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A posse de chip de celular e a falta grave na execução penal

A posse de chip de celular e a falta grave na execução penal

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Foco de relevante discussão no âmbito do STF, a posse de chip de celular no âmbito da execução penal ganhou contornos jurisprudenciais de falta grave. A Segunda Turma do STF, assim como fez a Primeira Turma, decidiu que "a posse de chip de celular por um preso caracteriza falta disciplinar de natureza grave, que deve acarretar regressão do regime prisional e perda dos dias remidos" [01]

Para melhor compreensão do tema faremos uma breve incursão em dispositivos legais e constitucionais pertinentes à matéria.

O art. 50 da LEP passou a prever em seu inciso VII , através da Lei 11466/2007, que :

Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que:

(...)

VII – tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo. (Incluído pela Lei nº 11.466, de 2007)

(...)

A utilização de qualquer aparelho que permita comunicação entre detentos ou ainda destes com o ambiente externo caracteriza o cometimento de falta grave. A razão da determinação legal reside em sede de política criminal uma vez que é fato de conhecimento público que saem dos presídios ordens e orientações para a realização de diversos crimes.

A utilização de aparelho celular pelos detentos é o pilar desse desvio constatado na execução da pena privativa de liberdade. A segregação controlada dos internos do sistema prisional é orientação intrínseca prevista na Lei de Execução Penal. Permitir que os mesmo comuniquem-se livremente com o ambiente externo é convalidar o envolvimento previsível em ações criminosas que, por vezes, são arquitetadas dentro do próprio ambiente prisional.

No sentido de coibir essa forma de comunicação firmou-se a previsão legal de caracterização de falta grave ao detento condenado ou provisório que for surpreendido na posse não autorizada de aparelho de comunicação dentro dos estabelecimentos penais.

Para o preso, a inclusão em seu prontuário carcerário do cometimento de falta grave, implica em inúmeros prejuízos, como por exemplo, a regressão do regime prevista no art. 118 da LEP:

Art. 118. A execução da pena privativa de liberdade ficará sujeita à forma regressiva, com a transferência para qualquer dos regimes mais rigorosos, quando o condenado:

I - praticar fato definido como crime doloso ou falta grave;

(...)

A falta grave implicará na perda dos dias remidos conforme a previsão do art. 127 da Lei de Execução Penal:

Art. 127. O condenado que for punido por falta grave perderá o direito ao tempo remido, começando o novo período a partir da data da infração disciplinar.

Outro corolário do reconhecimento da prática de falta grave previsto no art. 146-D da Lei de Execução Penal é a revogação do monitoramento eletrônico:

Art. 146-D.  A monitoração eletrônica poderá ser revogada: (Incluído pela Lei nº 12.258, de 2010)

(...)

II - se o acusado ou condenado violar os deveres a que estiver sujeito durante a sua vigência ou cometer falta grave. (Incluído pela Lei nº 12.258, de 2010)

No regime semi-aberto a falta grave ocasiona, segundo o art. 37 da Lei de Execução Penal a revogação da autorização do trabalho externo:

Art. 37. A prestação de trabalho externo, a ser autorizada pela direção do estabelecimento, dependerá de aptidão, disciplina e responsabilidade, além do cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena.

Parágrafo único. Revogar-se-á a autorização de trabalho externo ao preso que vier a praticar fato definido como crime, for punido por falta grave, ou tiver comportamento contrário aos requisitos estabelecidos neste artigo.

E, talvez, uma das mais severas conseqüências da falta grave, quando a falta grave consistir na prática de fato previsto como crime doloso e este ocasionar a subversão da ordem ou disciplina internas, poderá sujeitar o punido ao regime disciplinar diferenciado conforme prevê o art. 52 da Lei de Execução Penal:

Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)

A obtenção do livramento condicional pode ser obstaculizada pelo cometimento da falta grave conforme se depreende do art. 131 da Lei de Execução Penal e art. 83 do Código Penal:

Art. 131. O livramento condicional poderá ser concedido pelo Juiz da execução, presentes os requisitos do artigo 83, incisos e parágrafo único, do Código Penal, ouvidos o Ministério Público e Conselho Penitenciário.( Lei de Execução Penal)

Art. 83 - O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, desde que: 

(...)

III - comprovado comportamento satisfatório durante a execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto;  ( Código Penal)

A caracterização da falta grave, inegavelmente, traz conseqüências sérias para a execução da pena submetendo o preso ao máximo rigor no cumprimento de sua pena. Não se verifica uma graduação na punição de forma a estabelecer uma diferenciação de condutas que em sua natureza são distintas. A posse de um componente tido como essencial a um aparelho que permita a comunicação do preso com o ambiente externo ou com outros presos não pode se equiparar à posse do aparelho, uma vez que só este permite a referida comunicação.

Para referendar o raciocínio aqui esposado suponhamos que o encarcerado seja surpreendido na posse de uma antena pertencente a um celular qualquer, um carregador, ou ainda baterias componentes tão essenciais como o chip, posto que sem os mesmos a comunicação pode restar inviabilizada. Ora, nesse caso novamente o Poder Judiciário deverá ser chamado para se manifestar sobre a caracterização ou não da falta grave.

O que pretendemos nesta oportunidade é destacar que o casuísmo não deve ser o fator orientador de interpretações dessa natureza e sim o dano potencial que a conduta possa provocar ao bem jurídico tutelado. Ora, um chip sem o aparelho celular em que possa ser acoplado é tão inoperante para efetuar comunicação quanto uma panela. O fato de ser componente essencial do referido aparelho não autoriza a interpretação de que o legislador quis incluí-los no rol de comportamentos passíveis de punição como falta grave.

A prevalecer tal interpretação estar-se-á patrocinando uma desnecessária violação do princípio da repartição de poderes, posto que compete ao Poder Legistativo legislar sobre execução penal.

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;

(...)

Para ilustrar tal entendimento podemos nos socorrer na Lei 10826/2003 ( Estatuto do desarmamento) no tocante ao crime de posse irregular de arma de fogo de uso permitido

Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:

Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

A incluir no texto legal o conceito de acessório o legislador contemplou a possibilidade de caracterização do delito mesmo diante da possibilidade do agente ser surpreendido na posse de componentes que por si só não integram a letalidade de uma arma de fogo. Demandar o Poder Judiciário para que se manifeste sobre o conceito de acessório e se o mesmo compreende também os componentes de uma arma de fogo é até razoável, pois acessório pode ser diferente de componente. Agora conceder ao judiciário o poder de suprir a legislação ante a ausência de expressa previsão legal implica em violação ao princípio da legalidade e ao princípio da taxatividade das condutas puníveis, princípios elementares da seara penal e penitenciária [02].

( Constituição Federal) Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

(...)

( Código Penal ) Art. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal .

( Lei de Execução Penal) Art. 3º Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.

Não resta dúvida sobre a incidência do princípio da legalidade na Execução Penal e o mesmo deve ser respeitado dado à sua natureza constitucional. É surpreendente quando o Supremo Tribunal Federal manifesta-se em flagrante afronta a tão elementar princípio.

A crise no sistema prisional alcança níveis preocupantes e a problemática criminal demanda esforços institucionais grandiosos, mas um Estado Democrático de Direito deve primar pelo zelo à Constituição e principalmente pela não violação de direitos fundamentais.

A punição de presos pela da posse de celulares é salutar medida de política criminal, mas oculta o mau funcionamento do sistema que permite a entrada desses aparelhos no ambiente prisional. Ora se o preso foi surpreendido na posse de chips de celulares é porque de alguma forma o sistema de revistas falhou e transferir a responsabilidade dessa falha ao condenado até pode ser justificável quando dentro dos estritos ditames da lei e não ao sabor de interpretações desfocadas da ordem principiológica constitucional.


Notas

  1. Notícia STF - 30 de novembro de 2010
  2. OLIVA, Márcio Zuba de; SIQUEIRA, Flávio Augusto Maretti. O princípio da legalidade ou reserva legal no Direito Penal brasileiro. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 5, no 216. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/ doutrina/texto.asp?id=1751> Acesso em: 1  dez. 2010.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS FILHO, Pedro Rocha. A posse de chip de celular e a falta grave na execução penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2746, 7 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18224. Acesso em: 28 mar. 2024.