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O controle de constitucionalidade das medidas provisórias

O controle de constitucionalidade das medidas provisórias

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1. Considerações Preliminares

Nenhuma dúvida subsiste sobre a admissibilidade do controle abstrato em relação às medidas provisórias. O Supremo Tribunal Federal tem concedido inúmeras liminares com o propósito de suspender a eficácia dessas medidas enquanto ato dotado de força normativa, ressalvando, porém, a sua validade enquanto proposição legislativa suscetível de ser convertida ou não em lei.

Não se questiona, diante da jurisprudência tradicional do Tribunal que, rejeitada expressamente a medida provisória ou decorrido in albis o prazo constitucional para sua apreciação pelo Congresso Nacional, há de se ter por prejudicada a ação direta de inconstitucionalidade.

Igualmente pacífico se afigura o entendimento segundo o qual "não prejudica a ação direta de inconstitucionalidade material de medida provisória a sua intercorrente conversão em lei sem alterações, dado que a sua aprovação e promulgação integrais apenas lhe tornam definitiva a vigência, com eficácia ex tunc e sem solução de continuidade, preservada a identidade originária do seu conteúdo normativo, objeto da argüição de invalidade".

Não parece, todavia, isenta de dúvida a jurisprudência que entende prejudicada a ação direta de inconstitucionalidade em decorrência da aprovação da medida provisória com alterações, considerando inadmissível até o eventual aditamento da inicial para os fins de adequação do pedido originariamente formulado à nova conformação do texto normativo.

As medidas provisórias não se confundem com as leis temporárias exatamente porque suas disposições são dotadas de pretensão de definitividade e destinam-se a ser mantidas sob a forma de lei. Em outros termos, precária é apenas a medida provisória enquanto ato normativo; as disposições dela constantes estão vocacionadas a uma vigência indeterminada.

Relevante, portanto, para o processo de controle de normas, não é saber se determinada medida provisória foi aprovada com alteração, mas sim se essas modificações alteraram, substancialmente, o objeto da ação instaurada, de modo a afetar a sua própria existência.

É fácil ver que a aprovação de medida provisória com simples alteração formal do texto originário não deveria suscitar maiores problemas no juízo abstrato de normas, uma vez que restaria íntegro e plenamente válido o pedido formulado, sendo facultado ao Tribunal, se entender devido, requerer novas informações junto ao Poder Executivo, bem como solicitar as informações do Congresso Nacional. As manifestações da Advocacia-Geral da União e do Procurador-Geral da República, se já verificadas, poderiam ser, igualmente, aditadas sem nenhum prejuízo para a ordem processual.

Evidentemente, se a medida provisória for aprovada com alterações de tal monta que importem mesmo na derrogação da disposição normativa impugnada, nada mais resta senão proceder-se à extinção do processo.

Ao contrário, subsistente, na sua essência, a disposição que deu ensejo à propositura da ação, não deve o feito ser extinto, porque resta íntegra a pretensão formulada legitimamente por um dos titulares do direito de propositura, inexistindo solução de continuidade no plano de vigência das normas.

Assim, se o art. 1º da Medida Provisória x continua a vigorar, na sua essência, como art. 1º ou como art. 2º da Lei y, não há que se cogitar de derrogação ou ab-rogação.

Dúvidas poderiam surgir se o texto impugnado da Medida Provisória fosse aprovado com significativas alterações de forma ou de conteúdo.

Como explicitado, as modificações de índole formal não parecem aptas a afetar a existência do processo de controle abstrato, instaurado com o objetivo de aferir a legitimidade de determinada disposição em face da Constituição, não devendo assumir, por isso, maior importância o fato de a disposição ter sido aprovada como art. 4º da Lei y e não como art. 1º, tal como proposto na medida provisória. Da mesma forma, alterações redacionais não devem levar ao entendimento de que se cuida agora de uma outra norma, que, por isso, deve ter a sua constitucionalidade aferida em novo processo.

A questão poderia merecer disciplina legislativa específica tendente a superar o problema, com a autorização para que o Tribunal conhecesse da ação em semelhantes casos, sempre que se não pudesse afirmar que, no processo de conversão em lei, a disposição impugnada constante da medida provisória sofreu alterações que afetaram profundamente a sua própria identidade.

Assim, ficaria o Tribunal legitimado a aferir a legitimidade e, eventualmente, a declarar a inconstitucionalidade também de disposição incorporada ao texto da lei em que se converteu a medida provisória, desde que houvesse identidade fundamental entre a disposição originalmente impugnada e o texto normativo constante da lei.

A propósito, mencione-se que, nos termos do § 78 da Lei do Bundesverfassungsgericht, está o Tribunal autorizado a estender a declaração de inconstitucionalidade "a outras disposições da mesma lei", entendida a expressão não apenas como autorizativa de pronúncia de nulidade em relação a outros dispositivos da mesma lei, mas também a disposições semelhantes que alterem ou derroguem o texto impugnado.

Orientação semelhante poderia ser adotada entre nós, tendo em vista sobretudo a necessidade de solver o problema – indubitavelmente sério – do controle de constitucionalidade abstrato das medidas provisórias.


2. Cautelar e Medida Provisória

No prazo constitucional estabelecido para a vigência da medida provisória (trinta dias) é praticamente impossível uma decisão definitiva sobre a constitucionalidade desse tipo de ato normativo.

O Supremo Tribunal Federal tem concedido liminares contra determinadas medidas provisórias, ressaltando que, ante a sua característica ambivalente (ato com força de lei e projeto de lei), a medida cautelar destina-se tão-somente a retirar a força normativa do ato normativo em referência.

Caberia, portanto, ao Congresso Nacional apreciar a medida provisória enquanto simples projeto de lei.

Essa orientação tem permitido que o Executivo promova a reedição de medidas provisórias que já tiveram o seu conteúdo parcial ou totalmente suspenso por decisão do Supremo Tribunal Federal.

Evidentemente, esse déficit acaba provocando grande desconforto, permitindo que atos que sofreram uma explícita censura, ainda que em sede de cautelar, continuem a vigorar no ordenamento jurídico.

Numa tentativa de minimizar os problemas decorrentes da reedição da medida provisória impugnada em sede de ação direta, tem o Supremo Tribunal Federal admitido que se proceda a um pedido de aditamento, de modo que se permita o prosseguimento de ação e a extensão dos efeitos da cautelar eventualmente concedida.

          De legenda ferenda, recomenda-se a adoção de um procedimento sumário que permita ao Tribunal decidir definitivamente a controvérsia constitucional dentro de um prazo razoável sem a necessidade de concessão de cautelar.

O Projeto de Lei elaborado por Comissão de Juristas, sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (Projeto de Lei nº 2960) contém proposta de texto normativo que estabelece um procedimento sumário para o julgamento de determinadas questões, como se pode ler no art. 12 da proposta, verbis:

"Art. 12. Havendo pedido de medida cautelar, o relator, em face da relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, poderá, após a prestação das informações, no prazo de dez dias, e a manifestação do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, sucessivamente, no prazo de cinco dias, submeter o processo diretamente ao Tribunal, que terá a faculdade de julgar definitivamente a ação".

Embora não se destine exclusivamente à hipótese de julgamento da constitucionalidade de medida provisória, é certo que a aplicacão desse "procedimento sumário" poderá obviar uma série de dificuldades relacionadas com a cautelar que suspende a vigência de uma medida provisória.

Esse entendimento parece encontrar respaldo no próprio desenvolvimento doutrinário desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal. É o que se pode ler, v.g., na seguinte passagem do voto do Ministro Sepúlveda Pertence, verbis:

"Ao enfrentar, pela primeira vez, uma ação direta contra uma medida provisória – ADIn nº 162, relativa à prisão temporária -, observei que, sob pena de frustar-se a jurisdição constitucional do Supremo sobre a medida provisória, particularmente em relação às argüições, contra a sua validade formal, seria inevitável que, muitas vezes, no julgamento dos pedidos cautelares, se aprofundasse a cognição do mérito da argüição muito além da delibação normal nos juízos liminares".

Se se afigura necessário proceder a um exame mais aprofundado do mérito, parece de todo recomendável que o Tribunal adote um modelo de procedimento sumário que permita o julgamento definitivo da controvérsia, tornando dispensável a discussão da matéria em sede de cautelar.


3. Cautelar e Aditamento da inicial

Embora o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal não contemple, expressamente, a possibilidade de alteração na petição inicial, a jurisprudência do Tribunal reconhece a possibilidade de aditamentos ou emendas à inicial.

As medidas provisórias suscitam problema específico, uma vez que, aprovadas dentro do prazo de 30 dias, são convertidas em lei, não raras vezes, com alterações significativas de forma e de fundo.

O Supremo Tribunal Federal vinha considerando inadmissível o prosseguimento de ação proposta contra a medida provisória mediante simples aditamento da inicial.

Foi o que se decidiu na ADIn nº 258, da relatoria do Ministro Celso de Mello, como se depreende de passagem da ementa:

"A lei de conversão, derivada de medida provisória objeto de ação direta de inconstitucionalidade, tendo operado alterações profundas no conteúdo material desse ato normativo editado pelo Presidente da República, constitui espécie jurídica diversa, não podendo ser impugnada na mesma ação, mediante simples aditamento da inicial".

Essa orientação afigura-se duvidosa do prisma do processo e da dogmática constitucional, porquanto rejeita a possibilidade de continuação do processo pelo fato de a medida provisória ter sido convertida em lei, sem que tenha havido solução de continuidade ou interrupção – e, portanto, mudança substancial – no plano de vigência do ato normativo.

Da mesma forma, parece inconsistente a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que exige o pedido de aditamento da inicial para prosseguimento do processo e julgamento de ADIn proposta contra medida provisória reeditada ou reproduzida sucessivas vezes.

Se o Tribunal admite a reedição como legítima, inclusive para fins de contagem do prazo para exigência da contribuição social (CF, art. 195, § 6º), não se afigura compreensível que, para o efeito do julgamento da subsistência ou não do processo, faça a questão depender da iniciativa continuada do requerente, que se vê obrigado a apresentar repetidos aditamentos em face das sucessivas reedições das medidas provisórias.

Assim, se passasse a entender que, deferida a liminar, restaria suspenso o conteúdo normativo da medida provisória (medida provisória enquanto ato normativo), independentemente das múltiplas reedições, o Tribunal prestaria um grande serviço ao próprio requerente, que ficaria desobrigado de reiterar sucessivas vezes o pedido de aditamento de inicial. Da mesma forma, não tendo ocorrido o julgamento do pedido de liminar dentro do prazo de vigência da medida provisória, poderia o Tribunal dele conhecer, quando da reedição, independentemente de qualquer aditamento

Com isso, exonerar-se-ia o requerente da ADIn do dever de protocolar sucessivos pedidos de aditamento em relação a objeto normativo idêntico.

A jurisprudência atualmente em vigor provoca um outro efeito igualmente danoso para a credibilidade do sistema.

O requerente da ADIn pode-se valer do não-aditamento da inicial para "desistir" da ação, especialmente se não obteve a liminar ou, se, no julgamento desta, colheu sinais inequívocos de que não logrará êxito na decisão definitiva. Ao considerar "prejudicada" a ADIn pela reedição sem a apresentação do aditamento, o Tribunal está a provocar exatamente o resultado desejado pelo requerente, que, com sua inércia, busca desistir da ação direta cujo desfecho agora se lhe afigura desfavorável.

Portanto, a atual orientação do Supremo Tribunal Federal dá azo a que o requerente desista da impugnação depois de ter colhido o indeferimento do pedido de liminar.

Se se entender que o tema merece uma disciplina legal específica, propõe-se seja acrescentado ao Projeto de Lei nº 2960, que dispõe sobre o controle abstrato de normas no âmbito do STF, a seguinte disposição:

"Art. 5º Alterada substancialmente disposição de medida provisória objeto de ação direta de inconstitucionalidade, deverá o requerente solicitar imediatamente o aditamento da inicial, sob pena de arquivamento da ação.

Parágrafo único. O processo relativo a ação direta de inconstitucionalidade contra disposição de Medida provisória reeditada ou convertida em lei, sem alteração substancial, prosseguirá independentemente de pedido de aditamento" .

Referida proposta permite superar tanto o problema da medida provisória alterada substancialmente no curso da ação direta quanto aqueloutro, referente à medida provisória objeto de sucessivas reedições sem alteração substancial.

De qualquer forma, afigura-se recomendável que se altere a orientação hoje dominante, admitindo-se o prosseguimento da ADIn contra medida provisória reeditada ou convertida em lei, desde que a reedição ou a conversão não introduza alterações que afetem a substância da decisão de caráter normativo contida na medida provisória impugnada.

O aditamento da inicial somente seria exigido para aqueles casos em que se operou uma alteração substancial de conteúdo normativo no contexto da reedição das medidas provisórias ou de sua conversão em lei.


Autor

  • Gilmar Mendes

    Gilmar Mendes

    Ministro do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça. Professor adjunto da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha).

    é também ex-procurador da República, ex-advogado-geral da União, mestre em Direito pela Universidade de Brasília - UnB (1988), com a dissertação "Controle de Constitucionalidade: Aspectos Políticos e Jurídicos", doutor em Direito pela Universidade de Münster, República Federal da Alemanha - RFA (1990), com a dissertação "Die abstrakte Normenkontrolle vor dem Bundesverfassungsgericht und vor dem brasilianischen Supremo Tribunal Federal", publicada na série "Schriften zum Öffentlichen Recht", da Editora Duncker & Humblot, Berlim, 1991 (a tradução para o português foi publicada sob o título "Jurisdição Constitucional", Saraiva, 1996).

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Informações sobre o texto

Texto originalmente publicado na Revista Jurídica Virtual do Palácio do Planalto, edição de junho de 1999

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENDES, Gilmar. O controle de constitucionalidade das medidas provisórias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 40, 1 mar. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/186. Acesso em: 25 abr. 2024.