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O novo panorama do controle de constitucionalidade no Brasil.

"Abstrativização" do controle difuso

O novo panorama do controle de constitucionalidade no Brasil. "Abstrativização" do controle difuso

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Tal fenômeno se manifesta na doutrina e na legislação, ganhando fôlego com a EC 45/04, que criou os institutos da súmula vinculante e da repercussão geral no recurso extraordinário.

RESUMO: O presente trabalho pretende delinear e fazer uma análise crítica acerca do fenômeno chamado de "abstrativização" do controle difuso [01] de constitucionalidade. Tal fenômeno tem se manifestado tanto na doutrina quanto na legislação e ganhou fôlego com a EC45/04, que criou os institutos da Súmula Vinculante e da repercussão geral no Recurso Extraordinário. Pode ainda ser visto em alguns julgados do Supremo Tribunal Federal, proferidos em sede de controle difuso, nos quais se observa que a "ratio decidendi" desvinculou-se do caso concreto para atingir a todos (efeitos erga omnes e vinculante), alcançando efeitos típicos do controle concentrado. Assim, observa-se uma crescente "objetivização" da tutela constitucional, na medida em que as decisões do Supremo passam a visar não somente um caso concreto, mas a defesa da própria Constituição e sua força normativa, vinculando a todos. Questiona-se, porém a legitimidade e admissibilidade de sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro.

Palavras-chave:Controle de constitucionalidade. Controle difuso. Efeitos. Aproximação.

ABSTRACT: This essay (paper) wants to do a critical analysis on the phenomenon named "abstrativização" of the decentralized judicial review, outlining its more important features. That phenomenon has appeared both in the jurisprudence and in the law e became more important with the Constitutional Amendment n. 45/2004, that created both the institutes "Súmula Vinculante" and "Repercussão Geral" on the Extraordinary Appeal. It can also been see in some decisions from the Supremo Tribunal Federal, on the context of the decentralized judicial review, in which it can be seen that the "ratio decidendi" is free from the concrete situation and intent to reach obligatory and erga omnes effects that are the same of the centralized judicial review. Thus, it perceived an increasing "objetivização" of the constitutional protection, the extent that the decisions from the Supremo Tribunal Federal does not address themselves to a real situation, but intent to defend even the Constitution and its normative force, creating an erga omnes effect. At least, this paper makes the question on the legitimacy and the admissibility of the application of the "abstrativização" inside the Brazilian positive law.

Key words:Controlof constitutionality. Judicial review. Effects. Approximation.

SUMÁRIO:1.Introdução. 2. Breve digressão sobre o controle de constitucionalidade no Brasil. 3. Transformações no controle difuso. 3.1 A Emenda Cosntitucional nº 45 e a introdução da Repercussão Geral e da Súmula Vinculante 4. A nova tendência do STF nas decisões em controle difuso. 5. Argumentos que justificam a aproximação entre as formas de controle de constitucionalidade 6. Análise crítica da "abtrativização" do controle difuso. 7. Conclusão


1.Introdução

O controle de constitucionalidade serve para a garantia e proteção das normas constitucionais em face das normas ou atos jurídicos de hierarquia inferior ou, nas palavras de CARVALHO "controlar a constitucionalidade é verificar a adequação de uma lei ou de um ato normativo com a Constituição, nos seus aspectos formais e materiais" (2009, p. 362).

O Brasil adotou, no que tange ao controle de constitucionalidade, o sistema misto, isto é, o ordenamento jurídico brasileiro prevê tanto o controle concentrado quanto o controle difuso de constitucionalidade.

O controle concentrado é exercido exclusivamente pelo STF, em âmbito federal, e pelos Tribunais de Justiças dos estados federados, quando se tem como parâmetro as Constituições Estaduais. Esse tipo de controle é exercido por via de ação, que somente pode ser proposta por sujeitos predeterminados constitucionalmente. É o chamado controle abstrato, assim chamado porque tem por objetivo analisar a lei ou ato normativo em tese, sem se levar em conta qualquer caso concreto. Além disso, a decisão na ação pela via direta tem efeito erga omnes e força vinculante.

Já o controle difuso, pode ser exercido por qualquer órgão do Poder Judiciário – juiz, tribunais estaduais, federais, superiores, e pelo próprio STF, por meio do Recurso Extraordinário – sendo exercido por meio de exceção. A declaração de (in) constitucionalidade, nesse caso, é apenas a causa de pedir, no interior da análise de uma pretensão deduzida em juízo. É por isso chamado de controle concreto, já que tem por base uma situação concreta, e vincula somente as partes (efeito inter partes).

Para que a decisão em controle difuso gere efeitos erga omnes, é necessária a participação do Senado Federal, o qual, de acordo com o art. 52, inciso X, da Constituição de 1988, poderá editar resolução para suspender a execução da lei ou ato declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

Acontece que, não obstante existirem dois sistemas de controle de constitucionalidade bem definidos e com características próprias, observa-se, no Brasil, uma forte tendência de aproximação do controle difuso ao controle concentrado, ao menos no que no que tange aos seus efeitos.

O fenômeno, chamado de "abstrativização do controle difuso de constitucionalidade", consiste na tendência, cada vez mais difundida, de aproximação dos efeitos das decisões proferidas no controle concreto, aos efeitos da via direta de controle de constitucionalidade, isto é, em alguns casos, a decisão desvincula-se do caso concreto, para atingir a todos (efeitos erga omnes e vinculante).

Essa "objetivização" do controle difuso tem se manifestado tanto na legislação quanto na jurisprudência e ganhou fôlego com a EC45/04, que criou os institutos da Súmula Vinculante e da repercussão geral no Recurso Extraordinário.

A doutrina também já tem se manifestado sobre o tema, sendo que os adeptos da nova teoria apontam diversos argumentos que fundamentam a referida modificação no controle de constitucionalidade. Dentre os argumentos citados pela doutrina pode-se citar a força normativa da Constituição e o princípio da supremacia da Constituição. Fala-se ainda em uma suposta "mutação constitucional", com conseqüente mudança na interpretação do art. 52, X da CF.

No que tange à jurisprudência do STF, a tendência de "abstrativização" do controle difuso de constitucionalidade já se fez presente em algumas decisões da Suprema Corte, e vem ganhando espaço de discussão entre os ministros. O fenômeno pode ser visto no emblemático HC82.959/SP, bem como no Recurso Extraordinário 197.917-SP, que decidiu sobre o número de vereadores nos municípios do país.

Esses exemplos mostram claramente a tendência que será analisada nessa exposição. Assim, observa-se uma crescente "objetivização" da tutela constitucional, na medida em que as decisões do Supremo passam a visar não somente um caso concreto, mas a defesa da própria Constituição, vinculando a todos.

Acontece que não há qualquer dispositivo, seja constitucional, seja na legislação ordinária, que estabeleça ou autorize essa objetivação. Ao contrário, fazendo-se uma interpretação literal do art. 52, X da Carta Magna, observa-se que a "abstrativização", ao menos da forma que tem sido utilizada pelo STF, encontra óbice, já que a Lei Maior é expressa ao exigir a participação do Senado no que tange à suspensão da execução da norma declarada inconstitucional pelo STF.

Ademais, questiona-se se não estaria o STF com excesso de poder nas mãos e, ainda, se não estaria excedendo os limites da legitimidade da jurisdição constitucional.

Por todo o exposto, é oportuna a análise do fenômeno da "abstrativização" do controle difuso, já que, não sem críticas e discussões entre os estudiosos dos direito, vem ganhando espaço na doutrina brasileira, com reflexos na legislação e jurisprudência do STF.

Ressalta-se, por fim, que não tem a presente pesquisa a intenção de encerrar o assunto, mas tão somente trazer a lume algumas características e idéias em relação ao problema proposto, a fim de incentivar e acirrar o debate acerca de tema deveras atual e polêmico.


2. Breve digressão sobre o controle de constitucionalidade no Brasil

Para se compreender a evolução do controle de constitucionalidade no Brasil faz-se necessário proceder a uma análise, ainda que breve, dos dois grandes sistemas jurisdicionais de controle, delineando suas principais características e efeitos, apontando ainda suas semelhanças e diferenças.

O controle judicial de constitucionalidade [02] no Brasil é considerado misto ou eclético, isto é, o ordenamento brasileiro atual estabelece tanto o controle concentrado quanto o controle difuso de constitucionalidade.

O controle difuso tem origem norte-americana, e surgiu a partir do emblemático caso Marbury v. Madison [03], julgado por Jonh Marshall, no ano de 1803. A esse julgamento é atribuído, se não o nascimento [04], ao menos a consolidação do sistema de controle judicial da constitucionalidade já que, a partir dele, conferiu-se aos juízes a interpretação da lei infraconstitucional e sua não aplicação, caso divergente da norma constitucional. Nesse momento, surgiu também a idéia de supremacia da Constituição.

Segundo CUNHA JÚNIOR (in NOVELINO, 2008, p. 288):

Com a decisão de MARSHALL, jurídica e logicamente irretorquível, acolheu-se a tese de que as Constituições, sobretudo nos sistemas de Constituições rígidas, são normas jurídicas fundamentais e supremas a quaisquer outras, devendo sempre prevalecer, de tal sorte que, diante da desconformidade entre uma Constituição e uma lei, o juiz é obrigado a aplicar a Constituição e a não aplicar a lei, que, nesse caso, é írrita. Nasceu, portanto, com a célebre decisão, o controle judicial da constitucionalidade das leis. E é isso que importa.

No Brasil, o controle difuso foi inserido no ordenamento jurídico desde a primeira Constituição Republicana, de 1891, estando presente em todas as subseqüentes, inclusive na atual Carta Constitucional, de 1988.

Esse tipo de controle pode ser exercido por qualquer órgão do Poder Judiciário (juiz, tribunais estaduais, federais, superiores, e pelo próprio STF, por meio do Recurso Extraordinário), tendo também ampla legitimidade ativa, vez que pode ser exercido por qualquer pessoa que demanda em juízo, podendo mesmo ser feito ex oficio pelo magistrado, ao exarar um provimento jurisdicional.

O controle da constitucionalidade, nesse caso, é feito por meio de um incidente processual dentro de uma situação concreta, isto é, a questão constitucional é resolvida na fundamentação da decisão judicial, sendo sempre incidenter tantum (DIDIER JÚNIOR, in NOVELINO, 2008). A declaração de (in)constitucionalidade, portanto, é apenas a causa de pedir, no interior da análise de uma pretensão deduzida em juízo.

Por isso, o controle difuso é também chamado de controle concreto, já que tem por base um caso específico, em que as partes demandam em juízo por determinado bem jurídico, sendo a norma a ser declarada (in)constitucional apenas o fundamento para a pretensão, mas não a pretensão em si mesma. Também por esse motivo, os efeitos da decisão acerca da matéria constitucional vinculam somente as partes demandantes (efeito inter partes).

Ademais, fazendo parte da fundamentação do provimento jurisdicional e não do dispositivo da decisão, a decisão de (in) constitucionalidade proferida em sede de controle difuso não está apta a produzir coisa julgada material. Ensina DIDIER JÚNIOR que "obviamente, porque tomada em controle difuso, a decisão não ficará acobertada pela coisa julgada e será eficaz apenas inter partes" (in NOVELINO, 2008, p. 273).

Assim, pode-se dizer que "se cuida de um controle subjetivo, pois desenvolvido em razão de um conflito de interesses intersubjetivos, cuja finalidade principal é a defesa de um direito subjetivo ou de um interesse legítimo juridicamente protegido" (CUNHA JÚNIOR, in NOVELINO, p. 290).

Mencione-se, ademais, que, para que a decisão em controle difuso gere efeitos erga omnes, é necessária a participação do Senado Federal, que, de acordo com o art. 52, inciso X, da Constituição de 1988, poderá editar resolução para suspender a execução da lei ou ato declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

Por fim, cumpre destacar que a decisão pela inconstitucionalidade, se proferida por tribunal, deve ser dada pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou de seu órgão especial, respeitando-se a cláusula de reserva de plenário, prevista no art. 97 da Constituição Federal.

O controle de constitucionalidade concentrado, por sua vez, tem origem européia e foi idealizado por Hans Kelsen, sendo visto pela primeira vez na Constituição austríaca de 1920 e depois difundida por vários países da Europa (NOVELINO, 2009, p. 257). Por isso, também é denominado sistema europeu ou austríaco.

No Brasil, o controle concentrado ganhou previsão constitucional somente em 1965, através de emenda constitucional que modificou a Constituição Federal de 1946, "com a criação da representação genérica de inconstitucionalidade" (CUNHA JÚNIOR, in NOVELINO, 2008, p. 295)

Desde então, esse tipo de controle vem ganhando força e espaço no ordenamento jurídico brasileiro, sendo consolidado, finalmente, com a Constituição Federal de 1988, a qual aperfeiçoou e ampliou significativamente o sistema de controle concentrado de constitucionalidade, instituindo, ao lado da ação direta de inconstitucionalidade (ADI, prevista no art. 102, I, "a"), já existente nas constituições anteriores, diversos outros mecanismos de controle direto: a ADI por omissão (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão - art. 103, §2º), a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - art.102, §1º), a ADC (Ação Declaratória de Constitucionalidade - art. 102, I, "a") [05], além da Ação Direta de Inconstitucionalidade Interventiva (art. 36, III). Essa última não é novidade na atual Carta Constitucional, tendo seu embrião na Constituição de 1934.

A Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, disciplina o processo e julgamento da ADI e ADC perante o Supremo Tribunal Federal. A Lei nº 9.882, de 03 de dezembro de 1999, regulamenta o procedimento da ADPF.

O controle concentrado é exercido por meio de ação, cujo objeto é a própria análise da adequação de determinada lei infraconstitucional em relação às normas formalmente constitucionais. Em outros termos, o exame da constitucionalidade caracteriza o próprio pedido da ação e não somente a causa de pedir, como ocorre no controle difuso-incidental. A decisão de (in)constitucionalidade integra, pois, o dispositivo do provimento jurisdicional, fazendo coisa julgada material.

Segundo DIDIER JÚNIOR (in NOVELINO, 2008, p. 273) "[...] o controle concentrado, no Brasil, é feito principaliter tantum, ou seja, a questão sobre a constitucionalidade da lei compõe o objeto litigioso do processo e a decisão a seu respeito ficará imune pela coisa julgada material, com eficácia erga omnes"

Além do mais, o controle concentrado é também chamado de controle abstrato, já que, em regra, analisa a lei ou ato normativo em tese, sem se levar em conta qualquer caso concreto. É considerado, por isso, um processo objetivo. Conforme preceitua NOVELINO, o controle concentrado "tem por finalidadeprecípua a defesa da ordem constitucional objetiva, independentementeda existência de lesões concretas a direitos subjetivos" (2009, p. 257).

Os efeitos da decisão em controle concentrado-abstrato são vinculantes e erga omnes, e não apenas intra partes. Aqui, não há necessidade de comunicação ao Senado Federal para a suspensão da norma considerada inconstitucional, já que a própria decisão do STF ou TJ retira a norma viciada do ordenamento jurídico.

Diferentemente do controle difuso-incidental, o controle concentrado é exercido exclusivamente pelo STF, em âmbito federal, e pelos Tribunais de Justiça dos Estados Federados, quando se tem como parâmetro as Constituições Estaduais.

Ademais, esse tipo de ação somente pode ser proposta por sujeitos predeterminados constitucionalmente. Nesse ponto, é importante destacar que, embora a Constituição de 1988 tenha ampliado significativamente o rol de legitimados ativos [06] em relação às Constituições que a precederam [07], ainda se tem um número bem restrito de partes legítimas para a demanda via controle concentrado, se comparado com o número irrestrito de legitimados no controle difuso.

Mas ainda assim, afirmam alguns doutrinadores [08] que a ampliação da legitimação é um dos motivos tem levado ao enfraquecimento do controle difuso, alegando mesmo que este perdeu parte de seu sentido, diante da amplitude de legitimados a propor ação direta.

Compartilha desse entendimento CUNHA JÚNIOR (in NOVELINO, 2008, p. 297), ao afirmar que

Com o novo arranjo jurídico-constitucional traçado pela Constituição vigente, determinante da amplitude das ações especiais e diretas de controle concentrado e da fixação de um extenso rol de legitimados para a propositura dessas ações, o controle difuso-incidental sofreu, sem dúvida, uma significativa restrição.

Como visto, o ordenamento jurídico brasileiro acolheu os dois grandes sistemas de controle judicial repressivo de constitucionalidade, difuso e concentrado, os quais convivem lado a lado, com suas semelhanças e especificidades.

De acordo com o que se mencionou acima, é possível perceber que os dois sistemas de controle encontram diferenças sensíveis, que vão desde a origem até os efeitos alcançados por cada tipo de controle.

Acontece que, não obstante tamanha diferença entre os controles difuso e concentrado de constitucionalidade, pode-se observar uma crescente aproximação entre eles, ao menos no que tange aos seus efeitos, conforme de demonstrará adiante.


3. TRANSFORMAÇÕES NO CONTROLE DIFUSO

Conforme se destacou linhas acima, os dois sistemas de controle de constitucionalidade presentes no ordenamento brasileiro apresentam diferenças marcantes, dentre as quais se destaca a variação quanto aos efeitos das decisões proferidas em cada um deles. É que, enquanto o controle concentrado-abstrato tem efeito vinculante e eficácia erga omnes, o controle difuso-incidental tem eficácia somente inter partes.

Essa diferença se deve ao fato de que a questão constitucional no controle concentrado é principaliter tantum (objeto do pedido) e no controle difuso é incidenter tantum (questão incidente)(DIDIER JÚNIOR, in NOVELINO, 2008, p. 273).

No entanto, o que se observa é uma tendência de aproximação entre os dois sistemas, na medida em que o controle concreto ganha feições de processo objetivo, se assemelhando ao controle abstrato, ao menos no que tange aos seus efeitos.

Esse fenômeno tem sido chamado de "abstrativização" do controle difuso, porquanto se observa uma mitigação dos efeitos típicos do controle difuso-incidental e uma valorização dos efeitos característicos do controle abstrato, quais sejam, eficácia erga omnes e força vinculante.

A tendência pode ser vista tanto na legislação quanto na jurisprudência, mormente do STF, com reflexos na doutrina, que vem travando importante debate sobre o tema [09].

No que tange à legislação vê-se, num primeiro momento, o surgimento da chamada súmula impeditiva de recursos (art. 557, do CPC), a qual, de maneira discreta, conferiu certa dose de obrigatoriedade às súmulas e jurisprudência dominante dos Tribunais Superiores.

Ademais, a reforma do Judiciário, consolidada na Emenda Constitucional nº45/04 [10], conferiu ainda mais força à aproximação dos sistemas de controle de constitucionalidade, ao estabelecer os institutos da repercussão geral e da Súmula Vinculante.

Esses institutos atribuíram ao Recurso Extraordinário, instrumento de controle concreto, efeitos típicos do controle abstrato, demonstrando uma aproximação entre os dois sistemas de controle, na medida em que as características do controle difuso ficam atenuadas, numa clara "objetivação do Recurso Extraordinário" [11].

É certo que tais mudanças têm o nítido objetivo de conter a avalanche de processos de aportam no STF todos os anos, fazendo com que, mais do que um guardião da Constituição, o Supremo seja apenas mais um grau recursal, destinado a reformar decisões proferidas nas instâncias inferiores, julgando processos que dizem respeito apenas a interesses das partes demandantes.

Nesse sentido, assevera MONTEZ (2008) que "[...] muitas vezes, o recurso extraordinário era utilizado como instrumento a permitir a revisão da decisão por mais uma instância, ou seja, o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, passava a atuar como um tribunal recursal de causas meramente privadas".

Acontece que, na ânsia de se reduzir a quantidade de processos na Suprema Corte, acabou-se por retirar do Recurso Extraordinário as características de recurso marcadamente subjetivo, isto é, de defesa de interesses exclusivos das partes, transformando-o em instrumento de defesa da ordem constitucional objetiva.

A seguir, será feita uma análise mais pormenorizada dos dispositivos legais que representam a tendência ora estudada, abordando-se os institutos da súmula impeditiva de recursos, repercussão geral e súmula vinculante.

3.1- A Emenda Constitucional nº 45/04 e a introdução da Repercussão Geral e da Súmula Vinculante

A Emenda Constitucional nº45, de 08 de dezembro de 2004 operou a chamada "Reforma do Judiciário", introduzindo no ordenamento jurídico brasileiro os institutos da Repercussão Geral e da Súmula Vinculante.

A repercussão geral, prevista no art. 102, §3º, da Constituição Federal e regulamentada pela Lei 11.418/06, visa a obstar que questões de cunho unicamente particular sejam levadas a julgamento no STF, por meio do Recurso Extraordinário. Assim, para que o RE seja admitido na Corte Suprema, o recorrente deverá demonstrar a relevância da questão constitucional discutida, o que significa que tal questão deve ultrapassar os interesses subjetivos da causa.

BEÇAK esclarece que "antes, no sistema anterior, havia como que uma pressuposição genérica, a de que, qualquer eventual ofensa objetiva à Constituição seria relevante. Hoje, não mais. É necessário um plus" (2008).

Trata-se, pois, de um novo requisito de admissibilidade do Recurso Extraordinário, cuja principal intenção é conter a enorme quantidade de processos que chegam ao STF, com o único objetivo de reformar sentença proferida em única ou última instância, como se o Supremo fosse apenas mais uma instância judicial, descaracterizando sua função de guardião da Constituição.

Segundo LENZA (2008, p.476) "[...] trata-se de importante instituto seguindo a tendência de se erigir o STF a verdadeira Corte Constitucional e, também, mais uma das técnicas trazidas pela Reforma do Judiciário na tentativa de solucionar a denominada "Crise do STF e de Justiça."

Se a Constituição Federal, ao estabelecer a repercussão geral (art. 102,§3º) deixava dúvida quanto sua caracterização, a Lei 11.418/06, que regulamentou o instituto, dirimiu, ao menos em parte, as dificuldades. É que referida lei alterou o Código de Processo Civil, inserindo os artigos 453-A e 453-B, trazendo um maior detalhamento acerca da conceituação e características da repercussão geral.

O §1º, do art. 543-A, traz um conceito genérico, ao estabelecer que

§ 1º  Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.

Estabeleceu-se, ademais, uma hipótese específica, aonde, independentemente do caso concreto, a repercussão geral estará sempre presente. Trata-se do §3º do art. 543-A:

§ 3º  Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.

Além do mais, mencionada lei regulou o procedimento a ser utilizado para a subida dos recursos ao STF, além de tratar do incidente de análise da repercussão geral por amostragem, que é a hipótese de julgamento de processos múltiplos fundados em idêntica controvérsia.

Nesse caso, serão escolhidos alguns processos que representem a discussão comum, ficando os outros sobrestados até ulterior decisão nos processos selecionados. Proferida a decisão, esta será aplicada automaticamente aos processos suspensos.

Na lição de DIDIER JÚNIOR (in NOVELINO, 2008, p. 280)

O STF julgará um, ou alguns, recurso (s) extraordinário(s), que envolva(m) a mesma questão de direito – a(s) decisão(ões) recorrida(s) tem(êm) a mesma ratio decidendi. Se negar a existência de repercussão geral, todos os demais, que não subiram ao STF, reputam-se não-conhecidos, Eis o julgamento por amostragem.

Nesse ponto, pode-se verificar que o julgamento por amostragem é um procedimento que muito se aproxima dos institutos do controle concentrado, já que tem natureza objetiva. A decisão, nesse caso, desprende-se do caso concreto para atingir a todos os processos sobrestados, fundados em idêntica controvérsia. Ou seja, a decisão proferida em um único processo tem força vinculante em relação aos demais, que nem mesmo foram objeto de análise pelo Supremo.

Resta demonstrado, assim, o caráter obrigatório e vinculante das decisões proferidas pela Suprema Corte, corroborando tudo o que já fora até aqui falado acerca da aproximação entre o controle difuso-incidental e o controle concentrado-abstrato.

LENZA (2008, p. 476), ao se referir sobre o tema, assevera que

Em interessante tendência de aproximação do controle difuso aos efeitos do controle concentrado (influência do Ministro Gilmar Mendes), o art. 453-A, §5º, do CPC, introduzido pela Lei 11.418/06, estabelece que, sendo negada a existência da repercussão geral (do caso concreto, individualizado), a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

E arremata dizendo que "parece, então, que se trata de mais uma hipótese de súmula impeditiva de recurso, no caso do recurso extraordinário, servindo como "barreira" para o acesso ao STF de todos os casos que tratem da mesma matéria, ou melhor, de recurso com fundamento em idêntica controvérsia"

Assim, fica claro que a repercussão geral surgiu como um importante instrumento que, para além de servir como forma de racionalização e diminuição do número de processos no STF, tem uma nítida função de retirar do Recurso Extraordinário seu caráter subjetivo, voltado para a defesa de interesses privados, passando a ser ferramenta de análise da validade das normas frente à Constituição. Devolve-se ao STF, dessa forma, o papel de guardião da Constituição, função para a qual foi criado.

Por fim, destaca-se a lição NOVELINO, o qual afirma que "este novo requisito intrínseco de admissibilidade recursal demonstra que o recurso extraordinário vem perdendo seu caráter eminentemente subjetivo, para assumir a função de defesa da ordem constitucional." (2009, p. 659).

A Súmula Vinculante foi criada com a mesma finalidade da repercussão geral, assim como de toda a Reforma do Judiciário, qual seja, a de controlar os incontáveis processos que chegam ao STF, muitos deles versando sobre casos idênticos e muitas vezes desafiando questões já pacificadas ou mesmo sumuladas pelo Tribunal.

A súmula de efeito vinculante é também um importante instrumento de "abstrativização" do controle difuso, na medida em que confere efeito obrigatório ao posicionamento sumulado pela Corte Suprema, ainda que a decisão da controvérsia que deu origem à referida súmula tenha sido proferida em sede de controle difuso-incidental.

Conforme leciona NOVELINO (2009, p. 661-662):

Ao conferir um efeito próprio do controle abstrato a um entendimento adotado em decisões proferidas a partir da análise de um caso concreto, a súmula vinculante se insere neste ambiente reforçando ainda mais a tendência de abstrativização do controle concreto de constitucionalidade.

A súmula vinculante foi prevista no art. 103-A da Constituição Federal, e regulada através da Lei 11.417/06.

A Emenda Constitucional nº 45/04, responsável pela introdução do instituto no ordenamento jurídico brasileiro, atribuiu competência para a instituição da Súmula de efeito vinculante somente ao órgão Supremo do Poder Judiciário, a quem cabe, precipuamente, a guarda da Constituição.

A súmula vinculante tem por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas constitucionais, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. Além do mais, só poderá ser aprovada depois de reiteradas decisões sobre o mesmo assunto.

Depois de aprovada pela Suprema Corte, por dois terços de seus membros, referida súmula terá efeito vinculante e obrigatório em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário bem como à administração pública, direta e indireta, em todas as esferas de poder (federal, estadual e municipal). Só não ficam vinculados o próprio STF e o Poder Legislativo, evitando-se, com isso, o temido engessamento do Direito.

Além disso, poderá o STF, de ofício ou mediante provocação, proceder à revisão, cancelamento ou revisão da súmula, na forma estabelecida pela Lei que a regulamenta (Lei nº 11.417/06).

Não se pode deixar de mencionar ainda que, o art. 103-A, § 3º é expresso ao conferir àquele que for lesado ou ameaçado de lesão por ato administrativo ou decisão judicial que contrariar ou aplicar indevidamente súmula vinculante legitimidade ativa para propor a reclamação perante o Supremo Tribunal Federal, visando a garantir a autoridade de suas decisões vinculantes.

Exsurge, pois, a Súmula Vinculante como um remédio capaz de dotar de agilidade e eficácia a máquina emperrada da Justiça, evitando repetição inútil de causas, bem como o dissenso de vários órgãos julgadores em instâncias inferiores, quando já houver uma decisão pacificadora em Corte Superior no mesmo sentido, diminuindo assim, o número de demandas em curso nos tribunais.

Mais do que isso, a súmula vinculante, assim como a repercussão geral, têm importante significado na "abstrativização" do controle difuso, uma vez que confere uma aproximação dos efeitos do controle difuso em relação ao controle concentrado.

Nas palavras de NOVELINO (2009, p. 243)

O efeito vinculante, típico do controle abstrato, conferido a um enunciado de súmula aprovado a partir de reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aponta para uma tendência de abstrativização. Por outro lado, a exigência de demonstração da repercussão geral das questões constitucionalmente discutidas, como requisito intrínseco de admissibilidade recursal, demonstra que o recurso extraordinário vem perdendo seu caráter eminentemente subjetivo para assumir um papel de defesa da ordem constitucional objetiva.

Vistas as principais inovações trazidas pela EC nº 45/04 e sua contribuição para o crescimento do fenômeno ora estudado, passa-se a seguir ao estudo da jurisprudência do STF acerca do tema.


4. A NOVA TENDÊNCIA DO STF NAS DECISÕES EM CONTROLE DIFUSO

Se a tendência de "abstrativização" do controle difuso já apresenta seus primeiros traços na legislação brasileira, é na jurisprudência do STF que ela pode ser vista com maior intensidade.

Isso porque, o fenômeno tem como principal expoente o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, atual presidente do STF [12]. Além de fazer importante estudo acerca do tema, o Ministro tem se utilizado do "novel" instituto em seus votos, mormente naqueles processos em que figura como relator.

Mas, a tendência aparece também em votos de outros Ministros da Suprema Corte, a exemplo de Celso de Melo e Eros Grau, seja acolhendo a tese defendida por Gilmar Mendes, seja em decisões por eles relatadas.

O fenômeno pode ser visto, por exemplo, no Recurso Extraordinário nº 197.917-SP [13], no qual o pleno do STF, interpretando a cláusula de proporcionalidade descrita no art. 29, inciso IV, da Constituição de 1988, decidiu sobre o número de vereadores nos municípios do país.

Com base nessa decisão, o TSE emitiu a Resolução 21.702/2204, a qual foi dada eficácia erga omnes [14]. Contra essa resolução foram interpostas duas ADIs (3.345 e 3.365), relatas pelo Ministro Celso de Melo, sendo ambas julgadas improcedentes, ao argumento de que "o TSE, ao expandir a interpretação constitucional definitiva dada pelo STF, "guardião da Constituição", submeteu-se ao princípio da força normativa da Constituição" (DIDIER JÚNIOR, 2008, p. 277).

Nessa decisão, vê-se claramente a adoção da tese da "abstrativização", já que se conferiu força vinculante e eficácia erga omnes a uma decisão proferida em Recurso Extraordinário, instrumento típico de controle concreto.

O mesmo aconteceu na decisão da Suprema Corte no emblemático HC.82.959/SP. Nesse julgado, o STF reconheceu a inconstitucionalidade do §1º, do art.2º da Lei 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos) [15], admitindo a progressão de regime em crimes hediondos. Como visto, tal julgamento foi proferido em sede de HC, tendo por base uma situação concreta. Assim, levando-se em consideração as características do controle difuso, a decisão deveria ter eficácia ex tunc e efeito somente inter partes, isto é, em tese não vincularia terceiros que não fossem parte na ação.

Mas não foi o que se viu. A decisão foi exarada pelo pleno do STF, aonde o tema foi discutido não só observando-se o caso concreto, objeto da demanda, mas com a preocupação de analisar a lei em tese, a fim de dar uma resposta correta e definitiva, de modo a gerar efeitos a "todos" os condenados pela prática de crime hediondo, isto é efeito erga omnes e força vinculante.

Além do mais, aplicando-se analogicamente o art. 27 da Lei nº 9.868/99 (Lei que regulamenta a ADI e ADC), Suprema Corte conferiu eficácia ex nunc à decisão, ou seja, eficácia não retroativa. Em outros termos, o Supremo se utilizou de um instrumento do controle concentrado em uma decisão proferida em sede de Habeas Corpus (controle difuso-incidental).

E não é só isso. A situação tornou-se ainda mais complexa depois da interposição, no STF, da Reclamação 4.335/AC, de autoria da Defensoria Pública do Estado do Acre, ao argumento de que um juiz daquele Estado da Federação teria desobedecido a decisão proferida pelo Supremo no HC 82.959/SP, ao adotar entendimento contrário ao da Suprema Corte, vedando a progressão de regime a condenados pela prática de crime hediondo.

Em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes, relator da referida reclamação, julgou procedente o pedido, para cassar as decisões proferidas pelo juiz do Acre, considerando que

[com] a multiplicação de decisões dotadas de eficácia geral e do advento da Lei 9.882/99, alterou-se de forma radical a concepção que dominava sobre a divisão de poderes, tornando comum no sistema a decisão com eficácia geral, que era excepcional sob a EC 16/65 e a CF 67/69. (...) Concluiu, assim, que as decisões proferidas pelo juízo reclamado desrespeitaram a eficácia erga omnes que deve ser atribuída à decisão do STF no HC 82959/SP. Após, pediu vista o Min. Eros Grau. [16]

Acompanhando o voto do relator, o Ministro Eros Grau também julgou procedente a reclamação, argumentando que a decisão do STF, no citado Habeas Corpus, "tem força normativa bastante para suspender a execução da lei" [17].

Ambos os Ministros usaram como fundamento de seus votos a chamada "mutação constitucional". Tal fenômeno pode ser entendido como uma alteração da norma de um texto constitucional, sem modificação no próprio texto. Em outros termos, é a transformação do sentido do texto constitucional, sem que o texto seja mudado em sua redação.

Nessa linha, entenderam os Ministros que, houve uma "autêntica mutação constitucional" [18] no que tange ao art. 52, X, da CF/88, na medida em que se modificou a norma que estabelecia que compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, passando a ser adotada outra norma, que estabelece que, cabe ao Senado apenas dar publicidade às decisões da Suprema Corte proferidas em controle de constitucionalidade, decisões estas que já nascem dotadas de força vinculante e eficácia erga omnes [19].

Com opinião divergente, o Ministro Sepúlveda Pertence julgou improcedente o pedido, no entanto, concedeu habeas corpus de ofício. Entendeu o Ministro que

não se poderia, a partir daí, reduzir-se o papel do Senado, que quase todos os textos constitucionais subseqüentes a 1934 mantiveram. Ressaltou ser evidente que a convivência paralela, desde a EC 16/65, dos dois sistemas de controle tem levado a uma prevalência do controle concentrado, e que o mecanismo, no controle difuso, de outorga ao Senado da competência para a suspensão da execução da lei tem se tornado cada vez mais obsoleto, mas afirmou que combatê-lo, por meio do que chamou de "projeto de decreto de mutação constitucional", já não seria mais necessário [20].

Por sua vez, o Ministro Joaquim Barbosa, não conheceu da reclamação, mas também concedeu habeas corpus de ofício [21].

Como visto, a Reclamação 4335/AC, que se encontra ainda pendente de julgamento [22], pode representar grande mudança de paradigma no que tange aos efeitos do controle de constitucionalidade.

Nas palavras de STREK e OLIVEIRA (2008)

ao final dos debates entre os Ministros daquela Corte, poder-se-á chegar, de acordo com o rumo que a votação tem prometido até o momento, a uma nova concepção, não somente do controle de constitucionalidade no Brasil, mas também de poder constituinte, de equilíbrio entre os Poderes da República e de sistema federativo.

Assim, a depender do entendimento que prevalecerá ao final da decisão [23], poder-se-á chegar à consolidação da tese da "abstrativização do controle difuso de constitucionalidade", na medida em que uma decisão proferida em sede de Habeas Corpus, instrumento do controle difuso, passará a ter efeito erga omnes e força vinculante, efeitos típicos do controle abstrato, cabendo até mesmo Reclamação Constitucional contra decisão que acolha entendimento contrário ao da Suprema Corte.

Segundo STREK e OLIVEIRA (2008) tal julgamento é de extrema importância porque discute

primeiro, o caminho para a decisão que equipara os efeitos do controle difuso aos do controle concentrado, que só pode ser feito a partir do que – nos votos – foi denominado de "mutação constitucional", que consistiu, na verdade, não a atribuição de uma (nova) norma a um texto (Sinngebung), mas, sim a substituição de um texto por outro texto (construído pelo Supremo Tribunal Federal); o segundo ponto é saber se é possível atribuir efeito erga omnes e vinculante às decisões emanadas do controle difuso, dispensando-se a participação do Senado Federal ou transformando-o em uma espécie de diário oficial do Supremo Tribunal Federal em tais questões.

Assim, resta aguardar o término da votação dos Ministros, para que se possa saber a posição final do STF acerca do tema. Tudo leva a crer que a Corte adotará a tese da "abstrativização", principalmente se forem levados em conta os precedentes da Corte [24].


5. OS ARGUMENTOS QUE JUSTIFICAM A APROXIMAÇÃO ENTRE AS FORMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Diante de tantas transformações na legislação e jurisprudência do STF, a doutrina não se manteve inerte.

Posicionamentos dos mais diversos surgem em âmbito doutrinário, objetivando fundamentar e embasar, teoricamente, o fenômeno que nasceu pelas mãos do legislador, e ganhou relevo através da criação jurisprudencial. Senão vejamos.

Em importante estudo sobre o tema, Dirley da Cunha Junior traça o entendimento de que a aproximação entre os sistemas de controle de constitucionalidade é plenamente justificável diante da atual posição do STF, de Guardião da Constituição, não mais se justificando a diferenciação dos efeitos entre as decisões de controle de constitucionalidade, seja em âmbito difuso, seja em sede de controle concentrado (in NOVELINO, 2008, p. 283).

É que, segundo referido autor, no âmbito do STF, as decisões, independentemente do tipo de controle, são proferidas pelo mesmo órgão, qual seja, o pleno da Corte (2008, p. 284). Por isso, não há sentido em se atribuir eficácia geral e vinculantenas decisões proferidas no controle concentrado e não se conceder esses mesmos efeitos nas decisões proferidas pela via incidental. Com base nesse entendimento, indaga:

Enquanto Corte Constitucional, qual a razão de fazer depender da intervenção do Senado os efeitos erga omnes da decisão do Supremo Tribunal que declara a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo em face do caso concreto? Será que o STF deixa de ser Corte Constitucional só porque a inconstitucionalidade da lei foi declarada à luz de uma controvérsia entre as partes?

E chega à seguinte conclusão:

é chegada a hora, assim, de igualar as conseqüências da decisão da Suprema Corte, com o fito especial de estender os efeitos erga omnes às decisões de inconstitucionalidade proferidas pelo Tribunal no controle difuso de constitucionalidade (...). Sem dúvida a identidade de tratamento é medida salutar que só vem a reforçar o nosso sistema de defesa ou garantia da Constituição. (2008, p. 284)

A doutrina argumenta ainda que esse novo posicionamento acerca do controle difuso justifica-se pelo princípio da supremacia da Constituição e por sua força normativa, bem como pelo fato de ser o STF o guardião da Constituição e seu intérprete máximo, sendo detentor da última palavra nas questões constitucionais (LENZA, 2008).

Em relação à força normativa da Constituição [25] entende-se que, na solução de conflitos envolvendo questões constitucionais, deve-se conferir a maior imperatividade e efetividade às normas da Constituição, garantindo-se sua eficácia e permanência, e sua prevalência em relação às normas de hierarquia inferior.

Ensina CAMBI (2007, p/p. 6/7) que

afirmar que as normas constitucionais têm força normativa é reconhecer que a Constituição não é apenas uma carta de intenções políticas, mas que está dotada de caráter jurídico imperativo. Se a Constituição vale como uma lei, as regras e os princípios constitucionais devem obter normatividade, regulando jurídica e efetivamente as condutas e dando segurança a expectativas de comportamentos. Com efeito, o reconhecimento da força normativa da Constituição marca uma ruptura com o Direito Constitucional clássico, onde se visualizavam normas constitucionais programáticas que seriam simples declarações políticas, exortações morais ou programas futuros e, por isto, destituída de positividade ou de eficácia vinculativa.

Assim é que, diante da força cogente das normas constitucionais, não há como manter uma norma infraconstitucional já declarada inconstitucional pelo STF no ordenamento jurídico, sendo ainda considerada válida para os indivíduos que não fizeram parte da demanda em que se declarou sua nulidade. A norma inválida deve ser afastada definitivamente do ordenamento, sob pena de enfraquecimento da força normativa da Constituição.

O professor NOVELINO (2009, p. 244), ao tratar do tema, afirma que

para os defensores da concentração do controle de constitucionalidade, a interpretação dada pelo STF possui especial relevância por ser ele o guardião da Constituição (CF, art. 102), a quem cabe dar a última palavra na descoberta do conteúdo e na fixação do alcance das normas constitucionais. Sustenta-se que interpretações divergentes acabam por enfraquecer a força normativa da Constituição.

De acordo com o princípio da supremacia da Constituição, nenhuma norma que seja incompatível com a Carta Constitucional pode ser considerada válida. Toda a legislação infraconstitucional do ordenamento deve se conformar com os preceitos constitucionais, formal e materialmente. Em outros termos, tanto a forma de elaboração e edição da norma infraconstitucional, quanto seu conteúdo, devem se amoldar à Constituição, sob pena de invalidade.

Na lição de CARVALHO "a Constituição é a fonte inicial, fundamento das demais normas, fundamento de existência e validade de todas as normas jurídicas que compõem o sistema normativo" (2009, p. 365).

E é por isso que, quando declarada a inconstitucionalidade de uma norma infraconstitucional, ainda que em sede de controle difuso-incidental, essa norma deve ser afastada definitivamente do ordenamento jurídico, não sendo mais aplicável mesmo em relação aos indivíduos que não fizeram parte do processo que culminou em tal decisão de inconstitucionalidade.

Ademais, ZAVASCKI (2001) entende que, diante dos princípios da isonomia e da segurança jurídica, não se pode dar a situações semelhantes respostas diferentes. É que, quando se questiona um preceito normativo em face da Constituição, a decisão que se profere ganha "contornos juridicamente diferenciados", porque as normas têm caráter geral, não se aplicando somente a um grupo de indivíduos, mas criando um comando abstrato destinado a um sem número de pessoas e situações. Nas palavras do autor:

Quando, portanto, se questiona a legitimidade desse preceito, ainda que no julgamento de um caso concreto, o que se faz é pôr em xeque também a sua aptidão para incidir em todas as demais situações semelhantes. Essa peculiaridade é especialmente relevante se considerada em face do princípio da igualdade perante a lei, de cuja variada densidade normativa se extrai primordialmente a da necessidade de conferir um tratamento jurisdicional igual para situações iguais. É igualmente importante em face do princípio da segurança jurídica, que estaria fatalmente comprometido se a mesma lei pudesse ser julgada constitucional num caso e inconstitucional em outro, dependendo do juiz que a aprecia. (ZAVASCKI, 2001, p.23)

Por isso, conclui Zavascki, que é necessária uma harmonização no que tange à eficácia das demandas que questionam a legitimidade de um preceito normativo em face da Constituição. Primeiro, porque respostas diversas a idênticos problemas lesariam os princípios da isonomia e da segurança jurídica, e depois, porque, se já houve decisão sobre determinada questão constitucional, não há sentido a interposição de inúmeras outras demandas com semelhante questionamento, já que também o resultado seria o mesmo. Daí se poder afirmar que "as decisões a respeito da legitimidade das normas têm vocação natural para assumir uma projeção expansiva, fora dos limites do caso concreto" (2001, p. 24).

Além dos fortes argumentos trazidos até aqui, faz-se ainda imprescindível a análise, mesmo que de forma simplista, do posicionamento do Ministro Gilmar Mendes acerca do tema, uma vez que, além de grande estudioso da tese da "abstrativização" do controle difuso, o Ministro pode ser considerado um dos maiores defensores do fenômeno.

O Presidente do STF, além de se utilizar da tese em seus julgados, apresenta também importante estudo doutrinário sobre o tema, no qual afirma ser

possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios da doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional, poder-se-ia cogitar aqui de uma autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação do texto (FERRAZ, 1986, p. 64 et seq, 102 et seq; JELLINEK, 1991, p. 15-35; HSÜ, 1998, p. 68 et seq.) (MENDES, 2004)

De acordo com o entendimento do Ministro, diante da evolução do sistema jurídico e das modificações trazidas pela Constituição de 1988, no que tange ao controle de constitucionalidade, não se pode mais atribuir ao Senado o papel de suspender a eficácia de norma declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em decisão proferida em sede de controle concreto. Para ele, a decisão proferida pelo pleno do STF, seja em controle concentrado, seja em controle difuso, por si só, tem força vinculante e eficácia erga omnes, cabendo ao Senado apenas dar publicidade ao entendimento da Corte. Entende, pois, que houve uma mutação constitucional do art. 52, X, da CF/88, que, sem modificação do texto, passou a ter uma nova interpretação, compatível com o novo pensamento acerca dos efeitos das decisões no âmbito da jurisdição constitucional.

Conforme explicita Gilmar Mendes (2004)

Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, esta decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa.

Por fim, entende o Ministro que, somente com este entendimento seria possível superar-se a incongruência entre as modernas orientações legislativa e jurisprudencial acerca do controle de constitucionalidade, e a "ortodoxa e ultrapassada" visão doutrinária no que tange à interpretação do art. 52, X, da CF/88 (MENDES, 2004).

Como visto, não são poucos os argumentos da doutrina para justificar e legitimar a "abstrativização" do controle difuso no ordenamento brasileiro. Acontece que, ao lado de tantas justificativas, surgem também severas críticas ao fenômeno, mormente no que tange à maneira como tem sido aplicado pelo STF, conforme será analisado a seguir.


6. ANÁLISE CRÍTICA DA "ABSTRATIVIZAÇÃO" DO CONTROLE DIFUSO

Não obstante o visível crescimento da tese da "abstrativização" do controle difuso, seja na legislação, seja na jurisprudência do STF, e mesmo em âmbito doutrinário, conforme visto até aqui, certo é que o fenômeno não escapa às duras críticas de parcela da doutrina [26], a qual traz importantes questionamentos acerca de sua utilização no ordenamento jurídico pátrio.

De fato, a tese da "abstrativização" encontra sérias barreiras, que impedem sua aplicação, ao menos da forma em que vem sendo utilizada. Senão vejamos.

Em primeiro lugar, vale destacar o fato de que, embora a tese da "objetivização" do controle difuso seja, ao primeiro olhar, atraente, podendo ser eficaz em termos de celeridade e economia processual, a verdade é que falta previsão legal e constitucional que legitimem sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro.

Pedro Lenza, ao tratar do assunto em sua obra de Direito Constitucional, ensina que:

Muito embora a tese da transcendência decorrente do controle difuso pareça bastante sedutora, relevante e eficaz, inclusive em termos de economia processual, de efetividade do processo, de celeridade processual (art. 5º, LXXVIII – Reforma do Judiciário) e de implementação do princípio da força normativa da Constituição (Konrad Hesse), parecem faltar, ao menos em sede de controle difuso, dispositivos e regras, sejam processuais, sejam constitucionais, para a sua implementação. (LENZA, 2008, p. 155-156)

É que, segundo LENZA (2008), os efeitos erga omnes e vinculante encontram previsão legal apenas para os casos de controle concentrado e das súmulas vinculantes. Já no que tange ao controle difuso, a Constituição traz previsão expressa (art. 52, X) exigindo a participação do Senado Federal para suspensão dos efeitos de lei declarada inconstitucional pelo STF. Sem que ocorra tal participação, a lei continuará sendo válida e eficaz, tendo efeito somente inter partes.

Assim, conclui o autor que

Na medida em que a análise da constitucionalidade da lei no controle concreto difuso pelo STF não produz efeito vinculante, parece que somente mediante necessária reforma constitucional (modificando o art. 52, X, e a regra do art. 97) é que seria possível assegurar a constitucionalidade dessa nova tendência – repita-se, bastante "atraente" – da transcendência dos motivos determinantes no controle difuso, com caráter vinculante.

Crítica ainda mais contundente é a lançada por Lênio Luiz Streck e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (2008). Assumidamente contrários à tese utilizada pelos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau em seus votos na Reclamação 4335-5/AC [27], referidos autores lançam uma série de questionamentos acerca da tese da "mutação constitucional" defendida pelos Ministros, bem como dos limites da legitimidade da jurisdição constitucional.

Afirmam, em síntese que, se a Constituição atribuiu efeitos diferentes aos sistemas de controle difuso e concentrado, não há como aceitar que os efeitos deste último se estendam ao primeiro, de forma automática. (STRECK e OLIVEIRA, 2008)

Afinal, a Constituição traz previsão expressa acerca da participação do Senado no processo de suspensão da norma declarada inconstitucional pelo STF, em sede de controle difuso e, por isso, "decidir que qualquer decisão do Supremo Tribunal em controle difuso gera os mesmos efeitos que uma proferida em controle concentrado (abstrato) é, além de tudo, tomar uma decisão que contraria a própria Constituição" (2008).

Por isso, a aplicação da tese da "abstrativização" do controle difuso, pode acabar gerando como efeito colateral o próprio enfraquecimento da força normativa da Constituição, princípio utilizado como argumento para sua utilização, conforme já fora abordado linhas acima. E isso ocorre porque, na medida em que o STF nega vigência ao art. 52, X da CF/88, sob a alegação de "mutação constitucional", a Corte acaba por abrir precedente à desobediência de norma constitucional, além do que fere a integridade da própria Constituição.

Dito de outro modo

De uma perspectiva interna ao direito, e que visa a reforçar a normatividade da Constituição, o papel da jurisdição é o de levar adiante a tarefa de construir interpretativamente, com a participação da sociedade, o sentido normativo da Constituição e do projeto de sociedade democrática a ela subjacente. Um tribunal não pode paradoxalmente subverter a constituição sob o argumento de a estar garantindo ou guardando (STRECK e OLIVEIRA, 2008).

Ademais, a tese da "mutação constitucional" reduz o papel do Senado Federal a um mero órgão de imprensa, cabendo-lhe tão somente publicar a decisão tomada pelo STF, a qual já nasce dotada de efeito erga omnes e força vinculante. E isso, significa "retirar do processo de controle difuso qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo deste referido processo, o que não parece ser sequer sugerido pela Constituição da República de 1988" (STRECK e OLIVEIRA, 2008).

E pior do que isso, além de reduzir a competência do Senado Federal à de uma "secretaria de divulgação", a "mutação constitucional", na forma sugerida pelos Ministros do STF [28] acaba por ferir princípios constitucionais como o do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. E isso porque a decisão proferida em controle difuso acabará por atingir indivíduos que não tiveram qualquer participação nos processos que levarão à decisão que os atingirá (2008).

Por fim, cumpre destacar que (e talvez seja esta a crítica mais severa à tese da "abstrativização" do controle difuso) aceitar que o STF possa atribuir efeito vinculante a uma decisão proferida em sede de controle difuso é atribuir muito poder nas mãos da Corte. Observe-se que, a decisão nesse tipo de controle de constitucionalidade é tomada pela maioria de votos, ou seja, basta o voto de seis ministros. E como se sabe, mesmo a súmula vinculante exige quorum qualificado para sua aprovação (oito votos). Desse modo, aceitar a tese da "abstrativização" do modo como vem sendo utilizada, é aceitar que o STF, em decisão única, tomada por seis ministros, vincule uma decisão sem a necessidade de aprovação de súmula.

Com isso, corre-se o risco de que sejam tomadas decisões equivocadas, proferidas sem que a tese tenha sido devidamente aprofundada nos debates da Suprema Corte. Além do que, conferir tamanho poder ao STF, seria transformá-lo em um "poder constituinte permanente e ilegítimo" (STRECK e OLIVEIRA, 2008).

Mais correta seria, então, a aprovação de Súmula Vinculante sobre o tema que se pretende atribuir eficácia geral e força vinculante. Somente procedendo dessa forma pode-se ter a garantia de que o STF não estará ultrapassando os limites da competência que lhe fora atribuída pela Constituição. Além disso, tal precaução permite um maior amadurecimento da discussão sobre o tema entre os Ministros antes que a decisão se torne definitiva e a todos aplicável, com a conseqüente diminuição do risco de se tomar uma decisão incorreta e precipitada, capaz de causar prejuízo a um sem número de pessoas.

Ante todo o exposto, conclui-se que, não obstante o crescimento da tese da "abstrativização" do controle difuso no Brasil, o fenômeno não encontra qualquer autorização no ordenamento que permita sua utilização. Por isso, somente procedendo-se à reforma da Constituição, seja para a retirada do art. 52, X, seja para a inclusão de dispositivo que preveja a regularização do tema, somente assim, seria possível sua aplicação. Nos moldes propostos pelo STF, o fenômeno parece passar por cima dos poderes a ele delegados, extrapolando os limites da legitimidade da jurisdição constitucional, ao deixar em suas mãos poderes muito amplos.


7. CONCLUSÃO

Conforme exposto nesse trabalho, a "objetivização" do controle difuso tem se manifestado tanto na legislação quanto na jurisprudência do STF e ganhou força com a EC45/04, que criou os institutos da Súmula Vinculante e da repercussão geral no Recurso Extraordinário.

No que tange à jurisprudência do STF, a "tendência de abstrativização do controle difuso de constitucionalidade" já se fez presente em algumas decisões da Suprema Corte, e vem ganhando espaço de discussão entre os ministros. Conforme restou demonstrado, o fenômeno pode ser visto no emblemático HC 82.959/SP, bem como no Recurso Extraordinário 197.917-SP, que decidiu sobre o número de vereadores nos municípios do país.

A doutrina, observando a crescente mudança que se tem operado no ordenamento jurídico brasileiro, não se manteve quieta, já apresentando importantes trabalhos sobre o tema, sendo que os adeptos da nova teoria apontam diversos argumentos que fundamentam a referida modificação no controle de constitucionalidade, consoante se demonstrou ao longo da presente explanação.

Acontece que, embora possa trazer avanços ao ordenamento jurídico em termos de celeridade processual e efetividade do processo, além de servir para conferir ao STF o verdadeiro papel de Corte Constitucional, a quem cabe o papel de "guardião da Constituição", a adoção da tese da "abstrativização" do controle difuso, ao menos da maneira que vem sendo aplicada, esbarra em óbice, já que a Lei Maior é expressa ao exigir a participação do Senado no que tange à suspensão da execução da norma declarada inconstitucional pelo STF.

Além do mais, faltam no ordenamento normas que autorizem a sua implementação, sejam constitucionais, sejam infraconstitucionais, de direito material ou processual.

Afinal, o efeito vinculante e erga omnes foi previsto apenas para as Súmulas Vinculantes e para o controle de constitucionalidade pela via direta, nada havendo no ordenamento brasileiro que autorize sua aplicação também para o controle difuso.

Assim, nos parece que, somente através de reforma constitucional seria possível garantir a constitucionalidade da tese da "abstrativização" do controle difuso.

Caso contrário, a tese, ao menos da forma como vem sendo utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, acaba por ferir a própria Constituição, enfraquecendo sua força normativa, além de conferir à Suprema Corte poderes muitos extensos, não previstos pelo Poder Constituinte, e sequer sugeridos pela Constituição de 1988. E, nesse caso, quem teria o poder para controlar as decisões proferidas pelo STF?


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Notas

  1. A autoria da expressão "abstrativização do controle difuso" é atribuída ao professor Fredie Didier Jr.
  2. Cumpre mencionar que é objeto do presente trabalho a análise do controle de constitucionalidade repressivo exercido pelo Poder Judiciário, motivo pelo qual não será examinado o controle preventivo de constitucionalidade bem como o controle exercido pelos órgãos dos Poderes Executivo e Legislativo.
  3. Sobre o caso Marbury v. Madison veja-se CUNHA JÚNIOR (2008, p. 284-294).
  4. Segundo CUNHA JÚNIOR (2008, p. 286-287), antes da decisão de Marshall, a judicial review já tinha precedentes no direito norte americano.
  5. Na realidade, a ADC foi inserida na Constituição em 1993, com a Emenda Constitucional nº 03.
  6. Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
  7. I - o Presidente da República;

    II - a Mesa do Senado Federal;

    III - a Mesa da Câmara dos Deputados;

    IV- a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;

    V- o Governador de Estado ou do Distrito Federal;

    VI - o Procurador-Geral da República;

    VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;

    VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;

    IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

  8. Nas Constituições que precederam à de 1988, a legitimidade para propositura de ação direta de inconstitucionalidade era exclusiva do Procurador Geral da República.
  9. Por todos, veja-se o entendimento de Gilmar Mendes, em seu artigo O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional, cuja referência completa consta da bibliografia, ao final do trabalho.
  10. Veja-se capítulos 4 e 5 do presente trabalho.
  11. Aprovada em 08 de dezembro de 2004.
  12. O termo é utilizado por DIDIER JÚNIOR (in NOVELINO, 2008). O autor dedica uma parte (Ponto 3) de sua importante obra sobre o tema para delinear o que ele chama de "objetivização do recurso extraordinário".
  13. O Ministro Gilmar Ferreira Mendes, tomou posse como ministro do STF em 20 de junho de 2002, assumindo a presidência da Corte em 23 de abril de 2008. Informações retiradas do sítio www.stf.jus.br, acesso em 24 de maio de 2009.
  14. Decisão publicada no DJU de 27/02/2004. Caso "Mira Estrela".
  15. Cumpre observar que, tendo sido originada de decisão proferida em sede de Recurso Extraordinário, a decisão teria que vincular apenas as partes, efeito típico do controle difuso. Mas nesse caso, a resolução emitida pela TSE, com base na decisão do RE 197/917, conferiu efeito erga omnes à decisão.
  16. O §1º do art. 2º da Lei 8.072/90 vedava a progressão de regime prisional nos crimes hediondos, e tinha a seguinte redação:
  17. Art. 2º.(...)

    §1.º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado.

  18. Informativo 454/STF
  19. Informativo 463/STF
  20. Expressão utilizada pelo Ministro Gilmar Mendes
  21. O tema será abordado com maior detalhamento no capítulo seguinte, linhas abaixo.
  22. Informativo 463/STF
  23. idem
  24. Após o voto do Ministro Joaquim Barbosa, pediu vista dos autos o Ministro Min. Ricardo Lewandowski, segundo notícia trazida pelo Informativo 463/STF.
  25. Nesse ponto, cumpre destacar que, em 28 de março de 2007 foi publicada a Lei 11.464, que passou a permitir a progressão de regime nos crimes hediondos. Por isso, a Reclamação 4335/AC perdeu seu objeto no que tange à possibilidade ou não de progressão. Permanece, pois, tão somente a discussão acerca da possibilidade de atribuição de efeito erga omnes e força vinculante às decisões proferidas pelo STF, em sede de controle difuso-incidental.
  26. Veja- se RE nº 298.694; Processo Administrativo nº 318.715; RE nº 376.852; AI nº 375.011. Todos os julgados aqui citados são do STF.
  27. A idéia de força normativa da Constituição consagrou-se a partir do pensamento de Konrad Hesse, que escreveu obra justamente com o título, "A força normativa da Constituição" (Die normative Kraft der Verfassung), traduzida para o português por Gilmar Mendes e publicada por Sérgio Antônio Fabris Editor.
  28. Por todos veja-se STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de et al. A nova perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o controle difuso: mutação constitucional e limites da legitimidade da jurisdição constitucional. Referência completa no final do trabalho.
  29. Já abordada no capítulo 3 do presente trabalho.
  30. Gilmar Mendes e Eros Grau.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LANZA, Karina Ferreira; COSTA, André de Abreu. O novo panorama do controle de constitucionalidade no Brasil. "Abstrativização" do controle difuso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2830, 1 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18803. Acesso em: 25 abr. 2024.