Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/pareceres/18629
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Consequências da pré-morte da herdeira testamentária

Consequências da pré-morte da herdeira testamentária

Publicado em . Elaborado em .

Se a herdeira testamentária morrer antes do testador, permanece válido o testamento? Em caso afirmativo, como fica a distribuição dos bens para seus herdeiros?

Assunto: SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA – TESTAMENTO PÚBLICO - PRÉ-MORTE - HERDEIRA TESTAMENTÁRIA FALECIDA ANTES DA TESTADORA – EXISTÊNCIA DE OUTROS HERDEIROS TESTAMENTÁRIOS – CADUCIDADE DAS DISPOSIÇOES RELACIONADAS À HERDEIRA PRÉ-FALECIDA – PERDA DA CAPACIDADE TESTAMENTÁRIA PASSIVA - PREVALÊNCIA DAS DEMAIS DISPOISÇÒES TESTAMENTÁRIAS – INEXISTÊNCIA DE DIREITO DE REPRESENTAÇÃO DOS SUCESSORES LEGÍTIMOS DA PRÉ-FALECIDA – TESTAMENTO – INTERPRETAÇÃO – EXISTÊNCIA DE HERDEIROS NECESSÁRIOS – AINDA QUE DA CEDÚLA TESTAMENTÁRIA CONSTE QUE A TESTADORA DEIXA "METADE DE SEUS BENS" A UM DOS HERDEIROS TESTAMENTÁRIOS E A "OUTRA METADE" AOS OUTROS, ISSO NÃO SIGNFICA QUE A DEIXA ABARCA TODO O PATRIMÔNIO – INTANGIBILIDADE DA LEGÍTIMA – INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 1.846 E 1.857, § 1º, DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO.

Nosso colega e amigo, o advogado Dr. Alessandro Prado Rodrigues de Oliveira, nos distingue formulando consulta sobre o testamento público firmado por M.F.R.O., em 08 de novembro de 2005, no qual foram instituídos como herdeiros testamentários a filha da testadora, S.R.P.O.N.L., e três de seus netos, A.R.O.N., A.P.R.O. e A.P.R.O., estes três, filhos do outro filho da testadora, H.A.R.O., falecido antes da liberalidade testamentária.

O respectivo testamento público seguiu todas as formalidades legais (CC, arts. 1.864 a 1.867), e conforme nele está escrito a testadora dispôs que por abertura de sua sucessão "os BENS que possue, sejam atribuídos METADE, a sua filha S.R.O.N.L.; e, a outra METADE, em partes iguais aos seus NETOS:- A.R.O.N., casado; A.P.R.O., separado judicialmente; e A.P.R.O., solteiro-maior" (sic; itálico de agora). Consta ainda no testamento que a testamentaria será desincumbida por S.R.O.N.L. ou, na sua falta, por A.P.R.O., ambos, vale dizer, também instituídos como herdeiros testamentários.

Por fim, a última das disposições testamentárias foi a expressa e total REVOGAÇÃO de um outro testamento público que havia sido lavrado em 14 de novembro de 1973.

Juntamente com os quesitos, o consulente nos ofereceu uma cópia do testamento público sob exame, bem como nos informou que a herdeira testamentária S.R.O.N.L. faleceu em dezembro de 2005, pré-morrendo à testadora. Eis os quesitos:

1) Ante a pré-morte de S.R.O.N.L, o testamento continua a ter validade? Em caso positivo, quais as disposições que permaneceriam válidas?

2) As herdeiras de S.R.O.N.L, suas duas filhas, receberiam por direito de representação o quinhão testamentário da pré-falecida?

3) Em prevalecendo o testamento mesmo com a pré-morte de um dos herdeiros testamentários, as disposições em que a testadora atribui METADE dos bens para um herdeiro e a outra METADE para outros três, seriam referentes a todo o acervo hereditário?

4) Em prevalecendo o testamento, como ficaria a repartição da herança, considerando-se que há 3 (três) herdeiros testamentários e mais 5 (cinco) herdeiros necessários?


P A R E C E R

SUMÁRIO: 1. O caso e suas circunstâncias; 2. Aspectos gerais da sucessão hereditária no Brasil: sucessão legítima e sucessão testamentária; 3. Herdeiros necessário (ou legítimos) e herdeiros testamentários; 4. Possibilidade da instituição de herdeiro necessário também como herdeiro testamentário (CC, art. 1.849); 5. A parcela dos bens do testador que pode integrar a deixa testamentária: enfoque à luz do caso examinado; 6. Conceito de legítima e sua intangibilidade na sucessão testamentária; 7. A chamada capacidade testamentária passiva: enfoque à luz do caso examinado; 8. Ineficácia total ou parcial do testamento: nulidade, anulabilidade, revogação, rompimento, caducidade; 8.1 Conclusão parcial: possibilidade de prevalência das disposições testamentárias hígidas; 9. Rigidez na interpretação das disposições testamentárias; 10. À guisa de conclusão: atual situação jurídica do caso sob exame; 11. Respostas aos quesitos.


1. O caso e suas circunstâncias

Trata-se de testamento público regularmente elaborado no qual a testadora instituiu como seus herdeiros testamentários sua filha e três de seus netos; estes últimos, filhos de outro filho já falecido da autora da declaração de última vontade. Nas disposições testamentárias constou que METADE de seus bens ficaria para sua filha e herdeira testamentária, e a outra METADE para seus netos e também herdeiros testamentários. A herdeira testamentária, conforme já noticiado neste parecer, pré-morreu à testadora.

Segundo informação que nos foi dada pelo consulente, a família da testadora está "interpretando" [01] o respectivo testamento de forma a considerar que a disposição testamentária efetivamente estivesse outorgando METADE de "todo o patrimônio" para a herdeira testamentária e a outra METADE aos três netos também contemplados. Desde já afirmo peremptoriamente que a imaginada celeuma "interpretativa" não existe, uma vez que o Código Civil Brasileiro é categórico em afirmar que metade dos bens da herança pertence aos herdeiros necessários [02], conforme explicarei com mais vagar no decorrer deste parecer.

Em miúdos: conste o que constar nas declarações testamentárias, juridicamente o testador só pode dispor de metade dos bens que lhe pertencem, já que outra metade pertencerá aos herdeiros necessários, tal como o são, por exemplo, os descendentes na linha reta (filhos, netos, bisnetos etc.).

A outra dúvida que está à base da consulta diz respeito à validade do testamento, vale dizer, se ainda teria alguma eficácia diante da pré-morte de uma das herdeiras testamentárias.

A herdeira testamentária pré-morta – frisa-se: filha da testadora – tem duas filhas, netas e herdeiras necessárias da autora da declaração de última vontade. Os outros três herdeiros testamentários também o são herdeiros necessários, eis que netos da testadora.

Deve ser observado que a testadora já não tem mais seus filhos. Um deles, já falecido, era o pai dos três herdeiros testamentários; a outra, também falecida, é a herdeira testamentária pré-morta. Na linha reta descendente, resta à testadora unicamente cinco netos e todos eles herdeiros necessários: os três filhos de seu filho H.A.R.O., e as duas filhas de sua filha S.R.O.N.L.

Portanto, firmarei duas premissas básicas que deverão ser desde já compreendidas para que bem se reflita a respeito deste parecer. Vamos a elas:

I) Ante a pré-morte da herdeira testamentária S.R.O.N.L., e tendo vista a prevalência do testamento em relação às outras disposições, a testadora tem 3 (três) herdeiros testamentários e 5 (cinco) herdeiros necessários;

II) O testamento só abarca METADE do patrimônio da testadora (parte disponível), já que a outra METADE compõe a legítima pertencente aos herdeiros necessários (CC, art. 1.846), e isso independentemente da literalidade do testamento.

Ou seja, não sendo revogado o testamento, os três netos instituídos como herdeiros testamentários receberão entre si 25% (vinte e cinco por cento) do patrimônio da testadora, referente ao quinhão testamentário que lhes foi disposto. Os outros 75% (setenta e cinco por cento) da herança serão divididos entre todos os 5 (cinco) netos e herdeiros necessários de M.F.R.O., em cinco partes iguais.

A esse resultado se chega tendo em vista a pré-morte da herdeira testamentária S.R.O.N.L., já que a cláusula do testamento que lhe beneficiava não mais prevalece em razão de seu falecimento.


2. Aspectos gerais da sucessão hereditária no Brasil: sucessão legítima e sucessão testamentária

O atual Código Civil brasileiro manteve, em suas linhas gerais, o mesmo sistema do direito das sucessões que a muito vigora no país, cuja divisão se dá em sucessão legítima e sucessão testamentária. Para que o patrimônio de uma pessoa não fique sem um titular após sua morte, o direito regula a forma do recebimento e do repartimento de seus bens entre seus herdeiros, daí a função jurídica do direito das sucessões, que conforme Caio Mário trata do "modo de adquirir, a título universal ou singular, bens e direitos que passam de um sujeito que morre, aos que lhe sucedem, isto é, passa a ocupar a sua situação jurídica". [03]

Pois bem. Os bens da pessoa falecida serão adquiridos por seus herdeiros – também chamados de sucessores – , sendo que essa aquisição poderá ocorrer por dois caminhos jurídicos distintos que são a sucessão legítima e a sucessão testamentária. A primeira delas, a sucessão legítima, é forma de aquisição que decorre da lei (do Código Civil), e independe de qualquer ajuste ou declaração de vontade por parte do autor da herança [04]. A outra modalidade sucessória, a sucessão testamentária, muito embora também seja rigorosamente regulada pelo Código Civil, depende da declaração de vontade daquele que tem bens e pretende regular sua distribuição pós-morte. É nesse sentido a disposição do art. 1.786 do Código Civil brasileiro, que categoricamente afirma que "A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade"; por "lei", deve ser entendida a sucessão legítima; por "disposição de última vontade", deve ser entendida a sucessão testamentária.

A sucessão legítima tem esse nome exatamente pelo fato de que ela sempre ocorrerá, bastando que o autor da herança efetivamente tenha deixado bens a suceder e obviamente tenha herdeiro(s) para recebe-los. Tamanha a importância que o Direito confere à sucessão legítima, que a própria Constituição da República garante o direito de herança como direito fundamental da pessoa humana (CR, art. 5º, XXX). Os herdeiros que recebem por sucessão legítima são chamados de herdeiros necessários, e são assim considerados tendo em vista que se tais herdeiros existirem quando da abertura da sucessão – fato que se dá com a morte do autor da herança – necessariamente receberão, se não tudo, ao menos a METADE [05] dos bens deixados pelo defunto. Herdeiros necessários são: os descendentes, os ascendentes e o cônjuge (CC, art. 1.864).

Mas ainda há outra forma de suceder. O Direito prevê a possibilidade de que parte da herança seja direcionada pela pessoa que a deixará, o que será feito por "disposições de última vontade" que sempre virão consignadas num testamento. Essa forma de encaminhamento e conseqüente recebimento da herança é o que se chama de sucessão testamentária.

Contudo, essa liberdade que o Direito confere para as pessoas disporem de seu patrimônio para após a sua morte, encontra certos obstáculos legais. É bem verdade que o Código Civil prevê que a pessoa "pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte" (CC, art. 1.857, caput). Mas é o mesmo Código que garante que METADE da herança deve ser encaminhada aos herdeiros necessários, já que "a legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento" (CC, art. 1.857, § 1º).

Que fique bem entendido: caso existam herdeiros necessários – tal como acontece no caso objeto deste parecer – a legítima NÃO PODERÁ ser incluída no testamento, ainda que a respectiva cédula testamentária possa dar a entender que o testador deixa METADE de seus bens para um herdeiro testamentário e a outra METADE para outro(s) – mais uma vez, tal acontece no caso objeto deste parecer –. Em miúdos: a legítima dos herdeiros necessários não faz parte do testamento (CC, art. 1.857, § 1º). Quanto a esse aspecto, o sistema do direito das sucessões não dá margem à dúvida.


3. Herdeiros necessários (ou legítimos) e herdeiros testamentários

Os herdeiros necessários, como já foi afirmado, são os descendentes, os ascendentes e o cônjuge (CC, art. 1.845), e sempre receberão a herança através do sistema da sucessão legítima, conforme previsto nos arts. 1.829 a 1.856 do Código Civil.

Os herdeiros testamentários são aqueles que assim foram instituídos pelo autor da herança através de um testamento, podendo o herdeiro testamentário ser algum ou todos os herdeiros necessários do testador, ou mesmo qualquer outra pessoa física ou jurídica que tenha capacidade testamentária passiva, ou seja, que possa legalmente ser instituído como herdeiro testamentário (CC, arts. 1.798 e 1.799). Os herdeiros testamentários sempre receberão a herança através do sistema da sucessão testamentária, conforme previsão dos arts. 1.857 a 1.990 do Código Civil. Lembre-se: havendo herdeiro necessário, o testador só poderá dispor de METADE de seu patrimônio, já que a outra METADE jamais fará parte das disposições testamentárias, eis que pertencente aos herdeiros necessários; é a chamada legítima (CC, art. 1.857, § 1º).

Portanto, é perfeitamente possível que o testador institua como herdeiro testamentário algum ou todos os seus herdeiros necessários. Foi isso exatamente o que o ocorreu no caso objeto desta consulta. A partir do momento que M.F.R.O. firmou testamento público instituindo como seus herdeiros sua filha S.R.O.N.L. e seus três netos, filhos do falecido H.A.R.O., ela nada mais fez do que contemplar como herdeiros testamentários àqueles que já eram herdeiros necessários, sua filha e os filhos de seu filho falecido. E se bem pensadas as coisas, como a testadora só teve dois filhos – S.R.O.N.L. e H.A.R.O., este último, repita-se, já falecido – o testamento firmado, tal como foi estabelecido, importaria na repartição da herança igualitariamente entre todos os herdeiros testamentários e necessários.

Explico. O testamento só pode abranger METADE dos bens pertencentes ao testador; a outra METADE é a legítima dos herdeiros necessários. Partindo do princípio de que a testadora M.F.R.O. instituiu como seus herdeiros testamentários exatamente todos os seus herdeiros necessários, a repartição do acervo quando da abertura da sucessão – caso sua filha S.R.O.N.L. ainda fosse viva – seria da seguinte forma: METADE da deixa testamentária (parte disponível) seria dividida entre S.R.O.N.L. e seus três netos A.R.O.N, A.P.R.O. e A.P.R.O. (aqui, como herdeiros testamentários), e a outra METADE da herança (legítima) seria novamente dividida entre S.R.O.N.L. e seus três netos A.R.O.N, A.P.R.O. e A.P.R.O. (agora, como herdeiros necessários).

Contudo, diante da pré-morte de S.R.O.N.L., a liberalidade testamentária, tal como está, ganhou uma nova dimensão. Restaram apenas 3 (três) herdeiros testamentários: A.R.O.N, A.P.R.O. e A.P.R.O. (netos da testadora). Quanto aos herdeiros necessários, agora são 5 (cinco): R.R.O.N.L e T.R.O.N.L. (as duas filhas de S.R.O.N.L.); e A.R.O.N, A.P.R.O. e A.P.R.O. (os três filhos de H.A.R.O.). E diante do fato de que agora M.F.R.O. só tem 5 (cinco) netos como herdeiros necessários, a legítima será divida entre eles em 5 (cinco) partes iguais, já que receberão seu quinhão hereditário "por cabeça" [06] pelo fato de serem herdeiros necessários do mesmo grau (CC, art. 1.835). [07]


4. Possibilidade da instituição de herdeiro necessário também como herdeiro testamentário

O Código Civil brasileiro não deixa dúvida e é expresso em admitir que o herdeiro necessário seja instituído, também, como herdeiro testamentário, sem que isso afete seu direito à legítima como herdeiro necessário que é. Vejamos o art. 1.849 do Código Civil: "O herdeiro necessário, a quem o testador deixar a sua parte disponível, ou algum legado, não perderá o direito à legítima".

A lógica da sucessão testamentária segue essa sistemática exatamente porque o Direito confere certa margem de liberdade para que alguém disponha em declaração de última vontade acerca do direcionamento de parte de seu patrimônio quando de sua morte. E como herdeiro testamentário – vale lembrar – o testador poderá instituir, nos limites da parte disponível, qualquer pessoa física ou jurídica que tenha capacidade testamentária passiva, inclusive, conforme o já mencionado art. 1.849, o próprio herdeiro necessário, sem que isso lhe suprima o direito à parte que lhe cabe da legítima.

Ainda que no resultado final da repartição do acervo hereditário, determinado herdeiro necessário tenha sido melhor aquinhoado pelo fato de também ter sido instituído com herdeiro testamentário, isso em nada prejudica os efeitos e a eficácia do respectivo testamento, já que essa possibilidade decorre da liberdade de testar que o sistema jurídico da sucessão testamentária confere ao declarante das disposições de última vontade (CC, art. 1.786).

Em relação ao testamento que deu ensejo a este parecer, e tendo em vista a pré-morte de S.R.O.N.L., os herdeiros testamentários remanescentes (A.R.O.N, A.P.R.O. e A.P.R.O.) – eis que também herdeiros necessários – serão aquinhoados com parcela mais expressiva após a repartição do acervo hereditário, já quem em nada lhes será afetada a parte que lhes cabe da legítima.


5. A parcela dos bens do testador que pode integrar a deixa testamentária: enfoque à luz do caso examinado

Já se afirmou no decorrer deste parecer que somente METADE daquilo que compõe o patrimônio do testador poderá ser objeto da declaração de última vontade. Essa METADE a que me refiro é a chamada parte disponível [08], sendo que sobre ela – e somente sobre ela! – é que poderão versar as disposições referentes à liberalidade testamentária. A outra METADE do patrimônio daquele que fez testamento compõe a legítima, que nos termos da lei deverá ser repartida entre os herdeiros necessários (CC, art. 1.857, § 1º).

Só há uma hipótese em que o testador poderá encaminhar a deixa testamentária com liberdade plena: – quando NÃO tenha ele herdeiros necessários. Isso ocorrerá quando não haja descendentes, ascendentes ou cônjuge sucessível, seja porque nunca existiram, seja porque foram excluídos da herança ou deserdados (CC, arts. 1.814 a 1.818; arts. 1.961 a 1.965).

A cédula testamentária que nos foi apresentada pelo consulente traz disposição de última vontade expressa no seguinte sentido: "os BENS que possue, sejam atribuídos METADE, a sua filha S.R.O.N.L.; e, a outra METADE, em partes iguais aos seus NETOS:- A.R.O.N., casado; A.P.R.O., separado judicialmente; e A.P.R.O., solteiro-maior" (sic; itálico de agora).

A partir daí, e tendo em vista a expressão representada por "os bens que possui", a família da testadora está emprestando ao testamento uma "interpretação" desguarnecida de qualquer amparo legal, já que, segundo nos foi informado pelo consulente, estariam entendendo que o testamento teria sido expresso em versar TODOS os bens – a integralidade do patrimônio, portanto – da testadora. A prevalecer a absolutamente leiga compreensão da família da testadora, estaríamos diante da violação do princípio da intangibilidade da legítima dos herdeiros necessários de M.F.R.O.

Insisto: apesar de no testamento constar, grosso modo, que METADE "dos bens que possui" ficará para fulano, e a outra METADE ficará para beltrano e sicrano, isso não significa, em nenhuma hipótese, que tal disposição testamentária é revestida da juridicidade que se lhe quer emprestar.

A leitura correta que se deve fazer do testamento é a seguinte: METADE "da parte disponível" ficará para "fulano", e a outra METADE ficará para "beltrano" e "sicrano". É essa a interpretação que juridicamente deve ser dada às disposições de última vontade de M.F.R.O., já que obrigatoriamente deverão lhe suceder seus herdeiros necessários, titulares que são da legítima, ou seja, da METADE de todo o patrimônio eventualmente deixado quando da abertura da sucessão.

Qualquer interpretação em sentido contrário não resiste ao sistema legal da sucessão testamentária.


6. Conceito de legítima e sua intangibilidade na sucessão testamentária

A essa altura do parecer não tenho dúvida em afirmar que a sucessão testamentária, diante da existência de herdeiros necessários (ou legítimos), é regida, dentre outros, pelo princípio da intangibilidade da legítima. Isso decorre da simples análise gramatical dos arts. 1.784 [09], 1.789 [10], 1.846 [11] e 1.857, § 1º [12], todos do Código Civil, com final coroamento pela disposição prevista no art. 5º, inc. XXX [13], da Constituição da República. E isso é assim por uma opção histórica do Direito dos povos ocidentais, que prevendo a intangibilidade da legítima dos herdeiros necessários garante que o patrimônio da pessoa física permaneça com sua família após sua morte. Portanto, mesmo que a pessoa natural faleça ab intestato [14], seu patrimônio será repartido entre seus herdeiros necessários por força da lei, através da sucessão legítima.

O conceito do que deve ser entendido por legítima, bem como a fórmula para que seja calculada sua totalidade, nos é claramente fornecido pelo Código Civil.

Logo após afirmar que os herdeiros necessários são os descendentes, o ascendente e o cônjuge, o Código Civil é claro no sentido de que "Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima" (CC, art. 1.846). Após conceituar o que vem a ser a legítima – frisa-se: "a METADE dos bens que compõe a herança" –, o Código Civil nos dá os parâmetros para quantificá-la, sendo expresso que "Calcula-se a legítima sobre o valor dos bens existentes na abertura da sucessão, abatidas as dividias e as despesas do funeral, adicionando-se, em seguida, o valor dos bens sujeitos a colação" (CC, art. 1.847).

Da análise dos arts. 1.846 e 1.847, conclui-se que a legítima é formada por METADE dos bens da herança e que sempre pertencerá e será repartida entre herdeiros necessários. Seu cálculo é feito a partir do abatimento, de todo o acervo hereditário, das dívidas deixadas pelo falecido e das despesas com seu funeral, adicionando-se em seguida o valor dos bens sujeitos a colação, que são os bens que foram doados em vida pelo autor da herança a algum de seus descendentes (CC, art. 2.002).

Portanto, após os respectivos abatimentos chegar-se-á à apuração da legítima pertencente aos herdeiros necessários, que nada mais é do que a METADE de todo o acervo hereditário! É somente sobre a outra METADE, caso o falecido tenha deixado testamento, que será possível ato de última vontade referente à disposição dos bens, é essa outra METADE que se chama parte disponível.

Ou seja, sob a perspectiva do direito das sucessões, o patrimônio da pessoa física é composto por duas partes: a legítima e a parte disponível.

Caso a respectiva pessoa queira direcionar parte de seus bens para após a sua morte, poderá fazê-lo através de disposição de última vontade representada pelo testamento. Nesse caso, poderá instituir como herdeiro(s) testamentário(s) quem melhor lhe convier, como por exemplo, um amigo, um primo, um filho que sempre lhe esteve mais próximo ou um mais necessitado, um irmão, uma instituição filantrópica etc. Para ser instituído como herdeiro testamentário, e conseqüentemente fazer jus ao respectivo quinhão, basta que beneficiário tenha capacidade testamentária passiva quando da abertura da sucessão. Vale dizer, os bens deixados por testamento estão circunscritos na parte disponível, que como já foi afirmado é uma das METADES do patrimônio da pessoa física.

O testador jamais poderá dispor sobre a outra METADE, já que compõe a legítima dos herdeiros necessários. Só não se fala em legítima, a aí poderá o testador dispor da totalidade de seus bens, na hipótese de não haver herdeiros necessários, do contrário a legítima a eles pertence de pleno direito.


7. A chamada capacidade testamentária passiva: enfoque à luz do caso examinado

Grosso modo, ter capacidade testamentária passiva significa a possibilidade de ser instituído como herdeiro testamentário e, conseqüentemente, adquirir por testamento. Exemplo clássico de quem NÃO tem capacidade testamentária passiva é a pessoa que figurou como "testemunha do testamento" (CC, art. 1.801, II).

De qualquer forma, só estão legitimadas a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão, e também, no caso da sucessão testamentária, as pessoas jurídicas (CC, art. 1.798; 1.799, II e III). Ou seja, antes de qualquer outra análise quanto à capacidade testamentária passiva é preciso saber se o herdeiro testamentário é pessoa.

Enfoquemos a situação à luz das circunstâncias do caso que está sendo examinado, tendo em vista a pré-morte da herdeira testamentária S.R.O.N.L.

O tema da capacidade testamentária passiva, não tenho dúvida, é um aspecto específico da capacidade jurídica das pessoas para os atos e negócios da vida civil. Não é por outra razão que o Código Civil brasileiro, logo em seu art. 1º, afirma que "Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil".

A capacidade jurídica, por sua vez, é fator a ser analisado em conjunto com a aquilo que o Direito conhece por personalidade jurídica ou, nos termos do Código Civil, personalidade civil. Numa conceituação doutrinária geralmente aceita, a personalidade jurídica é a aptidão que o Direito confere à pessoa natural ou jurídica para se tornar titular de direitos e deveres, sendo que os limites dessa aptidão são traçados pela capacidade jurídica. Personalidade e capacidade, embora ligadas juridicamente, são coisas distintas: a personalidade é a aptidão para exercer direitos; a capacidade é o limite do exercício daquela aptidão.

Em se tratando de pessoa natural (pessoa física), o início da personalidade jurídica começa do nascimento com vida [15] (CC, art. 2º) [16]. Mas vem a pergunta: - até qual momento permanece a personalidade jurídica da pessoa humana? Vale dizer, até quando a pessoa natural é capaz de adquirir direitos e assumir obrigações? A resposta é contundente e nos é dada pelo próprio Código Civil: "A existência da pessoa natural termina com a morte" (CC, art. 6º).

Portanto, a personalidade jurídica, que confere a capacidade jurídica à pessoa natural, termina com a morte. A morte, em miúdos, é o termo final da personalidade jurídica iniciada a partir do nascimento com vida. Com o falecimento, a pessoa natural (ou física) não é mais pessoa, não tem mais personalidade jurídica, nem tampouco é dotada de capacidade jurídica. Isso não quer dizer que a memória do morto e o respeito que lhe deve ser tributado mesmo após a morte, não sejam tutelados pelo Direito, em absoluto. Tanto é assim que o próprio Código Civil garante a tutela dos chamados direitos da personalidade do morto, o que poderá ser feito, em juízo ou não, pelo cônjuge supérstite, por qualquer parente em linha reta ou mesmo por colateral até o quarto grau (CC, art. 12, parágrafo único).

No caso examinado, muito embora a herdeira S.R.O.N.L. tivesse plena capacidade testamentária passiva quando da elaboração do testamento, hoje, em razão de seu falecimento, já não a tem mais, e isso por uma razão bem simples: a morte faz terminar a existência da pessoa natural, e se a pessoa não mais existe, não há que se falar em personalidade jurídica, nem em capacidade jurídica, nem tampouco em capacidade testamentária passiva.

É pressuposto fundamental básico da capacidade testamentária passiva da pessoa natural a personalidade jurídica. Vale dizer, só adquiri por testamento o herdeiro testamentário que estiver vivo – que tenha personalidade jurídica, portanto – quando da abertura da sucessão. A pré-morte de S.R.O.N.L. retirou-lhe, por completo, a capacidade testamentária passiva. Ou seja, "a capacidade passiva de adquirir por testamento tem como regra fundamental a existência do legatário, ou herdeiro, na ocasião do falecimento do testador", conforme já decidiu o Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira em acórdão relatado no Superior Tribunal de Justiça. [17]

Quanto às filhas de S.R.O.N.L., e caso não seja revogado o testamento sob exame, é importante notar que elas NÃO receberão o quinhão disposto na cédula testamentária da herdeira pré-morta. A lógica é esta: os herdeiros do herdeiro testamentário pré-morto não adquirem o quinhão testamentário de seu ascendente, já que na sucessão testamentária não existe direito de representação, o que só ocorre na sucessão legítima (CC, art. 1.851 a 1.856).


8. Ineficácia total ou parcial do testamento: nulidade, anulabilidade, revogação, rompimento, caducidade

Há hipóteses em que o testamento perderá, total ou parcialmente, sua eficácia.

Isso é assim porque as disposições legais sobre testamento são clausuladas numa necessária rigidez. Essa sistemática se justifica pela simples razão de que após sua morte, obviamente o testador não mais estará presente para elucidar ou esclarecer as intenções contidas nas suas declarações de última vontade. Esse sistema rígido imposto pelo Direito ao funcionamento da sucessão testamentária tende a preservar as disposições pós-morte tal como foram lançadas pelo testador. Havendo dúvidas ou irregularidades, ter-se-á a ineficácia total ou parcial de testamento e aí então o repartimento dos bens será feito com base nas regras da sucessão legítima.

As hipóteses que poderão afetar a eficácia do testamento são: nulidade, anulabilidade, revogação, rompimento, caducidade. Vejamos cada uma delas.

Nulidade. A nulidade do ato ou negócio jurídico implica na própria invalidade, ab initio, de determinado ajuste que se pretenda tenha juridicidade. O sistema jurídico prescreve certas regras que devem ser obedecidas para que a declaração de vontade possa gerar os efeitos garantidos pelo Direito. Violadas ou não observadas essas regras, de nada valerá aquilo que se celebrou. São regras firmes, impositivas, cujo desrespeito fará com que o pretendido ajuste jurídico seja um verdadeiro natimorto sob a perspectiva do Direito.

Nas relações jurídicas inter vivos, por pior que seja o defeito a gerar a nulidade do ato ou negócio jurídico, sempre será possível o concerto da falha, bastando que os sujeitos interessados na avença tornem a ajustar, nos termos da lei, as manifestações de vontade que pretendam tenha validade jurídica.

No tocante à elaboração do testamento e às respectivas disposições testamentárias, a inobservância de certas às regras rígidas fará com que as disposições de última vontade sejam totalmente ineficazes. A finalidade não é outra senão preservar aquilo e exatamente aquilo que pretendeu o testador.

Anulabilidade. Os defeitos jurídicos que consubstanciam a anulabilidade, muito embora sejam graves e não impliquem na invalidade daquilo que se ajustou, são passíveis de serem convalidados e de permitir a preservação daquilo que se avençou. A convalidação do ato ou negócio jurídico anulável poderá ser feita através da iniciativa do próprio declarante da vontade, ou até mesmo pelo decurso do tempo, já que nessas hipóteses a lei confere ao interessado um prazo para que ingresse em juízo para pleitear a declaração da anulabilidade, o que afinal fará com que o reconhecimento da anulabilidade torne sem efeito determinado ajuste de vontade, tendo em vista o defeito jurídico detectado.

Exemplo de anulabilidade em matéria de testamento pode ser extraído do art. 1.909 do Código Civil: "São anuláveis as disposições testamentárias inquinadas de erro, dolo ou coação. Parágrafo único: Extingue-se em 4 (quatro) anos o direito de anular a disposição, contados de quando o interessado tiver conhecimento do vício".

Revogação. Revogar significa tornar sem efeito, por vontade própria, aquilo que até então era válido. É um ato expresso e inequívoco do sujeito que tenha a possibilidade fazê-lo, ou seja, de provocar a revogação.

No tocante ao testamento, a revogação é um ato personalíssimo do testador que poderá, desde que o faça através das mesmas formalidades em que testou, tornar ineficaz – revogar, portanto– todo o testamento ou algumas de suas disposições.

No testamento que ora se examina, observa-se que a última das disposições da testadora foi no sentido de REVOGAR expressa e totalmente o testamento anterior que havia sido lavrado em 14 de novembro de 1.973. A revogação, como já dito, é um ato personalíssimo, e por isso somente quem "fez" é que poderá revogar aquilo que "fez", tal como foi feito pela testadora ao expressamente revogar o testamento anterior.

Rompimento. O rompimento é uma causa de ineficácia específica da figura jurídica do testamento. Exatamente porque a legítima do(s) herdeiro(s) necessário(s) é legalmente preservada, o Código Civil declara que caso o testador venha a ter descendentes sucessíveis (filhos, netos, etc.) que não tinha ou não os conhecia quando testou, o testamento será "rompido" em todas as suas disposições, caso esse descendente sobreviva ao testador. [18]

Também se considera rompido o testamento quando, no momento de sua elaboração, o testador ignorava que tinha outros herdeiros necessários, que nesse caso seriam seus ascendentes e/ou cônjuge. [19]

Grosso modo, deve ser entendido por rompimento a ineficácia do testamento gerada pela existência de herdeiro(s) necessário(s) de que o testador não tinha conhecimento no momento em que testou.

Caducidade. O fenômeno da caducidade como gerador da ineficácia total ou parcial do testamento é de particular interesse no caso examinado, já que é de caducidade que se trata uma das principais dúvidas que estão à base das indagações do consulente, e que diz respeito à cláusula que instituiu como herdeira testamentária a pré-falecida S.R.O.N.L.

Por caducidade deve ser entendido que alguma disposição testamentária, ou até mesmo todo o testamento, perdeu a eficácia pela ocorrência de um evento posterior ao momento da válida e regular declaração de última vontade firmada pelo testador. Vale dizer, tudo o que constou no testamento, no momento de sua elaboração, era plenamente eficaz; porém, em razão de um evento posterior, aquilo que foi estabelecido pelo testador perdeu total ou parcialmente a eficácia. Em miúdos: em matéria de testamento, a caducidade implica na posterior ineficácia daquilo que na sua origem era plenamente eficaz!

É exatamente a caducidade que fulmina de ineficácia a disposição testamentária que contempla S.R.O.N.L., que como já se sabe pré-morreu à testadora.

Tudo o que consta no testamento público que nos foi apresentado pelo consulente – e que obviamente diz respeito apenas à parte disponível da testadora – é plenamente válido e eficaz, já que inconteste a capacidade testamentária ativa [20] de M.F.R.O. Por outro lado, tendo em vista a pré-morte de S.R.O.N.L., a disposição testamentária que a contemplou tornou-se totalmente ineficaz, ou seja, foi atingida pela caducidade.

8.1 Conclusão parcial: possibilidade de prevalência das disposições testamentárias hígidas

Não sendo qualquer das hipóteses em que os defeitos jurídicos tornam absolutamente ineficazes todas as disposições testamentárias, então será plenamente possível a prevalência do testamento quanto às disposições que não foram afetadas. É possível, portanto, a prevalência das disposições testamentárias hígidas!

À luz das circunstâncias do caso examinado, observa-se que o testamento deixado por M.F.R.O. permanece parcialmente eficaz. A eficácia só não é total em razão da pré-morte da herdeira testamentária S.R.O.N.L. Esse fato – morte do herdeiro antes do testador – faz com que a respectiva cláusula testamentária tenha caducado, já que a existência do beneficiado é o "pressuposto essencial e primeiro da capacidade para adquirir por testamento" [21], conforme já apreciado pela jurisprudência.

A caducidade de uma ou de algumas cláusulas testamentárias, desde que o defeito não recaia em todo o testamento, não faz com que as demais disposições percam eficácia. Ao contrário, o testamento permanecerá eficaz em relação às disposições não afetadas.


9. Rigidez na interpretação das disposições testamentárias

O testamento, enquanto instrumento materializador das disposições de última vontade, deve ser interpretado restritivamente, dada a rigidez que orienta as normas da sucessão testamentária. Daí a regra do art. 1.899 do Código Civil: "Quando a cláusula testamentária for suscetível de interpretações diferentes, prevalecerá a que melhor assegure a observância da vontade do testador".

Isso não quer dizer que tudo aquilo que constar na cédula testamentária deverá ser interpretado tal como lá está. Em absoluto! No tocante ao testamento – como, aliás, todo aquilo que diz respeito ao sistema jurídico –, toda e qualquer interpretação deve ser feita levando-se em consideração todas as demais normas que eventualmente incidam sobre uma determinada hipótese. Deve-se, sim, interpretar o testamento de modo a que melhor assegure a vontade do testador. Contudo, isso não significa que a vontade do testador possa se sobrepor ao que está determinado na lei. Poderá se adequar; sobrepor-se, jamais!

Neste momento chamo a atenção em torno da cláusula testamentária na qual a testadora dispôs que "os BENS que possui, sejam atribuídos METADE, a sua filha S.R.O.N.L.; e, a outra METADE, em partes iguais aos sues NETOS:- A.R.O.N., casado; A.P.R.O., separado judicialmente; e A.P.R.O., solteiro-maior".

É claro que está escrito que em relação aos bens "metade" será atribuída a uma herdeira testamentária, e a outra "metade" será atribuída em três partes iguais aos outros três herdeiros testamentários. Mas isso, em hipótese alguma, significa que a testadora fez menção a TODO o seu patrimônio. A metade-metade a que se refere a disposição testamentária diz respeito exclusivamente a parte disponível da testadora, já que a legítima dos herdeiros necessários – e a testadora os têm – é preservada por lei! É o princípio da intangibilidade da legítima a que me referi no item "6", supra, deste parecer.


10. À guisa de conclusão: atual situação jurídica do caso sob exame

Tendo em vista o falecimento da S.R.O.N.L. antes da abertura da sucessão de M.F.R.O., a cláusula do testamento público que a instituiu herdeira testamentária "caducou", ou seja, tornou-se ineficaz.

No mais, as disposições de última vontade da autora do testamento permanecem absolutamente eficazes, restando como herdeiros testamentários apenas A.R.O.N., A.P.R.O. e A.P.R.O, que receberão, caso o testamento não seja modificado, apenas METADE da parte disponível de M.F.R.O. A outra METADE da parte disponível, originariamente direcionada à herdeira testamentária pré-falecida, será objeto de sucessão legítima, e será repartida juntamente com o resto do patrimônio entre os herdeiros necessários da testadora, no caso, seus cinco netos.

Em miúdos: são três herdeiros testamentários e cinco herdeiros necessários, sendo que a caducidade atingiu apenas a cláusula da deixa testamentária em favor da herdeira pré-falecida.


11. Reposta aos quesitos

Passo a responder os quesitos formulados pelo consulente, com base nas premissas deste parecer.

1) Ante a pré-morte de S.R.O.N.L, o testamento continua a ter validade? Em caso positivo, quais as disposições que permaneceriam válidas?

R: Sim, o testamento público analisado continua a ter validade mesmo com a morte da herdeira testamentária S.R.O.N.L.

Todas as demais disposições de última vontade lançadas no testamento permanecem válidas, tendo "caducado" – leia-se: perdido a eficácia – apenas a cláusula que contemplou a herdeira testamentária pré-morta.

2) As herdeiras de S.R.O.N.L, suas duas filhas, receberiam por direito de representação o quinhão testamentário da pré-falecida?

R: Não. Pela simples razão de que na sucessão testamentária não há direito de representação.

Dessa forma, as filhas da herdeira testamentária já falecida não receberão o quinhão testamentário de S.R.O.N.L, tendo em vista a caducidade da cláusula que a beneficiou.

3) Em prevalecendo o testamento mesmo ante a pré-morte de um dos herdeiros testamentários, as disposições em que a testadora atribui METADE dos bens para um herdeiro e a outra METADE para outros três, seriam referentes a todo o acervo hereditário?

R: Não. As disposições do testamento quanto a divisão de METADE dos bens da testadora para uma herdeira testamentária, e a outra METADE para outros três herdeiros testamentárias, referem-se única e exclusivamente à "parte disponível" do patrimônio da testadora, tendo em vista a existência de herdeiros necessários cuja "legítima" lhes é garantida por lei.

4) Em prevalecendo o testamento, como ficaria a repartição da herança, considerando-se que há 3 (três) herdeiros testamentários e mais 5 (cinco) herdeiros necessários?

R: A prevalência do testamento é inconteste, tendo caducado, apenas, a disposição que contemplou S.R.O.N.L, eis que faleceu antes da testadora.

Dessa forma, caso seja mantido o testamento tal como está, a repartição da herança será feita da seguinte maneira:

- 25% (vinte e cinco por cento) do patrimônio – parcela da "parte disponível" da testadora – será dividido, em partes iguais, entre os herdeiros testamentários A.R.O.N., A.P.R.O. e A.P.R.O, estes, vale lembrar, netos e também herdeiros necessários de M.F.R.O.;

- os outros 75% (setenta e cinco por cento) do patrimônio será dividido, em partes iguais, entre os cinco netos e herdeiros necessários de M.F.R.O., ou seja, os três filhos de seu já falecido filho H.A.R.O., e as duas filhas de sua também já falecida filha S.R.O.N.L.

É este o meu parecer, s.m.j.

Jundiaí, 30 de janeiro de 2006.

GLAUCO GUMERATO RAMOS

oabsp nº 159.123


Notas

  1. Coloquei entre aspas tendo em vista que a suposta "interpretação" está sendo feita por leigos e, ainda por cima, emocionalmente envolvidos no respectivo drama familiar. De interpretação fundada na hermenêutica, portanto, não se trata.
  2. Código Civil, art. 1.846: "Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima".
  3. Cf. SILVA PEREIRA, Caio Mário. Instituições de direito civil, vol. VI – Direito das sucessões, Rio de Janeiro : Ed. Forense, 2005, 15ª ed., p. 3.
  4. Autor da herança é o falecido que deixa bens a suceder, sendo que literatura jurídica também o chama de sucedendo, defunto, falecido, antecessor, morto, finado, inventariado, de cujus, dentre outras denominações correlatas.
  5. Essa METADE a que me refiro é a chamada legítima, e mesmo que haja testamento essa parcela do patrimônio do falecido sempre será adquirida pelos herdeiros necessários. Importante notar que só há que se falar em legítima se, quando da abertura da sucessão, houver herdeiros necessários. O Código Civil, em seu art. 1.846, afirma que "pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança". Sobre a legítima, versaremos com mais vagar no item "6" deste parecer.
  6. A sucessão legítima – aquela que se dá entre os herdeiros necessários – poderá ser "por cabeça" ou "por estirpe", conforme o grau em que estejam os respectivos herdeiros. Deixando o de cujus filhos e netos, os filhos recebem seu quinhão "por cabeça", os netos, por sua vez, recebem "por estirpe" ou direito de representação de seu antecessor pré-falecido (quanto ao direito de representação ver arts. 1.851 e segts. do Código Civil). Por outro lado, caso o autor da herança só tenha netos como seus herdeiros necessários, todos eles recebem a herança em partes iguais, que será então dividida "por cabeça", tendo em vista estarem eles no mesmo grau.
  7. Maria Helena Diniz, arribada no magistério de Silvio Rodrigues, nos oferece dois exemplos emblemáticos em relação ao recebimento da herança "por cabeça" e "por estirpe" (ou direito de representação). Vejamos o exemplo da Profa. Titular de Direito Civil da PUC/SP na sucessão do descendente por cabeça: "Se deixou dois filhos, a herança será dividida em duas partes iguais, ficando uma com cada filho; se tem apenas três netos, por haverem seus filhos anteriormente falecido, o acervo hereditário será dividido pelo número de netos, recebendo cada um quota idêntica, já que se encontram no mesmo grau." (Cf. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro, vol. 6, Direito das Sucessões, São Paulo : Ed. Saraiva, 2002, 16ª ed., p. 97). Agora, o exemplo a respeito da sucessão por estirpe: "Se o finado tinha dois filhos vivos e três netos, filhos do filho pré-morto, a herança dividir-se-á em três partes. As duas primeiras partes cabem aos filhos vividos do de cujus, que herdam por cabeça, a terceira pertence aos três netos, que dividem o quinhão entre si e sucedem representando o pai falecido, dado que os filhos são parentes em primeiro grau e os netos, em segundo." (outra vez, DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro, vol. 6, Direito das Sucessões, São Paulo : Ed. Saraiva, 2002, 16ª ed., p. 98).

  8. CC, art. 1.835: "Na linha descendente, os filhos sucedem por cabeça, e os outros descendentes, por cabeça ou por estirpe, conforme se achem ou não no mesmo grau".
  9. CC, art. 1.789: "Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor de metade da herança".
  10. CC, art. 1.784: "Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários".
  11. CC, art. 1.789: "Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança".
  12. CC, art. 1.846: "Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima".
  13. CC, art. 1.857, § 1º: "A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento".
  14. CR, art. 5º, XXX: "é garantido o direito de herança".
  15. Expressão utilizada desde o direito romano que significa "sem testamento", ou seja, refere-se à pessoa que faleceu sem ter deixado testamento.
  16. Embora sejamos discípulos confesso da chamada teoria concepcionista – inclusive como conseqüência natural da dignidade da pessoa humana tutelada pelo direito civil constitucional – não entraremos aqui, até pelos limites do que está sendo tratado neste parecer, na respectiva discussão. Para o didatismo que se pretende na fundamentação do presente estudo, basta a afirmativa que acaba de ser feita, no sentido de que a "personalidade jurídica começa do nascimento com vida".
  17. CC, art. 2º: "A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro".
  18. Trecho extraído do seguinte acórdão: STJ – REsp 147959/SP – 4ª T. – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – j. 14/12/2000 – publicado no DJ em 19/03/2001 – p. 111.
  19. CC, art. 1.973: "Sobrevindo descendente sucessível ao testador, que não o tinha ou não o conhecia quando testou, rompe-se o testamento em todas as suas disposições, se esse descendente sobreviver ao testador".
  20. CC, art. 1.974: "Rompe-se também o testamento feito na ignorância de existirem ouros herdeiros necessários".
  21. Enquanto a "capacidade testamentária passiva", conforme já esclarecido neste parecer, é a possibilidade de se adquirir por testamento, a "capacidade testamentária ativa" é a possibilidade de manifestar disposições de última vontade em relação à parte disponível dos respectivos bens.
  22. Trecho extraído do seguinte acórdão, assim ementado: TJSP – Ap. Cível – 080060.4/3 – 9ª Câm. – Rel. Des. Brenno Marcondes – j. 09.11.99: "...Documento juridicamente ineficaz e caduco, em vista do falecimento da legatária, ocorrido em data anterior ao óbito do testador. Todavia, não mais existindo a beneficiária, pressuposto essencial e primeiro da capacidade para adquirir por testamento, não há mais nada a se cumprir, resultando aquele ato de última vontade, em disposição totalmente inoperante, caduca. Recurso não provido".

Autor

  • Glauco Gumerato Ramos

    Glauco Gumerato Ramos

    Mestrando em direito processual na Universidad Nacional de Rosario (UNR - Argentina). Mestrando em direito processual civil na PUC/SP Membro dos Institutos Brasileiro (IBDP), Iberoamericano (IIDP) e Panamericano (IPDP) de Direito Processual. Professor da Faculdade de Direito da Anhanguera Jundiaí (FAJ). Advogado em Jundiaí

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Glauco Gumerato. Consequências da pré-morte da herdeira testamentária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2808, 10 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/18629. Acesso em: 25 abr. 2024.