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A responsabilização da mídia: Direito e deontologia

A responsabilização da mídia: Direito e deontologia

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Os limites da regulamentação da liberdade de imprensa por parte do Estado e os possíveis caminhos para evitar a censura e manter a qualidade do serviço prestado pelos meios de comunicação.

Resumo

O presente trabalho busca analisar a responsabilidade social dos meios de comunicação sob dois diferentes, porém complementares, pontos de vista: o legal e o moral. Discute, ainda, os limites da regulamentação por parte do Estado da liberdade de imprensa e quais os possíveis caminhos para evitar a censura e manter a qualidade do serviço prestado pelos meios de comunicação. Este trabalho não tem a pretensão de esgotar o assunto, pois trata-se de campo deveras amplo e ainda pouco explorado no Brasil, mas quer servir, ao menos, de introdução às querelas midiáticas que envolvem o direito e a deontologia em tempos de convergência tecnológica da comunicação.

Palavras-Chave: Comunicação Social, Ética, Liberdade de Imprensa


ABSTRACT

The objective of this work is to analyze the responsability of the media under two different but complementary perspectives: the legal and the moral. This work also discusses the limits of press freedom regulation by the state and what are possible ways to avoid censorship and maintain the quality of service provided by the media. This work does not pretend to exhaust the subject, because this is a really broad field, and still not well explored in Brazil but wants to serve at least as an introduction to disputes involving law and ethics in times of technological convergence of the communication.

Keywords: Mass Communication, Media Ethics, Press Freedom.


INTRODUÇÃO

É indiscutível a importância dos meios de comunicação para a sociedade, assim como é indiscutível o grande poder que eles detêm, pois é através da mídia que reconhecemos o todo que não podemos compreender sozinhos. Os meios de comunicação nos fornecem parâmetros sociais, culturais e políticos, e são responsáveis por influenciar diversos aspectos da vida moderna, como o comercial, o profissional e, inclusive, o comportamental. Vivemos hoje o que os sociólogos chamam de sociedade do consumo e sociedade do espetáculo, termos esses utilizados para designar o modelo atual de sociedade, focado no grande desenvolvimento industrial capitalista e que se caracteriza pelo consumo massivo de bens, serviços, e informação espetacularizada. Nos dizeres de Douglas Kellner:

O rádio, a televisão, o cinema e outros produtos da indústria cultural fornecem modelos daquilo que significa ser homem ou mulher, bem-sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente. A cultura da mídia também fornece o material com que muitas pessoas constroem o seu senso de classe, de etnia e de raça, de nacionalidade, de sexualidade, de "nós" e "eles". Ajuda a modelar a visão prevalecente de mundo e os valores mais profundos: define o que é considerado bom ou mau, positivo ou negativo, moral ou imoral. [01]

Embora esse poder tenha uma acepção limitada, pois devemos ter em mente que o receptor da mensagem não é meramente personagem estático da relação comunicacional – afinal, sempre haverá resposta –, não há como escapar de seu alcance. Mas, é a partir dessa constatação que surgem diversos problemas, como estabelecer até que ponto a regulamentação por parte do Estado não sugere cerceamento da liberdade de imprensa e de informação e quais os caminhos possíveis para evitar a censura e manter a qualidade do serviço prestado pelos profissionais da comunicação. Não há resposta pronta para tais inquirições, nem sequer um caminho tranquilo a ser trilhado.

Os meios de comunicação não devem ser governados unicamente pelos humores do mercado, algo extremamente perigoso, visto suas flutuações cada vez mais frequentes e gostos duvidosos. Do mesmo modo, entregar o domínio da imprensa, seja centralizando sua operação ou regulamentação, ao Poder Público, é correr o risco de cercear importantes liberdades. Entretanto, nenhuma regulamentação ou previsão por parte do Estado também significa correr o risco de cercear direitos fundamentais como, por exemplo, o direito à privacidade e a presunção de inocência. Ou seja, harmonizar os anseios da sociedade com uma indústria ávida por lucros não é tarefa fácil.

Tendo-se em mente que a principal tarefa dos meios de comunicação, em se tratando de imprensa, é existir como fonte de informação imparcial, e considerando seu papel fiscalizatório como pretenso quarto poder, nota-se a necessidade evidente de esforços na criação e fortalecimento de uma ética jornalística e de elementos internos de autocrítica e auto-regulamentação em contrapeso ao Estado. Foi a partir de tal constatação que emergiram, ao longo dos anos, diversos códigos de ética profissional e sistemas de avaliação da qualidade dos produtos e serviços prestados pelos meios de comunicação à sociedade, numa tentativa de efetivar a liberdade de imprensa e garantir as devidas reparações em caso de choque com outros direitos fundamentais. O cerne deste estudo é exatamente este: a utilização de meios internos, portanto próprios dos profissionais de comunicação, para a fiscalização e manutenção da qualidade da mídia, ao mesmo tempo em que servem como meio de efetivação e garantia das liberdades de expressão, de imprensa e de informação frente a possíveis abusos e avanços legislativos arbitrários do Estado sobre matéria relativa a comunicação social.

O caso brasileiro, em especial, é ainda mais complexo, pois o cerceamento às liberdades de imprensa e de expressão estatuído na ditadura militar ainda parece muito vívido no imaginário coletivo. Com o fim do regime ditatorial e a abertura democrática, o constituinte brasileiro tratou de alicerçar as bases da democracia da forma mais ampla possível, tendo reflexos na liberdade de expressão e de imprensa – afinal, sem imprensa livre não há democracia. Mas, acima de tudo, é preciso que os profissionais de comunicação compreendam que liberdade significa responsabilidade, e que limite não é censura – afinal, a liberdade de expressão e de imprensa a qualquer custo amanhã se tornará a ditadura das palavras, onde o dito ficará pelo não dito, e o publicado pelo não publicado.


A Liberdade de Expressão e Informação e a Liberdade de Imprensa

Para Bertrand, "todos os Estados do mundo tem como ideal proclamado assegurar a cada um de seus cidadãos os 'direitos do homem'". Entretanto, continua Bertrand, "o individuo não dispõem de nenhum desses direitos se não possuir um deles: o de saber" [02]. Como refere Bucci:

A democracia guarda, nos seus fundamentos, o princípio de que o poder emana do povo e em seu nome é exercido. Disso resulta que, sem o livre fluxo de informações e opiniões, o regime democrático não funciona, a roda não gira. A delegação do poder e o exercício do poder delegado dependem do compartilhamento dos temas de interesse público entre os cidadãos. Quanto mais inclusiva, mais a democracia se empenha em expandir o universo dos que têm acesso à informação e garante transparência na gestão da coisa pública. Quanto mais vigorosa, mais ela faz circular as ideias. O resto é consequência lógica [03].

Ademais, tanto a democracia como a liberdade de expressão são práticas salutares, as quais valoramos e "buscamos preservá-las em nossas próprias sociedades. E mais, nós pensamos nas duas como primas próximas que viajam juntas: onde encontramos democracia esperamos encontrar também liberdade de expressão e vice-versa" [04].

Além de constituir uma das bases da democracia moderna, a liberdade de expressão e de informação revela-se como o direito de manifestar livremente ideias, opiniões e pensamentos, assim como o direito de receber e de comunicar informações, sem que haja impedimento ou discriminação por tal ato. Dessa forma, o artigo 19 da Declaração Internacional dos Direitos do Homem, votada pela ONU em 1948, aborda liberdade de expressão e informação da seguinte maneira:

Todo o indivíduo tem direito a liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.

Já o entendimento acerca da significação da liberdade de imprensa sofreu, com o passar do tempo, algumas modificações. Da concepção de "liberdade de imprensa" como um direito de cada indivíduo para a realidade vivenciada a partir da metade do século XX, quando os meios de comunicação começaram a se concentrar em poucas e privilegiadas mãos, surgiu a necessidade de uma nova definição. Segundo Bertrand:

Começou-se a definir liberdade de imprensa, não mais simplesmente como a negação da censura política, ou mesmo de toda censura, mas como a afirmação de uma tarefa a realizar: satisfazer o direito à informação de cada cidadão. O direito de ser bem informado. E também o direito de informar, quer dizer, ter acesso aos meios de comunicação [05].

Entretanto, essas liberdades não estão resguardadas de eventuais choques entre si. A liberdade de expressão, embora direito fundamental, não é absoluto. Ou seja, a liberdade de expressão jamais poderá ser utilizada para justificar a incitação à violência, ou a publicação de fatos e notícias difamatórias, caluniosas ou obscenas, pois os direitos fundamentais dos cidadãos devem sempre ser protegidos de opiniões e informações levianas e mal-intencionadas.

Diferentemente da proteção aos chamados direitos afirmativos, a proteção do Estado à liberdade de expressão é um direito negativo, o que exige que o governo apenas se abstenha de limitar a expressão. Todavia, podem ocorrer casos em que os direitos supracitados venham a ser atingidos por essa liberdade, devendo o Poder Público intervir. Entretanto, como a liberdade de expressão e informação é um direito fundamental, jamais poderá o Estado intervir de maneira injustificada para efetivar alguma restrição, devendo suas ações serem sempre pautadas pela Constituição e pelos Direitos Humanos.

A grande dificuldade, portanto, é saber até que ponto o Estado pode intervir sem afetar essas liberdades.


O Estado brasileiro e a liberdade de imprensa

Vivemos em uma sociedade ávida por velocidade, onde o maior mal, por incrível que pareça, é o conforto em exagero. Nos cansamos de tudo muito rapidamente, e então decaímos em profundo tédio. Com a informação não é diferente. Temos pressa para saber, mas nenhuma vontade de procurar. A imprensa prefere errar por causa de seu imediatismo do que perder o "furo jornalístico". Na corrida pelo lucro, "esquecem" e deixam para trás valores fundamentais que informam toda uma atividade. Ou seja, publica-se a manchete para depois retificá-la. Entretanto, devemos concordar com Bobbio quando diz que:

Não ousamos aqui levantar a possibilidade de inexistir a imprensa e nem tampouco de criar uma censura da mesma. O questionamento que deve ser feito consiste exatamente nos limites que a imprensa pode atingir [06].

Um dos exemplos mais notórios de irresponsabilidade por parte da imprensa brasileira ocorreu em março de 1994, quando duas revoltadas mães procuraram a polícia com uma denúncia de abuso sexual contra seus filhos de apenas quatro anos, então alunos da Escola Base, localizada no bairro da Aclimação, na cidade de São Paulo. Segundo elas, os donos da escola, assim como dois sócios e outros dois funcionários, promoviam orgias sexuais com a participação dos menores. Tudo teve início a partir da verificação, por uma das mães, da existência de lesões no ânus de seu filho. Após esse episódio, como em um verdadeiro efeito cascata, diversas outras mães exaltadas apareceram com casos semelhantes desejando ajudar na denúncia contra a escola.

Mesmo sem verificar a veracidade das denúncias e com base apenas em laudos preliminares, o delegado encarregado do caso divulgou as informações à imprensa, causando enorme comoção pública. A pressão da sociedade revoltada, além de levar à depredação da escola, ainda foi suficiente para causar a prisão dos investigados. Entretanto, a verdade acerca dos fatos apenas começou a ser revelada quando a advogada dos sócios da escola teve acesso ao laudo final do Instituto Médico Legal (IML), que descrevia serem as lesões no ânus da criança causados pela excreção de fezes ressecadas, o que foi posteriormente confirmado, arquivando, por falta de provas, o inquérito policial.

A partir do arquivamento do inquérito, uma verdadeira batalha judicial em busca de indenizações acometeu-se, levando à condenação de diversos órgãos de imprensa envolvidos na divulgação das informações inverídicas sobre o caso e do próprio estado de São Paulo. O caso da Escola Base ilustra, de forma cabal, os perigos do uso da liberdade de imprensa de maneira irresponsável, fazendo refletir acerca de seu controle pelo Poder Público – podendo surtir, em um primeiro momento, desejos de centralização desse controle, evidente atalho para a censura.

A análise do caso Escola Base traz à tona perspectivas pouco revigorantes sobre os "aspectos ideológicos da produção noticiosa que segue o padrão de produção da mercadoria-notícia" [07]. Há, por parte dos meios de comunicação, uma crescente demanda por público, objetivando lucros cada vez maiores. Essa corrida tenaz acaba por transformar o próprio discurso jornalístico, que busca através do sensacionalismo maiores índices de audiência ou venda, fazendo com que jornalistas, na ânsia por fecharem suas edições em tempo, deixem de lado questões éticas que regem a publicação de informações. É esse aspecto da imprensa como indústria que tende a desvirtuar e mitigar a qualidade de suas informações, fazendo nascer a discussão acerca das condições da mídia de controlar ela mesma seus conteúdos – afinal, deixar a imprensa à mercê das flutuações do mercado pode e, provavelmente, causará muitos danos.

Ocorre que a liberdade de imprensa é um valor inviolável, e como tal deve ser respeitado. Mas, devem-se encontrar limites conquanto choque-se contra outros direitos fundamentais. Mesmo representando verdadeiro pilar de sustentação da democracia moderna, devemos encontrar meios efetivos, porém não repressivos ou intimidatórios, para manter as liberdades de imprensa e de expressão intactas, bem como o direito à intimidade ou a presunção de inocência. Ou seja, o que deve ser enfrentado não é a liberdade em si, mas o abuso desta, que configura verdadeiro abuso de poder, tendo em vista que a mídia chega a ser compreendida, por estudiosos da área, como o quarto poder – aquele que controla, critica e inspeciona os demais.

A lei, sim, é essencial para manter um mínimo de qualidade nos produtos e serviços da mídia e garantir as justas reparações, devendo positivar medidas em que a sociedade é unânime. Entretanto, é papel da deontologia se apresentar de forma mais estreita quanto aos parâmetros éticos e morais da imprensa, pois uma lei pode ser ampla ou vaga demais, ocasionando mais males do que benesses.

Mas, no atual sistema de controle da liberdade de imprensa, qual o papel do Estado brasileiro e quais seus fundamentos legais para impedir que novas situações como o caso da Escola Base voltem a ocorrer? Para se responder a essa questão, interessante voltar os olhos para um passado recente. Houve no Brasil, até bem pouco tempo atrás, uma mal-afamada lei que regulava a liberdade de informação e de manifestação do pensamento, e que serve como exemplo de lei maléfica. A vetusta e ditatorial lei n° 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, conhecida como Lei de Imprensa, foi editada num período de exceção institucional – a ditadura militar brasileira – objetivando o cerceamento da liberdade de expressão e tendo por única finalidade a consolidação do regime autoritário que vigorava no país. Embora a abertura democrática tenha se dado já a considerável período de tempo, o Supremo Tribunal Federal (STF) apenas derrubou a Lei de Imprensa recentemente, no ano de 2009, portanto quase 21 anos após a promulgação da constituição cidadã.

Em breve comparação entre a Lei de Imprensa e o Código Penal, observa-se que a primeira previa penas mais severas, como para o crime de calúnia, por exemplo, onde estabelecia uma pena de 6 (seis) meses a 3 (três) anos de detenção, enquanto o segundo estipula que ela seja de até dois anos. Outro exemplo interessante é quanto ao crime de injúria, onde a Lei de Imprensa previa pena de até um ano de detenção, enquanto o Código Penal determina um máximo de seis meses.

Com a decisão de abril de 2009, os ministros do STF decidiram tornar sem efeitos a totalidade da lei ao concluírem sua incompatibilidade com a atual Constituição Federal, devendo os juízes, a partir de tal decisão, basearem suas decisões sobre conflitos que envolvam abuso da liberdade de imprensa unicamente na carta magna e nos códigos Civil e Penal, embora ainda se fale, vez que outra, na criação de uma nova Lei de Imprensa.


A Constituição Federal e a liberdade de imprensa

O controle das liberdades de imprensa, de expressão e de informação no Brasil deve ser efetuado a partir da Constituição Federal. Nas palavras de Bitelli:

O jornalismo livre, a liberdade de informação sem qualquer tipo de restrição ou censura, é uma das principais garantias de um Estado Democrático de Direito, e por isso a Constituição de 1988, no capítulo da comunicação social, trata diferentemente dos demais conteúdos informacionais a informação de caráter jornalístico [08].

Dentre os temas tratados no capítulo exclusivo da comunicação social na atual constituição brasileira, é o conteúdo jornalístico o mais amplamente protegido. Tal observação é constatada a partir da leitura do artigo 220 e de seu parágrafo primeiro, que assim dispõem:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1° Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5°, IV, V, X, XIII e XIV.

Os incisos do art. 5° mencionados no parágrafo primeiro do artigo 220 preveem, dentre outras coisas, o direito de resposta, a indenização por dano material, moral ou à imagem, bem como proíbe a violação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, nos seguintes termos:

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.

A liberdade de imprensa, entretanto, encontra exceções nos artigos 136 e 137 da carta magna, que dizem respeito, respectivamente ao estado de defesa e ao estado de sítio, situações em que tal liberdade poderá ser limitada. Todavia, o constituinte de 1988 tratou de fortalecer as bases desses direitos fundamentais, protegendo-os e garantindo-os de forma ampla, em evidente tentativa de exorcizar o fantasma da censura.

Importante destacar que o Brasil também é signatário de diversos tratados internacionais que versam acerca da liberdade de expressão e de imprensa, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Tratado Internacional de Chapultepec, a Declaração Americana Sobre Direitos Humanos, também conhecido como Pacto de São José da Costa Rica, além da Carta Democrática Interamericana e da Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, configurando-se um arsenal bastante amplo para defesa desses direitos fundamentais.

Entretanto, a lei, embora reflita os anseios coletivos, não é suficiente para mudar questões tão fortemente impregnadas no cotidiano de nossos meios de comunicação, como são as questões éticas. Existe a necessidade complementar de se estabelecerem métodos, regras e práticas independentes do Poder Público, que atuem no front dos dilemas comunicacionais, e que representem formas rápidas e práticas de se lidar com tais situações.


A Auto-Regulamentação como meio de controle da qualidade da imprensa

O Direito é "uma ordem da sociedade" [09], é o conjunto de normas jurídicas impostas pelo Estado para regular as relações sociais. Já a moral, que nos faz distinguir o bem do mal no contexto em que vivemos, pode ser entendida como um conjunto de regras de conduta. Adolfo Sánchez Vásquez, ao comparar a moral ao direito em seu "Ética", diz que:

De todas as formas de comportamento humano, o jurídico ou legal (direito) é o que mais intimamente se relaciona com a moral, porque os dois estão sujeitos a normas que regulam as relações dos homens [10].

Entretanto, diferenciando a moral do direito, Vásquez acrescenta que:

Algumas formas de comportamento humano (criminalidade, malandragem, roubo etc.) caem na esfera do direito enquanto violam normas jurídicas e na moral enquanto infringem normas morais [11].

Disso, compreende-se que podem existir comportamentos humanos pautados pela moral, mas que infringem o direito e comportamentos humanos em consonância com o direito, mas que afrontam a moral.

É a partir dessa dissonância que deve ser pensada a deontologia das mídias. Ou seja, como o direito não pode avançar sobre as liberdades de imprensa, expressão e informação, e havendo a necessidade de se assegurar a qualidade do conteúdo dos meios de comunicação sem cercear direitos fundamentais, é absolutamente preciso a utilização da deontologia, seja por meio de códigos ou outras formas de controle. Exemplificando isso, Bertrand cita, em A Deontologia das Mídias, que:

Atos autorizados pela lei podem ser contrários à deontologia, como um jornalista aceitar das mãos de um industrial um convite para férias de luxo. E ao contrário, é possível que a deontologia tolere atos ilegais, como usurpar uma identidade ou furtar um documento para provar um escândalo que prejudica gravemente o interesse geral [12].

É exatamente por constituir a liberdade de imprensa um poder e um dever, e portanto implicar nos direitos de informar e de ser informado, que deve a deontologia auxiliar o direito como um mecanismo de auto-controle. Onde o Direito não pode chegar, deve a deontologia marcar presença. Ela vem, portanto, para preencher o espaço em que o Poder Público não deve atuar – e as causas dessa abstenção pelo Estado são muitas, como impedir a instalação de limites, por motivos arbitrários dos mais variados, e censura.

Entretanto, antes de avançar, necessário se faz a definição conceitual de deontologia. Segundo a Stanford Encyclopedia of Philosophy:

In contemporary moral philosophy, deontology is one of those kinds of normative theories regarding which choices are morally required, forbidden, or permitted. In other words, deontology falls within the domain of moral theories that guide and assess our choices of what we ought to do (deontic theories), in contrast to (aretaic [virtue] theories) that — fundamentally, at least — guide and assess what kind of person (in terms of character traits) we are and should be [13].

Portanto, a deontologia, como teoria moral aplicada aos meios de comunicação, deve guiar as escolhas do jornalista, auxiliá-lo naquilo que ele deve ou não fazer. Sua missão, portanto, é servir de norte para as questões que possam ir para além do Direito, garantindo assim a não intervenção estatal – impedindo que o mesmo atente contra direitos fundamentais – e a garantia de rigor e isenção dos órgãos de comunicação social.

Nesse diapasão, para Charaudeau, a criação de códigos deontológicos é uma questão de responsabilidade que, para qualquer grupo socioprofissional, supõe três condições:

(1) que o grupo queira definir uma conduta moral no exercício de sua prática, levando em conta aquilo que, numa sociedade, é considerado bem e mal; (2) que, para isso, estabeleça um conjunto de regras (explícitas ou implícitas) que garantam essa conduta, as quais devem ser respeitadas por todos os membros do corpo social sem exceção e constituam obrigações, um dever; (3) que exista um mecanismo de monitoração, fazendo com que essas regras ajam mais de maneira negativa do que positiva, ou seja, que aqueles que não as respeitem estejam excluídos fisicamente ou moralmente do grupo, num mecanismo de sanção [14].

Em conformidade com as condições propostas por Charaudeau, encontramos alguns bons exemplos de códigos deontológicos espalhados pelo globo que utilizam sabiamente preceitos éticos para pautar a conduta de seus profissionais da comunicação. Os jornalistas portugueses, por exemplo, regem-se por um Código Deontológico aprovado numa consulta que abrangeu todos os jornalistas profissionais daquele país, resumindo, em dez artigos, a base ética que deve reger a conduta desses profissionais. Embora preveja algumas situações práticas, o código deontológico português, assim como a grande maioria, peca pela simplicidade.

O código deontológico do Conselho Alemão de Imprensa, entretanto, pode ser considerado como um dos mais completos de toda a Europa, servindo de exemplo para os demais países. Isso é possível graças a uma regular, porém discutida e eticamente bem fundamentada, atualização do código. Embora sejam apenas dezesseis artigos, ele é composto por diversos subitens, que preveem desde situações práticas a posturas éticas a serem seguidas pelos jornalistas. Chega a prever, por exemplo, em seu artigo quinze, que em reportagens sobre questões médicas devem ser tomadas certas medidas para evitar suscitar receios infundados ou falsas esperanças no leitor. Embora seja uma realidade muito distante para a maioria dos países, o código alemão aponta um caminho a ser trilhado pelos demais, mostrando que a auto-regulamentação é um processo, não uma simples tarefa que pode ser concluída de imediato.


A auto-regulamentação pela imprensa brasileira: o Código de Ética dos Jornalistas

É através do jornalismo que a massa busca informações para poder tomar decisões que, muitas vezes, geram graves consequências para a nação. É disso que advém a grande responsabilidade dos meios de comunicação, fazendo com que o conhecimento acerca dos aspectos éticos e jurídicos de se publicar um fato noticioso torne-se imperioso para os jornalistas. Além do mais, os jornalistas devem estar preparados para resolver dilemas morais cada vez mais frequentes em seus cotidianos profissionais. Por isso, o Congresso Nacional dos Jornalistas Profissionais aprovou, em 1987, o Código de Ética do Jornalista, que fixa as normas a que deverá subordinar-se a atuação do profissional nas suas relações com a comunidade, com as fontes de informação, com as empresas de comunicação e entre jornalistas. Com a colaboração de sindicatos, professores e jornalistas, seu texto foi atualizado no Congresso Extraordinário dos Jornalistas, realizado de 3 a 5 de agosto de 2007 na cidade de Vitória (ES).

Em seu capítulo primeiro, que trata do direito à informação, o Código expõe como base o "direito fundamental do cidadão à informação, que abrange direito de informar, de ser informado e de ter acesso à informação", assim como dispõe em seu artigo 2° que, por ser o acesso à informação um direito fundamental, "os jornalistas não podem admitir que ele seja impedido por nenhum tipo de interesse", prevendo nos incisos subsequentes que:

I - a divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comunicação e deve ser cumprida independentemente da linha política de seus proprietários e/ou diretores ou da natureza econômica de suas empresas;

II - a produção e a divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos e ter por finalidade o interesse público;

III - a liberdade de imprensa, direito e pressuposto do exercício do jornalismo, implica compromisso com a responsabilidade social inerente à profissão;

IV - a prestação de informações pelas organizações públicas e privadas, incluindo as não-governamentais, deve ser considerada uma obrigação social;

V - a obstrução direta ou indireta à livre divulgação da informação, a aplicação de censura e a indução à autocensura são delitos contra a sociedade, devendo ser denunciadas à comissão de ética competente, garantido o sigilo do denunciante.

Entretanto, é o artigo 11° que traz de forma mais evidente os reflexos dos fundamentos deontológicos aplicados no código, ao impedir que o jornalista divulgue informações "visando o interesse pessoal ou buscando vantagem econômica" bem como as de "caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes" – aqui, faz-se necessário um breve comentário, pois é de conhecimento geral a utilização, por parte da imprensa, de meios e discursos sensacionalistas que buscam, evidentemente, apenas a majoração dos lucros da empresa, o que, em muitos casos gera, inclusive, a possibilidade de buscar no judiciário a devida reparação. O artigo 11° traz ainda, em seu inciso III, a proibição da publicação de informações obtidas de maneira inadequada, com ressalva dos casos em que exista incontestável interesse público.

A apuração das infrações ao código é analisada em duas instâncias: a primeira faz-se no âmbito do próprio sindicato ao qual o jornalista é filiado e, em segunda e última instância, pela Comissão Nacional de Ética – todos órgãos independentes, eleitos por voto direto, secreto e universal dos jornalistas. Quanto à aplicação de punições, o Código de Ética dos Jornalistas prevê desde observações e advertências até a exclusão do quadro social do sindicato e à publicação da decisão da comissão de ética em veículo de ampla circulação.

Dentro do contexto brasileiro, poderiam ser citados ainda o Código da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), que dita as regras que devem ser seguidas pelas empresas do setor; os Princípios Éticos da Associação Nacional dos Editores de Revista (ANER), documento que orienta as publicações seriadas no Brasil; e o Código de Ética da Radiodifusão Brasileira, documento da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (ABERT). Os códigos dão existência concreta aos ideais e, juntos, esses documentos formam uma excelente ferramenta para a manutenção da qualidade dos serviços prestados pelos órgãos de comunicação social, embora, como se verá adiante, ainda sejam necessárias outras medidas para que efetivamente possa se garantir a qualidade da informação passada ao público.


Garantindo a qualidade dos meios de comunicação

Não é a toa que o nome de Claude-Jean Bertrand foi citado diversas vezes ao longo deste trabalho. Bertrand foi o grande pensador e articulista por trás dos Media Accountability Systems (MAS), que são meios de assegurar a responsabilidade social da mídia através de mecanismos não-governamentais. Segundo levantamento feito pelo próprio estudioso, o número de possíveis meios que possibilitariam o melhoramento e a manutenção da qualidade da mídia noticiosa giraria em torno de sessenta. Embora a adoção de todos esses meios seja desnecessário para o efetivo controle da ética nos meios de comunicação social, a utilização de alguns deles em conjunto é absolutamente imprescindível, pois se tratam de meios democráticos e não-coercitivos, que ajudam na proteção e na convivência pacífica das liberdades de expressão, informação e imprensa, bem como de outros direitos fundamentais.

Entretanto, a ética dos meios de comunicação é também resultado da ética individual de cada jornalista. Ou seja, de nada adiantam belos códigos deontológicos se o profissional de jornalismo já é incapacitado desde sua formação. Embora o STF tenha decidido, em julgamento que representa verdadeiro retrocesso para o nosso país, pela não obrigatoriedade do diploma universitário para o exercício da profissão de jornalista, as faculdades de comunicação social continuam com um grande dever em suas mãos: o de formar profissionais capacitados para enfrentar dilemas morais. Evidentemente, as academias podem e devem efetuar outros papéis, que também são de suma importância, como o de reinventar paradigmas e estabelecer parâmetros para uma mídia de qualidade.

Mas, devemos ir além e apontar outros caminhos que, em conjunto com as academias e com os códigos de ética e de conduta profissional, formem ampla defesa aos direitos fundamentais envolvidos na questão ora em debate. Dentre as diversas possibilidades, deve-se destacar também o ombudsman, jornalista experiente e respeitado que atua como crítico do próprio veículo ao qual é ligado. Sua principal função é analisar, avaliar o trabalho de seus colegas e publicar críticas, além de conferir as opiniões e as reclamações do público. Esse importante papel de autocrítica, embora pouco utilizado no Brasil, mostra uma de suas qualidades reforçando a imagem de credibilidade da empresa junto ao seu público, o que deveria ser buscado com mais veemência pelos meios de comunicação.

Entretanto, são os conselhos de imprensa que parecem ser os meios mais conhecidos e utilizados na luta pela qualidade da mídia, funcionando como intermediários entre o público e os profissionais da comunicação. Desde que compostos por empresários do ramo, jornalistas e público, os conselhos tendem a obter a melhor, mais rápida e completa visão dos produtos e serviços oferecidos pelos meios de comunicação. Mas, para que isso vire realidade, deve existir uma forte colaboração entre esses três atores. Caso contrário, um conselho jamais obrigaria alguém a fazer algo.

Todavia, deve ficar registrado que

Talvez não haja profissão tão importante à democracia de uma nação e, ao mesmo tempo, tão ambivalente e difícil, como a do profissional da comunicação. Ele é um trabalhador bem diferente dos outros, porque dele depende, nos dias atuais, em grande parte, a democracia de uma nação. Isso porque, numa sociedade democrática, o papel da mídia deve ser o de promover o exercício da discussão crítica dos problemas que atingem a nação; em outras palavras, exercitar a discussão verdadeiramente política de tudo o que se refere ao andamento não só do país, como do mundo. E nesse aspecto é necessária uma vigilância contínua que garanta uma verdadeira democracia. […] E nessa tarefa a população não deve ser apenas informada, mas deve, também, poder dizer sua palavra, expressar sua opinião, manifestar seu pensamento. Quem coordena essa tarefa é o profissional da comunicação. É ele quem vai lidar com essa questão candente e decisiva. Mas como lidar com ela de maneira correta, democrática? [15]

Sendo assim, é com extrema cautela que devemos trabalhar liberdades tão queridas pela humanidade. Os Estados, em resposta à grande influência dos meios de comunicação social na atual conjuntura sócio-política, e observando a atual convergência tecnológica, tem sido requisitados a criar diversas leis abordando o tema ora discutido. Mas, legislar sobre comunicação social é correr o risco de cercear os direitos a ela inerentes, fato que deve ser combatido firmemente por toda a sociedade. É nesse contexto de proteção aos direitos fundamentais e à democracia que a responsabilidade social dos meios de comunicação deve ser pensada, a fim de promover a efetiva elevação e manutenção da qualidade dos produtos e serviços por eles prestados. Assim, tanto os códigos de ética como as academias ou conselhos de imprensa aparecem como meios eficazes para, em conjunto com um Estado zeloso e guardião dos direitos fundamentais, garantirem a convivência pacífica de liberdades, almejando sempre a efetivação dos direitos humanos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas

  1. Kellner, 2001, p. 9
  2. Bertrand, 2009, p. 65
  3. Bucci, 2009, p. 103.
  4. Michelman, 2007, p. 49.
  5. Bertrand, 1999, p. 67
  6. Bobbio, 1999, p. 1040
  7. Marques, 2006, p. 42
  8. Bitelli, 2004, p. 247
  9. Ascensão, 2001, p. 4
  10. Vásquez, 2006, p. 97
  11. Ibidem, 2006, p. 99
  12. BERTRAND, 1999, p. 49
  13. ALEXANDER, L. MOORE, M., 2008, Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/ethics-deontological/.
  14. Charaudeau, 2009, p. 262.
  15. Guareschi e Biz, 2005, p. 81.

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DANI, Leandro. A responsabilização da mídia: Direito e deontologia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3045, 2 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20343. Acesso em: 19 abr. 2024.