Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/17226
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Cláusulas gerais no Código Civil de 2002.

Superação do rigorismo formal e criatividade na atividade judiciária

Cláusulas gerais no Código Civil de 2002. Superação do rigorismo formal e criatividade na atividade judiciária

Publicado em . Elaborado em .

RESUMO

A adoção da técnica das cláusulas gerais pelo Código Civil de 2002 mostra ser a maneira ajustada para se coibir a preferência anterior, que aspirava pelo pleno, buscando prever todas as situações que se apresentassem. Por meio de conceitos indeterminados, que autorizam uma maior flexibilidade e abertura do ordenamento privado, promove-se a desejável comunicação entre o Código Civil e as diretrizes constitucionais, permitindo inclusive um posicionamento mais ativo dos julgadores, pois terão que se guiar pela socialidade, eticidade e operalidade.

PALAVRAS-CHAVES: Cláusulas gerais; Código Civil 2002; comunicação entre Código Civil e as diretrizes constitucionais; julgadores; socialidade, eticidade e operalidade.


INTRODUÇÃO

O presente estudo intenta tratar da inserção das denominadas cláusulas gerais no ordenamento civil brasileiro.

Demonstrar-se-á que as cláusulas gerais inovaram no sentido de permitir que os magistrados possam guiar-se por elas, pautando-se na boa-fé, na função social da propriedade, na equidade, etc.

Nesta exposição, procurar-se-á deixar claro que o Código Civil de 1916, por ter sido amplamente influenciado pelo Código francês de 1804, almejava prever todas as possíveis situações diárias, não visualizando que desta forma estava colocando empecilhos a possíveis evoluções no modo de pensar e no modo de agir.

Além disso, ao se pretender legislar todas as hipóteses cotidianas, prezando assim por um formalismo extremado, estava-se colocando os julgadores na simples posição mecânica de adequar o caso concreto com o preceito normativo já posto, ignorando a possibilidade destes poderem se utilizar de princípios e interpretações que melhor resolvessem a lide posta.

Tem-se, então, que o novel ordenamento civil veio estabelecendo uma quantidade considerável de preceitos normativos com conteúdo aberto, por meio de conceitos jurídicos indeterminados, permitindo que os juízes possam interar e complementar valores, especialmente permeados pelo espírito constitucional.

Passa-se a observar um sistema jurídico com maior uniformidade e integração. No entanto, para que o diploma normativo surgisse com desapego a rigorismos formais desnecessários, mister se fazia a orientação por alguns princípios, por isso, ganha vez a atenção à socialidade, à eticidade e à operalidade.

Constata-se, desde logo, que ao se permitir o ingresso de conceitos jurídicos indeterminados, permite-se também maior dinamicidade no operar o direito, já que será dado maior liberdade na aplicação das normas jurídicas.

Todavia, esta liberdade deve ser limitada, ou seja, o juiz diante dos casos a ele postos a julgamento deve conscientizar-se que a discricionariedade a ele concedida não é tão vasta, não se aceitando arbitrariedades.

Pretender-se-á enfatizar que a atuação do julgador – diante das cláusulas gerais - deverá ser guiada por preceitos constitucionais, admitindo-se sempre que este não é mero "carimbador" da norma no caso discutido e que é o Judiciário a sede na qual se revela a potencialidade de um dispositivo legal.


INFLUÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL FRANCÊS

Interessante se faz despender análise que desde a Antiguidade os povos socorreram-se de compilações de textos para que estes pudessem ditar o modo de vida. Tais textos solidificavam regras consagradas pelos usos e costumes, e ainda, abrangiam questões que a era das codificações deixou para outras esferas.

NADER (2009, p. 25) apresenta que:

"Os códigos antigos muitas vezes não se limitavam à prescrição normativa, sendo-lhes comum a alusão a fatos e a inclusão de textos doutrinários. Nas Institutas de Justiniano, por exemplo, encontram-se páginas dedicadas à história do Direito Romano. Tais procedimentos são estranhos às modernas codificações.

Nos primórdios não se distinguia o Direito de outros processos de controle social, daí ter sido comum a intromissão do legislador na esfera hoje reservada exclusivamente à Moral ou à Religião".

Acredita-se que a opção por codificar está justamente na organização e na durabilidade que tais compilações podem trazer, mesmo tendo ciência que um código não alcançará a perfeição, vez que sempre se esteve e sempre se estará diante de um "quadro social de infinitas possibilidades", bem como porque "a linguagem não reproduz a riqueza da vida e do pensamento" [01].

A chamada era da codificação iniciou-se no século XIX, sendo que o exponencial de então foi o Código Civil francês, de 1804, também acolhido como Código de Napoleão.

MONTEIRO (2009, p.50) expressa o orgulho que Napoleão tinha por ter atuado e empenhado-se não só na elaboração do projeto, como também em sua tramitação e aprovação."Dele se orgulhava Napoleão, que, no exílio em Santa Helena, via na sua promulgação maior honra para si que as quarenta batalhas que havia vencido".

NADER (2009, p.29) explicita as seguintes linhas quanto ao Código de 1804:

"Elaborado com esmero de linguagem e rigor científico, o Code Civil atraiu as atenções do mundo jurídico, despertando os povos para a importância das codificações. Uma obra de tal vulto necessariamente haveria de ser o resultado do encontro da ciência e a técnica, do envolvimento de pensadores e operadores jurídicos".

Imprescindível se faz ressaltar que ao se codificar preceitos, tal legislação refletiu as exigências da vida social naquele instante em que foi elaborada. Atente-se ao que MORAES (2008, p.31) consigna:

"O Code Civil, não obstante seja resultado do projeto de dominação de Napoleão, reflete este momento de amadurecimento influenciado pelo projeto iluminista e pela Revolução. Nada obstante os ideais da Revolução, de liberdade, igualdade e fraternidade, o Code se torna um instrumento de dominação que passa a simbolizar o próprio Estado e o positivismo jurídico como escola ligada ao liberalismo e passa a simbolizar a manutenção do status quo e a defesa contra as incursões do Estado na vida civil, a proteger a classe burguesa dominante".

Tem-se que a pretensão ao se elaborar o Código de Napoleão era, indubitavelmente, proteger a burguesia em ascensão, razão pela qual se procurou legislar um grande número de situações, almejando que todas as respostas pudessem ser tiradas daquela organização de preceitos legais.

Tal intuito também imperou no Brasil por meio do Código Civil de 1916, já que amplamente influenciado pelo Código Civil francês.

É, então, que se começam a discutir as imperfeições dos códigos, pois, ao pretenderem prever o maior número de casos e situações possíveis, acabam por trazer empecilhos ao dinamismo e às novas concepções da sociedade.

Era justamente ao que se estava assistindo no Direito privado brasileiro, seu amor pelo que estava disposto no Código Civil de 1916 impedia que técnicas de interpretações fossem adotadas pelos juízes, inclusive a equidade e as orientações obtidas por princípios contidos em outros diplomas.

CABRAL (2003, p. 02) concede ênfase à influência do ordenamento francês, bem como à seu inviável objetivo, preceituando que:

"Os códigos oitocentistas, como o brasileiro de 1916, elaborados conforme o modelo do Código de Napoleão (França, 1804), não conseguiram manter o seu sentido e plenitude, que pretendia regular todas as situações que se apresentassem, e não acompanharam o dinâmico desenvolvimento dos usos, costumes e valores da sociedade"

Também NADER (2009, p. 30) expõe:

"A influência do Código de Napoleão no mundo jurídico foi além de sua condição de código-modelo. Com ele nasceu o pensamento codicista, que supervaloriza o poder dos códigos. O raciocínio jurídico há de se conduzir pela lógica interna, apoiado em princípios e regras codificadas, que são os seus únicos parâmetros. Trata-se de uma doutrina fetichista, reacionária, pois impede a compreensão evolutiva dos atos legislativos. Enquanto o código de Napoleão foi novo, o codicismo se manteve, mas, à medida em que envelhecia com o choque da modernidade, suas lacunas ficaram aparentes, impondo o surgimento de métodos hermenêuticos de atualização".

Diante do que se constatou pelo Código Civil de 1916, o código que a ele sucederia teria que nascer com espírito flexível, capaz de permitir que novas interpretações pudessem sanar falhas e lacunas insanáveis unicamente pelo que se encontrava positivado.

Pondera FACHIN (2003, p. 01) que a nova codificação civil teria que surgir como algo capaz de liberar o engessamento do Direito Civil:

"Para captar transformações pelas quais perpassa o Direito Civil contemporâneo, há lugar (especialmente agora com o Código Civil de 2002) para uma nova introdução que se proponha a reconhecer a travessia em curso e que se destine a um olhar diferenciado sobre as matérias que compõem o objeto de análise. Clara premissa que instiga a possibilidade de reconhecer que o reinado secular dos dogmas, que engrossaram as páginas de manuais e que engessaram parcela significativa do Direito Civil, começa a ruir. Trata-se de captar os sons dessa primavera em curso, com os efeitos da nova codificação civil".

Abre-se, então, o caminho para as chamadas cláusulas gerais. Inseridas no Código Civil de 2002, almejam amenizar o excessivo rigorismo formal, bem como permitir que questões sejam resolvidas não somente pela técnica das normas expressas.


CLÁUSULAS GERAIS

Desde a entrada em vigor o Código Civil de 2002, indubitável é que possui a doutrina, e também o julgador, o ônus de interpretar os dispositivos da maneira que lhes concedam a maior eficácia possível, bem como maior concordância com a Constituição da República.

Neste contexto, parte-se do pressuposto que uma norma nunca se encontra isolada, está ela inserida no ordenamento ao qual pertence, e ainda, seu significado pode e deve mudar de acordo com este.

Por mais que a redação de um preceito seja perfeitamente clara, não ensejando controvérsias ou dúvidas no que tange a aspectos de concordância ou semântica, ainda assim, necessário se faz averiguar, por meio da interpretação, se deve ele ser aplicado como foi posto, analisando se está em conformidade com o texto constitucional.

Está-se querendo demonstrar que por mais que a clareza esteja presente, se o dispositivo não estiver em consonância com a CR, não merecerá aplicação, e sim ressalvas.

PERLINGIERI (2007, p. 27 e 28) exemplifica esta situação trazendo que na Itália o Código Civil de 1942 orienta-se no sentido do empregado ser diligente, voltando-se a atender os interesses da empresa. No entanto, à luz dos princípios constitucionais tais orientações devem pautar-se na ideia de respeito à pessoa e à dignidade. Sendo assim, "nas relações de trabalho deve-se considerar diligente aquele trabalhador que, para evitar um possível perigo a um colega de trabalho ou a si mesmo, interrompe a cadeia de montagem".

É nesta conjuntura que se passa a tratar das cláusulas gerais.PERLINGIERI (2007, p. 27) coloca que ao lado da técnica de legislar com previsões específicas, coloca-se a técnica das cláusulas gerais. "Legislar por cláusulas gerais significa deixar ao juiz, ao intérprete, uma maior possibilidade de adaptar a norma às situações de fato".

Quanto à inserção destas cláusulas no ordenamento civilista brasileiro, tem-se o que leciona TEPEDINO (2007, p. XVIII):

"Ao contrário do que de ordinário se verifica no processo de codificação, o Código Civil de 2002 não traduz uma uniformidade política e ideológica, em razão da distância entre os contextos políticos do início e da conclusão de sua elaboração. Tal circunstância indica a complexidade axiológica da nova codificação brasileira, a exigir especial atenção à atividade do intérprete. Do ponto de vista metodológico, duas são as principais características do Código Civil: 1. A unificação do direito das obrigações; 2. A adoção da técnica das cláusulas gerais, ao lado da técnica regulamentar, como resultado de um processo de socialização das relações patrimoniais, introduzido-se no direito codificado a função social da propriedade privada e da atividade contratual".

É lúcida a afirmação que ao se introduzir cláusulas gerais no ordenamento civil, começa-se a exigir um cuidado mais atento do intérprete, já que lhe é concedido maior discricionariedade. Entretanto, esta discricionariedade há de ser limitada, devendo estar em harmonia com o que disposto na Constituição.

TEPEDINO (2007, p.XX) condiciona a eficácia destas cláusulas, dispondo que "poderão representar uma alteração relevante no panorama do direito privado brasileiro desde que lidas e aplicadas segundo a lógica da solidariedade constitucional e da técnica interpretativa contemporânea".

As cláusulas gerais possuem o condão de abrir o sistema normativo, tal abertura, por sua vez, é bem recepcionada por MARTINS-COSTA e BRANCO (2002, p.13,14 e 16) ao entenderem que sendo incompleto o Código Civil, isso não se apresenta como um defeito.

"E como ponto de partida a lei – mormente um Código Civil – tem a sua letra necessariamente incompleta, incompletude que não é defeito, senão qualidade, pois deve ser progressivamente completada pelos seus destinatários". (...) Por isso é que as normas de um Código de direito privado, em parte obra de lenta solidificação, não são meramente retrospectivas. Um código ancorado na compreensão do dinamismo histórico deve voltar-se para a apreensão do presente e do futuro, possibilitando que por meio de ‘válvulas de abertura’, seja realizada a sua vocação prospectiva".

Adiciona-se o que traz CARVALHO FILHO (2003, p. 49):

"O novo Código Civil adotou a técnica legislativa das cláusulas gerais, pois possui aptidão para recolher os casos que a experiência social contínua e inovadoramente propõe a uma adequada regulação, de modo a ensejar a formação de modelos jurídicos inovadores, abertos e flexíveis".

REALE (1998, p.01), ao expor um panorama geral da elaboração do Código Civil de 2002, confessa que no início a pretensão era conservar o máximo possível as disposições do Código Civil de 1916. Ocorre que à medida que os estudos e os trabalhos foram transcorrendo, esta pretensão mostrou-se inviável, não havendo como manter a linguagem de então, mostrando-se imprescindível a adoção de uma linguagem mais operacional.

Ainda, o jurista fez transparecer a existência de três princípios influentes da elaboração: socialidade, eticidade e operabilidade.

Quanto à eticidade, REALE (1998, p.01) explanou que

"O Código atual peca por excessivo rigorismo formal, no sentido de que tudo se deve resolver através de preceitos normativos expressos, sendo pouquíssimas as referências à eqüidade, à boa-fé, à justa causa e demais critérios éticos. Esse espírito dogmático-formalista levou um grande mestre do porte de Pontes de Miranda a qualificar a boa-fé e a eqüidade como "abecenrragens jurídicas", entendendo ele que, no Direito Positivo, tudo deve ser resolvido técnica e cientificamente, através de normas expressas, sem apelo a princípios considerados metajurídicos. Não acreditamos na geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo preferível, em certos casos, prever o recurso a critérios etico-jurídicos que permita chegar-se à "concreção jurídica", conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou equitativa".

Estava o professor Miguel Reale a defender a necessidade de se atribuir maior poder a juiz ao fundamentar a sua decisão, podendo inclusive fundamentá-las em valores éticos. Estava, então, demonstrando a sua insurgência em face do rigorismo normativo, afirmando que na codificação o que se tem por importante é o espírito da lei.

MARTINS-COSTA e BRANCO (2002, p. 51) atentos ao pensamento de Miguel Reale dedicam as seguintes linhas:

"O princípio da eticidade é outra marca do culturalismo de Reale no novo Código Civil e está consubstanciado na utilização constante de princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados que fazem referência a expressões cujo significado exige uma atividade valorativa do julgador para que a regra possa ser aplicada.

Neste aspecto, o princípio da boa-fé, a referência à eqüidade e aos bons costumes, que tiveram espaço insignificante no Código de 1916, estão presentes no novo Código, ‘conferindo-se maior poder ao Juiz para encontrar-se a solução mais justa e eqüitativa".

Evidente que este poder do juiz mencionado pelos autores não deve pautar-se exclusivamente em critérios subjetivos. PERLINGIERI (2007, p. 69) expõe que: "A guiar a atividade do intérprete não deve ser a sua teimosia orientação subjetiva, mas, antes, o cumprimento da sua tarefa de respeitar e, com a própria ação, de realizar a legalidade constitucional".

Caminhava-se e caminha-se por um período no qual se mostra incontestável a influência da Constituição da República em todas as áreas do direito, inclusive no civil. Necessário se fazia, então, encontrar uma maneira capaz de permitir que ao se aplicar o diploma privado se pudessem intercambiar valores preconizados pela Constituição de 1988, objetivo este que restou consagrado por meio da previsão das cláusulas gerais.

É por isso que CABRAL (2003, p. 12) cita:

"Para operacionalizar essa aproximação entre a lei e a realidade e possibilitar a constante comunicação (permuta de valores) entre o Código Civil e a Constituição Federal, a Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil utilizou-se conscientemente da técnica de legislar mediante a formulação de cláusulas gerais, baseada numa justificada proteção ao interesse social e à valorização da pessoa humana".

Ora, em razão do princípio da socialidade - que por sua vez também influenciou quando da elaboração do Código Civil de 2002 - coloca-se como primordial que se haja a prevalência dos valores constitucionais, especialmente no que tange a considerar a supremacia dos interesses da coletividade em detrimento dos interesses individuais.

Está-se com isto a afirmar que em que pese a adoção das cláusulas gerais concedam um certo grau de liberdade no atuar e no fundamentar do juiz, este deve sempre e necessariamente conduzir seus atos com empatia à Constituição, inclusive ao se estar diante do julgamento de casos em que em ambos os pólos há somente particulares.

Cabe então o auxílio do que demonstrado por MORAES (2008, p.88):

"Mas estes valores, expressos na Carta Maior, não são meros programas ou ideais a serem alcançados, mas, tem se tornado cada vez mais evidente, perfazem verdadeiras cláusulas gerais, que têm possibilidade de aplicação direta, quer nas relações privadas, quer como garantia em face do próprio Estado. (...)

A funcionalização dos institutos de Direito Civil (como a propriedade e os contratos) tem seu fundamento primeiro na constituição e nos princípios ali insculpidos. Também a ética e a boa-fé objetiva já vinham sendo aplicadas nas decisões judiciais, em decorrência da égide democrática e social que a própria constituição já instituíra".

Reitera-se que as cláusulas gerais dispostas no Código Civil são uma maneira de permitir um maior enlaçamento, a ser realizado pelos aplicadores da norma, entre o diploma privado e a Constituição; todavia, limites devem estar presentes no atuar do julgador ao fazer uso das mesmas.

Elucidando tal enunciação MARTINS-COSTA e BRANCO (2002, p.120) expõem:

"Conquanto tenha a cláusula geral a vantagem de criar aberturas do direito legislado à dinamicidade da vida social, tem, em contrapartida, a desvantagem de provocar – até que consolidada a jurisprudência – determinada incerteza acerca da efetiva dimensão do seus contornos. O problema da cláusula geral situa-se sempre no estabelecimento de seus limites. É por isso evidente que nenhum código pode ser formulado apenas e tão-somente com base em cláusulas gerais, porque assim, o grau de certeza jurídica seria mínimo".

Desta maneira, resta despender análise à atuação dos juízes frente às cláusulas gerais, frisando que estes não são meros aplicadores do que disposto pelo legislador; por isso, haverá situações que atuarão seguindo preceitos gerais ou ainda atentos à equidade, mas sempre tendo seu atuar fundamentado, bem como limitado, vez que por não terem sido eleitos, não exercerão o papel de legisladores.


ATUAÇÃO DOS JUÍZES DIANTE DAS CLÁUSULAS GERAIS

Indubitavelmente que a incumbência de aplicar as normas do direito civil às situações corriqueiras cabe aos juízes. Também límpida é a ideia que os julgadores em sua atividade jurisdicional e diante de decisões que envolvem o diploma civilista devem ser guiados pelos princípios acima dispostos: socialidade, eticidade e operabilidade.

É o que bem exposto por THEODORO JUNIOR (2003, p.XVIII):

"Diante dessa moderna postura normativa, gigantesca será, sem dúvida, a tarefa atribuída ao juiz, pois de seu preparo funcional e de sua fidelidade aos valores e princípios consagrados pela Constituição dependerá o sucesso do ambicioso projeto abraçado pela nova codificação, à luz do tríplice alicerce da solidariedade, da ética e da concreção".

Incabível afirmar que o juiz resume-se apenas à boca da lei, pois dele é exigido atuação firme e dinâmica, no sentido de além de adequar os preceitos aos casos postos, também deve sanar lacunas quando a legislação mostra-se escassa.

NADER (2009, p.80) questiona se o Poder Judiciário seria um mero carimbador de normas jurídicas em processo judiciais, respondendo, logo depois:

"Os juízes têm a sua disposição uma enorme massa legislativa e o seu ato de julgar quase sempre implica a redefinição da ordem jurídica. Eles têm de rever o instrumento operacional. Venho sustentando que a Casa de Leis apenas traça o perfil da ordem jurídica e que a ampla definição desta é obra do judiciário e da qual participam profissionais do Direito de todas classes: juízes, promotores, advogados, procuradores, defensores públicos. O Código Civil de 2002, por exemplo, em relação às inovações trazidas, por ora, é suscetível de conhecimento apenas de sua teleologia e normas explícitas. A revelação de sua potencialidade será um processo lento e que terá por sede não o legislativo, mas o centro aonde se encaminharão as novas questões: o Judiciário".

Nos dias de hoje clarividente mostra-se que não se acentua e nem se incentiva a mera aplicação mecânica das leis, como que se restasse ao Poder Judiciário apenas encaixar a norma ao caso posto, isso porque, o formalismo exacerbado mostrou-se inviável, e frequentemente é possível estar-se diante de situações que permitem mais de uma hipótese de resolução.

CAPPELLETTI (1993, p.33) chega a citar o que expressou Lord Radcliffe, tido por aquele como um dos mais influentes juízes ingleses do século XX:

"Quem poderá negar agora que, para o direito, as decisões judiciárias constituem uma contribuição criativa, e não meramente descritiva? Não há outra forma de fazer de modo diverso, na medida em que raro é o caso de decisão que não pressuponha a escolha entre duas alternativas ao mesmo tempo admissíveis".

É também CAPPELLETTI (1993, p.42) que apresenta ser inevitável um mínimo de discricionariedade na atividade jurisdicional, bem como ela tende a ser crescente quando maior a vagueza da lei:

"É manifesto o caráter acentuadamente criativo da atividade judiciária de interpretação e de atuação da legislação e dos direitos sociais. Deve reiterar-se, é certo, que a diferença em relação ao papel mais tradicional dos juízes é apenas de grau e não de conteúdo: mais uma vez impõe-se repetir que, em alguma medida, toda interpretação é criativa, e que sempre se mostra inevitável um mínimo de discricionariedade na atividade jurisdicional. Mas, obviamente, nessas novas áreas abertas à atividade dos juízes haverá, em regra, espaço para mais elevado grau de discricionariedade e, assim de criatividade, pela simples razão de quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais amplo se torna também o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciárias".

É justamente o que se confirma em sede de aplicação e estudo do Código Civil de 2002, pois como já exposto as cláusulas gerais trazem conceitos jurídicos indeterminados e modelos jurídicos abertos e flexíveis que promovem a possibilidade de escolha e criatividade, logo, de discricionariedade dos juízes.

Importa ressaltar também que é por meio da promoção das cláusulas gerais que se acolhe a possibilidade de se ter na jurisprudência uma proeminente fonte do direito.

Não se está negando o princípio da legalidade, muito menos o menosprezando, está-se sim, acatando a possibilidade de mitigá-lo, consagrando um melhor resultado à lide posta.

Quem ganha com isto são todos os jurisdicionados, pois deverão os juízes despender análise não só ao que foi positivado, como também aos usos e costumes consagrados em determinada época e local.

Nesta oportunidade, sana-se qualquer dúvida que possa eventualmente surgir, afirmando-se categoricamente que não se está falando em brechas que permitem ao Poder Judiciário usurpar a competência que é dada ao Poder Legislativo, e sim não obstar que o código consiga acompanhar as ligeiras mudanças sofridas pela sociedade, atualizando-se.

Como exemplo da observância das cláusulas gerais concebe-se a equidade como guia do julgador, esta, por sua vez, permite que se dê preferência à intenção do legislador, ao espírito da lei, em detrimento do que sedimentado no texto legal.

Vivifica-se a preocupação com o social e com o coletivo, abordam-se, então, critérios éticos, é o que leciona CARVALHO FILHO (2003, p.55):

"De outra parte, a lei civil anterior, de preceitos normativos expressos, fez pouquíssimas referências à equidade, à boa-fé, à justa causa e demais critérios éticos. Não se pode deixar de considerar que eles – valores éticos - possuem indeclinável participação em nosso ordenamento jurídico e devem ser compatibilizados com as conquistas da técnica jurídica, sobretudo quando voltados para a preocupação com o social, com o coletivo, porque inspirados não pela ordem jurídica, mas por experiências de ordem moral, que não conflitam com o direito, mas antes o iluminam, o elevam e o fazem progredir".

Outros exemplos de cláusulas gerais presentes no ordenamento civil de 2002 são a boa-fé objetiva, a função social do contrato, a função social da propriedade, dentre outros.

Ressalta-se o que existe em torno deles é a preocupação com o coletivo, visando à conciliação entre os interesses do indivíduo com os da sociedade, assim como a promoção da dignidade humana.

Ocorre que inevitavelmente diante da adoção das cláusulas gerais há o receio pela falta de segurança jurídica, isso porque estar-se-ia abrindo ao juiz a oportunidade de criar a norma para um específico caso concreto, fazendo as vezes do Poder Legislativo, e podendo fazer com suas crenças pessoais prevaleçam.

Todavia, como ligeiramente exposto, os juízes não são eleitos pelos cidadãos, logo, a eles não cabe a tarefa de criar códigos, ou leis esparsas, sua função é ditar, interpretar e aplicar a norma ao caso posto, não olvidando ser também sua função a de suprir lacunas inevitáveis na legislação.

Quanto a atuação dos julgadores diante das cláusulas gerais, mesmo diante delas, a fundamentação é imprescindível, sob pena da decisão ser declarada nula.

E ainda, quanto ao receio pela falta da segurança jurídica, e uma eventual prevalência dos valores pessoais de quem julga, imprescindível destacar que há sim limites a atuação deste, sendo que os limites mais significativos são os prescritos no texto constitucional.

Acima tomou-se o cuidado de destacar que por meio das cláusulas gerais mostra-se possível a aproximação dos preceitos do direito privado com as diretrizes constitucionais, é por esta razão, que a cautela do julgador será um dos pontos que mais merecerá análise quando diante do trabalho de elaboração da jurisprudência, sendo que neste labor caberá o zelo pela cidadania, dignidade da pessoa humana, pelos valores sociais, pela família regida pelos laços de afeto e respeito, dentre os vários valores altruístas e coletivos defendidos pela Constituição da República.

Sendo assim, cabe admitir a inserção das cláusulas gerais não como uma maneira de se permitir a abertura para arbitrariedades advindas do Poder Judiciário, mas sim como uma maneira de adequar os preceitos legais ao dinamismo que envolve o direito, bem como à evolução do pensamento jurídico, que no cenário atual preza pela satisfação do coletivo em detrimento do individual.


CONCLUSÃO

Buscou-se com este estudo tratar de alguns dos enfoques que se inserem no tema da adoção da técnica das cláusulas gerais pelo legislador civilista.

Colocou-se que a opção por estas cláusulas adveio da necessidade de se encerrar com uma das graves críticas que envolviam o diploma anterior: o excessivo rigorismo formal.

O Código Civil de 1916, profundamente influenciado pela codificação francesa, tinha como intuito a procura por positivar as mais variadas situações que a vivência e convivência pudessem trazer, engessando-as nos preceitos normativos, e concedendo ao julgador a tarefa mecânica de analisar o caso e adequá-lo necessariamente a um dos artigos já existente.

No entanto, almejar prever todas as situações cotidianas é uma pretensão ousada demais, motivo este que ensejou uma enxurrada de críticas ao diploma civilista de 1916.

O Código subsequente teria que nascer mais flexível e maleável, capaz de acompanhar as modificações do pensamento, do atuar e capaz de compreender as novas concepções sociais.

Passa-se a adotar as cláusulas gerais. Estas, por sua vez, permitem ao intérprete maior possibilidade de adaptar a norma à situação colocada, sem olvidar que auxiliam na aproximação e comunicação do Código Civil com a Constituição da República.

Almejou-se, então, destacar o atuar dos julgadores, evidenciando que a estes é disponibilizado certo grau de criatividade quando diante das cláusulas gerais, todavia, este atuar criativo deve ser guiado, necessariamente, pelos preceitos constitucionais, inclusive quando diante de relações jurídicas que envolvem exclusivamente particulares.

Adentrou-se na questão que envolve o temor pela segurança jurídica, em razão do receio pelos juízes pretenderem fazer sobressair valores pessoais ante à lide posta. Nesta ocasião, entretanto, realçou-se o papel da jurisprudência como fonte do direito, bem como se demonstrou que o juiz não estaria usurpando funções do Poder Legislativo, mas sim aplicando o preceito legal com consonância à Constituição e também suprindo lacunas eventuais.

Colocou-se que há diferença entre discricionariedade e arbitrariedade, sendo que estas devem ser coibidas.

Desta forma, vislumbram-se as cláusulas gerais como uma técnica capaz de permitir a utilização da equidade nos julgamentos, a observância do bem estar coletivo e uma maneira que permite ao intérprete buscar em seu labor o respeito e a satisfação da dignidade humana.


BIBLIOGRAFIA

CABRAL, Ricardo Rondinelli Mendes. As Cláusulas Gerais no Código Civil. Trabalho de Conclusão de Curso. Orientador: Professor Dr. Paulo Roberto Ribeiro Nalin, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2003.

CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Indenização por Equidade no Novo Código Civil. São Paulo: Editora Atlas S.A.., 2003.

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. Tradução de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio A. Fabris, 1993.

FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. À luz do novo Código Civil Brasileiro. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003.

MARTINS-COSTA, Judith e BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.

MONTEIRO, Washington de Barros/ PINTO, Ana Cristina de Barros Monteiro França. Curso de Direito Civil. V. 1. 42ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

MORAES, Hermes Santos Blumenthal de. O papel das cláusulas gerais no direito civil brasileiro contemporâneo na perspectiva civil-constitucional. Orientador:Prof.Dr.Elimar Szaniawski. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008

NADER, Paulo. Curso de Direito Civil. V.1.6ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de: Maria Cristina De Cicco. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007.

REALE, Miguel. Visão geral do Projeto de Código Civil. IN: Revista jusnavegandi, 1998. Acesso em 06 de janeiro de 2010.

TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. IN: A parte geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Coordenador: TEPEDINO, Gustavo. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007.

THEODORO JUNIOR, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil: dos defeitos do negócio jurídico ao final do livro III. Vol.3, tomo 1. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003.


Nota

  1. Expressões utilizadas por Paulo Nader na obra Curso de Direito Civil V.1, p.26 e 27.

Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANSANA, Maureen Cristina. Cláusulas gerais no Código Civil de 2002. Superação do rigorismo formal e criatividade na atividade judiciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2606, 20 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17226. Acesso em: 26 abr. 2024.