/88.
  10. V.g. RE 271.286-AgR, Rel. Min. Celso de Mello.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE, Victor V. Carneiro de. Regulando a publicidade de alimentos nocivos à saúde. Idéias preliminares sobre a RDC nº 24/2010 da ANVISA. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2598, 12 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17162. Acesso em: 26 abr. 2024.