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O princípio da legalidade tributária no ordenamento jurídico brasileiro: um conceito em crise?

O princípio da legalidade tributária no ordenamento jurídico brasileiro: um conceito em crise?

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SUMÁRIO: INTRODUÇÃO;1. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE; 1.1 LEGALIDADE X RESERVA LEGAL; 1.2 LEGALIDADE X LEGITIMIDADE; 2. LEGALIDADE TRIBUTÁRIA; 2.1. HISTÓRICO; 2.2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS MODERNOS; 2.3 CONTEÚDO; 2.4 RESERVA DE LEI FORMAL E SUA "EXCEÇÕES"- A EXTRAFISCALIDADE; 3. ESTADO SOCIAL E CRISE DE LEGALIDADE – EXTRAFISCALIDADE E MEDIDA PROVISÓRIAS EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA


introdução

A emergência e o reconhecimento do valor normativo do princípio da legalidade constituem duas das principais conquistas da modernidade, a partir do qual juridicizou-se a limitação do poder soberano, abrindo caminho para formação do Estado Democrático de Direito.

Referido postulado, cujas feições genéricas são aplicáveis ao ordenamento jurídico como um todo, o que permite qualificá-lo como princípio geral do direito, ganha contornos específicos quando se insere dentro do Sistema Tributário Nacional, servindo como valor supremo deste ramo do direito. Importa, por conseguinte, investigar como se constrói historicamente o princípio, seu conteúdo normativo, os elementos que o constituem e as atuais correntes que defendem sua superação.


1. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

O princípio geral da legalidade está previsto no ordenamento jurídico brasileiro no art. 5°, II da Constituição Federal, inserido não por acaso dentro do rol dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo. Assim prescreve a Carta Magna:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Esta norma, como dito, serve como elemento essencial à formação do Estado Democrático de Direito no Brasil, à medida que garante a participação dos cidadãos, através de seus representantes, na edição de atos normativos que prevejam restrições à liberdade individual. Serve, ainda, para conferir a segurança jurídica necessária à convivência dos indivíduos em sociedade. Neste sentido, a lição de SILVA (2009, p. 420):

"O princípio da legalidade é nota essencial do Estado de Direito. É, também, por conseguinte, um princípio basilar do Estado Democrático de Direito, como vimos, porquanto é da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática."

Não há, entretanto, uniformidade entre os autores que estudam o tema em relação à qualificação do instituto, se direito individual ou garantia constitucional. Enquanto CARVALHO (1998, p. 253) e a maioria da doutrina o incluem dentre os direitos individuais, MARTINS (1995, p. 141-142) defende tratar-se de verdadeira garantia constitucional:

"se o princípio da legalidade limita o poder de tributário, colocando-o sob monopólio da lei escrita, proveniente do legislativo, a criação e majoração dos tributos, faz nascer o direito público subjetivo do cidadão contribuinte – exigir que os entes de governo interfiram na sua área particular de ação, criando ou aumentando tributos, através de lei"

Independente da corrente a que se filie, o importante é que ambas atribuem ao princípio valor superior dentro do sistema jurídico nacional.

1.1 LEGALIDADE X RESERVA LEGAL

É necessário destacar, ainda, que o princípio da legalidade não se confunde com o da reserva legal. O primeiro refere-se à necessidade genérica de submissão de respeito à lei, tomada esta em sei conceito mais amplo. Conforme MORAES (2007, p. 37), "por ele fica certo que qualquer comando jurídico há de provir de uma das espécies normativas devidamente elaboradas conforme processo legislativo constitucional."

A reserva legal, de outro norte, relaciona-se à exigência de que determinada matérias sejam reguladas por lei em sentido estrito, vedada a adoção de outra espécie normativa. Quanto ao ponto, distingue o autor antes mencionado: "Este opera de maneira mais restrita e diversa.[...] incide tão-somente sobre os campos materiais especificados pela Constituição" (p. 2007, p. 37).

A reserva legal, destarte, subdivide-se em absoluta e relativa. Será absoluta quando exija que no ato editado consoante as regras do processo legislativo estejam previstos todos os elementos para que a norma possa ser aplicada. Ao contrário, será reserva legal relativa quando a lei estabelece apenas os parâmetros genéricos, atribuindo a atos infralegais a complementação necessária à sua efetivação.

1.2 LEGALIDADE X LEGITIMIDADE

Não se deve confundir, também, a legalidade com a legitimidade, pois apesar de não ser incomum a sua referência como sinônimos, tratam-se de fenômenos diversos, pois

"legalidade e legitimidade são atributos do poder, mas são duas qualidades diferentes deste: a legitimidade é a qualidade do título do poder e a legalidade a qualidade do seu exercício.[...] O poder legítimo é um poder, cujo título é justo; um poder legal é um poder, cujo exercício é justo, de legítimo."(SILVA, 2009, p. 425)


2. LEGALIDADE TRIBUTÁRIA

Ao adentrar na esfera de regulação que trata da atividade arrecadatória do Estado, a tributação, a legalidade toma contornos específicos, ganhando qualificativos próprio, no que se convencionou denominar de legalidade tributária. Destaca-se, então, os elementos históricos, os fundamentos e o conteúdo deste instituto.

2.1. HISTÓRICO

A legalidade tributária encontra raízes históricas na Magna Carta, editada em 1215, na Inglaterra, pelo Rei "João Sem Terra", quando, atendendo às exigências da nobreza, a cobrança de tributos passou a ser condicionada ao consentimento do conselho do reino. Posteriormente, foi aprimorado no Bill of Rights, elaborado em 1689, também no Reino Unido, e incluído na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1789) e na Constituição Americana, promulgada em 1787.

2.2 FUNDAMENTOS TEÓRICOS MODERNOS

Como fundamentos teóricos e filosóficos do princípio, mencionam-se as obras de Jhon Locke e Voltaire, que, em seus escritos, defendiam a necessidade da existência dos impostos, desde que cumprida a condição de que a cobrança se submetesse ao prévio consentimento do povo (CARVALHO, 1998, p. 259).

2.3 CONTEÚDO

No direito positivo brasileiro, a legalidade tributária foi cristalizada por meio da inserção do art. 150, I, na Constituição Federal de 1988, que previu, expressamente:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;

A legalidade tributária diferencia-se da legalidade comum por exigir, dentro outros requisitos, reserva absoluta de lei, abarcando a legalidade tributária formal (obediência ao processo legislativo e órgão legiferante competente) somada à legalidade tributária material (definição de todos os aspectos do fato gerados).

Ademais, vige no direito tributário o postulado da "tipicidade fechada", pela qual a lei que estabeleça uma exação deve trazer em seu bojo todos os elementos necessários à imposição do tributo, quais sejam: a hipótese de incidência, os sujeitos ativo/passivo, a base de cálculo e a alíquota.

2.4 RESERVA DE LEI FORMAL E SUA "EXCEÇÕES"- A EXTRAFISCALIDADE

Não obstante seja esta a regra, existem autores que defendem a existência, no sistema tributário brasileiro, de exceções à reserva de lei formal. Tais "desvios de rota" seriam identificados com os tributos de caráter extrafiscal, tais como o IPI, para os quais há a hipótese de alteração das alíquotas por ato direto do Poder Executivo. Exemplificando, veja-se o art. 153, §1° da Constituição Federal:

Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:

[...]

§ 1º - É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V.

Com a devida vênia aos fautores desta tese, o entendimento mais adequado ao caso parece ser aquele propugnado por CARRAZA (2001, p. 260), que assevera que tratam-se de exceções apenas aparentes, haja vista que o próprio dispositivo exige que o poder executivo, ao definir a alíquota, obedeça as condições estabelecidas em lei. Portanto, não haveria malferimento ao princípio da legalidade, mas uma mera mitigação do seu conteúdo.


3. ESTADO SOCIAL E CRISE DE LEGALIDADE – EXTRAFISCALIDADE E MEDIDA PROVISÓRIAS EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Não é possível discutir na atualidade o princípio da legalidade sem considerar toda uma crítica que tem sido feita a partir dos reflexos do Estado Social para o Direito, que estaria trazendo uma crise de regulação.

A questão emerge a partir da constatação de que o Estado, ao assumir cada vez mais compromissos com os mais diversos setores da sociedade, criou, em contrapartida, a necessidade de um aumento expressivo da atividade legiferante, gerando uma verdadeira inflação legislativa. Ocorre que estas novas normas, produzidas de afogadilho para atender a particulares interesses que emergem no contexto social, não tem condições materiais de serem aplicadas, servindo tão somente para criar a sensação no povo de que os problemas foram resolvidos, quando, na prática, a situação continua igual. A lei, portanto, passa a exercer uma função meramente simbólica, sem produzir a verdadeira eficácia normativa.

Essa ideia é corroborada por AZEVEDO (2008, p. 42):

"A crise perpassa o direito positivo, no qual, desde antes do neoliberalismo, já se esboçava a inflação legislativa, configurada pelas leis-recorte, que regulam pequenos estratos da realidade social, para que, em substância, tudo permaneça como antes."

Na mesma linha, se posiciona FARIA (p. 117):

"O que se passa a verificar, então, é uma progressiva inefetividade política, administrativa, normativa, operacional e até organizacional do Estado keyseniano ou intervencionista. Sua prolífica – mas errática – produção legislativa vai acarretar importantes mudanças na morfologia, nos significados e na qualidade discursiva das leis, esvaziando progressivamente o caráter lógico sistemático do ordenamento jurídico e pondo em xeque a linguagem unívoca desenvolvida pela dogmática com base em conceitos preestabelecidos e de acordo com regras precisas de mudança.[...]essa desenfreada produção legislativa culmina, assim, na ruptura da organicidade, da unidade lógico-formal e da racionalidade sistêmica do ordenamento jurídico[...]Essa disfuncionalidade crescente tanto do Estado "social" ou regulador quanto de seu instrumental normativo configura um processo que tem sido chamado de "ingovernabilidade sistêmica" ou "crise de governabilidade" pelos cientistas políticos. E de "inflação legislativa", "juridificação" e "trilema regulatório", pelos sociólogos e teóricos do direito."

Este processo se apresenta no direito tributário a partir das discussões acerca do alcance do poder normativo conferido ao Poder Executivo na regulação dos tributos extrafiscais e, também, na questão da possibilidade da edição de medidas provisórias para instituir novas exações. No Brasil, o que se tem visto é uma tendência para cada vez mais ampliar o poder normativo da administração, reduzindo o alcance da limitação conferida pelo princípio da legalidade.

O perigo da aceitação e absorção acrítica deste fenômeno é que, aos poucos, vai-se afastando a vontade do cidadão na elaboração de regras que restringem o seu patrimônio e, por consequência, degenera-se um dos pilares basilares do Estado Democrático de Direito.


CONCLUSÕES ARTICULADAS

Em face do exposto, conclui-se que:

a)O princípio a legalidade é elemento essencial do Estado Democrático de Direito, garantindo a participação dos cidadãos na elaboração das decisões legislativas;

b)Legalidade não deve se confundir com reserva legal, pois enquanto o primeiro refere-se à necessidade genérica de submissão de respeito à lei, o segundo exige lei em sentido estrito;

c)A legalidade tributária exige reserva absoluta de lei, abarcando a legalidade tributária formal somada à legalidade tributária material;

d)Os tributos de caráter extrafiscal são exceções apenas aparentes ao princípios, haja vista que mesmo quando se permite a atuação do poder executivo, este deve obedecer às condições previamente definidas em lei;

e) O advento do Estado Social ocasionou inflação legislativa e perda da eficácia regulatória da lei, gerando, no direito tributário, o aumento do poder de atuação direta da administração e da edição de medidas provisórias em matéria tributária;

f)Esse fenômeno deve ser questionado, pois esvazia a participação do povo em decisões fundamentais, afetando o Estado Democrático de Direito.


REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Plauto Faraco. Ecocivilização.2. ed.São Paulo: RT, 2008.

CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 16. ed., São Paulo: Malheiros. 2001.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1998.

FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada.São Paulo: Malheiros, 2004.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 25. Ed., São Paulo: Malheiros, 2007.

MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Curso de Direito Tributário.Pará: CEJUP, 1995.

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 22. Ed., São Paulo: Atlas, 2007.

SILVA, José Afonso. Direito Constitucional Positivo. 32. Ed., São Paulo: Malheiros, 2009.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BORBOREMA, Bruno Novaes de. O princípio da legalidade tributária no ordenamento jurídico brasileiro: um conceito em crise?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2710, 2 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17936. Acesso em: 19 abr. 2024.