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A fertilização in vitro

uma nova problemática jurídica

A fertilização in vitro: uma nova problemática jurídica

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INTRODUÇÃO

Há pelos menos 50 anos, cientistas e clínicas do mundo inteiro trabalham ininterruptamente com um único fim: possibilitar a vitória da ciência e da técnica frente à natural impossibilidade ou dificuldade humana no ato da reprodução. Com essa labuta científico-tecnológica, avanços nesse campo da biomédica foram estrondosos e abruptos. Há pouco mais de 20 anos atrás o homem prescindia da natureza como ambiente normal da fecundação e estava apto a criar embriões in vitro. Uma tal revolução médica, se de um lado fez saltitar todos aqueles feridos da infertilidade e da impossibilidade de procriação, de outro fez soar vozes no mundo inteiro alarmantes quanto às conseqüências que tais métodos poderiam ter. E, de fato, essas vozes estavam certas. As técnicas científicas de reprodução assistida, especialmente a de Fecundação In Vitro, alimentaram tanto as intenções éticas da procriação terapêutica quanto as malignas vontades que deturparam o objetivo médico da técnica e passaram a criar um novo tipo de comércio: o de embriões. E tal fato é apenas um simples exemplo das complicações que se formaram em torno da utilidade das técnicas de Fecundação In Vitro. Ora, diante de tantas complicações, nada mais natural do que surgirem questionamentos éticos, socio-culturais, biológicos e psicológicos a respeito de tal intervenção técnica na natureza humana. E como tais questionamentos perguntam, ao final das contas, pela licitude de comportamentos e intenções humanos, esse problemas não podem absolutamente deixar de ser jurídicos.

Assim, no decorrer do trabalho, partiremos das definições técnicas da Fecundação In Vitro, suas indicações e argumentações, chegaremos aos problemas éticos, biogenéticos, psicológicos, socio-culturais e jurídicos que tal processo pode acarretar, para só então ver como nosso direito responde a tais problemas.

Esperamos, desde já, que o leitor possa inserir-se no quadro contemporâneo das indagações sobre os problemas bioético-jurídicos a respeito da matéria e que o trabalho ora apresentado dê subsídios suficientes para um conhecimento geral sobre um assunto que é, para dizer o mínimo, fascinante.

  1. A FECUNDAÇÃO IN VITRO: DEFINIÇÕES, HISTÓRICO, CLASSIFICAÇÃO

          Como é de conhecimento de todos, a fecundação é o processo através do qual um gameta masculino (espermatozóide) perfura as membranas lipoprotéicas do gameta feminino (óvulo) e combina-se com esse formando uma célula diplóide, o zigoto (com dupla carga genética), que em poucas horas inicia seu processo de divisão celular, o que já configura o desenvolvimento do embrião(1).

Fecundação Artificial é todo processo em que o gameta masculino encontra e perfura o gameta feminino por meios não naturais. Existem duas formas clássicas ou principais de Fecundação Artificial, que são a Inseminação Artificial (IA) e a Fecundação In Vitro com Embrio-Transfer (FIVET). Por ora, interessa-nos apenas esta segunda forma.

A Fecundação In Vitro consiste na técnica de fecundação extracorpórea na qual o óvulo e o espermatozóide são previamente retirados de seus doadores e são unidos em um meio de cultura artificial localizado em vidro especial.

A técnica da FIVET nasceu com a tentativa de se desenvolverem, em meios de cultura, embriões de ratos e coelhos que foram fecundados naturalmente. Esses embriões eram transferidos para o meio de cultura e, depois de crescidos, eram reimplantados no útero das fêmeas(2). Em 1959, o cientista M. C. Chang expôs com orgulho o sucesso da utilização desse método no nascimento de coelhos.

O primeiro a começar este tipo de experiência em seres humanos foi o doutro R. G. Edwards, que por volta de 1965 realizava experimentos tentando a maturação de ovócitos retirados de ovários em qualquer estágio de desenvolvimento. Concluía ele essa fase de seus trabalhos com o surpreendente comentário:

"O desafio maior deste trabalho está na perspectiva de fertilizar óvulos humanos. A Fecundação In Vitro é fácil. Todavia, em breve seremos capazes de ter embriões humanos nas primeiras fases de desenvolvimento. A extraordinária quantidade de ovócitos que se pode obter de um ovário poderá permitir definitivamente fazer crescer embriões humanos in vitro e mesmo controlar algumas desordens genéticas do homem" (3)

Parece que Edwards estava antecipando a grande surpresa que estava por vir...

Após Numerosos estudos, o cientista e sua equipe viram nascer, em1978, no Oldham General Hospital, em Manchester, Luise Brown, o primeiro bebê de proveta a vir à luz na história da humanidade. O mundo, então, ficava perplexo diante do poderio tecnológico a que tinha chegado a Ciência. O homem, finalmente, estava apto a vencer a barreira natural da infertilidade.

Após o boom da criação de Edwards, não tardou para que esse fizesse escola. Em, 1980, na cidade de Melbourne, Austrália, já registravam-se 13 casos de gravidez de um total de 103 pacientes tratados pelo pela técnica de Fecundação In Vitro. Entre 86 e 88, só na França, aproximadamente 4.000 mulheres engravidaram após ter seus embriões criados através desse processo.

Dado esse breve histórico sobre o manuseio da FIVET, passemos então a classificar os seus dois tipos principais. Existem a Fecundação In Vitro homóloga, que é aquela feita com o óvulo e o esperma provenientes do próprio casal de quem o embrião vai ser filho, e a do tipo heteróloga, que é aquela em que pelo menos um dos gametas utilizados na criação do embrião provem de um doador externo ao casal.

Na verdade, como nos mostra Maria Jesús Moro Almaraz, várias são as situações possíveis na FIVET:

"Filho do óvulo e sêmen do casal sob tratamento, gestado pela própria mulher; filho do óvulo da mulher do casal, gestado por ela , e de sêmen de doador; filho de gametas do casal, mas gestado por uma segunda mulher; filho de óvulo da mulher do casal , esperma de um doador e gestado por outra mulher; filho de óvulo doado, sêmen do companheiro e gestado pela mulher do casal; filho de óvulo doado, sêmen do companheiro e gestado por uma terceira mulher; filho de óvulo doado pela gestante e sêmen do varão do casal; filho de óvulo e sêmen de doadores, gestado pela mulher do casal" (4)

Vimos, no texto acima, que além da figura de um doador, pode vir a fazer parte de uma concepção e gestação após FIVET a figura de uma gestante estranha ao casal, que constitui a figura da "mãe substituta". Esse fato, juntamente com as complexas combinações e possibilidades fáticas acima relatadas, ajudam na formação dos diversos questionamentos que envolvem a problemática da Fertilização In Vitro. Antes de se entrar precisamente na análise dessas questões, ainda fazem-se necessárias algumas considerações técnicas.


2. TÉCNICA E INDICAÇÕES DA FECUNDAÇÃO IN VITRO

Em poucas palavras, a FIVET é indicada quando ou a mulher ou o homem sofre de infertilidade grave e que outras técnicas mais simples, como a Inseminação Artificial, já não resolvem. Essa infertilidade ocorre na mulher principalmente quando essa sofre de esterilidade de origem tubária. O óvulo, por não poder atravessar as trompas, não pode ser fecundado por um espermatozóide, nem mesmo se esse tiver sido introduzido por meio artificial ( como acontece com a IA); já no caso da infertilidade masculina, os grandes vilões da potência reprodutora dos machos são a aspermia ( quando o indivíduo não produz espermatozóides) e a oligospermia ( quando a produção de esperma é insuficiente). Assim, uma vez constatadas qualquer uma dessas infertilidades, ou mesmo ambas, sugere-se aos pacientes, questões morais a parte, o recurso à Fecundação In Vitro.

Antes de ocorrer o tratamento propriamente dito, o médico passa a averiguar se o casal tem condições de sustentar o programa da FIVET. Para isso, passa a examinar cada um dos parceiros em suas condições biológicas, reprodutivas e psicológicas.

Na mulher, logo realiza-se uma Laparoscopia(5) na região ovariana para se saber se os ovários são suscetíveis de fornecer óvulos sadios para a fecundação. Depois, verifica-se a curva da variação da temperatura basal da paciente por três ciclos no intuito de saber se sua ovulação é regular ou não. Em se constatando a impossibilidade de essa mulher poder doar óvulos para uma reprodução assistida in vitro, então deve ser aberta a possibilidade de ela recorrer a uma doadora.

No homem, os testes se concentram basicamente no líquido seminal deste. É durante esses testes que se vai descobrir as possibilidades de seus gametas virem a fecundar um óvulo. No decorrer desse período de exames, quase sempre aproveita-se para se congelar esperma para um possível uso futuro. Assim como acontece com as mulheres, caso seja verificada a impossibilidade desse homem vir a ser pai, pode ser oferecida a ele a possibilidade de se recorrer a um doador.

Contudo, se constatado a possibilidade de ambos os gametas estarem aptos à fecundação, então passa-se ao processo propriamente dito. Primeiramente, a paciente passa a ser alvo de uma terapia hormonal que induza o acontecimento de sua ovulação. Durante todo esse tempo em que ela está sendo alvo da referida carga de hormônios, sua reações bioquímicas são constantemente monitoradas através de Laparoscopias, testes de ultra-som, exames de sangue e urina a cada três horas e exames dos líquidos cervical e vaginal. Tudo isso para se saber a hora exata da ovulação, ou, o "timing".

Chegada a hora, uma agulha de aço de 23 cm de comprimento e diâmetro interno de 2mm é introduzida por via transcervical até atingir os ovários, quando se dá a punção do folículo (óvulo imaturo). Este é levado ao meio de cultura (vidro), previamente preparado e que tenta reproduzir ao máximo o ambiente natural das trompas.

Uma vez no meio de cultura, o óvulo fica apenas à espera do espermatozóide . Este é colhido, geralmente por meio da masturbação, cerca de uma hora e meia antes de ocorrer a fecundação e, chegada a hora de sua utilização, é levado ao meio de cultura em grandes quantidades para ser derramado sobre o óvulo já devidamente maduro.

Caso a fecundação venha a ter sucesso, resta realizar a transferência do embrião para o útero da mãe (substituta ou não) e torcer para que este se implante definitivamente, o que caracteriza a concepção.

Esta transferência se faz também por via transcervical ou transuterina, utilizando-se de cateter ou tubos coaxiais.

Quanto à probabilidade de sucesso de se obter uma gravidez e ter um filho utilizando-se da técnica de Fecundação In Vitro, sabe-se que os casos levados até o fim, com o nascimento efetivo do bebê, apenas se verificam em 6,7 % dos casos. Porém, se a exigência enfocada for apenas o início da gravidez, essas chances de sucesso aumentam para 17,1%(6).


3. AS QUESTÕES ÉTICAS DA FECUNDAÇÃO IN VITRO

Toda a exposição sobre a técnica da Fecundação In Vitro foi necessária pois é a partir dela que se verificam e se entendem os possíveis desdobramentos ou conseqüências que o processo pode ter e as importantes questões éticas que daí se insurgem.

O primeiro grande questionamento sobre a eticidade desse procedimento médico é quanto ao fato de se ocorrer a fecundação fora do corpo da mãe, o que, para alguns, contraria a lei natural da reprodução. E é por acreditar que tal fato acontece que a maior opositora às técnicas de reprodução assistida, especialmente da FIVET, é a Igreja Católica.

De fato, a base teórica em que se firma a Igreja para expor suas posições a respeito da correção dos comportamentos quanto à reprodução é a seguinte: para a Igreja, o ato conjugal é formado por dois momentos que se implicam, completam-se e permitem-se reciprocamente. São os momentos da união e da procriação. Assim, apenas no amor espiritual de dois seres sexualmente opostos e unidos no indissolúvel matrimônio é que se torna legítima a prática procriadora. Juridicamente falando, é como se a procriação encontrasse seu fundamento de validade no matrimônio, que é realizado e fundado pelo amor dos cônjuges sob a graça divina. Tudo aquilo, portanto, que viesse a quebrar tal harmonia e união desses dois pólos da conjugalidade, o unitivo e o procriador, seria e é imoral. Agora torna-se bastante óbvio o porquê de a Igreja proibir a prática da Fecundação In Vitro, mesmo a homóloga. Nesta técnica, o embrião não nasce do amor carnal e espiritual dos cônjuges unidos pelo casamento sagrado, mas por meio de uma mão cientista esterilizada e de um vidro inerte. Além do mais, existe um outro ser no ato procriador, a figura do médico, que, na visão católica, quebra a intimidade inviolável do casal.

Para que o leitor não fique apenas na imaginação teórica e se confirme o que foi dito, é necessário ver o que diz Paulo VI, em sua "Humae Vitae":

"Essa doutrina, muitas vezes expressa pelo magistério da Igreja, está fundamentada na ligação inseparável, que Deus quis e que o homem não pode romper por sua iniciativa (o grifo é nosso), entre os dois significados do ato conjugal: o significado unitivo e o significado procriador. De fato, por sua íntima estrutura, o ato conjugal, enquanto une os esposos por um vínculo profundíssimo, torna-os capazes de geração de vidas novas, seguindo as leis inscritas no próprio ser do homem e da mulher..." (7)

Felizmente a Igreja Católica grita praticamente sozinha na defesa de tais teses...

Quanto à FIVET homóloga, os maiores questionamentos éticos que dominam os estudiosos e a comunidade internacional é quanto ao destino dos embriões fecundados e não utilizados para concepção.

Como vimos na parte reservada aos procedimentos técnicos da Fecundação In Vitro, a mulher geralmente tem sua ovulação estimulada por hormônios. E esses hormônios muitas vezes são intencionalmente administrados para provocar uma ovulação múltipla. Tal ovulação permite aos médicos prepararem mais de um embrião para no caso de algum imprevisto vir a ocorrer no momento da concepção. Contudo, logo vem a seguinte pergunta: o que fazer com a reserva de embriões que se tornem desnecessários para a concepção? Tal situação de reserva de embriões ganha contornos mais sérios quando se sabe que atualmente é possível se congelar embriões para usos futuros do casal, ou tão somente da esposa, caso seu parceiro venha a falecer. Porém, também é de conhecimento de todos que muitos bancos de embriões só permitem a reserva destes por um certo período de tempo, como ocorre na Inglaterra, onde o prazo máximo é de cinco anos. Assim, o que fazer com os embriões "fora do prazo de validade"?

Muitas vezes a resposta a essa pergunta, do ponto de vista prático, não é tão agradável. Na Inglaterra, recentemente, alguns milhares de embriões que não tinham mais "utilidade" foram jogados no lixo. Contudo, para muitas opiniões, tal prática corresponde a uma "mentalidade abortiva", fato que suscita a problemática da necessidade de ser preservada a vida do embrião. A própria Academia de Doutores de Espanha asseverou que "o concebido não é uma parte do organismo materno senão um efetivo ser humano, perfeitamente individualizado e que, portanto, não pode ser objeto de disposição nem sequer de seus progenitores. Ninguém, portanto, tem o direito a destruí-lo" (8).

E o que dizer se tais embriões "inúteis" forem utilizados para experiências genética? Não se estaria reificando o ser humano em sua etapa embrionária de vida?

Note-se, daí, a inumerável quantidade de questionamentos que se levantam a respeito da destruição de embriões e de sua utilização para experimentos genéticos, bem como os possíveis desdobramentos teóricos que tais questionamentos podem provocar(9).

As possibilidades de discussões éticas ganham maior amplitude se passarmos a considerar as conseqüências advindas da FIVET heteróloga. Isso pois, nesta espécie de Fecundação In Vitro é utilizado no mínimo um gameta proveniente de um doador externo ao casal. E tal fato alimenta, como sabemos, a criação de bancos de esperma e, como a FIVET homóloga, a de bancos de embriões.

Seria correto a manutenção de tais entidades? É certo recorrer a doadores para se ter um filho que geneticamente não vai ser seu? Para dificultar ainda mais a resposta do leitor, informa-se que por causa de tal prática, a de se congelar gametas e embriões, tem-se verificado a criação de um novo tipo de comércio pela Internet: o de óvulos de modelos consideradas belíssimas pelo padrão estético ocidental.

O maior argumento que se levanta para provar o caráter anti-ético de se recorrer a gametas e embriões de terceiros é o fato de que essa prática fere a liberdade e dignidade do embrião e do indivíduo dele resultante, pois este teria sua origem biológica diferente da sua origem social. Contudo, tal argumento não tem sido muito eficiente para sensibilizar as autoridades no sentido de regulamentarem essa questão e enquanto muitos alardeiam, outros compram livremente o padrão genético de suas crias.

Um outro problema moral que advém como conseqüência da técnicas da FIVET heteróloga é, como já pudemos inferir no exemplo da venda de óvulos de modelos pela Internet, a prática da Eugenia, ou seja, a escolha de características fenotípicas do embrião como cor dos cabelos, tipo de pele, cor dos olhos, etc. Para se ter uma idéia, fala-se da existência de um banco de gametas na Califórnia que é reservado a doadores intelectualmente superdotados. Mas uma tal prática não seria valorar como melhor determinado tipo humano, em detrimento dos outros, sem nenhuma fundamentação racional? Em palavras mais simples, qual a fundamentação do juízo que diz ser os olhos do tipo azul mais belos ou melhores que os do tipo preto? Será que quem paga por um "superesperma" tem direito a escolher as características de seu filho?

Por fim, resta mostrar as indagações referentes a uma última conseqüência da Reprodução In Vitro: a proliferação das "mães substitutas" . A esse respeito, muito se tem questionado sobre o caráter ético de tais figuras. Eis aqui as principais dúvidas e problemas levantados sobre o assunto: Será que é correto permitir que mulheres passem a fazer as vezes de gestante substituta de outras, muitas vezes por interesses financeiros? Não seria mais uma vez intervir na liberdade do feto que passará 9 meses se nutrindo biológica e afetivamente por uma mulher que não será sua mãe? O que é, diante dessas novas possibilidades, ser mãe?

Essas são os principais, para não dizer mais conturbados, problemas éticos referentes à prática da FIVET. Ora, tais questões, como vimos, não ficam, apenas adstritas aos campo teórico mas projetam-se diariamente no cotidiano das famílias, dos hospitais e, principalmente, dos tribunais. O direito, como o mais especializado mecanismo de controle social, deve dar respostas para todos os problemas da realidade, inclusive aqueles relacionados à Ética da Vida ou Bioética. Assim, diante de tantas conseqüências problemáticas e complexas envolvendo a vida e condutas humanas, o direito deve valorar e normar tais práticas no intuito de regulamentá-las sob o manto da justiça eqüitativa. Dessa forma, todos os questionamentos supracitados batem à porta do direito e por isso mesmo elevam-se a um outro âmbito social: o da normatividade jurídica. Porém, antes serem vistas as conseqüências jurídicas de tais problemas e como o Direito brasileiro encara tais questões, serão rapidamente expostas as problemáticas da FIVET do ponto de vista psicológico, socio-cultural e biogenético. Dessa forma, o leitor verá com mais ênfase a complexidade jurídica que tal matéria possui.


4. OS PROBLEMAS PSICOLÓGICOS, BIOGENÉTICOS E SOCIO-CULTURAIS RELACIONADOS À FIVET.

As principais conseqüências psicológicas ocorrem por meio da espécie heteróloga da Fecundação In Vitro. O fato de neste processo se incluírem gametas de doadores externos ao casal, quebra, necessariamente, a paridade e vínculo entre conjugalidade e paternidade. Psicólogos e psiquiatras têm constantemente constatado problemas de ordem afetiva dentro da família justamente pela quebra do vínculo acima referido e pelo sentimento de inferioridade que passa a dominar aquele membro do casal que não é progenitor biológico do filho. Este passa a se sentir menos "pai" ou "mãe" do que deveria sentir-se. E tal sentimento exterioriza-se através de complicações nas relações familiares, em brigas interconjugais, ciúmes parentais e até mesmo no relacionamento e tratamento recíprocos pai-filho ou mãe-filho.

As mesmas conseqüências são vistas quando um filho nasce por meio de uma "mãe substituta" ou por uma "mãe de aluguel". Muitas vezes, o fato de a mulher do casal não ter tido a gestação de seu próprio filho não cria o vínculo afetivo que tal período normalmente gera entre a mãe e o filho. Este, por sua vez, por ter passado nove meses sofrendo as influências sentimentais, físicas e químicas de uma outra mulher que não sua mãe, acaba por ter um inconsciente que muitas vezes é causa de brigas e conflitos dentro da família.

No tocante à questões biogenéticas, o maior problema que se levanta é quanto à possibilidade que tem um indivíduo de, após doar seu esperma, ter seus gametas presentes em várias fecundações diferentes, o que acarretaria um descontrole genético quanto a pessoas consangüíneas de pai que nem mesmo se conhecem. Isso aumenta o risco de proliferação de doenças genéticas e também a possibilidade de haver casamentos de consangüíneos que, quase sempre, gera uma prole geneticamente problemática.

A questão socio-cultural que se impõe decorre da possibilidade da prática da Eugenia. A escolha de características fenotípicas dos bebês poderia levar ao acirramento dos preconceitos e discriminações, além de trazer a violência a que está associada esses termos. E tal aconteceria pois certamente haveria o prevalecimento de um padrão racial sobre outros no processo de escolha dos padrões genéticos. Em tal seleção, portanto, acham-se implícitos juízos de valor preconceituosos que seriam inevitavelmente transferidos para as relações sociais.

Assim, diante de mais três problemáticas variáveis, a psicológica, a socio-cultural e a biogenética, configura-se mais fortemente a pergunta: Deve-se permitir a prática indiscriminada da técnica da Fecundação In Vitro? Até onde essa tecnologia médica pode ser usada?


5. OS DESDOBRAMENTOS JURÍDICOS DA FECUNDAÇÃO IN VITRO.

Enfim, veremos como a problemática da FIVET atinge o mundo jurídico e cria situações inusitadas que precisam de resposta imediata. Tais situações jurídicas são da mais alta importância devido à reiterada incidência que esses acontecimentos têm tido nos últimos anos, desafiando as capacidades julgadoras dos juízes do mundo inteiro.

Uma grande polêmica que se cria a partir da Fecundação In Vitro, diz respeito ao destino dos embriões formados e que não foram utilizados para a concepção. Como sabemos, em um programa que utilize essa técnica de reprodução assistida, muitas vezes o médico cria vários embriões do casal para suprir em eventual problema que ocorra com o embrião selecionado para o processo ou mesmo para ser utilizado em futuras concepções. Contudo, tal fato pode acarretar problemas jurídicos incríveis. Supondo que o casal resolva congelar embriões para um futuro uso e que, repentinamente, os membros do casal se divorciem. , quem terá a "tutela" dos embriões? Será que a mãe tem direito de implantar alguma de suas reservas sem o consentimento do marido, ou será que este, caso não permita o referido implante, tem o direito de ver os embriões destruídos?

Para que não se fique pensando que o que foi relatado é uma hipótese sem raízes reais, veja-se algumas repercussões práticas sobre o assunto.

Em 1992, na Suprema Corte do Tennesse, EUA, o juiz titular reconheceu ao cônjuge marido divorciado o direito de não procriar e de ver exterminados os embriões que sua mulher queria ver preservados para futura concepção.

Uma outra posição, ainda mais controversa, tomou palco na Suprema Corte de Nova Iorque em 1995, quando o juiz concedeu para Maureen Kass, divorciada desde 93 do marido, o direito de posse dos embriões congelados produtos de óvulos seus fecundados por esperma do seu ex-marido. O magistrado, Anthony Roncalho, utilizou o seguinte raciocínio:

"o fato seja simples, uma vez que os direitos do cônjuge varão terminam com a ejaculação. Em minha opinião, não há qualquer razão legal , ética ou lógica para que uma Fertilização In Vitro(10) sirva de fundamento a qualquer direito adicional reconhecível ao marido" (11)

Além disso, a advogada da Sra. Kass, em entrevista à imprensa, divulgou que caso sua cliente venha a implantar os embriões, irá até demandar pagamento de pensão alimentícia do Sr. Kass!

Assim, nota-se como a questão não é apenas hipotética mas domina, em sua essência, a realidade dos fatos.

Outra problemática que se apresenta ao mundo jurídico diz respeito ao fato de se recorrer a um doador ou doadora de gametas para realizar a fecundação. Ora, se um casal recorre a um banco de esperma ou mesmo de embriões, de quem será a responsabilidade jurídica caso o feto venha a nascer "defeituoso"? Terá a receptora ou receptores do "produto" o direito de não aceitá-lo caso ache-se problemático?

Também , nessas situações de Fecundação In Vitro heteróloga surge o problema jurídico da identidade de uma criança nascida por essa técnica de reprodução assistida. Como esta criança não tem sua origem biológica correspondendo a sua origem social, será que ele teria o direito de conhecer suas verdadeiras raízes biogenéticas? Será que pode ser dada ao sujeito a pretensão de conhecer o doador ou doadores dos gametas ele é fruto? E em um caso em que um mesmo indivíduo tiver tido seu esperma presente em várias fecundações, será dado o direito acima referido a todos aqueles que foram gerados a partir de seu gameta?

Caso se dê uma tal autorização para o filho conhecer seu (s) pai(s) biológico (s), e em se constatando que esse (s) é/são possuidor (es) de uma admirável herança , terá o filho direitos sucessórios sobre tal patrimônio?

Um último bloco de questões jurídicas que surgem através da FIVET diz respeito à possibilidade de um casal recorrer à "mãe substituta" para ter em gestação o seu embrião. Nesse âmbito, sabe-se que muitas vezes a mãe substituta cria com o feto em seu ventre um vínculo afetivo muito forte. Por isso mesmo, episódios já houve em que tal personagem recusou-se a entregar o nascido para os pais que a "contrataram". O que fazer nesses casos? Deve-se dar a tutela do bebê para quem teve sua gestação ou para os seus pais genéticos?

Para José Renato Nalini, o que está ocorrendo a partir dessa questão oriunda da prática da FIVET é a formação de novos conceitos de paternidade e de maternidade. Veja-se o que ele diz a respeito: "A mãe, tradicionalmente, era a mulher que gerou e, após a gestação, deu à luz o filho. Hoje se admite já um conflito de maternidades, quando se dissocia o elemento genético do biológico" (12). Completa ainda essa afirmação Francisco Lledó Yagüe, ao dizer que se pode falar em "maternidade genética ( quem aporta o óvulo) e maternidade biológica (quem suporta a gestação). Evidentemente, a mulher pode haver dado à luz o filho em questão e não ser sua mãe genética (ao haver-se implantado um óvulo alheio); não obstante, biologicamente não cabe dúvida de que será sua mãe" (13). Tais conflitos em termos de maternidade e paternidade desembocam, inevitavelmente, em questões jurídicas das mais diversas naturezas.

Dessa forma, foi visto uma complexa rede de perguntas e questionamentos éticos, psicológicos, culturais e jurídicos que, como vimos, requerem soluções normativas que regulamentem suas implicações. Ver-se-á, agora, como o legislador pátrio se posicionou diante de tais conflitos e questões, ou seja, como essas problemáticas são respondidas à luz de nosso direito.


6. O POSICIONAMENTO DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO QUANTO ÀS IMPLICAÇÕES DA FIVET

As técnicas de reprodução assistida, em especial a Fertilização In Vitro, são de utilização bastante recente no cenário nacional. Isso posto, não há lei específica que regule por completo todas as implicações que estas técnicas podem acarretar. Contudo, dada a importância da matéria, existem algumas disposições normativas que tentam, dentro de seus limites, controlar as práticas médicas relacionadas ao tema. Tais disposições encontram-se reunidas basicamente em três diplomas: o Código de Ética Médica, a resolução do Conselho Federal de Medicina CFM n0 1.358/92 e a lei 8.974/95 que disciplina os processos de manipulação genética.

O Código de Ética Médica, de 1988, apenas vagamente disciplina a questão. E isso se verifica lendo alguns de seus artigos referentes à matéria:

Art. 42. "É vedado ao médico praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação";

Art. 43. "É vedado ao médico descumprir legislação específica nos casos de transplantes de órgãos e tecidos, esterilização, fecundação artificial ou abortamento";

Art. 68. "É vedado ao médico praticar fecundação artificial sem que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecido sobre o problema" (14).

Como foi visto, em pouco ajuda tais disposições frente a complexidade dos problemas surgidos na prática. Uma abordagem bem mais completa sobre o assunto e suas conseqüência pode ser visto na Resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, que foi publicada no Diário Oficial e que trata das normas para a utilização das técnicas de Reprodução Assistida. Tudo o que foi normado a esse respeito, serviu da mesma forma e na mesma medida para a Fertilização In Vitro, por ser esta um tipo ou espécie daquela. Abaixo, tal Resolução é transcrita na íntegra, para que se perceba que muitos dos questionamentos feitos anteriormente encontram respostas normativas.

          DIÁRIO OFICIAL SEÇÃO I 16053

          Resolução CFM 1.358 de 11 de novembro de 1992

Art. 1º - Adotar as NORMAS ÉTICAS PARA A UTILIZAÇÃO DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA, anexas à presente RESOLUÇÃO, como dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos.

Art. 2º - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

IVAN DE ARAÚJO MOURA FÉ
Presidente

HERCULES SIDNEI PIRES LIBERAL
Secretário - Geral

NORMAS ÉTICAS PARA A UTILIZAÇÃO DAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA

I - PRINCÍPIOS GERAIS

1 - As técnicas de Reprodução Assistida (RA) têm o papel de auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes para a solução atual de infertilidade.

2 - As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível descendente.

3 - O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis e doadores. Os aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, assim como os resultados já obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento informado será em formulário especial, e estará completo com a concordância, por escrito, da paciente ou do casal infértil.

4 - As técnicas de RA não devem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer.

5 - É proibida a fecundação de oócitos humanos, com qualquer outra finalidade que não seja a procriação humana.

6 - O número ideal de oócitos e pré-embriões a serem transferidos para a receptora não devem ser superior a quatro, com o intuito de não aumentar os riscos já existentes de multiparidade.

7 - Em caso de gravidez múltipla, decorrente do uso de técnicas de RA, é proibida a utilização de procedimentos que visem à redução embrionária.

          II - USUÁRIOS DAS TÉCNICAS DE RA

1 - Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado.

2 - Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou do companheiro, após processo semelhante de consentimento informado.

          III - REFERENTE ÀS CLÍNICAS CENTROS OU SERVIÇOS QUE APLICAM TÉCNICAS DE RA

As clínicas, centros ou serviços que aplicam técnicas de RA são responsáveis pelo controle de doenças infecto-contagiosas, coleta, manuseio, conservação, distribuição e transferência de material biológico humano para a usuária de técnicas de RA, devendo apresentar como requisitos mínimo:

1 - Um responsável por todos os procedimentos médicos e laboratoriais executados, que será, obrigatoriamente, um médico.

2 - Um registro permanente (obtido através de informações observadas ou relatadas por fonte competente) das gestações, nascimento e mal formações de fetos ou recém-nascidos, provenientes das diferentes técnicas de RA aplicadas na unidade em apreço, bem como dos procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e pré-embriões.

3 - Um registro permanente das provas diagnósticas a que é submetido o material biológico humano que será transferido aos usuários das técnicas de RA, com a finalidade precípua de evitar a transmissão de doenças.

          IV - DOAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES

1 - A doação nunca terá caráter lucrativo ou comercial.

2 - Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.

3 - Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.

4 - As clínicas, centros ou serviços que empregam a doação devem manter, de forma, permanente, um registro de dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores.

5 - Na região de localização da unidade, o registro das gestações evitará que um doador tenha produzido mais que 2 (duas) gestações, de sexos diferentes, numa área de um milhão de habitantes.

6 - A escolha dos doadores é de responsabilidade da unidade. Dentro do possível deverá garantir que o doador tenha a maior semelhança fenotípica e imunológica e a máxima possibilidade de compatibilidade com a receptora.

7 - Não será permitido ao médico responsável pelas clínicas, unidades ou serviços, nem aos integrantes da equipe multidisciplinar que nelas prestam serviços, participarem como doadores nos programas de RA.

          V - CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES

1 - As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozóides, óvulos e pré-embriões.

2 - O número total de pré-embriões produzidos em laboratórios será comunicado aos pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco, devendo o excedente ser criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído.

3 - No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los.

          VI - DIAGNÓSTICOS E TRATAMENTO DE PRÉ-EMBRIÕES

As técnicas de RA também podem ser utilizadas na prevenção e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias quando perfeitamente indicadas e com suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica.

1 - Toda intervenção sobre pré-embriões "in vitro", com fins diagnósticos, não poderá ter outra finalidade que a avaliação de sua viabilidade ou detecção de doenças hereditárias, sendo obrigatório o consentimento informado do casal.

2 - Toda intervenção com fins terapêuticos, sobre pré-embriões "in vitro", não terá outra finalidade que tratar uma doença ou impedir sua transmissão, com garantias reais do sucesso, sendo obrigatório o consentimento obrigatório do casal.

3 - O tempo máximo de desenvolvimento de pré-embriões "in vitro" será de 14 dias.

          VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO ( DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO)

As Clínicas, Centros ou Serviços de Reprodução Humana podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética .

1 - As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos a autorização do Conselho Regional de Medicina.

2 - A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.

Através da análise da Resolução acima, pode-se perceber que o Conselho Federal de Medicina procurou responder a vários dos principais problemas decorrentes das práticas de reprodução assistida, entre as quais se encontra a de Fertilização In Vitro. Apesar disso, outras questões jurídicas importantíssimas não foram resolvidas pela Resolução, até porque o seu órgão criador, o referido Conselho, não tinha competência para tal. É assim que fica sem resposta, por exemplo, o problema do direito ou não de herança caso o filho, produto de uma fecundação artificial, conheça seu pai genético. Acha-se que uma solução inteligente para o caso seria a de estender, por analogia, o tratamento jurídico que é dado ao menor adotado, pela lei n0 8.069/90, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e que no caput de seu artigo 41 expressa o seguinte:

Art. 41. "A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com os pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais".

Dessa forma, o filho fruto uma Fertilização In Vitro heteróloga se desligaria de qualquer vínculo, inclusive os sucessórios, com seu (s) pai (s) genético (s) que não tivessem a sua guarda.

Também não foi dada resposta ao problema que se cria caso a mãe substituta, figura permitida de acordo com as exigências especificadas na Resolução, nega-se a entregar o nascido aos requerentes. Acha-se que, em se permitindo tal prática, a relação entre a mãe substituta para com os requerentes do filho deva se expressar pela forma de um contrato, não oneroso, de prestação de serviço. Assim, ficariam delimitadas as devidas posições das partes nesta relação.

Finalmente, resta verificar o que reza a Lei 8. 974/95, que regula o uso das técnicas de engenharia genética, a respeito das implicações causadas pela Fertilização In Vitro.

Como era de se esperar, a referida Lei, por não ter por objeto principal nenhuma das técnicas de reprodução assistida, pouco contribuiu para a regulamentação dos problemas oriundos da FIVET. Esse pouco reflete-se na conjunção de dois artigos dessa disposição normativa: os artigos 8º e 13, em seus respectivos incisos IV e III. Antes de mais nada, faz-se necessário ver o que rezam tais artigos e incisos:

Art. 8º . É vedado nas atividade relacionadas a OGM(15):

(...)

IV - A produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível.

Art. 13. Constituem crimes:

(..)

III - A produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível.

Pena - reclusão de seis a vinte anos.

Vistos esses elementos normativos, pode-se perceber que se eleva à categoria de crime toda manipulação de embriões que não tenha por finalidade a reprodução imediata. Ratifica-se, implicitamente, a quinta norma ética da parte dos Princípios Gerais da Resolução do Conselho Federal de Medicina, citada anteriormente, proibindo a reificação do embrião. Assim, a Lei 8.974/95, no pouco que ajuda para regulamentar as implicações resultantes da prática da Fecundação In Vitro, o fez numa forma e sobre um tema especiais: o do destino de embriões humanos.


7. CONCLUSÃO

Após verificarmos a quantidade e a complexidade dos problemas fáticos relacionados à FIVET, além da ausência de legislação específica que regule a matéria, uma conclusão é bastante lógica: o juiz brasileiro encontra-se praticamente órfão de disposições normativas para julgar os casos em que as problemáticas expostas durante o trabalho se encontrem presentes. E a situação torna-se mais grave quando se tem a notícia de que em nossas principais Casas Legislativas, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados, não há sequer um único projeto para se regulamentar juridicamente as implicações e utilizações das técnicas de Reprodução Assistida, em especial da Fertilização In Vitro.

Tendo em vista o que foi dito acima, é uma pena que as nossas normas éticas contidas na Resolução do Conselho Federal de Medicina, de uma abordagem quase total sobre a matéria, não impliquem, no caso de seu descumprimento, sanções penais, mas no máximo sanções administrativas. Além disso, como já foi abordado, o órgão redator da Resolução, o já referido Conselho, não tinha nem tem competência para legislar sobre todas as esferas da realidade a que se alcança as conseqüências da FIVET, mas tão somente aquelas que disserem respeito à moralidade das ações médicas. E é por isso que muitas das conseqüências fáticas da utilização dessa técnica ainda se encontram sem tratamento normativo adequado. Onde estão, por exemplo, os textos legais que regulam os direitos dos trazidos ao mundo pelos diversos métodos artificiais? Quando começaram estes a serem sujeitos de direito?

E diante de um sem número de perguntas complexas, como as que foram mencionadas acima, pensa-se logo na situação do juiz. Em que deve este se prender para julgar alguma das situações fáticas relacionadas com a matéria, já que nossa Lei quase nada determina sobre assunto?

Assim como ocorreu em outros países, quando os juízes, ao serem chamados a decidir sobre casos conseqüentes da utilização das diversas formas de Reprodução Assistida, utilizaram-se para isso dos Elementos de Integração do direito, acha-se que os julgadores pátrios também devem recorrer à Analogia, aos Princípios Gerais de Direito, e, principalmente, à Eqüidade. Assim, o que deve imperar no momento de se decidir sobre essas questões, é o bom senso e o sentimento de justiça eqüitativa que, auxiliada por elementos técnicos da Ciência Jurídica(16), permitirão ao juiz proferir a melhor sentença para o caso concreto.

Além disso, espera-se que o nosso legislador possa sensibilizar-se quanto a importância de uma regulamentação completa da matéria e que com isso crie Leis eficientes que protejam a sociedade de conseqüências nocivas advindas da utilização das conquistas científicas no campo da reprodução, sem, contudo, impedir seu desenvolvimento técnico.


NOTAS

  1. Até os 3 meses de desenvolvimento, o nascituro recebe o nome de embrião. A partir daí, ele passa a chamar-se feto.
  2. Sobre esse assunto, ver Élio SGRECCIA, Manual de Bioética, p. 421.
  3. Idem, Ibidem, p. 422.
  4. Maria Jesús Moro ALMARAZ apud José Renato NALINI, Ética Geral e Profissional, p. 116.
  5. Técnica de Cirurgia em que o cirurgião, fazendo cortes na altura do baixo ventre, introduz no organismo da paciente, além do bisturi, um instrumento contendo uma microcamêra que reproduz o local da cirurgia em vídeo, por onde o médico se orienta em seu trabalho.
  6. Dados retirados da obra Manual de Bioética, p. 427.
  7. Paulo VI, Encíclica Humae Vitae, n. 12.
  8. José Renato NALINI, Ética Geral e Profissional, p.117.
  9. O leitor deve lembrar que nosso objetivo não é responder a nenhum dos questionamentos que se levantam sobre as conseqüências da técnica da Fertilização In Vitro, mas apenas levantá-los, expô-los, para que ao final, possa-se ver como o nosso direito legisla a respeito.
  10. Sinônimo de Fecundação In Vitro.
  11. João MESTIERI, Revista Consulex, p. 43.
  12. José Renato NALINI, Ética Geral e Profissional. p. 112.
  13. Francisco Lledó YAGÜE apud José Renato NALINI, Ética Geral e Profissional. p. 112.
  14. José Augusto VALLE et al., Medicina Legal Para Não Legistas, p. 290 - 291.
  15. A sigla OGM significa Organismo Geneticamente Modificado, que um dos objetos de regulamentação da lei.
  16. Como por exemplo os ensinamentos da Hermenêutica atual, que primam pela finalidade social da Lei e pelo bem comum.

BIBLIOGRAFIA

BRASIL, Lei n0 8.974, de 5 de janeiro de 1995. Regulamenta os incisos II e V do artigo 225 da Constituição Federal, estabelece normas para uso das técnicas de engenharia genética (...) prov. Diário Oficial da União, Brasília, p. 337, 6 jan.1995.Col.1.

BRASIL. Resolução n0 1.358/92, de 11 de novembro de 1992. Adotar as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, n. 16053, p. 17, 12 nov. 1999. Seção I.

MESTIERI, João. Embriões. Revista Consulex. Brasília, v. 1, n. 32, p. 40-44, ago/1999.

MONTEIRO, Antonio Carlos Cesaroni (coord.) et al. Medicina Legal para Não Legistas. Campinas: Copola Livros, 1998.

NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. v. 1. Trad. Orlando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 1996.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRAZÃO, Alexandre Gonçalves. A fertilização in vitro: uma nova problemática jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 42, 1 jun. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1850. Acesso em: 25 abr. 2024.