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Confissão ficta e princípio da realidade dos fatos

Confissão ficta e princípio da realidade dos fatos

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Quem milita na justiça do trabalho diariamente se depara com a pena de revelia e aplicação da confissão ficta, quando a Reclamada não comparece à audiência inicial ou de instrução.

Também é sabido que no processo do trabalho, o objetivo é atingir a verdade real dos fatos. Vale dizer que a busca pela realidade dos fatos prevalece sobre contratos, declarações, assinaturas e outros meios jurídicos que criam realidades fictas.

Entretanto, mesmo diante de situações em que a parte ingressa na sala de audiências após o apregoamento das partes, ainda que a parte contrária esteja presente, possibilitando a instalação da audiência, ainda assim os magistrados invariavelmente aplicam a pena da confissão ficta, o que nos parece em alguns casos contrariar a busca da verdade dos fatos, que deve nortear o processo do trabalho.

Revelia e confissão ficta são assim conceituadas pelo festejado professor Sergio Pinto Martins, em sua obra "Direito Processual do Trabalho", 25ª Edição, da Editora Forense:

"Revelia vem a ser a ausência de defesa por parte do réu, que não comparece ao juízo quando é citado na ação que lhe foi proposta. Confissão é a presunção de serem verdadeiros os fatos alegados na inicial. O revel acompanhará o processo no estado em que se encontrar (art. 322 do CPC), intervindo em qualquer fase processual".

Ou seja, revelia é a falta de ânimo do demandado em se defender, o que não ocorre quando a parte revel comparece à sala de audiência instantes depois de se apregoada a audiência, já que está presente o ânimo de defesa ou do exercício do Direito.

Portanto, por questão de justiça e bom senso, quando a parte comparece, ainda que com atraso, quando a parte contrária ainda está presente no local, deveria ser instalada a audiência, em detrimento da confissão ficta.

Nem há que se cogitar em ilegalidade do ato caso nessas ocasiões o juiz permita o ingresso da Reclamada, dando regular prosseguimento à audiência. O art. 125, I do CPC assegura que o juiz deverá dirigir o processo, competindo-lhe a assegurar às partes tratamento igualitário.

Ademais, nunca se deve olvidar que o processo é um meio, um instrumento, e não um fim em si mesmo. Portanto, o excessivo apego ao formalismo e à letra fria da lei não pode prevalecer sobre a finalidade do processo, que é a aplicação da Justiça.

Não é demais dizer novamente que vigora no Direito do Trabalho o princípio da verdade real dos fatos, que deve ser sempre a mira do julgador. Dessa forma, fazendo-se presente a parte, ainda que com pequeno atraso, deve o magistrado se nortear pelo princípio ora invocado.

O contrário atenta não só contra as disposições processuais e princípios do Direito do Trabalho, mas também contra as garantias constitucionais da ampla defesa, contraditório e acesso à justiça, e devido processo legal, insculpidos nos arts. LIV, LV e XXXV da Constituição da República.

Dessa forma, cabe aos juízes, tendo em mente os princípios de Direito e a finalidade da Justiça, fazer interpretação sistemática da lei em consonância com os dispositivos constitucionais supra citados. Não é outra a lição do mestre Cândido Rangel Dinamarco, eu sua respeitada obra "A instrumentalidade do Processo", 9. ed. São Paulo Malheiros, 2001, p. 294/296:

"Para o adequado cumprimento da função jurisdicional, é indispensável boa dose de sensibilidade do juiz aos valores sociais e às mutações axiológicas da sua sociedade. O juiz há de estar comprometido com esta e com as suas preferências. Repudia-se o juiz indiferente, o que corresponde a repudiar também o pensamento do processo como instrumento meramente técnico. Ele é um instrumento político, de muita conotação ética, e o juiz precisa estar consciente disso. As leis envelhecem e também podem ter sido mal feitas. Em ambas as hipóteses carecem de legitimidade as decisões que as considerem isoladamente e imponham o comando emergente da mera interpretação gramatical. Nunca é dispensável a interpretação dos textos legais no sistema da própria ordem jurídica positiva em consonância com os princípios e garantias constitucionais (interpretação sistemática) e sobretudo à luz dos valores aceitos (interpretação sociológica, axiológica). (...) Assim, é dever do juiz afastar posicionamentos, muitas vezes comodistas, que facilitem formalmente o ato de julgar, mas possam torná-lo injusto"(Grifamos).

Nesse contexto, revela-se apropriado transcrever excertos do voto do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n.º 119.885, em 25/06/1998:

"Embora realmente não se possa argumentar com o tráfego em grandes cidades para se configurar motivo de força maior a impedir a realização do ato processual, não é justificável que um atraso de apenas cinco minutos, como o foi no caso, acarrete conseqüências tão drásticas à parte, como a revelia.

Assim, conquanto mereça respeito o horário para a prática do ato, reputo consentâneo com os dias atuais admitir-se um atraso de até quinze minutos, conforme se sustentou no aresto paradigma, lembrando também que a instrumentalidade do processo não admite apego exagerado à forma do ato processual que, na medida do possível, deve ser flexibilizada para atender o comando ou pelo menos propiciar o exame do direito material em litígio.

Colho, por opotuno, a lição do aresto-modelo, da relatoria do Prof. José Roberto dos Santos Bedaque, a dispensar acréscimos:

‘Mesmo sem considerar os motivos que levaram as partes e seu patrono a não chegar no horário da audiência, não parece razoável que um atraso de apenas quinze minutos, conforme registrado na r. sentença, dê causa à revelia e suas conseqüências.

O tratamento severo dado pelo legislador ao réu revel deve ser atenuado pelo intérprete, que não pode desconsiderar a natureza instrumental do processo, cujos escopos de atuação da vontade concreta da lei e de pacificação social prevalecem sobre os interesses privados das partes.

No caso, logo que o MM. Juiz começou a proferir a decisão, os apelantes e o advogado chegaram. Deveria ser relevado o pequeno atraso, possibilitando-se o exercício da ampla defesa e do contraditório, garantias constitucionais do processo que visam a legitimar o provimento judicial.

A revelia, acompanhada de seus efeitos, configura situação excepcional, o que implica interpretação restritiva das regras legais atinentes a esse instituto. Tudo deve ser feito para que o julgamento se realize à luz de um conjunto probatório que retrate a situação litigiosa. Apenas quando tal se mostre absolutamente inviável, admite-se a presunção de veracidade resultante da revelia.

Nessa medida, sendo possível evitar a incidência do art. 319 do Código de Processo Civil tanto melhor, ainda que, para isso, seja necessário flexibilizar a aplicação de outras regras processuais’.

Em face do exposto, conheço do recurso pelo dissídio e dou-lhe provimento para anular o processo a partir da audiência, inclusive, ensejando que outra se realize" (Grifamos).

Observa-se que é pacífico, tanto na jurisprudência quanto na melhor doutrina, que o objetivo a ser alcançado pelo processo é se chegar à verdade real, que não pode ser preterido em detrimento da verdade formal, uma vez que a verdade formal não passa de uma ficção, mentira e afronta ao Estado Democrático de Direito.

Ademais, não obstante o contido na Orientação Jurisprudencial nº 245 da SBDI-1, a jurisprudência evoluiu corretamente no sentido de se relevar pequenos atrasos da parte, privilegiando a ampla instrução do feito quando possível, e não a revelia. A título de exemplo, transcrevemos outras decisões proferidas pelo país:

PENA DE CONFISSÃO. ATRASO ÍNFIMO DA PARTE. PRAZO

RAZOÁVEL DE TOLERÂNCIA. CONFIGURAÇÃO. PRINCÍPIOS PROCESSUAIS. INTERESSE PÚBLICO. Admissível um atraso mínimo, pois há previsão de dedução da contestação em audiência por vinte minutos e a instrumentalidade do processo não admite apego ao formalismo do ato processual. Efetividade do processo e acesso à Justiça devem ser valorizados,

cumprindo-se no processo dialético. Rigor excessivo, ao reverso, deve ser afastado para ensejar as garantias constitucionais do acesso pleno à tutela jurisdicional com a busca da verdade real no procedimento em contraditório. Recurso a que se dá provimento.

(TRT da 3.ª Região, 6.ª Turma, Processo: RO-01398-2004-025-03-00-3, Relatora Juíza Emília Facchini, publicado em 01/09/2005).

DA REVELIA E CONFISSÃO. ELISÃO. Hipótese em que o ínfimo atraso da demandada à audiência não importa na aplicação das penalidades destacadas, sobretudo por tratar-se de pessoa física e, ainda, desacompanhada de advogado no ato. Apelo a que se dá provimento. (TRT da 4.ª Região, Processo: RO-00411-2003-861- 04-00-0, Relatora: Juíza Convocada Carmen Gonzalez, publicado em 05/04/2004).

AUDIÊNCIA INAUGURAL. COMPARECIMENTO DA PARTE ANTES DO ENCERRAMENTO. REVELIA E CONFISSÃO QUANTO À MATÉRIA FÁTICA. IMPOSSIBILIDADE. Tendo a representante legal da empresa adentrado a sala de audiência quando esta ainda não havia sido encerrada, impossível o acolhimento do pedido de revelia e a conseqüente confissão quanto à matéria de fato. (TRT da 10.ª Região, 2.ª Turma, Processo: RO-00898/2004, Relator Juiz Brasilino Santos Ramos, publicado em 17/08/2005).

Ademais, reza ainda a favor da Reclamada a aplicação analógica do parágrafo único do art. 815 da CLT, que dispensa tolerância de 15 minutos para o magistrado comparecer ao local da audiência.

Não só novamente se deve fazer interpretação do citado dispositivo legal com os dispositivos constitucionais e princípios norteadores do direito e da administração da justiça, mas a própria Lei de Introdução ao Código Civil (decreto-lei nº 4.657/1942) garante, em seu art. 4º, a aplicação da analogia e dos princípios gerais de direito.

No caso, sendo omissa a lei na aplicação do art. 815 da CLT às partes, mas se atentando aos princípios gerais de direito, bem como ao art. 6º da Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia), que refuta haver distinção e hierarquia entre advogados, juízes e membros do Ministério Público, não se pode chegar a outra conclusão a não ser a de que é aplicável também às partes o contido no parágrafo único do art. 815 da CLT. Outra interpretação, além de agredir os princípios do Estado Democrático de Direito, criaria distinção injustificada entre juízes e advogados, o que afronta o Estatuto da Advocacia.

Pelo supra exposto, fica evidente que a aplicação da pena de revelia e confissão ficta, quando pode ser evitada, não se harmoniza com os princípios do Direito do Trabalho.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEBENELLI, Eduardo Barbosa. Confissão ficta e princípio da realidade dos fatos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2635, 18 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17438. Acesso em: 25 abr. 2024.