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O conceito de funcionário público na lei penal.

Uma análise do artigo 327 do Código Penal

O conceito de funcionário público na lei penal. Uma análise do artigo 327 do Código Penal

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RESUMO

O presente artigo aborda os problemas existentes na realidade jurídica nacional em torno do conceito de funcionário público presente no Código Penal, artigo 327 e parágrafos. Demonstra-se que o estudo do conceito de funcionário público da lei penal na dogmática pátria é carente sob diversos aspectos, especialmente quando em confronto com as disciplinas do direito constitucional, do direito administrativo e do próprio direito penal.

PALAVRAS CHAVE: Direito penal. Direito administrativo. Criminologia. Funcionário público. Crimes contra administração pública.


INTRODUÇÃO

Vive-se um momento histórico de forte abalo às instituições e ao Estado como um todo. A mídia de massa prega o "combate a corrupção", a Polícia Federal cria operações circenses que culminam em prisões provisórias de pessoas ligadas a cúpula da administração pública. Cabe ao estudioso do direito deixar as emoções em segundo plano e analisar com cientificidade os motivos, fundamentos e conseqüências da interferência do direito penal no controle dos princípios basilares do Estado de Direito.

Não se pode questionar o papel funcional social do Estado traçado pelo texto constitucional de 1988, por conseqüência ilegalidades praticadas contra o patrimônio público devem ser combatidas pela ordem jurídica. Todavia, é necessário que este combate seja feito de forma regrada, eficiente e, principalmente, de acordo com a ordem constitucional.

É fato incontroverso na contemporânea ciência jurídica que o direito é uno, sua divisão em disciplinas específicas possui fins didáticos. Neste sentido a interdisciplinaridade deve ser buscada tanto no meio acadêmico, demonstrando aos estudantes do direito a relação destes diversos ramos, como também na prática forense onde se exigirá do profissional um conhecimento amplo e geral do direito enquanto ciência.

Esta situação de unicidade do direito, de sua interdisciplinaridade, mostra-se clara em diversos momentos do estudo do direito penal, seja nos crimes contra o patrimônio, quando se exigirá conhecimentos de direito civil, nos crimes econômicos ligados ao direito empresarial e ao direito tributário e assim por diante. Nesta linha de raciocínio, ao tratar de crimes contra a administração pública a ligação entre o direito penal e o direito administrativo aparece de forma inviolável. A interpretação das leis penais que tratam dos tipos penais de crimes praticados contra a administração pública exigirá do sujeito cognoscente o conhecimento pré-existente da matéria disciplinada pelo direito administrativo.

A interpretação do conceito de funcionário público estabelecido no artigo 327 do Código Penal brasileiro exigirá do interprete uma série de conhecimentos prévios, sob pena de se incorrer em reducionismos ou antinomias jurídicas gerando decisões judiciais em desconformidade com o ordenamento jurídico.

O presente estudo tem por finalidade fazer uma exposição dos principais pontos carentes de abordagem da doutrina jurídica nacional no que se refere ao conceito de funcionário público na lei penal. Dentro dos limites deste artigo abordar-se-á de forma criteriosa os problemas que envolvem este conceito, expondo os pontos que necessitam de maior aprofundamento teórico bem como formulando idéias no intuito de contribuir com o desenvolvimento científico da matéria.


1. ARTIGO 327 DO CÓDIGO PENAL

Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.  

§ 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público

Ao tratar dos crimes praticados contra a administração pública o Código Penal brasileiro traz um conceito legal de funcionário público cuja aplicação se estende a toda legislação penal, não somente aos dispositivos próprios daquele código. Dentro da clássica classificação das espécies de lei penal (preceptivas, explicativas, permissivas e finais) o artigo 327 do Código Penal será classificado como uma lei explicativa, "Explicativas – sua função é a de explicar algum conceito com reflexos, muita vez, na própria tipicidade. É o exemplo o conceito de funcionário público, trazido pelo art. 327 c.p." [01]

Assim, o conceito de funcionário público trazido pelo artigo 327 acima transcrito determinará, em todos os casos, quem poderá ser sujeito ativo nos crimes próprios de funcionários públicos, ex. peculato, art. 312 do Código Penal. Por tais razões é necessário que referido conceito seja interpretado com cientificidade, ou seja, o conceito de funcionário público na lei penal deve ser analisado em conformidade com o sistema jurídico em sua integralidade e não apenas para fins punitivos [02].

Dentro desta visão do tema, a análise do conceito objeto do presente estudo deve ser vista sob quatro pontos fundamentais: i.; sua validade diante do texto constitucional (visão constitucional) ii. na exata delimitação de seus conceitos (visão administrativa); iii. sua interpretação diante os postulados da teoria do direito penal democrático [03] (visão dogmática penal); iv. a análise crítica de suas reais funções no discurso punitivo (visão criminológica).

Destarte, se passará a expor, dentro da brevidade exigida pelo presente trabalho, os pontos destacados como carentes de aprofundamento teórico da disciplina do conceito de funcionário público na lei penal.


2. UM NECESSÁRIO POSICIONAMENTO IDEOLÓGICO

Como ponto de partida do presente trabalho é necessário trazer ao leitor o posicionamento ideológico deste estudo dentro da dogmática jurídica nacional. Esta necessidade se prende ao fato de que não mais se pode aceitar o continuísmo e a alienação que durante décadas ditou os rumos dos estudos do direito na doutrina nacional.

O presente estudo se ampara em postulados hermenêuticos e críticos [04], ou seja, é formulado diante de reflexões que vão além da pura leitura de textos legais e de suas relações com os demais dispositivos do direito positivo de forma supostamente neutra. O direito positivado somente pode ser entendido como fruto da ideologia e da força do discurso das classes socialmente mais fortes, assim deve ser compreendido, analisado e estudado. Não há mais espaço na doutrina brasileira para análises acríticas, deslocadas da realidade histórica e social brasileira.

O estudo do direito no Brasil deve ser realizado tendo em vista a realidade da sociedade brasileira, carregada de desigualdade, falta de oportunidades e opressão. O estudioso do direito, especialmente do direito penal e do direito administrativo [05], deve estar apto a interpretar a carga ideológica embutida no texto legal e nos costumes forenses. É necessária uma quebra de paradigmas, um rompimento com o conformismo e com a reprodução inconsciente de brocados e máximas presentes nos textos doutrinários e jurisprudências produzidos sob a égide de outra realidade histórica e constitucional.

Sob estes critérios é que deve ser desenvolvido o estudo do conceito de funcionário público, não somente por meio de uma interpretação literal e conformista, mas sim em sua hermenêutica, analisando-se sua relação com o sistema jurídico e com o discurso do poder criador das leis penais.


3. VISÃO CONSTITUCIONAL

O conceito objeto do presente estudo traz em seu conteúdo uma série de expressões abertas, ou seja, expressões cujo significado dependem de um trabalho hermenêutico no qual vai se exigir diversos conhecimentos prévios, especialmente de matérias de disciplina constitucional. Exemplo destas expressões abertas é a locução "função pública".

Diversos são os significados oferecidos a expressão função pública pela doutrina, especialmente na doutrina penal. Como ilustração pode-se destacar a interpretação de Paulo José da Costa Jr.: "É o exercício da função pública que caracteriza o funcionário público, segundo os ditames do Código Penal. Pouco importa que o exercício da função pública seja permanente ou eventual, voluntário ou obrigatório, gratuito ou remunerado, a título precário ou definitivo. Poderá a função resultar de eleição, de nomeação, de contrato ou de simples situação de fato, desde que não se usurpe a função pública." [06]

Ocorre que, o real significado desta expressão somente pode ser encontrado no texto constitucional. Se é certo que somente lei penal pode criar crimes, princípio da legalidade estrita, certo é também que a lei penal está vinculada a constituição como sua condição de validade jurídica. Explicando, a lei penal, assim como qualquer lei infraconstitucional, está adstrita ao exame de sua constitucionalidade, razão pela qual não pode ser interpretada em desconformidade com a constituição.

A constituição federal como carta política é o meio jurídico próprio para estabelecer as funções públicas. No direito brasileiro as funções públicas são basicamente três, legislativa, judiciária e executiva, assim, de forma bastante simplificada, somente a pessoa física integrante se uma destas três estruturas funcionais do estado estará exercendo função pública. Ensina Celso Antonio Bandeira de Mello: "função pública, no Estado Democrático de Direito, é a atividade exercida no cumprimento do dever de alcançar o interesse público, mediante o uso dos poderes instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica" [07]

Ainda, no artigo 327, §1º, do CP é utilizada a expressão "atividade típica da Administração Pública", locução que novamente faz referência a matéria constitucional ao tratar especificamente de uma das funções do Estado, qual seja, a função executiva.

Certo é que os contornos destas expressões devem ser tomados de cuidado redobrado, está-se falando de matéria constitucional e não de simples disposições da lei penal. A interpretação de tais expressões não é livre, não pode se amoldar ao que melhor representar os "interesses punitivos" [08]. O conteúdo das expressões abertas contidas no conceito de funcionário público deve ser obtido nos estreitos limites do texto constitucional, qualquer interpretação diversa acarretará em conseqüências juridicamente desastrosas, especialmente ao se tratar de parâmetros para decisões judiciais.

Por tais razões é que o conceito de funcionário público na lei penal deve ser observado sob uma visão constitucional capaz de oferecer parâmetros seguros a delimitação da matéria.


4. VISÃO ADMINISTRATIVA

Já se falou acima que o direito é uno, sua divisão em disciplinas distintas possui fins didáticos e pragmáticos. Não é diferente quando se trata de direito penal. Os conceitos utilizados na lei penal não podem ser compreendidos em dissonância com o aprofundamento teórico desenvolvido em outros ramos do direito sob pena de se criar uma pretensa independência ou superioridade do estudo do direito penal sobre o estudo dos outros ramos do direito, o que não se sustenta. Ensinam Nilo Batista e Zaffaroni que as leis penais não se encontram isoladas da realidade social e jurídica nas quais são criadas [09]

No que tange aos chamados tipos penais de crimes contra administração pública e, especialmente, na interpretação do conceito de funcionário público na lei penal não se pode deixar de lado os conhecimentos desenvolvidos pelo direito administrativo.

Devido a sua importância na estrutura social do estado democrático constitucional o direito administrativo é um ramo objeto de muitos estudos e reflexões na doutrina nacional, inúmeros são os manuais, as monografias e as teses de grande qualificação científica desenvolvidas sobre a disciplina jurídica da administração pública. Não há como o direito penal simplesmente ignorar este trabalho científico e utilizar conceitos próprios e incoerentes com os mais desenvolvidos estudos sobre o tema.

No que se refere ao tema analisado neste trabalho, o conceito de funcionário público na lei penal, a interdisciplinaridade entre direito penal e direito administrativo deve começar na denominação da figura jurídica. Isto porque a constituição federal utiliza a expressão agente público que por sua vez é dividida entre servidores públicos civis, servidores públicos militares, agentes políticos e particulares em colaboração com o Poder Público [10]. Os servidores públicos civis serão ainda divididos por sua forma de investidura no cargo público em servidores ocupantes de cargo em comissão, de provimento efetivo e de cargo vitalício. No atual estágio de desenvolvimento da ciência jurídica não há espaço para entendimentos simplórios e conformistas é necessário analisar-se as matérias legais de acordo com o grau de aprofundamento teórico existente.

Exemplo da realidade acima exposta pode ser encontrado na análise da expressão "entidade paraestatal" utilizada no §1º, do artigo 327, do CP, introduzido pela Lei n. 9.983/2000. Merecem confronto as explicações da doutrina penal com a doutrina administrativista: "Entidade paraestatal: também aqui o conceito deve ser extensivamente interpretado. É equiparado a funcionário público a pessoa que exerce cargo, emprego ou função não somente em entidade tipicamente paraestatal, como a autarquia, mas também em sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações instituídas pelo poder público" [11]. "Entidade paraestatal ou serviço social autônomo é uma pessoa jurídica de direito privado criada por lei para, atuando sem submissão à Administração Pública, promover o atendimento de necessidades assistenciais e educacionais de certas atividades ou categorias profissionais, que arcam com sua manutenção mediante contribuições compulsórias." [12].

A dissonância entre os dois conceitos oferecidos é evidente. Para o exemplo extraído da doutrina penal a expressão entidade paraestatal seria equivalente a institutos próprios da administração pública indireta, tais como autarquias e fundações públicas. Ora, autarquias e fundações públicas são pessoas jurídicas de direito público integrantes da administração e do Estado, logo entidades paraestatais não o são. De outro lado, o conceito da doutrina administrativista deixa claro o que se entende por entidades paraestatais, pessoas jurídicas de direito privado que em virtude de sua manutenção com finanças de natureza tributária devem ter tratamento jurídico diferenciado.

O que se pretende deixar claro é que os conceitos inerentes a outros ramos do direito, em especial para este estudo os do direito administrativo, não podem ser simplesmente ignorados pelo direito penal como se lhes fossem absolutamente estranhos. Não há como se interpretar os crimes contra a administração pública previstos na legislação brasileira sem se aprofundar nas referências do direito administrativo. O único modo de se levar segurança, poder de decidibilidade na apuração de responsabilidade penal em crimes praticados contra a administração pública é por meio do aprofundamento teórico e ligação entre estes dois ramos do direito.


5. VISÃO DOGMÁTICA PENAL

Parece óbvio falar que o estudo e a aplicação do direito penal devem observar os postulados, regras e princípios, do direito penal. Contudo, diante da realidade da doutrina e da jurisprudência penal brasileira tal afirmação perde a obviedade e passa a ter fundamental importância na busca de um direito penal democrático, em consonância com o estado democrático de direito traçado na constituição brasileira.

Não obstante as indefinições e os reducionismos científicos acima apontados quanto a definição do conceito de funcionário público na lei penal em relação a sua visão constitucional e administrativa, imperioso se faz reconhecer que o tratamento oferecido a esta matéria no âmbito da doutrina penal acaba por ferir postulados construídos pela própria dogmática penal. Na visão de um direito penal democrático, ou seja, garantia do cidadão contra o poder punitivo estatal, os princípios e garantias penais devem ocupar o patamar mais elevado dentro do estudo da matéria jurídica penal. Como ilustração das afirmações aqui expostas se demonstrará o desrespeito ao princípio da legalidade, artigo 5º caput, da Constituição Federal.

O princípio da legalidade em direito penal deve ser analisado sobre quatro aspectos, proibição do uso de analogia para criação de tipos penais, proibição da criação de tipos por meio de utilização de conceitos indeterminados, proibição de retroatividade da lei penal criminalizadora e a proibição de criminalização por costumes. Nesta linha, a interpretação [13] da lei em matéria penal irá sofrer limitações, especialmente no que se refere a interpretações extensivas. Merece destaque o posicionamento de Juarez Cirino dos Santos: "o princípio da legalidade proíbe qualquer interpretação extensiva da lei penal, resolvendo todos os casos de dúvida conforme a interpretação restritiva da lei penal – alias, a única compatível com o princípio in dúbio pro reo, hoje de aplicação universal do Direito Penal." [14]

Ocorre que, no que se refere a interpretação do conceito de funcionário público na lei penal a doutrina pátria deixa de lado referido postulado da proibição da interpretação extensiva. O que se percebe da literatura jurídica nacional é que o conceito de funcionário público do artigo 327 do Código Penal é interpretado de maneira extensiva, os conceitos ali presentes tem sua amplitude alongada chegando ao ponto de que qualquer pessoa que eventualmente tenha contato com a administração pública, mesmo de maneira reflexa poderá ser classificado como funcionário público para fins penais.

Neste linha, pode se destacar o seguinte posicionamento doutrinário emanado de respeitado jurista nacional: "Nosso Código Penal, no art. 327, adotou a noção extensiva e deu maior elasticidade ao conceito de funcionário público. Isto é, não exige, para caracterização de funcionário público, o exercício profissional ou permanente da função pública. Basta o individuo exercer, ainda que temporariamente e sem remuneração, cargo, emprego, ou função pública." [15]

Com fundamento no posicionamento acima exposto pode se formular exemplos extremos, mas não impossíveis, de que o cidadão convocado para atuar como jurado do Tribunal do Júri que leve consigo uma caneta fornecida pelo Tribunal para os trabalhos em plenário incorra no tipo penal de peculato, artigo 312, do Código Penal, bem como no caso de um cidadão que exerça a profissão de gari em concessionária de serviço de limpeza pública que deixe deliberadamente de recolher resíduos de uma quadra em seu trajeto incorra no tipo penal de prevaricação, artigo 319, do Código Penal.

Não resta dúvida de que a proibição a interpretação extensiva em matéria penal se estende, também, ao conceito de funcionário público trazido no artigo 327, do Código Penal sob pena de incorrer-se em uma aplicação extremada e indevida da lei penal.

O estudo dos tipos penais que prevêem crimes praticados contra a administração pública, em especial o estudo do conceito de funcionário público na lei penal, não pode prescindir de uma apurada reflexão de seu enquadramento nas disposições geral de matéria penal, dos princípios penais de garantia e da teoria do injusto penal. Somente desta forma esta matéria pode ser analisada a fim de que prevaleçam os postulados do estado de direito.


6. VISÃO CRIMINOLÓGICA

Por derradeiro, o conceito de funcionário público na lei penal deve ser analisado sob o olhar criminológico, deve ser analisado não sob o ponto de vista do desviante, mas do processo de criminalização.

Não se questiona o interesse social e os fundamentos da defesa do patrimônio público. O Estado social brasileiro traçado na constituição possui um papel atuante e garantidor, deve ter como fim principal garantir a efetividade dos direitos fundamentais, assegurar a todo brasileiro a dignidade da pessoa humana. Para tanto o Estado deve regulamentar e fomentar a atividade privada bem como prestar serviços públicos de qualidade ao cidadão, essas atividades poderão ser alcançadas apenas com a existência de um patrimônio público cuja preservação e utilização merece fundamental cuidado e relevância jurídica.

Diante da relevância jurídica do controle do patrimônio público a pergunta que deve ser feita é se o direito penal seria o caminho correto? A criminalização primária por meio de leis como o conceito de funcionário público do artigo 327, do Código Penal, com a utilização de conceitos indeterminados e extremamente amplo é o melhor caminho para o controle da moralidade administrativa, da preservação do patrimônio público?

A resposta para tais perguntas exigiria um aprofundamento teórico incompatível com a proposta do presente trabalho, contudo aí estão os questionamentos que merecem ser aprofundados pela doutrina nacional.

O que se pode afirmar é que a ampliação do conceito de funcionário público para fins penais possui um efeito imediato que é o de desviar a atenção da justiça criminal dos maiores causadores de danos sociais. Isto porque, a relação de poder que se impõe na criação e na aplicação das leis penais se reflete também no potencial de danosidade social na ação de seus detentores, em outras palavras, aqueles que detém poder para criar e influenciar na criação de leis bem como direcionar o desenvolvimento do conhecimento científico são os que detém maior poder para causar prejuízos ao patrimônio público. Ao se ampliar o conceito de funcionário público deixa-se de focar nestes agentes de maior poder para que as atenções se voltem aqueles de menor poder, ao invés de se combater possíveis ações ilícitas de um governador de estado o aparelho judicial coloca suas energias no combate aos possíveis ilícitos causados trabalhadores terceirizados em uma empresa contratada por uma entidade paraestatal.

O que se propõe não é distinção entre ilícitos grandes e ilícitos pequenos, mas sim que a realidade social e penal do estado brasileiro não pode ser analisada deixando-se de lado sua característica de seletividade, bem como que não se pode negar realidades como a cifra negra da criminalidade e a função simbólica do direito penal. Deve-se ter claro que enquanto se expõe a comunidade as rígidas sanções contra uma conduta ilícita inúmeras outras estão sendo praticadas e que o caminho da defesa do patrimônio público, da moralidade administrativa, enfim, das razões de existência do Estado e do alcance de suas metas não pode ser ilusoriamente trilhado por meio do direito penal.


CONCLUSÃO

Diante dos argumentos expostos acima relativos ao artigo 327 do Código Penal que dita o conceito de funcionário público para os fins da legislação penal brasileira pode-se concluir que muito há para ser estudado e desenvolvido pela doutrina brasileira.

É necessário um aprofundamento interdisciplinar do assunto. O conceito de funcionário público em matéria penal somente poderá ser analisado com correção quando confrontado com a matéria de fundo constitucional que o compõe. Os institutos presentes no conceito legal de funcionário público devem ser entendidos em razão de sua definição administrativista e não simplesmente definidos de forma aleatória para fundamentar uma falsa necessidade de ampliação do poder punitivo do Estado.

Não se pode analisar o estudado artigo 327 deixando de aplicar os postulados dogmáticos fruto da evolução histórica do direito penal como garantia do cidadão frente ao Estado. A confrontação com os princípios penais garantidores e com a moderna teoria do injusto penal é obrigatória no estudo dos tipos penais de crimes contra a administração pública.

Deve-se questionar a eficiência do direito penal e da disciplina imposta pelo conceito de funcionário público na lei penal como meio de defesa do patrimônio público, da moralidade administrativa e da eficiência estatal na prestação de serviços a sociedade. Existem inúmeros problemas camuflados pelo processo de criminalização dos ilícitos administrativos.

Destarte, os tipos penais de crimes contra a administração pública devem ser objeto de análise mais detida no âmbito jurídico nacional a fim de que se possam encontrar meios concretos e firmes na efetivação do Estado social brasileiro traçado no texto constitucional. Assim, dar-se-á mais um passo para que a dignidade da pessoa humana deixe de ser uma regra sem efetividade presente na ordem jurídica abstrata e se configure como direito concreto de todos.


Notas

  1. MESTIERI, João. Teoria Elementar do Direito Criminal, Parte Geral, Rio de Janeiro, edição do autor, 1990, p. 90
  2. Sobre a função do jurista na interpretação cabe destacar o seguinte ensinamento de Tercio Ferraz Jr.: "Na verdade, o propósito do jurista não é simplesmente compreender um texto, como faz, por exemplo, o historiador ao estabelecer-lhe o sentido e o movimento no seu contexto, mas também determinar-lhe a força e o alcance, pondo texto normativo em presença dos dados atuais de um problema. Ou seja, a intenção do jurista não é apenas conhecer, mas conhecer tendo em vista as condições de decidibilidade de conflitos com base na norma enquanto diretivo para o comportamento." FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito, 4ª ed., São Paulo, Editora Atlas, 2003, p. 256)
  3. A expressão direito penal democrático é utilizada neste trabalho como ligação aos estudos dogmáticos do direito penal desenvolvidos sob os postulados do Estado Democrático de Direito, especialmente a dignidade da pessoa humana. Neste contexto o direito penal não pode ser visto como meio de controle social, mas sim como posição de garantia do cidadão diante do poder punitivo do Estado.
  4. Conforme ensina Lenio Streck a hermenêutica e a crítica não se anulam, pelo contrário somam uma a outra. O trabalho criativo da hermenêutica de base gadamerniana que acaba com a relação sujeito-objeto demonstrando por meio da linguagem a relação sujeito-sujeito expõe o caráter ideológico carregado pelo texto legal. Tanto o trabalh da hermenêutica como o da teoria crítica do direito demonstram que a lei não pode ser entendida como forma pura, pretensamente neutra e imparcial em uma interpretação ahistórica e acultural, mas como fruto da ideologia e do discurso das classes dominantes que as constroem, editam e aplicam: "fazer hermenêutica jurídica é realizar um processo de compreensão do Direito. Fazer hermenêutica é desconfiar do mundo e de suas certezas, é olhar o direito de soslaio, rompendo-se com (um)a hermé(nêu)tica jurídica tradicional-objetivante prisioneira do (idealista) paradigma epistemológico da filosofia da consciência." - STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito, 8ª ed., Porto Alegre, 2009, p. 236
  5. O direito penal e o direito administrativo, ambos ramificações do direito público, estabelecem as principais regras jurídicas das relações entre Estado e cidadão, justificando o destaque no texto.
  6. COSTA JR., Paulo José da. Comentários ao Código Penal, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p. 980.
  7. MELLO, Celso Antonio Bandeira. Curso de Direito Administrativo, 14ª ed., São Paulo, Malheiros, 2002, p. 27
  8. Deve se tomar cuidado ao falar em interesse punitivo. O Estado não possui nenhum interesse punitivo, assim como não possui direito subjetivo de punir, o que existe é um poder constitucional de punir penalmente nos limites da lei.
  9. "A interpretação das leis penais, para determinar seu alcance e propor um sistema coerente de decisões às agencias judiciais, requer a incorporação de outros dados do mundo, porque a legislação penal é produto de atos do poder inseridos em uma realidade dinâmica e complexa. Sem, tais dados, o direito penal seria praticamente impossível ou quase inconcebível.
  10. Em princípio, a construção do tipo normativo de leis penais constitucionalmente admitidas (como instrumento que permita excluir as restantes, por serem inconstitucionais) impõe o conhecimento do direito constitucional e do direito internacional (em particular, do direito internacional dos direitos humanos). Por outro lado, o direito penal não pode aperfeiçoar seus conceitos sem levar em conta outras leis que lhe impõe conteúdos normativos (civis, comerciais etc)." (ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro – I, 3ª ed., Rio de Janeiro, Revan, 2003, p. 186)

  11. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 23ª ed., São Paulo, Editora Atlas, 2010.
  12. NUCCI, Guilherme de Souza.Código Penal Comentado, 7ª ed., São Paulo, RT, 2007. p. 1031.
  13. JUSTEN FILHO, Marçal.Curso de Direito Administrativo, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2010, p. 250/251.
  14. Sobre as formas extensivas e restritivas de interpretação das leis cabe destacar: "uma norma pode oferecer um horizonte interpretativo extremamente estreito, ensejando uma interpretação meramente especificadora ou declaratória (quando fixa um prazo ou estabelece uma certa idade para a prática de um ato, por exemplo) ou, ao contrário, possibilitar um significativo alargamento ou o fechamento, maior ou menor, da interpretação (por exemplo, quando contém conceitos indeterminados), possibilitando uma interpretação extensiva ou restritiva." (MELO, Carlos Antonio de Almeida. Interpretação, Hermenêutica e Horizonte Interpretativo, in Estudos de Teria Geral do Direito, org. Ivan Gueiros Curi, Juruá, Curitiba, 2006. p. 175)
  15. CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal, Parte Geral, 3ª ed., Curitiba, Lúmen Júris – ICPC, 2008, p. 65.
  16. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Vol. 4, São Paulo, Saraiva, 2004. p. 446.

Autor

  • Caio Marcelo Cordeiro Antonietto

    Caio Marcelo Cordeiro Antonietto

    Advogado Criminalista, inscrito na OAB/PR sob n. 36.917. Professor de Direito Penal do Curso de Direito da FAMEC - Faculdade Metropolitana de Curitiba. Especialista em Direito Penal e Criminologia pela UFPR-ICPC. Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pelo IBCCRIM - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANTONIETTO, Caio Marcelo Cordeiro. O conceito de funcionário público na lei penal. Uma análise do artigo 327 do Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2751, 12 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18250. Acesso em: 20 abr. 2024.