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A questão da má-fé para fins de caracterização de fraude à execução fiscal sob o atual ponto de vista do STJ (Súmula nº 375 e Recurso Especial nº 1.141.990/PR)

A questão da má-fé para fins de caracterização de fraude à execução fiscal sob o atual ponto de vista do STJ (Súmula nº 375 e Recurso Especial nº 1.141.990/PR)

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De relevância impar na seara tributária, a fraude à execução contra a Fazenda Pública, no caso, a prática pelo devedor de atos visando impedir a satisfação da sua dívida com o Erário, está prevista no artigo 185 e parágrafo único do Código Tributário Nacional - CTN, dispositivos esses que, originariamente, possuíam a seguinte redação (grifei):

Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa em fase de execução.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados pelo devedor bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida em fase de execução.

Com o advento da Lei Complementar nº 118 de 9 de fevereiro de 2005, o termo "em fase de execução" foi suprimido do caput do artigo 185 do CTN, ocorrendo também a substituição em seu parágrafo único do termo "dívida em fase de execução" por "dívida ativa". Confira-se (grifei):

Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita.

Contudo, a questão acerca da necessidade da prévia demonstração pelo credor, de que o novo adquirinte do bem penhorado estava ciente da constrição existente sobre o mesmo quando o incorporou ao seu patrimônio, que se comprovada, configuraria sua manifesta má-fé, ainda manteve-se tormentosa no mundo jurídico, dúvida essa que poderia ser elidida, em se tratando de bem imóvel, se a penhora não estivesse registrada na matrícula respectiva, como permitido pelo art. 7º, IV, da Lei nº 6.830/80 [01] (Lei de Execuções Fiscais - LEF); e de igual modo, em tratando-se de veículos, aeronaves e embarcações, se inexistente a ressalva do ato constritivo nos registros desses bens junto aos órgãos de controle (DETRAN, p.e.), o que caracterizaria, nessas situações, a sua bona fide.

Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça-STJ, tendo como um dos precedentes o Recurso Especial 739.388/MG, no qual os compradores de um imóvel penhorado alegavam que não agiram de má-fé pois o ato de constrição não constava no registro público do imóvel quando a operação de compra e venda foi efetivada, editou a sua Súmula 375 publicada em 30/03/2009:

Súmula 375. O reconhecimento da fraude de execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.

Posteriormente, em 10/11/2010, o STJ, ao julgar o Recurso Especial nº 1.141.990/PR, com a relatoria do Ministro Luiz Fux —— atualmente no Supremo Tribunal Federal-STF —, emprestando ao mencionado recurso os efeitos do art. 543-C do Código de Processo Civil para fins orientação das decisões judiciais nos demais recursos de idêntica questão jurídica e que estavam sobrestados à espera de uma posição final daquela Corte, decidiu por unanimidade, através da sua Primeira Seção, pela inaplicabilidade da Súmula 375 às execuções fiscais, haja vista que a transferência de bens do devedor levada a efeito após a inscrição do débito tributário em dívida ativa, de persi já configurar-se-ia fraude à execução, tornando-se desnecessário o registro da penhora nos órgãos públicos de controle e da prova da má-fé do adquirinte, condições essas imprescindíveis apenas e tão somente para a caracterização da fraude em casos de dívidas não tributárias.

O entendimento esposado pelo STJ para a não aplicação da Súmula 375 às execuções fiscais foi escorreito e legalmente amparado no princípio da especialidade (lex specialis derrogat generalis), pois os executivos fiscais são regulados por lei especial (Lei nº 6.830/80), prevalecendo assim sobre a lei geral como previsto no art. 2º, § 2º do Decreto-lei nº 4.657/42 (Lei de Introdução ao Código Civil–LICC, atualmente Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro conforme alteração da Lei 12.376, de 30 de dezembro de 2010) [02], incidindo portanto, a aplicação da referida súmula, apenas e tão somente às demandas cíveis reguladas pelo Código Civil e pelo Código de Processo Civil, justificando-se a diferença de tratamento entre uma e outra pelo fato de que na fraude civil afronta-se o direito privado enquanto na fraude fiscal vilipendia-se o interesse público.

Ainda, justificando seu voto, o i. Ministro Relator bem esclareceu que, diversamente da fraude contra credores, a fraude à execução possui caráter absoluto, razão pela qual não haveria necessidade de prova do conluio entre comprador e vendedor, pois a constatação da fraude é objetiva independendo da intenção dos negociantes, bastando na prática que tenha havido a frustração da execução em razão da alienação, não podendo o registro da penhora ser exigência à caracterização da fraude no âmbito dos créditos tributários, pois nesse caso há uma regra específica, qual seja, a prevista no artigo 185 do CTN que estabelece como únicos requisitos para a configuração da fraude a inscrição da dívida ativa em data anterior e a inexistência de outros bens que possam satisfazer o crédito.

Outrossim, não poderia passar in albis a observação contida no aludido recurso especial no sentido de que a inaplicação do art. 185 do CTN às execuções fiscais traduz-se em violação da Claúsula de Reserva de Plenário, consagrada no art. 97 da Lei Maior [03], a qual dispõe que a inconstitucionalidade de qualquer ato normativo estatal somente pode ser declarada pelo voto da maioria absoluta da totalidade dos membros do tribunal ou, onde houver, dos integrantes do respectivo órgão especial, sob pena de absoluta nulidade da decisão emanada do órgão fracionário (turma, câmara ou seção), como esclarece Alexandre de Moraes [04], ensejando por conseguinte, sua inobservância, reclamação ao STF por infringência da sua Súmula Vinculante nº 10 [05].

Conclui-se, portanto, segundo o entendimento do STJ, (i) que em razão da natureza jurídica tributária do crédito inscrito em dívida ativa, a simples alienação ou oneração de bens ou rendas (ou seu início) pelo sujeito passivo sem a reserva de meios para a sua quitação, gera presunção absoluta de fraude à execução, pois lei especial se sobrepõe à regra geral do direito processual civil conforme o princípio da especialidade (lex specialis derrogat generalis); (ii) que para os negócios jurídicos ocorridos até 08/06/2005, data imediatamente anterior à da entrada em vigência da LC nº 118/2005, os mesmos somente podem ser considerados como fraude à execução se ocorridos após a citação válida do devedor; (iii) se o ato translativo patrimonial foi praticado a partir de 09/06/2005, data de início da vigência da Lei Complementar n.º 118/2005, basta apenas a efetivação da inscrição do crédito em dívida ativa para que a negociação seja considerada fraudulenta em desfavor da execução do título; (iv) que a fraude de execução prevista no artigo 185 do CTN encerra presunção jure et de jure, pois integrante do rol das "garantias do crédito tributário"; (v) que a inaplicação do artigo 185 do CTN, o qual não vincula a ocorrência de fraude a prévio registro público, traduz-se em violação da Cláusula Reserva de Plenário prevista no art. 97 da CF bem como afronta à Súmula Vinculante n.º 10, do STF; (vi) que a incidência da fraude à execução somente pode ser afastada pelo devedor ou pelo adquirente caso seja demonstrado que foram reservados bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida; ou que a citação não foi válida para as alienações ocorridas até 08/06/2005; ou que a alienação deu-se antes da citação se ocorrida até 08/06/2005; ou ainda, que a alienação, se a partir de 09/09/2005, operou-se antes da inscrição em dívida ativa.


REFERÊNCIAS

  1. BRASIL. Constituição Federal. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 out. 1988.
  2. BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, conforme alteração da Lei 12.376, de 30 de dezembro de 2010).
  3. BRASIL. Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980. Dispõe sobre a cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública, e dá outras providências.
  4. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2008.
  5. STF. Súmula Vinculante nº 10.Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte. (DJe nº 117 de 27/6/2008, p. 1; DOU de 27/6/2008, p. 1).

Notas

1. Art. 7º. O despacho do Juiz que deferir a inicial importa em ordem para: (...) IV - registro da penhora ou do arresto, independentemente do pagamento de custas ou outras despesas, observado o disposto no artigo 14, ...

2. Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. (...) § 2º. A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

3. Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.

4. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 712.

5. Súmula nº 10. Viola a cláusula de Reserva de Plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.


Autor

  • Daniel Guarnetti dos Santos

    Daniel Guarnetti dos Santos

    Procurador Federal. Chefe do Escritório de Representação da Procuradoria-Regional Federal da 3ª. Região (PGF/AGU) em Bauru/SP. Pós graduação "lato sensu" em Direito Previdenciário pela FAAT-Londrina; Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP/LFG; Direito Processual pela UNISUL/LFG; Direito Público pela Universidade Anhanguera/LFG; e cursos de extensão em Direito Imobiliário pela PUC/RJ e Direito Tributário pela ITE-Bauru/SP.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Daniel Guarnetti dos. A questão da má-fé para fins de caracterização de fraude à execução fiscal sob o atual ponto de vista do STJ (Súmula nº 375 e Recurso Especial nº 1.141.990/PR). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2935, 15 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19564. Acesso em: 29 mar. 2024.