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Castração química.

Análise do Projeto de Lei nº 552/2007 à luz da Constituição Federal

Castração química. Análise do Projeto de Lei nº 552/2007 à luz da Constituição Federal

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Sumário: 1. Introdução; 2. Projeto de Lei do Senado nº 552/2007; 3. Métodos para a castração química; 4. Castração química no mundo; 5. A castração química à luz da Constituição Federal de 1988; 6. Conclusão.


1. Introdução

A castração química, "forma temporária de castração ocasionada por medicamentos hormonais. [01]", é utilizada em países como Estados Unidos e Canadá, e está em fase de implantação na França e na Espanha.

No Brasil, tramita o Projeto de Lei do Senado nº 552 de 2007, de autoria do Senador Gerson Camata, que tem por objetivo acrescentar o artigo 216-B ao Código Penal Brasileiro, a fim de cominar a pena de castração química nos casos em que os autores dos crimes capitulados nos artigos 213, 214, 218 e 224 forem considerados pedófilos de acordo com o Código Internacional de Doenças [02].

A questão é controvertida. O presente trabalho tem por escopo analisar o Projeto de Lei em tramitação no Congresso Nacional à luz da Constituição Federal, especificamente tendo em vista os artigos 1º, inciso III, e 5º, incisos III, XLVII e XLIX.


2. Projeto de Lei do Senado nº 552/2007

O Projeto de Lei em análise é de autoria do Senador Gerson Camata, conforme delineado acima, e sua última atualização ocorreu no dia 09 de junho de 2010, quando a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa aprovou o Requerimento nº 33, de 2010-CDH de autoria do Senador José Nery, para realizar Audiência Pública a fim de instruir a matéria [03].

Anteriormente, o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, Senador Cristovam Buarque, designou o Senador Marcelo Crivela como relator da matéria [04].

O referido Senador analisa a matéria pormenorizadamente, detalhando a problemática em face dos ditames constitucionais, bem como da legislação infraconstitucional, e utiliza a técnica da ponderação para concluir o tema.

Em síntese, assevera que os direitos não são absolutos, e cita "o caso dos cidadãos obrigados a se submeterem a vacinações ou a testes de verificação da existência de doença quando em jogo a saúde pública ou a segurança da população" [05] Ainda, reforça que a terapia química não seria uma pena cruel, mas que teria como propósito

tornar possível o retorno do pedófilo ao ambiente social, para que ele possa, superada sua patologia biológica, retomar suas ações sociais (de interesse geral), sem constituir um perigo para os outros [06].

Por fim, analisa o tema sob a ótica da adequação, necessidade e proporcionalidade. No primeiro caso, destaca que a medida seria adequada, pois as pesquisas apontam para uma diminuição da reincidência, conforme estudo realizado por Katherine Amlim acerca do tratamento com Depo-Provera [07].

No que diz respeito ao critério necessidade, defende que a medida não tem como ser substituída por outra eficaz e menos gravosa, como o monitoramento eletrônico, tendo em vista que pesquisas apontam no sentido da ineficácia deste último método [08].

Em último caso, resta a análise da proporcionalidade da distribuição do ônus, que foi entendida pelo Senador Marcelo Crivela como favorável à castração química, pois, em suas palavras:

de um lado, temos o trauma a que é submetida a criança ou o adolescente que sofre a ação do pedófilo e as conseqüências sociais disso; de outro, o trauma a que é submetido o pedófilo submetido ao tratamento químico e as conseqüências sociais disso (...) A neurofisiologia tem aberto novas portas para o estudo do tema e tem identificado que alguns traumas podem ser irreversíveis. Assim, considerando a reversibilidade dos tratamentos mais usuais do tratamento hormonal a que se submete o pedófilo, não é difícil concluir que o maior ônus é suportado pela vítima da agressão sexual. Portanto, somos também forçados a concluir que a medida atende ao critério da proporcionalidade estrita [09].


3. Métodos para a castração química.

A primeira proposta da castração química surgiu nos EUA e seria realizada com a injeção de uma substância que destruiria as válvulas que controlam a entrada e saída do sangue nos corpos cavernosos do pênis, impedindo sua ereção. Tal método de castração é irreversível, mas o sex ofender continuaria a ter os impulsos anormais de forma compulsiva, e, como argumentaram alguns, embora percam a capacidade de ter uma ereção, continuam tendo dedos, língua, boca – ressaltando que não é só com o emprego do pênis que se molesta alguém [10].

Atualmente, é mais aceito o uso de drogas como o acetato de cyproterona, usado no Canadá e na Europa; e Depo-Provera, utilizado em tratamentos nos Estados Unidos, "que possuem potente efeito sobre o comportamento sexual, reduzindo a libido, inibindo a espermatogênese e reduzindo o volume da ejaculação, ocasionando, por decorrência, diminuição de fantasias sexuais" [11].

A problemática do uso dessas drogas reside no fato de que acarretariam efeitos colaterais, e seriam uma forma de agredir a integridade física da pessoa submetida ao tratamento, o que iria de encontro aos ditames constitucionais da dignidade da pessoa humana e da vedação de penas cruéis, tortura e tratamento degradante.

Atualmente, em São Paulo, o psiquiatra Danilo Baltieri, integrante do Conselho Penitenciário do Estado, realiza tratamento com hormônio feminino em pacientes que apresentam diagnóstico de pedofilia, mas apenas nos casos em que estes assinam um termo consentindo com o tratamento [12].


4. Castração química no mundo

A castração química já é adotada nos Estados Unidos e Canadá e está em fase de implementação na França e Espanha, como afirmando anteriormente.

O parlamento da Coréia do Sul aprovou, em 29 de junho de 2010, a legalização da castração química para pedófilos. A iniciativa do projeto de lei ocorreu, primeiramente, em 2008, após a divulgação de que um homem de 58 anos teria atacado e estuprado uma menina de 8 anos, deixando a vítima com ferimentos físicos permanentes e causando, portanto, revolta na população [13].

Na província de Mendonza, no oeste da Argentina, as autoridades passaram a adotar a castração química para os casos de prisioneiros condenados por estupro. No caso, "os condenados que se ofereceram para fazer parte do programa terão tratamento privilegiado na avaliação de concessão de liberdade condicional e saídas temporárias" [14]


5. A castração química à luz da Constituição Federal de 1988

A Constituição da República, em seu artigo 1º, III, erigiu o princípio da dignidade da pessoa humana à categoria de fundamento do Estado Democrático de Direito.

Cumpre trazer à baila a definição elaborada por Ingo Wolfgang Sarlet que torna claro o conceito de dignidade:

qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos [15].

Ainda, a Carta Maior defende, em seu artigo 5º, inciso III, que ninguém será submetido a tortura ou tratamento degradante; inciso XLVII, que não haverá penas cruéis; e inciso XLIX, que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.

Assim, toda e qualquer pena cominada a uma pessoa deverá estar de acordo com os ditames prescritos na Constituição.

Há posicionamento no sentido de que a castração química, quando estudada à luz da Carta Maior, seria pena inconstitucional, tendo em vista afronta direta ao princípio da dignidade da pessoa humana, bem como da vedação de penas cruéis, pois o tratamento afetaria o paciente de forma a causar-lhe efeitos colaterais tais como depressão, fadiga crônica, diabetes, dentre outros. Na verdade, a castração química equivaleria a tratamentos cruéis tão condenadas no passado, como é o caso da lobotomia, com o intuito de acalmar os doentes mentais [16].

Neste sentido, "a privacidade do condenado é brutalmente atingida, pela interferência em sua integridade física. Além disso, a maior parte da doutrina nacional considera que qualquer pena que atinja o corpo do condenado é cruel e, portanto, vedada constitucionalmente" [17].

Entretanto, também há posicionamento no sentido de que a castração seria uma alternativa eficaz e justificável, não violando os preceitos da Constituição, uma vez analisada sob a ótica da necessidade, adequação e proporcionalidade, conforme defendido pelo Relator da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, Senador Marcelo Crivela, entendimento já mencionado.

Ainda, há os que defendem a castração química como uma decisão voluntária por parte do condenado, e não como uma pena, ou seja, o ideal seria transformar a castração química em um direito. Neste sentido,

aquele que se dispusesse a realizar o tratamento seria beneficiado com uma redução da pena que poderia variar entre um e dois terços, em analogia ao benefício da delação premiada, prevista na Lei 8.072/90. A lógica é simples: parte da pena de prisão tornar-se-ia desnecessária, pois a função ressocializadora estaria sendo atingida também por meio da castração química [18].


6. Conclusão

A castração química ainda é uma questão controvertida e palco de debates, inclusive nos países cuja aplicação é autorizada.

Para alguns doutrinadores, pode ser considerada uma alternativa que pode trazer resultados, desde que realizada da maneira correta, com o consentimento do condenado e, ainda, desde que seja acompanhada de um tratamento psicológico.

Para os que condenam a aplicação da referida pena, fala-se em retrocesso e inconstitucionalidade, posto que o tratamento químico seria técnica que afrontaria os princípios da dignidade da pessoa humana, bem como a vedação de penas cruéis.

Assim, deve-se ter em vista, primeiramente, que a pena tem por objetivo a ressocialização do condenado. Neste sentido, observa-se uma evolução na maneira como as penas eram aplicadas no passado, onde se visualizava especialmente as penas corporais; até os dias de hoje, quando está sedimentada a pena privativa de liberdade, com todas as garantias constitucionais de proteção da integridade física e moral do preso, a fim de efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana.

O legislador pátrio deve ter em vista, ao debater o assunto, toda essa sistemática delineada, prezando pela concretização dos fundamentos da República, bem como pela segurança pública. Ainda, vislumbra-se, como principal alternativa, a efetivação de políticas públicas adequadas a fim de garantir uma maior segurança da sociedade.


Notas

  1. Castração Química. Wikipedia. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Castra%C3%A7%C3%A3o_qu%C3%ADmica. Acesso em 27 jul. 2010
  2. Projeto de Lei do Senado n. 522 de 2007. Portal Atividade Legislativa. Senado Federal. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=82490. Acesso em 27 jul.2010
  3. Projeto de Lei do Senado n. 522 de 2007. Portal Atividade Legislativa. Senado Federal. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=82490&p_sort=DESC&p_sort2=A&cmd=sort. Acesso em: 27 jul. 2010
  4. Ibidem
  5. BASTOS, Celso Ribeiro.MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil. V.2. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 37-38 apud Excerto do Relatório subscrito pelo Senador Marcelo Crivela, da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, sobre o Projeto de Lei do Senado n. 522 de 2007. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/75771.pdf. Acesso em: 27 jul. 2010
  6. Excerto do Relatório subscrito pelo Senador Marcelo Crivela, da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, sobre o Projeto de Lei do Senado n. 522 de 2007. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/75771.pdf. Acesso em: 27 jul. 2010
  7. Cf. Excerto do Relatório subscrito pelo Senador Marcelo Crivela, da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, sobre o Projeto de Lei do Senado n. 522 de 2007. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/75771.pdf. Acesso em: 27 jul. 2010
  8. Ibidem
  9. Excerto do Relatório subscrito pelo Senador Marcelo Crivela, da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, sobre o Projeto de Lei do Senado n. 522 de 2007. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/75771.pdf. Acesso em: 27 jul. 2010
  10. HEIDE, Márcio Pecego. Castração química para autores de crimes sexuais e o caso brasileiro. Jus Navigandi. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/9823. Acesso em 27 jul. 2010
  11. Excerto do Relatório subscrito pelo Senador Marcelo Crivela, da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, sobre o Projeto de Lei do Senado n. 522 de 2007. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/75771.pdf. Acesso em: 27 jul. 2010
  12. Cf. Pedófilos passam por "castração" química em São Paulo. Terra. 16 out. 2007 Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI1992689-EI306,00.html. Acesso em: 27 jul. 2010
  13. Cf. Parlamento da Coréia do Sul aprova castração química de pedófilos. Estadão. 29 jun. 2010 Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,parlamento-da-coreia-do-sul-aprova-castracao-quimica-de-pedofilos,573840,0.htm. Acesso em 27 jul. 2010.
  14. Província da Argentina oferecerá castração química a estupradores. BBC Brasil. 17 mar. 2010. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/03/100317_castracaoquimica_ba.shtml. Acesso em 27 jul. 2010.
  15. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001, p. 60
  16. Cf. CABRAL, Bruno Fontenele. Discussão sobre a constitucionalidade da Castração Química de Criminosos sexuais no Direito Norte-Americano. Jus Vigilantibus. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/43525. Acesso em 27 jul. 2010.
  17. AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. O "direito" do condenado à castração química. Jus Navigandi. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/10613. Acesso em; 27 jul. 2010.
  18. Ibidem

Autor


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Elizabeth Bayma. Castração química. Análise do Projeto de Lei nº 552/2007 à luz da Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2598, 12 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17166. Acesso em: 18 abr. 2024.