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Somália: o último grito.

Que há com os direitos humanos?

Somália: o último grito. Que há com os direitos humanos?

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Flagrante é a fome na Somália, colocando à prova a competência internacional em rubricar neste país, historicamente devastado, o elemento de efetividade dos direitos humanos. Em tempos de elevada tecnologia, globalização e evolução em tantos setores parece-nos haver um obscurecimento da preocupação relativa aos assuntos mais basilares.

Este capitalismo que, embora tardio, continua a demarcar a distribuição desproporcional dos recursos e que obsta, muitas vezes, o acesso à caridade e ao cuidado pelos ora vergastados, desafia politicamente os direitos elevados ao coevo status de humanos.

Considerando a historicidade destes direitos, pode-se afirmar que a definição de direitos humanos aponta a uma pluralidade de significados. Tendo em vista tal pluralidade, destaca-se a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a ser introduzida com o advento da Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993. Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos, que constitui um movimento extremamente recente na história, surgindo, a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. [01]

Atualmente, esquecidos – esses bravos somalianos (e tantos outros) – resistem no grito silencioso da dor agonizante, no gemido das crianças e dos velhos, ouvidos somente por pais, mães e filhos desesperados. Encontram-se jogados num projeto de vida sem possibilidades; que vida?

Sobrevivem apenas no espírito e esperam na carne o destino inevitável do sofrimento causado pelas facetas ignóbeis do poder, onde a morte talvez venha a sanear a aflição ininterrupta de uma existência que se arrasta no tempo. Nesta situação, pessoas choram verdadeiramente sinceras, eivadas de desesperança e, sobretudo, choram pelo medo angustiante, justamente por não saberem se conseguirão alcançar e, com efeito, sentir, a brisa de um amanhã diferente, iluminado, compensador.

Porque, até então, não há sorriso, não há glória ou dignidade; há a certeza do fim absolutamente estampado nos corpos raquíticos, maltratados e de ossos à mostra. Meninos e homens perdidos no horizonte, pessoas desoladas sem o mínimo, presas sem nenhuma liberdade de gozar suas vidase assim desenvolverem-se na opção intrínseca da autodeterminação.

Os direitos humanos não devem ser monólogos apaixonados em teorias, porém diálogos com aptidão para serem constantemente afetados pela sensibilidade pelo outro em sua condição. Daí a mostrar o eco universal da dignidade a serviço da vida, cuja significância encontra seu lócus na postura de alteridade promovida pelo ímpeto da caridade, por sua vez, empreendida no prolongamento hermenêutico da justiça em sua dimensão mais profunda e sublime.

Como ainda acrescentou o próprio Norberto Bobbio: [02]

Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, [...], mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar de solenes declarações, eles sejam continuamente violados.

A pergunta intentada: "que há com os direitos humanos?" à primeira vista poderia indicar erradamente o intento. Pois, também nos seria lícito perguntar "Somália – que houve com os direitos humanos?". Todavia, quando a prescrição normativa é anterior ao fato miserável que deveria ter solucionado ou abrandado, constitui a prova da necessidade de (re)avaliação dos postulados e seus respectivos mecanismos. Desta maneira, como quase cediço no Direito, a resposta é dada somente quando da verificação do evento, hipótese que vincula as ações à positividade, o que, de fato, institui o elemento repressivo ao invés do estabelecimento de uma ordem preventiva, profilática, cautelar. Trata-se de um problema atual e não passado, a ação motivada primeiramente pela sua inércia ou negatividade.

A sucessão de moléstias vistas na Somália corrobora ainda mais para que cheguemos à conclusão acerca da deficiência para tornar os direitos humanos em operações realizadas, inclinadas a consecução dos seus fins. Ainda, a formatação de um paradigma de atuação demanda abandonar o discurso estético para um discurso ético de responsabilidade e presença frente às carências.

Aliás, a reorganização propriamente dita pede que nos lembremos dos critérios pelos quais também se fundam os direitos humanos, ou seja, a facticidade de existir enquanto ser capaz de atribuir valor às coisas substantivas. Re-valorizar, pois, a dignidade da pessoa implica em perceber que o grande equívoco do pensamento seria constatar os problemas a partir do que salta aos olhos do absurdo, quando, igualmente, o problema fundamental volta-se para toda a humanidade que, vendo e sabendo da escuridão vivida por milhares, elege a cegueira e a indiferença como zona apropriada ao seu conforto.

"Somália" representa além de uma situação degradante do homem em sua condição, um conceito planetário umbilicalmente conectado no seio da teoria jurídica e política dos direitos universais, o qual constrange a uma resposta audaciosa e ao mesmo tempo imediata dos organismos internacionais. Isso, para que o século XXI não seja marcado, desde o seu início, pelo sangue dos abandonados e, o que é pior, pela névoa subjugadora do violentamente anormal ao grau de consequencia lógica de um sistema geopolítico sem freios e cuidados.

Seguidamente, não podemos aceitar qualquer hipótese de descartabilidade de pessoas, mesmo porque os direitos humanos são notadamente de interesse internacional e, portanto, a intervenção coloca-se enquanto alternativa única quando a organização doméstica, soberana, do Estado depreciado pela iniquidade, não consegue por si só garantir a fruição dos direitos sociais, políticos e econômicos. Além do que, o referido interesse permanece eclipsado em robusta proteção antes da sua manifestação, porquanto propriedade imediata do homem em seu existir.

Por sua vez, esta concepção, nas palavras de Flávia Piovesan, [03] aponta para duas importantes consequências:

1ª) a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos; isto é, transita-se de um concepção "hobbesiana" de soberania centrada no Estado para uma concepção "kantiana" de soberania centrada na cidadania universal; 2ª) a cristalização de idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de Direito.

Forma-se um aparelho internacional vinculado ao "mínimo ético irredutível" [04] que indica os parâmetros relativos à proteção incondicional, indivisível e universal dos direitos humanos. Concomitantemente, os Estados nacionais promovem a sua própria constituição interna, para que, só então, venham a consensualmente aderir à ordem internacional de cooperação e solidariedade perante a gênese de uma legítima cidadania cosmopolita. O homem primitivo em seu território, vê-se imerso numa organização macro dinâmica potencializada pelo reconhecimento multilateral da consciência ética de cooperação jurídico-normativa, hábil para promover um estado considerável de bem-estar, sublimado, essencialmente, na solidariedade. É o que aduz um sentido inequívoco de atenção.

A esse respeito, "a consciência de solidariedade não é uma compreensão teórica, mas, sim, um estado de sentimento e sentido" [05] que leva à compaixão. "Na compaixão, a consciência de uma união é o elo central que conduz à participação ativa". [06] Tão-logo, se digne verificar o consenso plural da solidariedade, a cooperação entre os Estados inaugura a possibilidade consolidada de transformar a realidade. Os indivíduos, sensíveis às coisas substantivas da vida, unem-se no propósito da benevolência, cujo manto faz regozijar pela vitória e entristecer pela derrota aos que, pois, se acham na existência compartilhada. "A benevolência nos libera da prisão em que nos encerra a consciência do valor próprio. Nosso horizonte se amplia; a vontade benevolente se estende na mesma medida em que se estende o bem-estar e a dor, o valor da pessoa." [07]

Decorre que, no plano da mitigação da soberania, asseverada enquanto uma consequência importante da internacionalização dos direitos humanos, há a necessidade do Estado livremente participar, isto é, aderir ao tratado ou à convenção. Num momento histórico, especialmente no início da segunda metade do século XX, a doutrina da adesão voluntária imperava e, de certa maneira, respondia ao desejo dos Estados nacionais em estipular uma ordem de valores planetários, inclusive como prova de efetiva inclinação à proteção daquilo que sucessivamente havia sido implodido por regimes políticos extremistas e ultra-ortodoxos.

Passado esse tempo, há de ser aceita a tese de que o estabelecimento desta ordem internacional, na contemporaneidade, diretamente não alberga a mesma necessidade de participação livremente pactuada, à medida que, só resiste legitimidade, inobstante, para temas ligados ao mínimo garantidor da existência. Caso contrário, a mitigação da soberania incorreria numa perigosa alternativa de renovação de imperialismos informais e colonialismos escondidos em falsos motivos humanitários. Logo, a concretização dos direitos humanos, na exequibilidade nuclear da dignidade, perpassa pela expansão normativa dos tratados e convenções internacionais mesmo aos Estados a priori não signatários, quer dizer, desde que o problema-alvo dessa imposição resida na falta justificada de recursos, o que, em verdade, autoriza a ajuda internacional através dos seus órgãos (ONU, FMI, UNESCO, OMS etc.).

Este pós-positivismo internacional é deveras fundamental, à medida que permite um expansionismo geométrico das forças internacionais, cuja envergadura concentra-se no corolário essencial de uma re-apropriação comunitária das necessidades emergenciais, onde é assumido multilateralmente o dever-poder de co-responsabilização objetiva, sobremaneira, por um princípio de humanidade.

Por conseguinte, "Somália" visa desafiar a atualidade dos direitos humanos, haja vista representar um Estado-mártir perante a ordem global. Claro que, diversos outros países sofrem com problemas do tipo da fome, conflitos étnicos, terrorismo etc., no entanto é sempre válido tomar por base um certo evento tido por alarmante num contexto onde são vertiginosamente discutidos os direitos humanos. Os Estados possuem dificuldades próprias na proteção dos direitos fundamentais, eleitos pelas respectivas cartas constitucionais, inobstante não configure relevante motivo para se abandonar a ordem internacional.

O problema nuclear é a existência de diversas espécies de "Somálias" espalhadas por todo o mundo, caracterizando as deficiências sobre as quais o Direito doméstico se debruça no cotidiano da jurisdição. Enquanto assistimos desolados a história se fechar para a Somália, viramos para o lado e enxergamos – querendo – as mazelas do nosso povo. Lidar com a diversidade, a outridade, o alienígena, demanda que lidemos, ao mesmo tempo, com tudo aquilo que grita por detrás dos muros da hipocrisia e da demagogia, instaurando uma necessidade política diferenciada em relação ao interno e ao externo, agora unidos por um vínculo de complementaridade.

A importância da discussão sobre a Ciência Política atinge um patamar onde não mais é suficiente ater a preocupação apenas com os problemas relativos às instituições políticas que figuram dentro do Estado, mas o enlace provocado pela complexidade política surgida com a pós-modernidade, onde a reapresentação dos valores e de um princípio de humanidade faz-se mister, firmando um diálogo entre todos os Estados nacionais e soberanos, numa comunicação cardinal para o futuro ético do homem. [08]

A nova Política, e sua ciência, assim determina a construção de um mundo de pessoas entrelaçadas numa fraternidade crescente, além de conceber o epíteto de uma inédita organização global onde esteja rubricado o rompimento com o individualismo na dimensão subjetiva e nacional, no anúncio inevitável da derrota de qualquer modelo único de representação da conjuntura hodierna. Destarte, o discurso dominante liberal dá lugar e ensejo às teorias interdisciplinares plasmadas no império das garantias universais do homem, pelo fato primitivo da existência.

Parece que a necessidade de uma normatividade ética da cooperação internacional intensificou-se nos últimos anos, cobrando, com viés salutar, atitudes imprescindíveis no sentido da manutenção dos seus postulados. Diante da temerária estabilidade somaliana, persiste toda tentativa de um direito humanamente realizável, cuja adequação encontre espaço entre a burocracia inerente à participação conjunta e a suposta apropriação conceitual da descartabilidade de pessoas.

Sobra a constatar a não aceitabilidade refratária da individualidade, a qual, sendo contestada amiúde, procura responder ao alvoroço imediatamente problemático que se lhe é colocado. No aprimoramento de uma tal afetividade, extrapolando os limites da subjetividade absoluta e os horizontes do Estado soberano, é deveras viável perceber a responsabilidade pelos que nos são semelhantes, cuja ajuda forma o terreno da existência digna, àqueles cujos semblantes doravante exprimem o deplorável estado de horror e penosa solidão.


Referências bibliográficas

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1995.

BRAGA, Luiz Felipe Nobre. Direito e Política – entre complexidade e pós-modernidade, 2010, p. 16,. In: Seminário de Direito Constitucional – História e Evolução. Disponível em: www.unieducar.com.br, acesso em 08/08/2011.

DILTHEY, Wilhelm. Sistema da Ética. Trad. Edson Bini. 2ª ed. São Paulo: Ícone, 1994.

PIOVESAN, Flávia. Direitos sociais, econômicos, culturais e direitos civis e políticos. In: Estudos de Direito Constitucional em homenagem a Celso Ribeiro Bastos, ano XXIII, n. 73, nov., 2003.


Notas

  1. PIOVESAN, Flávia. Direitos sociais, econômicos, culturais e direitos civis e políticos. In: Estudos de Direito Constitucional em homenagem a Celso Ribeiro Bastos, ano XXIII, n. 73, nov., 2003, p.60.
  2. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1995, p.25
  3. PIOVESAN, Flávia, op. cit., p. 61.
  4. Idem, ibidem, p. 62.
  5. DILTHEY, Wilhelm. Sistema da Ética. Trad. Edson Bini. 2ª ed. São Paulo: Ícone, 1994, p. 99.
  6. Idem, ibidem, p. 99.
  7. Idem, ibidem, p. 100.
  8. BRAGA, Luiz Felipe Nobre. Direito e Política – entre complexidade e pós-modernidade, 2010, p. 16,. In: Seminário de Direito Constitucional – História e Evolução. Disponível em: www.unieducar.com.br, acesso em 08/08/2011.

Autor

  • Luiz Felipe Nobre Braga

    Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas; Advogado; Consultor e Parecerista; Professor de Direito Constitucional e Lógica Jurídica na Faculdade Santa Lúcia em Mogi Mirim-SP; Professor convidado da pós-graduação em Direito Processual Civil e no MBA em Gestão Pública, da Faculdade Pitágoras em Poços de Caldas/MG. Autor dos livros: "Ser e Princípio - ontologia fundamental e hermenêutica para a reconstrução do pensamento do Direito", Ed. Lumen Júris, 2018; "Direito Existencial das Famílias", Ed. Lumen Juris-RJ, 2014; "Educar, Viver e Sonhar - Dimensões Jurídicas, sociais e psicopedagógicas da educação pós-moderna", Ed. Publit, 2011; e "Metapoesia", Ed. Protexto, 2013.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Luiz Felipe Nobre. Somália: o último grito. Que há com os direitos humanos?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2979, 28 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19859. Acesso em: 26 abr. 2024.