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Para não confundir caridade com dever ético.

Peter Singer e a obrigação de ajudar

Para não confundir caridade com dever ético. Peter Singer e a obrigação de ajudar

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Singer conclui, em um primeiro momento, que todo aquele que mata e/ou deixa o outro morrer é assassino (porque as consequências são iguais). E esse deixar morrer, neste debate, pode até mesmo significar não fazer nada para que se mudem as condições de vida dos que vivem em pobreza absoluta.

Resumo: Estudo sobre o argumento da obrigação de ajudar, elaborado pelo filósofo australiano Peter Singer, na obra Ética Prática, no contexto de luta contra a pobreza absoluta. O presente estudo versa, pois, sobre como Peter elabora sua teoria a partir de seu utilitarismo, os entraves para a concretização da teoria e como ela supera seus dilemas frente às diversas críticas.

São diversos os temas abordados em Ética Prática, trabalho mais abrangente de Peter Singer[3], que versa sobre problemas éticos relevantes selecionados pelo próprio autor[4]. Ainda no prefácio da 3ª edição, Singer (2002, p. 01) questiona: “quais são as nossas responsabilidades para com os pobres?”, adiantando o tema a ser abordado em seu capítulo 8, intitulado de “Ricos e pobres”. Discutindo sua teoria ética utilitarista em cima de um problema prático da nossa contemporaneidade (a pobreza absoluta), Singer elabora a argumentação a favor da obrigação dos ricos ajudarem os pobres (SINGER, 2002, p. 240). Nessa perspectiva, busca-se analisar, no presente estudo, como (e se) essa obrigação defendida por Singer origina-se do posicionamento ético utilitarista e se valida no mundo hodierno, frente a diversas críticas.

Antes, contudo, de aprofundar na discussão sobre como lidar com a pobreza absoluta na perspectiva de Singer – que foi sua motivação principal para escrever sobre a obrigatoriedade de ajudar – é importante entender a postura utilitarista e consequencialista adotada por ele (SINGER, 2002, p.11). O utilitarismo pode ser compreendido como

uma teoria ética que concentra a avaliação moral das nossas ações nas consequências que elas produzem. Ao rejeitar a importância dos valores absolutos como orientadores da ação, faz depender a bondade ou maldade das nossas decisões da particularidade das circunstâncias que condicionam as consequências do que fazemos. Devemos optar pelos atos cujas consequências maximizem o bem-estar de todos os implicados igualitariamente considerados (MAIA, 2004, p. 03).

Assim, assumindo a premissa de que orientar a prática é a finalidade da ética (MAIA, 2004, p. 17), pode-se compreender facilmente que o utilitarismo serve de orientação para as práticas humanas, condicionando-as (com explicações racionais) às consequências que elas produzem. Destarte, percebe-se que a ética utilitarista está intrinsecamente ligada ao consequencialismo, uma vez que, para uma ação ser moralmente boa, há de prover o bem-estar geral a todos os afetados. Percebe-se, ainda, que o utilitarismo possui, entre seus conceitos, o relativismo, uma vez que “as consequências de uma ação variam de acordo com as circunstâncias nas quais ela é praticada” (SINGER, 2002, p. 11). Ou seja, a mesma ação pode ser boa ou ruim, dependendo do contexto em que ela é praticada e como ela afeta o bem-estar de cada um e do todo (que são bem-estares equivalentes – decorrendo assim, as ideias de universalismo e imparcialidade).

Nessa discussão, pode-se localizar o posicionamento de Singer (2002, p. 20-21) frente a diversas concepções utilitaristas (dos atos, das regras, de dois níveis) como um “utilitarismo das preferências” (corroborado também por MAIA, 2004, p. 37). Assim, deve-se considerar da mesma forma todos os interesses envolvidos a fim de atingir um universalismo imparcial (SINGER, 2002, p. 20):

Ao admitir que os juízos éticos devem ser formados a partir de um ponto de vista universal, estou aceitando que os meus próprios interesses, simplesmente por serem meus interesses, não podem contar mais que os interesses de uma outra pessoa.

Singer reforça, dessa maneira, a ideia anteriormente defendida de que “a noção de ética traz consigo a ideia de alguma coisa maior que o individual” (SINGER, 2002, p. 18). Ou seja, esse utilitarismo das preferências defendido por Singer não é baseado no egoísmo do agente, pois a mera satisfação de interesses individuais não levaria à maximização do bem-estar geral (MAIA, 2004, p. 39). Reiterando, portanto, o que Singer (2002, p.19) defende: “atribuir aos interesses alheios o mesmo peso que atribuímos aos nossos”, pode-se inferir, inclusive, que se deve dar atenção para a fome do outro assim como se dá a sua própria fome, tendo consciência de que a impossibilidade de satisfazer essas preferências/necessidades causa ao outro tanto sofrimento como causaria a mim se estivesse em seu lugar. Destarte, percebe-se que Singer busca tanto a maximização do bem-estar como dar significado a vida daqueles que assim o fazem, porque acabam, também, maximizando seu próprio bem-estar – já que dão significado a sua própria vida (MAIA, 2004, p. 39).

Nesse afã, Singer (2002, p. 229-233) elenca diversos dados que atestam quão ruim é a pobreza absoluta, uma vez que viver nesse estágio é padecer do mínimo básico para sobreviver no que se refere à alimentação, saúde e moradia. Assim, esses pobres (absolutos) têm todos os dias como um horizonte adversário, pois não sabem se vão conseguir chegar ao amanhã vivos - dadas suas necessidades biológicas básicas insatisfeitas. E, nesse mesmo afã, Singer contrasta com os ricos, mas há de se evidenciar que

O que nos interessa é que todos os indicadores nos dizem que há demasiadas pessoas a viver vidas abaixo de qualquer critério mínimo de dignidade, ao mesmo tempo que existe uma outra percentagem de seres humanos que vive em absoluta abundância (MAIA, 2004, p. 14).

Para alcançar, portanto, o argumento a favor da obrigação de ajudar, Singer (2002, p. 242) desenvolve e associa as seguintes premissas:

1ª) Se pudermos impedir que algo de ruim aconteça sem termos de sacrificar algo de importância comparável, devemos impedir que aconteça;

2ª) A pobreza absoluta é uma coisa ruim;

3ª) Existe uma parcela de pobreza absoluta que podemos impedir sem que seja preciso sacrificar nada de importância moral comparável.

Conclusão: devemos impedir a existência de uma parcela de pobreza absoluta.

Para verificar como não é absurda essa cadeia de premissas, propõem-se a comparação dela com o artigo 135 do Código Penal Brasileira, a saber:

Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.

Analisando e comparando, pode-se perceber que o artigo trazido ao debate estrutura-se de forma semelhante ao processo feito por Singer. Tem-se uma atitude (“prestar assistência”) a ser feita que impeça que algo ruim aconteça (“desamparo ou em grande e iminente perigo”), sem ter de sacrificar algo de importância comparável (“sem risco pessoal”). A lei, ainda, vai além porque reconhece também a possibilidade de se recorrer a uma autoridade pública para evitar os danos – ou seja, se não tiver competência para ajudar, buscar alguém que a tenha.

Seguindo essa estrutura, pode-se até mesmo reavivar a discussão que Singer (2002, p. 234 – 240) traça entre matar e deixar morrer, concluindo em um primeiro momento que todo aquele que mata e/ou deixa o outro morrer é assassino (porque as consequências são iguais). E esse deixar morrer, neste debate, pode até mesmo significar não fazer nada para que se mudem as condições de vida dos que vivem em pobreza absoluta e, consequentemente, sofrem de desnutrição e, na falta de assistência médica, morrem. Se se pudesse considerar que o artigo 135 abrace, dentre sua condicionante “desamparo àquele que padece de desnutrição por ser pobre”, concluir-se-ia facilmente que gastar dinheiro superfluamente ao invés de aplicá-lo para salvar vidas seria crime (e com pena ampliada se resultasse em morte).

Nessa discussão, contudo, tem-se um escrito ponderado:

São muitas as diferenças significativas entre gastar dinheiro com coisas luxuosas, em vez de usá-lo para salvar vidas, e atirar deliberadamente em pessoas. (...) Essas diferenças não precisam abalar a nossa conclusão anterior de que não há uma diferença intrínseca entre matar e deixar morrer. São diferenças extrínsecas, isto é, diferenças em geral, mas não necessariamente associadas à distinção entre matar e deixar morrer (SINGER, 2002, p. 234-236).

Percebe-se, assim, que Peter não busca radicalizar sua opinião a esse respeito, mostrando que mesmo que as consequências dos dois atos seja a mesma (a morte de alguém), há diferenças sobre certeza e motivação entre os dois atos. Essa escrita mais ponderada, assim como a aparente ausência de juízos de valor ético sobre os ricos - por parte de Peter em sua obra - é analisa por Romero (1998, p. 533) da seguinte forma: “al censurar a los ricos sería más difícil persuadirlos para que ayuden com dinero a los pobres”. Ou seja, segundo Romero, Singer não emite esses juízos para que não dificulte o convencimento e a adesão dos ricos a causa da obrigação de ajudar.

Nessa perspectiva, Singer insiste na obrigação dos ricos ajudarem os pobres argumentando (SINGER, 2002, p. 243): “Nossa riqueza significa que dispomos de uma renda da qual podemos abrir mão sem com isto nos privarmos das necessidades básicas da vida e podemos usá-la para diminuir a pobreza absoluta”.

Assim, é retomado o argumento a favor da obrigatoriedade de ajuda por parte dos ricos, reconhecendo que parte da renda deles é usada para necessidades não-básicas, enquanto outros padecem de necessidades básicas. Robert Nozick (MORRESI, 2002), contudo, opõe-se veementemente à obrigatoriedade de ajudar, porque considera que toda apropriação legítima garante ao seu dono o seu direito de possuir e usufruir como quiser. Ter que compartilhar dos seus bens para ajudar ao próximo depende tão somente de sua generosidade voluntariedade, nunca pode ser compulsório. Essa ideia é até mesmo reconhecida, em partes, por Singer (2002, p. 246).

Maia (2004, p. 111), no entanto, opõe-se ao argumento de Nozick mostrando que:

uma sociedade em que os mais ricos não tenham qualquer obrigação de prestar ajuda aos mais pobres, alegando que tal obrigação viola a sua liberdade, é uma sociedade em que os mais pobres se veem privados desse direito que só os ricos parecem possuir. Estes usufruem da liberdade de ajudar ou de não o fazer, enquanto que os segundos não têm qualquer possibilidade de escolher uma vida diferente daquela em que vivem. A liberdade não é só a possibilidade de não ser privado da posse do que é meu. A liberdade é também o exercício da escolha.

Assim, ressurge a discussão sobre liberdade e seus dilemas. Como considerar livre aquele pobre que não tem o poder de escolher nada – nem mesmo como satisfazer suas necessidades mais elementares? Até que ponto a liberdade do rico é superior ou deva ser preservada em detrimento dos que vivem em pobreza absoluta? Sacrificar a liberdade para prestar assistência ao outro seria sacrificar algo de “importância moral comparável”? Buscando, pois, superar essa discussão Romero (1998, p. 533) aponta que:

el autor [Singer] considera que, en lugar de “configurar una ética para santos y héroes”, que exija algo exagerado que nadie cumpla, es preferible un nuevo abordaje donde se logren compromisos concretos aunque limitados de parte de los ricos.

Ou seja, mesmo que não se alcance o padrão proposto por Peter em sua obra (SINGER, 2002, p. 257-258), ele apela para que façamos o mínimo possível, reconhecendo que estabelecendo um padrão mais próximo da realidade diária das pessoas, elas se esforçariam mais concretamente para atingi-lo, alcançando, assim, uma maior prestação de ajuda. Não se percebe, pois, um idealismo desmedido naquilo que Peter propõe, pelo contrário: apropriando-se das características do utilitarismo consequencialista adotado por ele (já discutido no início deste estudo), faz jus ao que escreve e descreve.

Evidencia-se, assim, que a “ética prática [de Singer] aposta na consciência do indivíduo o caminho para a ação ética e exige que esse a realize” (ALCÂNTARA, 2009, p. 7311). Ou seja, Singer deposita no sujeito (agente) a responsabilidade de uma postura positiva para lidar com as questões éticas querendo, no caso em estudo, que os ricos abram mão do supérfluo para salvar vidas dos pobres. Reforçando, inclusive, que “a consequência do que fazemos deve ser pensada na mesma proporção das consequências daquilo que decidimos não fazer” (ALCÂNTARA, 2009, p. 7312) imputando a todos grande responsabilidade pelo que fazem e pelo que deixam de fazer. Nesse sentido, reitera-se a argumentação de Singer que não fazer nada para combater a pobreza absoluta pode ser tão nocivo quanto causá-la.

Conclui-se, portanto, que dessa linha de raciocínio adotada por Singer sobre a responsabilidade dos nossos atos nasce a teoria sobre a obrigação de ajudar. Essa obrigação que leva em consideração as implicações de nossas ações (ou ausência delas) e deve ser um instrumento na guerra contra o sofrimento – critério ético para juízos morais (ALCÂNTARA, 2009, p. 7311). Assim, se podemos evitar o mal sem ter que sacrificar nada de importância moral comparável, devemos fazê-lo. Em outras palavras, se podemos evitar, sem prejuízos, que morram por causas simples diversas pessoas, mesmo que alheias ao nosso círculo próximo de relacionamentos, devemos assim agir por obrigação moral.

Essa questão de proximidade, supracitada, é estudada por Peter como a “igual consideração dos interesses”, pelo qual não se devem fazer discriminações arbitrárias, uma vez que compartilhamos todos de diversos interesses – alguns dos quais são elementares e, para muitos, não saciados. Reforçando, assim, a postura utilitarista, consequencialista e universal adotada por Peter, como se pode ver em (SINGER, 2002, p. 244):

a necessidade humana de alimentar-se nada tem a ver com a raça a que se pertença, e, se os africanos precisam mais de comida do que os europeus, seria uma violação do princípio da igual consideração dar preferência a estes últimos.

Assim, o argumento a favor da obrigação de ajudar se embasa na não discriminação dos interesses (aqui também entendidos como necessidades) de todos que padecem, aliando-se à situação social mais positiva dos que prestarão ajuda – sem sacrificar nada de importância moral comparável (SINGER, 2002, p. 245). A crítica de Singer centra-se, pois, na ausência de decisões que deveriam ser tomadas no nível individual e/ou no nível governamental de forma satisfatória para o combate à miséria social que muitos seres humanos vivenciam. Utilizando-se do argumento em discussão, Singer busca garantir, então, o mínimo básico para todos, tendo como ênfase a métrica de que ninguém deveria possuir mais do que o básico enquanto todos não o detivessem (ALCÂNTARA, 2009, p. 7316).

Encaminhando para a conclusão deste estudo, evidencia-se que, para Singer, “doar o excedente que não é necessário para sobreviver não é caridade, é dever ético” (ALCÂNTARA, 2009, p. 7316). Essa síntese central da teoria de Peter, no entanto, recebe duras críticas principalmente no que versa sobre: a) direitos de propriedade, b) cuidar de nós mesmos, c) população e a ética da triagem, d) deixar a cargo do governo, e) um padrão excessivamente alto (SINGER, 2002, p. 243 - 255). Antes de concluirmos, pois, analisaremos como se configuram essas críticas à concretização da obrigatoriedade de ajudar e como podem ser contestadas.

A crítica sobre os direitos de propriedade foi anteriormente trabalhada na perspectiva de Nozick e refutada com Romero. Ademais, pode-se perceber que “o que Singer apresenta é uma profunda contradição no campo do direito e da moral, em que o ‘direito a vida’ está num patamar inferior aos ‘direitos de propriedade’.” (ALCÂNTARA, 2009, p. 7317). Assim, deve-se buscar, neste aspecto, uma revalorização do direito a vida, principalmente no que se refere a dos que vivem em pobreza absoluta – se é que se pode chamar isso de vida. Nesse sentido, valida-se o argumento a favor da obrigatoriedade de ajudar como elemento de ressignificação do direito a vida em detrimento do direito de propriedade.

Já para contestar a crítica sobre “cuidar do que é nosso”, pode-se retomar o argumento, também trabalhado neste estudo, que coaduna com Maia (2004, p. 98): “O juízo ético tem que ser universal, isto é, tem que ir para além da consideração dos nossos interesses individuais”. Assim, enfraquece-se essa crítica egoísta, fortalecendo que falar em ética é falar em algo muito mais abrangente que o círculo próximo de relacionamentos. Não há, pois, para Peter como pensar em atitudes éticas que sejam restritas e limitadas, ainda mais quando os problemas – como o da pobreza absoluta – figuram de forma global (MAIA, 2004, p. 125).

Por outro lado, Singer considera relevante a argumentação sobre o aumento populacional e a triagem mais forte, mas também muito repugnante (SINGER, 2002, p. 249). Basicamente, quem se utiliza desse argumento alega que de nada adianta combater a pobreza absoluta se não houver controle de natalidade, pois o que seria para ajudar acabaria por ampliar o problema – ao favorecer o crescimento populacional dos que vivem em pobreza absoluta. De forma resumida, Hardin, utilizando-se da metáfora da “ética do barco salva-vidas”, criando a imagem de que o bote tenta salvar tanta gente que lota e acaba por naufragar, matando a todos. Assim, argumenta-se contrariamente à obrigatoriedade de ajudar alegando que “os ricos devem deixar que os pobres morram de fome, pois, de outra forma, os pobres vão arrastar os ricos para a sua situação de miséria e indigência” (SINGER, 2002, p. 248). Maia, contudo, contesta a argumentação alegando que (MAIA, 2004, p. 115):

A metáfora de Garrett Hardin é demasiado simplista. É certo que não estamos todos no mesmo bote. Mas também não estão uns num bote e os outros a afogar-se no mar. Estamos sim todos reunidos em grupos que se encontram em botes diferentes e, tal como os diferentes países, interdependentes. Se, de repente, desaparecessem do mundo todos os países

pobres a consequência não seria o aumento, nem sequer a manutenção do bem-estar dos países ricos. Os países ricos dependem, em parte, dos que o não são. Os países ricos não são, na sua maioria, autossuficientes. Ora tal interdependência torna-nos eticamente responsáveis por aquele que estão noutros “botes”.

Assim, retomam-se as ideias de globalização dos problemas e de universalidade da ética. E, com elas, desqualifica-se também a tese de “deixar a cargo do governo”, uma vez que todos (do governo ou não) sofrerão com as mais diversas consequências (nos âmbitos econômicos, políticos etc.) oriundas da pobreza absoluta. Vê-se, também, que o governo pode ser motivado a partir das ações privadas na luta contra a pobreza, como se os cidadãos dessem o seu aval para que o governo também aja.

Para finalizar a discussão sobre os argumentos contrários à obrigação de ajudar, tem-se o de que é exigido um “padrão excessivamente alto”. E “esta objecção ao argumento supõe que é muito difícil, senão mesmo impossível, corresponder ao comportamento que moralmente nos é exigido.” (MAIA, 2004, p. 117). Essa discussão aprofunda-se dada a subjetividade sobre aquilo que consideramos ser possível de sacrificar, em outras palavras, aquilo que não é de relevância moral comparável. Contudo, mesmo com o dilema do que se pode ou não abrir mão, Singer suaviza sua teoria, sendo flexível e mostra que “qualquer cifra será arbitrária, mas talvez haja alguma coisa a dizer em favor de uma porcentagem aproximada de nossos rendimentos” (SINGER, 2002, p. 258).

Pode-se concluir, assim, que as objeções ao argumento da obrigação de ajudar são facilmente contornáveis, se tiverem como núcleo duro a própria teoria ética consequencialista da qual se origina. Valida-se, pois, o posicionamento de Singer sobre a obrigação de ajudar que busca uma ressignificação do “direito a vida”, abrindo mão – em partes e com cautela – do “direito a propriedade”, mostrando que “é errado pressupor que a mesma vida continue sendo boa num mundo em que adquirir coisas luxuosas significa aceitar como inevitável o sofrimento do outro” (SINGER, 2002, p. 252). Vê-se, no entanto, que mesmo com a obrigatoriedade, há bastante maleabilidade na teoria de Singer que leva – e muito – em consideração a consciência do agente ético. Dessa forma, essa obrigação deve ser entendida como um dever ético pelo qual seu agente supera o simples ato de generosidade, agindo com a razão de estar fazendo o bem, promovendo a paz e evitando o sofrimento.


REFERÊNCIAS

ALCÂNTARA, Leonardo Alejandro Gomide. Justiça distributiva e teoria moral: uma abordagem sobre as vertentes utilitaristas e deontológicas de Peter Singer e John Ralws. São Paulo: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, 2009.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. (Código Penal) Disponível em: <http://www.amperj.org.br/store/legislacao/codigos/cp_DL2848.pdf>. Acesso em: 14 de novembro de 2011.

MAIA, Diana. Aplicar a ética: a questão da pobreza absoluta. 2004. 166 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Instituto de Letras e Ciências Humanas, Universidade de Minho, Braga. 2004.

MORRESI, Sergio D. Robert Nozick e o liberalismo fora de esquadro. In: Lua Nova, nº 55-56, 2002.

ROMERO, Dalia Elena. La pobreza, el crecimiento demográfico y el control de la natalidade: Una crítica a la perspectiva ética de Peter Singer sobre la relación entre ricos y pobres. In: Caderno Saúde Pública, Rio de Janeiro, 14(3):531-541, jul-set, 1998.

SINGER, Peter. Ética prática. 3ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Coleção biblioteca universal)


Notas

  1. Filósofo australiano autor de diversos títulos, dentre eles Ética Prática e Animal Liberation. Atualmente, é professor da Universidade de Princeton, nos EUA.
  2. “Os problemas que aborda foram selecionados a partir de duas premissas: em primeiro lugar, a relevância; em segundo, até que ponto o raciocínio filosófico pode contribuir para a discussão desses problemas.” (SINGER, 2002, p. 01)


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTE, Yan Walter Carvalho. Para não confundir caridade com dever ético. Peter Singer e a obrigação de ajudar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3069, 26 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20511. Acesso em: 28 mar. 2024.