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Marxismo e a crítica do Direito Penal

Marxismo e a crítica do Direito Penal

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O artigo apresenta os principais conceitos de Marx, da noção de classe social, alienação e ideologia, até idéias mais esparsas como a perspectiva de Direito e de Estado. O objetivo é trazer uma visão do materialismo histórico para imaginar as possibilidades de Teoria Crítica ao Direito Penal a partir da Teoria Marxiana.

RESUMO: O artigo apresenta os principais conceitos de Marx, da noção de classe social, alienação e ideologia, até idéias mais esparsas como a perspectiva de Direito e de Estado. O objetivo é trazer uma visão ampla do materialismo histórico para a partir de sua totalidade imaginar as possibilidades de Teoria Crítica ao Direito Penal a partir da Teoria Marxiana.

Palavras-Chave: Karl Marx; Criminalidade; Teoria Crítica.


1. Considerações iniciais

O Marxismo sempre esteve associado aos movimentos sociais e políticos de reivindicação por direitos. O que de um lado gera um grande impacto positivo por representar uma teoria que não permanece só na abstração, mas tenta transformar o mundo. Como dizia o próprio Marx “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de modos diferentes; o que importa, porém, é transformá-lo”. (MARX; ENGELS, 1974, p.11). Por outro lado, esse envolvimento político direto faz com que muitas pessoas se afastem do debate em torno da teoria marxista, um receio que pode virar medo e, no limite, chegar até o temor pré-concebido sobre uma teoria.

Mas realmente, pior que ler Marx e não o compreender ou distorcer suas idéias, é não ler Marx! Seu humanismo entusiasta e radical é um exemplo ao menos de vontade humana da busca por um mundo melhor. Os erros cometidos em nome de Marx não podem se confundir com suas idéias ou sua perspectiva de mundo. Em nome do marxismo muitos agiram de forma muito diversa da pensada por Marx. E o próprio Marx já alertava sobre isso, num relato escrito por Engels.

Precisamente como Marx disse sobre os “marxistas” franceses do fim dos anos 70: “Tout ce que je sais, c’est que je ne suis pas marxiste” (EvM. Tudo o que sei é que não sou marxista).” (ENGELS, 2011)

De qualquer sorte, Engels, em discurso de despedida no enterro de Marx, soube expressar com grande eloqüência os sentimentos que Marx gerava em outros seres humanos:

(...) Marx era, antes de tudo, um revolucionário. Cooperar, de um modo ou de outro, para a derrubada da sociedade capitalista e das instituições políticas por ela criadas, contribuir para a emancipação do proletariado moderno, a quem ele havia infundido pela primeira vez a consciência de sua própria situação e de suas necessidades, a consciência das condições de sua emancipação: tal era a verdadeira missão de sua vida. A luta era o seu elemento. E lutou com uma paixão, uma tenacidade e um êxito como poucos. (...) Marx, por isso, era o homem mais odiado e mais caluniado de seu tempo. Os governos, tanto os absolutistas como os republicanos, o expulsavam. Os burgueses, tanto os conservadores como os ultra-democratas, competiam em lançar difamações contra ele. Marx punha de lado tudo isso como se fossem teias de aranha, não fazia caso; só respondia quando isso era exigido por uma necessidade imperiosa. E morreu venerado, querido, pranteado por milhões de operários da causa revolucionária, como ele, espalhados por toda a Europa e a América, desde as minas da Sibéria até a Califórnia. E posso atrever-me a dizer que se pôde ter muitos adversários, não teve sequer um inimigo pessoal. (MARX; ENGELS, 1976, p.214)

Enfim, Marx é um pensador clássico, por isso sua leitura é fundamental. Quer se odeie, quer se idolatre, Marx como um clássico desperta paixões e por isso vale a leitura. Sua leitura ilumina muita coisa, em especial o conflito na sociedade, o que se opôs frontalmente às teorias consensuais da sociedade de sua época. Esse artigo, provavelmente extremamente criticável em diversos aspectos, representa um esforço de organização e divulgação das idéias de marxianas.


1.1 Cuidados ao ler Marx

O marxismo é minoritário na atualidade, bem como na Academia. Em geral é visto com preconceito, motivado por visões distorcidas de marxismo. A história do Marxismo na universidade é recheada de desentendimentos. Isso ocorre devido a diversas formas equivocadas de interpretar Marx. Observem-se alguns importantes alertas do historiador Eric Hobsbawn, sobre o que ele chama de “marxismo vulgar”. A citação é longa, mas vale pela importante síntese:

Chamaremos a esse tipo de influência de "marxista vulgar", e o problema central da análise é separar o componente marxista vulgar do componente marxista na análise histórica. Tomemos alguns exemplos. Parece claro que o "marxismo vulgar" abarcava principalmente os seguintes elementos:

1. A "interpretação econômica da história", ou seja, a crença de que "o fator econômico é o fator fundamental do qual dependem os demais" (para usar a frase de R. Stammler): e, mais especificamente, do qual dependiam fenômenos até então não considerados com muita relação com questões econômicas. Nesse sentido essa interpretação se superpunha ao

2. Modelo da "base e superestrutura" (utilizado mais amplamente para explicar a história das idéias). A despeito das próprias advertências de Marx e Engels e das observações sofisticadas de alguns marxistas iniciais como Labriola, esse modelo era usualmente interpretado como uma simples relação de dominância e dependência entre a "base econômica" e a "superestrutura", na maioria das vezes mediada pelo

3. "Interesse de classe e a luta de classes". Tem-se a impressão de que diversos historiadores marxistas vulgares não liam muito além da primeira página do Manifesto Comunista, e da frase: "a história [escrita] de todas as sociedades até agora existentes é a história das lutas de classes".

4. "Leis históricas e inevitabilidade histórica." Acreditava-se, acertadamente, que Marx insistira sobre um desenvolvimento sistemático e necessário da sociedade humana na história, a partir do qual o contingente era em grande parte excluído, de qualquer maneira, ao nível de generalização sobre os movimentos de longo prazo. Daí a constante preocupação nos escritos históricos dos primeiros marxistas com problemas como o papel do indivíduo ou do acidente na história. Por outro lado, isso podia ser — e em grande parte era — interpretado como uma regularidade rígida e imposta, como, por exemplo, na sucessão das formações socioeconômicas, ou mesmo como um determinismo mecânico que às vezes se aproximava da sugestão de que não havia alternativas na história.

5. Temas específicos de investigações históricas derivavam dos próprios interesses de Marx, por exemplo, na história do desenvolvimento capitalista e da industrialização, mas também, por vezes, de comentários mais ou menos casuais.

6. Temas específicos de investigação não derivavam tanto de Marx quanto do interesse dos movimentos associados a sua teoria, por exemplo, nas agitações das classes oprimidas (camponeses, operários), ou nas revoluções.

7. Várias observações sobre a natureza e limites da historiografia derivavam principalmente do elemento número 2 e serviam para explicar as motivações e métodos de historiadores que afirmavam não estarem fazendo mais que a busca imparcial da verdade e se orgulhavam de simplesmente estabelecer wie es eigentlich gewesen.

Desde logo ficará evidente que isso representava, na melhor das hipóteses, uma seleção das concepções de Marx sobre a história e, na pior (como tantas vezes aconteceu com Kautsky), uma assimilação das mesmas a concepções contemporâneas não marxistas — por exemplo, as evolucionistas e positivistas. (HOBSBAWN, 1998, p. 159-60)

Resumindo as Idéias dogmáticas do pensamento marxista “vulgar” pode-se enumerar: a) economicismo rígido; b) rígido olhar sobre as leis da história (evolucionista); c) limitação das temáticas históricas.

Em relação ao primeiro vale a pena reiterar a idéia de Economicismo rígido é equivocada porque não existe um esquema fixo de dominância absoluta da economia sobre as demais áreas da vida, mas uma preeminência ontológica da infra-estrutura sobre superestrutura. Assim “(...) existe uma preeminência ontológica da esfera econômica (aquela que constitui o ‘ser social’, a base material, a ‘infraestrutura’) sobre a esfera das ‘formas de consciência’ (a que engloba a esfera das idéias, da religião, da política, enfim, das ‘superestruturas’)” (FONSECA, 2004, p.15). Não há em Marx uma dependência absoluta da Economia, um determinismo rígido, o que impediria qualquer mudança histórica, mas uma interdependência entre a infra-estrutura e a superestrutura que, enquanto o sistema econômico não demonstra fragilidades, terá como preponderante a infra-estrutura econômica.

Em relação ao segundo problema, a interpretação evolucionista/positivista que marcou o século XIX e que aparece em alguns esparsos elementos nos textos de Marx, não está ligado a sua concepção ampla de sociedade. Marcar sua teoria com modelos históricos absolutos é transpor a linguagem de Marx sobre as teorias evolucionistas. Além de incorreto, tal idéia é redutora da complexidade de sua teoria.

Por fim, em relação ao terceiro problema, vale destacar que Marx não limita sua análise a Economia, mesmo sabendo de sua importância Em seus textos Marx trabalhou diversos temas. Por isso, não é absurdo debater temas diversos a Economia em Marx. Porém, de outro lado, não é também simples debatê-los. É necessária uma leitura mediada pelo total da teoria.

Nesse sentido, para ler o debate do Direito em Marx é necessário, portanto, enfrentar diversos obstáculos. Nesse aspecto vale lembrar a reflexão de Roberto Lyra Filho (LYRA FILHO, 1983, p.10-50). Tal autor destaca seis obstáculos (problemas) para abordagem do Direito em Marx:

1) Filológicos: A obra de Marx foi escrita em Alemão e Russo. Quase sempre de forma incompleta e com tentativas de manipulações de traduções. É difícil encontrar traduções fiéis, e até mesmo, algumas traduções de textos apareceram apenas no século XX, com o Grundisse. O alemão tem palavras muito específicas que são de difícil tradução. Um bom exemplo é a palavra Aufheben, traduzida como salto dialético, mas que vai além dessa expressão em português. Nesse sentido, é difícil ser plenamente fiel à obra de Marx e, no limite, tal pretensão talvez sequer tenha sentido.

2) Psicológicos: Marx foi acadêmico de Direito e filho de advogado. Ele sempre tenta esclarecer as palavras Direito e Justiça em seus textos para demonstrar o quanto se enojou de uma teoria tradicional. Apesar disso, a busca pela justiça sempre foi o seu mote principal. Porém, nunca se iludiu com as possibilidades do sistema jurídico atual.

3) Lógicos: A teoria marxista está fundamentada na história, mas não é uma "teoria da história". Sua principal função não é e nem jamais foi apresentar uma explicação geral, mecânica, e com caráter de panacéia do desenvolvimento histórico das sociedades humanas em sua cronologia concreta. As noções de “modo de produção” e a sucessão sugerida por Marx não são verdades absolutas. Tanto que é possível verificar no texto traduzido ao português como “Formações Econômicas pré-capitalistas” que o próprio Marx sugeria a existência de outros modos de produção além dos quatro clássicos que aparecem no Manifesto Comunista. Assim também, hoje é reconhecido não existir uma teoria geral do Estado ou do Direito na obra de Marx. Pelo menos de forma estruturada. Assim, passagens de uma época não vão se encaixar com passagens de outra. Outro problema também é a inexistência de uma teoria marxiana da dialética. Por isso, um grande erro, comum a muitos teóricos marxistas, principalmente do final de XIX e início do XX, foi de seguir a teoria de Comte (positivismo) dos estágios de evolução social adaptadas com o rótulo do modo de produção, mudando a noção de estágios (teológico, metafísico, positivo) para modo de produção (antigo, feudal, capitalismo, socialismo). “(...) Marx rejeitou todo e qualquer positivismo, opondo ao que chamou cruamente de ‘merda’ comteana (...)” (LYRA FILHO, 1983, p. 14).

4) Cronológicos: A obra de Marx foi escrita em algo em torno de 30 a 35 anos. A famosa divisão, feita por Althusser em “Guia para ler o capital”, entre a obra do Jovem Marx em oposição à obra do Velho Marx não tem uma consistência real. Seria algo parecido como dividir o trabalho de Marx em Velho Testamento e Novo testamento. Sendo que o velho testamento começaria em 1844 em diante, esquecendo-se de qualquer texto “idealista” anterior, enfatizando que tais obras ainda eram confusas, entre elas se encontrariam a “A Ideologia Alemã” e os “Manuscritos econômicos filosóficos”, para somente após 1850, com o amadurecimento da obra “Capital”, Marx teria um sentido teórico definitivo e significativo. É interessante notar que Marx defende a liberdade de expressão na fase inicial de sua obra, assim como também defende o sufrágio universal na sua fase final, de igual sorte também vai negar os direitos humanos na fase inicial como abstração, assim como vai negar o Direito Estatal como um todo na sua última fase. Essas diferenças que se aproximam, não se explicam pela cronologia, mas pelo complemento do pensamento. Mesmo que tenha superado algumas idéias iniciais, vale a pena ler os textos do jovem Marx.

5) Parologismos: São os falsos raciocínios, mas que derivam que uma boa-fé, ao contrário dos sofismas, fundados em citações truncadas e mal relacionadas ao todo da obra. Um exemplo seria, a abordagem do texto “Crítica ao programa Gotha”, no qual Marx crítica o direito a igualdade em prol do direito dos oprimidos. Marx não era contra a igualdade, mas como se expressava em seu momento, como uma ideologia abstrata. Outra análise errada é acreditar que Marx idolatrava o Estado e o seu uso como solução da luta de classes. Marx não aponta o Estado como solução para a luta de classes. De igual sorte a interpretação que ao ligar o conceito de “luta de classes” a História, identifica as classes em todo acontecimento histórico, sem abrir espaço para nada além da luta de classes.

6) Metodológicos: Talvez seja a maior dificuldade de todas, afinal qual atitude deve-se tomar perante os escritos de Marx? Às vezes definem-se objetivos estritos para interpretar Marx, e se esquece que entender certos objetos pressupõe entendê-lo num contexto total. Não se pode mutilar o pensamento de um autor para não cair num mar de elucubrações.

Esses desafios são encarados como um norte significativo para o objeto desse estudo.


1.2 Algumas notas biográficas e quadros de referência teóricos

Marx Nasce em 5 de maio de 1818 (Tréveris, Alemanha) e morre em 1883 em Londres. (GADOTTI, 1989, p.11-25; KONDER,1999). Com dificuldades na escolha da profissão, começou a estudar na Universidade de Bonn 1835, estudando Direito, mas acabou sendo influenciado pela filosofia de Hegel e terminou por formar-se em filosofia em Berlim. Casou-se com uma jovem rica, Jenny Westphalen, 4 anos mais velha e o grande amor da vida de Marx, esposa que ao se casar com Marx foi abandonada pelo pai Ludwig Von Westphalen. Teve 5 filhos, sendo que 2 morreram na infância de fome. Não conseguiu seguir carreira acadêmica, vivendo de textos esparsos comprados por jornais ou de ajuda de amigos, em especial Friedrich Engels. Dentre seus principais escritos encontram-se: Crítica a Filosofia do Direito de Hegel (1842); A Questão Judaica (1843); Manuscritos econômicos-filosóficos (1844); A sagrada Família (1845); A ideologia Alemã (em parceria com Engels) (1846); Miséria da Filosofia (1847); Manifesto do Partido comunista (em parceria com Engels) (1848); Trabalho assalariado e Capital (1849) O 18 Brumário de Luis Bonaparte (1851); O capital (1867).

Um autor que soube expor de forma interessante e didática suas principais influências teóricas foi Lênin. Segundo Lênin (LENIN, 2011) as origens de seu pensamento de Marx devem-se a três grandes vertentes: a) Socialismo Utópico Francês, nos quais poderíamos incluir em especial Fourier (com a perspectiva dos Falanstérios) e Saint Simon, e no limite, apesar de escocês, Robert Owen; b) Idealismo Filosófico Alemão, em especial da dialética de Hegel; c) Economia política inglesa, em especial Adam Smith e David Ricardo. Apesar de ser influenciado por essas três correntes, Marx constitui uma teoria inteiramente nova, desconstituindo pontos centrais dessas três influências. Portanto, superando tais visões.


2. Alguns conceitos importantes

Nem classe social, nem ideologia, nem dialética foram conceitos inventados por Marx. Eram conceitos que existiam antes de Marx, mas que depois de sua obra ganharam novos sentidos e significados. Abordar alguns desses conceitos é fundamental para entender o Direito e o Direito criminal a partir da noção do todo.


2.1 Classe Social

O conceito de classe social já existia antes de Marx o ligar a concepção econômica da sociedade.

Marx não inventou a luta de classes: limitou-se a reconhecer que ela existia e procurou extrair as conseqüências da sua existência. Antes de Marx, diversos autores já tinham enxergado a questão. James Madison, ex-Presidente dos Estados Unidos, por exemplo, escreveu, em 1787: "Proprietários e não proprietários sempre formaram interesses diversos dentro da sociedade". Marx, porém, foi mais longe do que Madison; com a ajuda de Friedrich Engels (1820-1895), Marx reexaminou a história social da humanidade e concluiu, em 1848, no Manifesto Comunista, que toda a história transcorrida até então tinha sido uma história de lutas de classes. (KONDER, 1987, p.31-2).

A luta de classes existe dentro da história e pela História. Classe social e luta de classes estão ligadas à análise da sociedade em sua perspectiva concreta.

As premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas; são bases reais que só podemos abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já encontraram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação. Essas bases são pois verificáveis por via puramente empírica. A primeira condição de toda a história humana é, naturalmente, a existência de seres humanos vivos. A primeira situação a constatar é, portanto, a constituição corporal desses indivíduos e as relações que ela gera entre eles e o restante da natureza. Não podemos, naturalmente, fazer aqui um estudo mais profundo da própria constituição física do homem, nem das condições

naturais, que os homens encontraram já prontas, condições geológicas, orográficas, hidrográficas, climáticas e outras. Toda historiografia deve partir dessas bases naturais e de sua transformação pela ação dos homens, no curso da história. Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião e por tudo o que se queira. Mas eles próprios começam a se distinguir dos animais logo que começam a produzir seus meios de existência, e esse passo à frente é a própria conseqüência de sua organização corporal. Ao produzirem seus meios de existência, os homens produzem indiretamente sua própria vida material. A maneira como os homens produzem seus meios de existência depende, antes de mais nada, da natureza dos meios de existência já encontrados e que eles precisam reproduzir. Não se deve considerar esse modo de produção sob esse único ponto de vista, ou seja, enquanto reprodução da existência física dos indivíduos. Ao contrário, ele representa, já, um modo determinado da atividade desses indivíduos, uma maneira determinada de manifestar sua vida, um modo de vida determinado. A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção. (MARX; ENGELS, 1998, p.10-1).

São as condições reais de vida e que determinam a existência dos indivíduos que os organizam em diversas classes. Assim, na História é possível visualizar as classes sociais. E Marx assim o percebe que "A história de todas as sociedades que já existiram é a história de luta de classes" (MARX; ENGELS, 1999, p.9). Em síntese, pode-se entender que:

As classes sociais não são coisas nem idéias, mas são relações sociais determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas condições materiais de existência, se dividem no trabalho, instauram formas determinadas da propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio das instituições sociais e políticas, representam para si mesmos o significado dessas instituições através de sistemas determinados de idéias que exprimem e escondem o significado real de suas relações. As classes sociais são o fazer-se classe dos indivíduos em suas atividades econômicas, políticas e culturais. (CHAUÍ, 1980, p.53)

No capitalismo a luta de classes ganha uma dimensão econômica mais imediata no momento que a sociedade fundamenta-se na competição e na lei de oferta e procura. "A condição essencial para a existência e para o poder da classe burguesa é a formação e o crescimento de capital. A condição para o capital é o trabalho assalariado. O trabalho assalariado fundamenta-se exclusivamente na competição entre os trabalhadores". (MARX; ENGELS, 1999, p. 28).

"[o trabalho] cria capital, ou seja, aquele tipo de propriedade que explora o trabalho assalariado e que não pode aumentar exceto na condição de gerar um novo suprimento de trabalho assalariado para nova exploração. Propriedade na sua forma atual, é baseada no antagonismo de capital e trabalho assalariado." (MARX; ENGELS, 1999, p. 31)

As lutas de classes assumem formas extraordinariamente variadas: às vezes são fáceis de ser reconhecidas, são mais ou menos diretas; às vezes, contudo, elas se tornam extremamente complexas e não cabem em interpretações simplistas. Nas sociedades capitalistas, as lutas de classes tendem a assumir formas políticas cada vez mais complicadas. (KONDER, 1987, p.32)

Assim, uma análise simplista da luta de classes não contempla toda a questão diversa das classes no capitalismo, bem como suas possíveis determinações. Nesse sentido algumas observações do historiador E. P. Thompson, quando analisa as possibilidades do conceito “classe operária” auxiliam:

A classe operária não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-se. Classe, e não classes, (...) "Classes trabalhadoras" é um termo descritivo, tão esclarecedor quanto evasivo. Reúne vagamente um amontoado de fenômenos descontínuos. Ali estavam alfaiates e acolá tecelãos, e juntos constituem as classes trabalhadoras. (...) Por classe, entendo um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Ressalto que é um fenômeno histórico. Não vejo a classe como uma "estrutura", nem mesmo como uma "categoria", mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas. (...) a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica. Como qualquer outra relação, é algo fluido que escapa à análise ao tentarmos imobilizá-la num dado momento e dissecar sua estrutura. A mais fina rede sociológica não consegue nos oferecer um exemplar puro de classe, como tampouco um do amor ou da submissão. A relação precisa estar sempre encarnada em pessoas e contextos reais. Além disso, não podemos ter duas classes distintas, cada qual com um ser independente, colocando-as a seguir em relação recíproca. Não podemos ter amor sem amantes, nem submissão sem senhores rurais e camponeses. A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram — ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe. Podemos ver uma lógica nas reações de grupos profissionais semelhantes que vivem experiências parecidas, mas não podemos predicar nenhuma lei. A consciência de classe surge da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma. Existe atualmente uma tentação generalizada em se supor que a classe é uma coisa. Não era esse o significado em Marx, em seus escritos históricos, mas o erro deturpa muitos textos "marxistas" contemporâneos. "Ela", a classe operária, é tomada como tendo uma existência real, capaz de ser definida quase matematicamente — uma quantidade de homens que se encontra numa certa proporção com os meios de produção. Uma vez isso assumido, torna-se possível deduzir a consciência de classe que "ela" deveria ter (mas raramente tem), se estivesse adequadamente consciente de sua própria posição e interesses reais. Há uma superestrutura cultural, por onde esse reconhecimento desponta sob formas ineficazes. Essas "defasagens" e distorções culturais constituem um incômodo, de modo que é mais fácil passar para alguma teoria substitutiva: o partido, a seita ou o teórico que desvenda a consciência de classe, não como ela é, mas como deveria ser. Mas um erro semelhante é diariamente cometido do outro lado da divisória ideológica. Sob uma Forma, é uma negação pura e simples. Como a tosca noção de classe atribuída a Marx pode ser criticada sem dificuldades, assume-se que qualquer noção de classe é uma construção teórica pejorativa, imposta às evidências. Nega-se absolutamente a existência da classe. Sob outra forma, e por uma inversão curiosa, é possível passar de uma visão dinâmica para uma visão estática de classe. "Ela" — a classe operária — existe, e pode ser definida com alguma precisão como componente da estrutura social. A consciência de classe, porém, é algo daninho, inventado por intelectuais deslocados, visto que tudo o que perturba a coexistência harmoniosa de grupos que desempenham diferentes "papéis sociais" (assim retardando o crescimento econômico) deve ser lamentado como um "sintoma de distúrbio injustificado". O problema consiste em determinar a melhor forma de condicioná-"la", para que aceite seu papel social, e de melhor "tratar e canalizar" suas queixas. Se lembramos que a classe é uma relação, e não uma coisa, não podemos pensar dessa maneira. "Ela" não existe, nem para ter um interesse ou uma consciência ideal, nem para se estender como um paciente na mesa de operações de ajuste. Tampouco podemos inverter as questões, tal como fez uma autoridade no assunto que (num estudo de classe obsessivamente preocupado com questões metodológicas, excluindo o exame de qualquer situação real de classe num contexto histórico real) nos informou: ‘As classes se baseiam nas diferenças de poder legítimo associado a certas posições, i.é, na estrutura de papéis sociais em relação a suas expectativas de autoridade. . . . Um indivíduo torna-se membro de uma classe ao desempenhar um papel social relevante do ponto de vista da autoridade. ... Ele pertence a uma classe porque ocupa uma posição numa organização social; i.é, o pertencimento a uma classe é derivado da incumbência de um papel social.’ (R. Dahrendorf, Class and Class Cnnflict in Industrial Society, 1959, p. 148-9). a questão é como o indivíduo veio a ocupar esse "papel social" e como a organização social específica (com seus direitos de propriedade e estrutura de autoridade) aí chegou. Estas são questões históricas. Se detemos a história num determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas relações, suas idéias e instituições. A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é sua única definição. (THOMPSON, 1987, prefácio, passim).


2.2 Alienação (Exteriorização do Trabalho)

Outro conceito central para entender a teoria de Marx é o conceito de alienação. Muitas vezes os analistas de Marx deixam o conceito de alienação de Marx de lado por sua repercussão econômica mais imediata. Porém, sem tal conceito a centralidade da Economia perde o seu sentido mais profundo. Pois nesse conceito o homem torna-se coisa e perde o sentido total de sua vida em prol de necessidades vitais básicas. Observe-se o que Marx descreve como fenômeno nas sociedades capitalistas, texto que traz inúmeras idéias interessantes:

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschemvelt). O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral. (...) O trabalhador encerra a sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas sim ao objeto. Por conseguinte, quão maior esta atividade, tanto mais sem-objeto é o trabalhador. Ele

não é o que é o produto do seu trabalho. Portanto, quanto maior este produto, tanto menor ele mesmo é. A exteriorização (Entäusserung) do trabalhador em seu produto tem o significado não somente de que seu trabalho se torna um objeto, uma existência externa (äussern), mas, bem além disso, [que se torna uma existência] que existe fora dele (äusser ihm), independente dele e estranha a ele, tornando-se uma potência (Macht) autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu ao objeto se lhe defronta hostil e estranha (...) Em que consiste, então, a exteriorização (Entäusserung) do trabalho? Primeiro, que o trabalho é externo (äusserlich) ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua physis e arruina o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza (Fremdheit) evidencia-se aqui [de forma] tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação. Finalmente, a externalidade (Äusserlichkeit) do trabalho aparece para o trabalhador como se [o trabalho] não fosse seu próprio, mas de um outro, como se [o trabalho] não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro. Assim como na religião a auto-atividade da fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do indivíduo e sobre ele, isto é, como uma atividade estranha, divina ou diabólica, assim também a atividade do trabalhador não é a sua auto-atividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo. Chega-se, por conseguinte, ao resultado de que o homem (o trabalhador) só se sente como [ser] livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos etc., e em suas funções humanas só [se sente] como animal. O animal se toma humano, e o humano, animal. Comer, beber e procriar etc, são também, é verdade, funções genuína [mente] humanas. Porém na abstração que as separa da esfera restante da atividade humana, e faz delas finalidades últimas e exclusivas, são [funções] animais”. (MARX, 2008, p.80, 81, 82-3)

Primeiramente, vale enumerar as idéias contidas na citação acima: a) no sistema capitalista o trabalho do trabalhador é incorporado aos objetos; b) os trabalhadores assim tornam-se mercadorias e se desvalorizam; c) os trabalhadores tornam-se mercadorias "O trabalho não produz só mercadorias; produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na proporção em que produz mercadorias em geral". (MARX, 1985, p. 148); d) o fruto do trabalho do trabalhador não pertence mais a ele e sim ao comprador do trabalho, ou seja, o burguês (capitalista); e) o trabalho (como potência) torna-se hostil e estranho ao trabalhador "O capital é, portanto, não um poder pessoal, mas um poder social". (MARX; ENGELS, 1999, p. 32); f) quando está trabalhando o trabalhador se nega, torna-se infeliz, morre aos poucos; g) trabalhador só se realiza em atividades exteriores ao trabalho, em geral consumindo os produtos do trabalho de outros trabalhadores que foram objetificados enquanto mercadoria; h) por fim, o homem perde sua capacidade de expressar-se como ser humano no trabalho, nas atividades espirituais de mudar o mundo. Por que alienação é um conceito chave para entender Marx? Porque serve de premissa de analise, pensar a sociedade e a produção social de bens está diretamente ligada a idéia de uma sociedade que retira do ser humano a possibilidade de viver como um ser humano. A exploração e a pobreza são conseqüências do sistema. Marx não parte das conseqüências, mas da estrutura que as geram.

É preciso reconhecer que nosso trabalhador sai do processo de produção diferente do que nele entrou. No mercado ele, como possuidor da mercadoria “força de trabalho”, se defrontou com outros possuidores de mercadorias, possuidor de mercadoria diante de possuidores de mercadorias. O contrato pelo qual ele vendeu sua força de trabalho ao capitalista comprovou, por assim dizer, preto no branco, que ele dispõe livremente de si mesmo. Depois de concluído o negócio, descobre-se que ele não era “nenhum agente livre”, de que o tempo de que dispõe para vender sua força de trabalho é o tempo em que é forçado a vendê-la, de que, em verdade, seu explorador não o deixa, “enquanto houver ainda um músculo, um tendão, uma gota de sangue para explorar”. Como “proteção” contra a serpente de seus martírios, os trabalhadores têm de reunir suas cabeças e como classe conquistar uma lei estatal, uma barreira social intransponível, que os impeça a si mesmos de venderem a si e à sua descendência, por meio de contrato voluntário com o capital, à noite e à escravidão! No lugar do pomposo catálogo dos “direitos inalienáveis do homem” entra a modesta Magna Charta de uma jornada de trabalho legalmente limitada que “finalmente esclarece quando termina o tempo que o trabalhador vende e quando começa o tempo que a ele mesmo pertence”. (MARX, 1996, p.414-5)

Importante destacar que existem debates sobre a melhor tradução para a palavra Entäusserung, isso porque, ao que parece mais adequado, a noção de alienação é ampla e valeria em outros modelos econômicos.

(...) é preciso destacar a distinção sugerida, nesta tradução, entre alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfremdung), pois são termos que ocupam lugares distintos no sistema de Marx. É muito comum compreender-se por alienação um estado marcado pela negatividade, situação essa que só poderia ser corrigida pela oposição de um estado determinado pela positividade emancipadora, cuja dimensão seria, por sua vez, completamente compreendida a partir da supressão do estágio alienado, esse sim aglutinador tanto de Entäusserung quanto de Entfremdung. No capitalismo, os dois conceitos estariam identificados com formas de apropriação do excedente de trabalho e, conseqüentemente, com a desigualdade social, que aparece também nas manifestações tanto materiais quanto espirituais da vida do ser humano. Assim, a categoria alienação cumpriria satisfatoriamente o papel de categoria universal que serve de instrumento para a crítica de conjunto do sistema capitalista. Na reflexão desenvolvida por Marx não é tão evidente, no entanto, que esse pressuposto seja levado às suas últimas conseqüências, pois os referidos conceitos aparecem com conteúdos distintos, e a vinculação entre eles, geralmente sempre presente, não garante que sejam sinônimos. E é muito menos evidente ainda que sejam pensados somente para a análise do sistema capitalista. Entäusserung significa remeter para fora, extrusar, passar de um estado a outro qualitativamente distinto. Significa, igualmente, despojamento, realização de uma ação de transferência, carregando consigo, portanto, o sentido da exteriorização (que, no texto ora traduzido, é uma alternativa amplamente incorporada, uma vez que sintetiza o movimento de transposição de um estágio a outro de esferas da existência), momento de objetivação humana no trabalho, por meio de um produto resultante de sua criação. Entfremdung, ao contrário, é objeção socioeconómica à realização humana, na medida em que veio, historicamente, determinar o conteúdo do conjunto das exteriorizações - ou seja, o próprio conjunto de nossa socialidade – através da apropriação do trabalho, assim como da determinação dessa apropriação pelo advento da propriedade privada. Ao que tudo indica, a unidade Entäusserung-Entfremdung diz respeito à determinação do poder do estranhamento sobre o conjunto das alienações (ou exteriorizações) humanas, o que, em Marx, é possível perceber pela relação de concentricidade entre as duas categorias: invariavelmente as exteriorizações (Entäusserungen) aparecem no interior do estranhamento, ainda que sejam inelimináveis da existência social fundada no trabalho humano. (RANIERI, 2008, p.15-16).

Esse conceito, portanto, explica que no capitalismo existe uma desconexão do homem com a existência material. Isso gerará uma perda da visão total de mundo e a desumanização do homem. Nesse contexto vale relembrar outro conceito importante em Marx: ideologia.


2.3 Ideologia

A expressão ideologia foi formulada, em termos modernos, pelos chamados ideólogos franceses do período napoleônico (CHAUI, 1980, p.22 e ss.). Estes, inicialmente aliados de Napoleão, acabam se opondo ao regime autoritário do ditador e, por isso, foram criticados pelo mesmo. Tal fato acabou tornando o termo ideologia pejorativo, “o ideólogo é aquele que inverte as relações entre as idéias e o real. Assim, a ideologia, que inicialmente designava uma ciência natural da aquisição, pelo homem, das idéias calcadas sobre o próprio real, passa a designar, daí por diante, um sistema de idéias condenadas a desconhecer sua relação real com o real”. (CHAUI, 1980, p. 25). Marx recupera o sentido do termo ideologia a partida da perspectiva de alienação. A premissa continua sendo partir do real:

(...) não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir de seu processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital. (MARX; ENGELS, 1998, p. 19).

Assim, a famosa frase de Marx de que "Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência". (MARX; ENGELS, 1998, p. 20) encaixa-se perfeitamente a perspectiva de alienação.

A forma inicial da consciência é, portanto, a alienação. E porque a alienação é a manifestação inicial da consciência, a ideologia será possível: as idéias tomadas como anteriores a práxis como superiores e exteriores a ela, como um poder espiritual autônomo que comanda a ação material dos homens. (CHAUÍ, 1980, p. 65).

Ideologia, portanto, em seu olhar inicial pode ser entendida como formas de pensamento estritamente ligadas a realidade material. “A ideologia não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos indivíduos”. (CHAUÍ, 1980, p. 78).

O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência. (MARX, 1985, p. 233).

A consciência nunca pode ser mais que o ser consciente; e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E, se, em toda a ideologia, os homens e suas relações nos aparecem de cabeça para baixo como em uma câmera escura, esse fenômeno decorre de seu processo de vida histórico, exatamente como a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico. (MARX; ENGELS, 1998, p. 19).

Essa primeira perspectiva não esgota o conceito de ideologia. Marx utilizou o conceito em outros sentidos. Resumindo algumas das possibilidades:

Marx utiliza a palavra ideologia no sentido de mentira, interesse, ocultação e mistificação. No entanto esses não são os únicos significados do termo. Ideologia também pode ser entendida como: a) a doutrina de um partido político ou do governo; b) sistema de idéias que motivam para a ação (por exemplo: a ideologia liberal, que influenciou a Revolução Francesa); c) "ilusão", "fantasmagoria". Aqui, a ideologia é usada para enganar os outros e tirar proveito da sua ignorância (por exemplo: algumas religiões dizem que são bons o sofrimento nesta vida e a exploração que o causa, porque fazem merecer o céu); d) — conjunto de idéias referentes a uma interpretação da História e do mundo, como é e como deveria ser. Dizemos freqüentemente que existem ideologias conservadoras e ideologias progressistas, de direita e de esquerda. Neste sentido, segundo o pensador italiano Antonio Gramsci (1891-1937), a ideologia é a própria filosofia. Gramsci dá à ideologia o significado de "coesão social": é através da ideologia que as pessoas se agrupam na sociedade, se "cimentam". (GADOTTI, 1989, p.49-50).

A ideologia como interpretação de mundo em geral coincide com a interpretação da classe dominante. Nesse caso, "As idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias da classe dominante". (MARX; ENGELS, 1999, p. 40). A ideologia

(...) prossegue tornando-se aquilo que Gramsci denomina de senso comum, isto é, ela se populariza, torna-se um conjunto de idéias e de valores concatenados e coerentes, aceitos por todos os que são contrários à dominação existente e que imaginam uma nova sociedade que realize essas idéias e esses valores (...) o momento essencial de consolidação social da ideologia ocorre quando as idéias e valores da classe emergente são interiorizados pela consciência de todos os membros não dominantes da sociedade. (CHAUÍ, 1980, p. 108).

Vale, por fim, ressaltar que a Ideologia nunca poderá ser constituída por um ato de escolha livre e ética do indivíduo. Leandro Konder alerta sobre a impossibilidade de fuga absoluta da ideologia de seu tempo.

O papel da razão na ética deve ser desempenhado com extrema prudência. A razão deve se reconhecer comprometida com a cultura em que ela se engendra, mesmo quando a critica com maior radicalidade. O sujeito da razão deve se saber enraizado no universo do capitalismo, mesmo quando denuncia com maior vigor as suas contradições. Façamos o que fizermos, estaremos nos movendo inevitavelmente dentro dos limites desse quadro presente contra o qual nos insurgimos (KONDER, 2000, p.33).


3. Materialismo Histórico

3.1 A Dialética

Já foi ressaltado que o conhecimento em Marx é voltado para a ação. Sua perspectiva é unificar teoria e prática na perspectiva que ele denominava práxis. A práxis nesse caso seria o resultado dialético do confronto entre a teoria e a prática. Nesse sentido a dialética é uma forma de pensar referida por Marx como modelo de estruturação do pensamento. A noção de dialética já existia desde os tempos dos pré-socráticos (KONDER, 1987, p. 7 e Ss.), entretanto o que Marx faz é reestruturar o conceito de dialética de Hegel a partir da idéia de materialismo de Feuerbach. O método dialético em geral é conhecido pela contraposição entre tese e antítese gerando uma síntese.

Hegel retoma de Heráclito a idéia de ‘luta e unidade dos opostos’. Para o filósofo alemão, a História nasce da sucessão das idéias, através do embate entre os aspectos opostos dessas idéias, isto é, suas contradições. Para Hegel, a contradição é o motor do pensamento e, consequentemente, é o motor da História. A História é o pensamento que se concretiza. O pensamento não é estático: ele se processa por contradições que são superadas e substituídas por novas contradições e assim por diante. (GADOTTI, 1987, p.57)

Mas dialética vai além de um impulso lógico ou retórico. “A síntese é a visão de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura significativa da realidade com que se defronta, numa situação dada”. (KONDER, 1987, p. 37). Leandro Konder apresente 4 elementos centrais a idéia de dialética essenciais para entender a perspectiva de Marx: a) transformação – a dialética implica em constante mudança do mundo, impossibilidade de constância absoluta da realidade; b) contradição – no mundo a compreensão da realidade se dá através da contraposição de opostos; c) totalidade – segundo Hegel “A verdade está no todo”, porém a totalidade se dá através de um nível de generalização abrangente; d) mediação – a existência de etapas para encontrar a totalidade parte do abstrato para o concreto, da aparência a essência. (Cf. KONDER, 1987, passim). Esse movimento dialético poderia ser resumido pela expressão Aufheben, que tem o sentido de conservar, negar e elevar a outro nível, tudo ao mesmo tempo.

Hegel usou a palavra alemã aufheben, um verbo que significa suspender. Mas esse suspender tem três sentidos diferentes. O primeiro sentido é o de negar, anular, cancelar (como ocorre, por exemplo, quando a gente suspende um passeio por causa do mau tempo, ou quando um estudante é suspenso das aulas e não pode comparecer à escola durante algum tempo). O segundo sentido é o de erguer alguma coisa e mantê-la erguida para protegê-la (como a gente vê, por exemplo, num poema de Manuel Bandeira, quando o poeta fala do quarto onde morou há muitos anos e diz que ele foi preservado porque ficou "intacto, suspenso no ar"). E o terceiro sentido é o de elevar a qualidade, promover a passagem de alguma coisa para um plano superior, suspender o nível. Pois bem: Hegel emprega a palavra com os três sentidos diferentes ao mesmo tempo. Para ele, a superação dialética é simultaneamente a negação de uma determinada realidade, a conservação de algo de essencial que existe nessa realidade negada e a elevação dela a um nível superior. (KONDER, 1987, p. 26)

Resumindo a perspectiva de dialética marxista, Engels criou o resumo denominado “Três leis da dialética” em sua obra Dialética da natureza. Seriam elas:

1) lei da passagem da quantidade à qualidade (e vive-versa);

2) lei da interpenetração dos contrários;

3) lei da negação da negação. (KONDER, 1987, p. 58)

A primeira lei expõe que a mudança nem sempre ocorre no mesmo ritmo, a transformação ocorre por vezes em ritmo lento, as vezes em ritmo acelerado, o que Marx chamava de saltos. O exemplo de Engels refere-se ao processo de fervura da água que “vai esquentando, vai esquentando, até alcançar cem graus centígrados e ferver, quando se precipita a sua passagem do estado líquido ao estado gasoso” (KONDER, 1987, p. 58).

A segunda lei propõe que todos os aspectos da realidade se entrelaçam, em diferentes níveis, e dependem uns dos outros, assim nada pode ser compreendido isoladamente, é preciso levar em conta a conexão entre cada uma delas.

A terceira lei explica que “o movimento geral da realidade faz sentido, quer dizer, não é absurdo, não se esgota em contradições irracionais, ininteligíveis, nem se perde na eterna repetição do conflito entre teses e antíteses, entre afirmações e negações. A afirmação engendra necessariamente a sua negação, porém a negação não prevalece como tal: tanto a afirmação como a negação são superadas e o que acaba por prevalecer é uma síntese, é a negação da negação”. (KONDER, 1987, p.59).


3.2 Os Fundamentos do materialismo histórico

Em consonância com os conceitos apresentados a perspectiva histórica de Marx é pautada na perspectiva do homem no mundo.

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar e nessa linguagem emprestada. (MARX, 1984)

É importante notar que o sentido de materialismo é exatamente a lógica de Marx pautar-se nas condições reais de existência ao contrário de outros filósofos anteriores a Marx.

Historicamente, o materialismo se contrapõe ao idealismo, o qual entende que as transformações na natureza e na História são determinadas por algo exterior a elas: um espírito, uma idéia. Já o materialismo se utiliza dos avanços das ciências e atribui à matéria uma qualidade fundamental: a capacidade de se transformar. Tudo é matéria: o espírito é matéria também, só que mais organizada, mais complexa. A grande contribuição de Marx foi aplicar o método dialético à concepção materialista da natureza e da História. Mostrou que a matéria, além de reagir, também produz transformações qualitativas a partir das contradições existentes no seu interior”. (GADOTTI, 1989, p.66).

Nesse aspecto vale ressaltar o texto Prefácio à "Contribuição à Crítica da Economia Política” de Marx, texto em que apresenta sua principal síntese sobre o Materialismo histórico. Nesse texto Marx explica a existência da chamada infra-estrutura social de base econômica e a superestrutura de base ideológica.

(...) na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. (MARX, 1985, p. 233)

A infra-estrutura condiciona o que os homens pensam e como eles vivem. Entretanto tal infra-estrutura não é eterna e nem plenamente estável.

Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então (...)” (MARX, 1985, p. 233)

Vale aqui ressaltar, as relações de produção são as relações de classe. E as forças produtivas materiais englobam dois conceitos, os meios de produção e a força de trabalho.

As forças produtivas são os vários recursos usados no processo de produção: meios de produção de um lado, e força de trabalho de outro. Meios de produção são recursos produtivos físicos, como ferramentas, máquinas, matérias-primas, e instalações. A força de trabalho inclui não apenas a força dos produtores, mas sua habilidade e o conhecimento técnico – que eles não precisam compreender – utilizado no trabalho. Marx diz, e eu concordo com ele, que essa dimensão subjetiva das forças produtivas é mais importante que a dimensão objetiva, ou seja, que os meios de produção. Ele diz também que, no âmbito da dimensão mais importante, a parte mais suscetível de desenvolvimento é o conhecimento. Nos seus estágios mais avançados, portanto, o desenvolvimento das forças produtivas funde-se ao desenvolvimento da ciência aplicada à produção. (COHEN, 1990, p. 181)

Além disso, as forças produtivas entram em conflito com as relações de produção por não mais suportarem a estabilidade da sociedade. Não há mais como suportar o conflito inerente à luta de classes. É na vida material, portanto, que aparecem os motivos das transformações históricas. Continuando o texto do prefácio de Marx.

“(...) De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social. Ao mudar a base econômica, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela.”(MARX, 1985, p.233)

Os períodos de transformação social que preenchem a História estão recheados de contradições sociais. “É preciso, ao contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção”. (MARX, 1985, p. 233). Porém as formas sociais estão interligadas entre si.

Nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém, e jamais aparecem relações de produção novas e mais altas antes de amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as condições materiais para a sua existência. Por isso, a humanidade se propõe sempre apenas os objetivos que pode alcançar, pois, bem vistas as coisas, vemos sempre, que esses objetivos só brotam quando já existem ou, pelo menos, estão em gestação as condições materiais para a rua realização. (...) As forças produtivas, porém, que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para a solução desse antagonismo. (MARX, 1985, p.233)

Antes de debater as transformações sociais, vale destacar o que em Marx aparece sobre o rótulo de modo de produção:

Modo de produção é um conceito que reúne outros dois conceitos: - meios de produção: instrumentos ou ferramentas utilizadas pelos homens para produzir os meios necessários à sua existência; - relações de produção: são os laços que ligam os homens entre si nas diversas formas de se produzir a existência, dividindo o trabalho em grupos, ou classes, por exemplo entre escravos e senhores, entre empregados e patrões. (GADOTTI, 1989, p. 75).

Em linhas gerais, o modo de produção é a soma das relações de produção e das forças produtivas materiais de uma sociedade. Marx criou um modelo padrão de quatro grandes modos de produção. “A grandes traços podemos designar como outras tantas épocas de progresso, na formação econômica da sociedade, o modo de produção asiático, o antigo, o feudal e o moderno burguês”. (MARX, 1985, p. 233). Porém, tal modelo em nenhum momento é dotado de unilinearidade ou mesmo é um dogma fechado dentro da análise de Marx. Em parte de sua obra Grundisse, traduzida para o português como “Formações Econômicas Pré-capitalistas”, Marx apresenta outros modos de produção.

Falando de modo genérico, pode-se considerar agora três ou quatro vias alternativas de desenvolvimento a partir do sistema comunal primitivo, cada qual representando uma forma de divisão social do trabalho já existente ou implícita nela — a oriental, a antiga, a germânica (embora Marx não a limite, naturalmente, a um só povo) e uma forma Eslava, um pouco obscura, que não será discutida ulteriormente mas tem afinidades com a oriental (pp. 84, 92). Importante distinção se estabelece entre os sistemas que favorecem a evolução histórica e os que se opõem a ela. O modelo elaborado em 1845-6 apenas toca de leve este problema, embora, como vimos, o ponto de vista de Marx sobre desenvolvimento histórico nunca tenha sido simplesmente unilinear, nem o tenha, jamais, encarado como um mero registro do progresso. Seja como for, nos anos 1857-8 o estudo se encontrava consideravelmente mais avançado. (HOBSBAWN, 1986, p.36)

Enfim, não é possível ver a história em Marx como um modelo pronto e acabado, o materialismo histórico é o modelo de História em que a base para análise é proveniente da realidade.

A história não é sucessão de fatos no tempo, não é progresso das idéias, mas o modo como homens determinados em condições determinadas criam os meios e as formas de sua existência social, reproduzem ou transformam essa existência social que é econômica, política e cultural. (CHAUÍ, 1980, p.20)

E o modo de produção capitalista é o ponto atual da caminhada histórica humana. É o tempo em que “Tudo que é sólido derrete-se no ar, tudo o que é sagrado é profanado e os homens são por fim compelidos a enfrentar de modo sensato suas condições reais de vida e suas relações com seus semelhantes."(MARX; ENGELS, 1999, p. 14). Para Marx “As relações burguesas de produção são a última forma antagônica do processo social de produção, antagônica, não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que provém das condições sociais de vida dos indivíduos”. (MARX, 1985, p. 233). Os conflitos sociais seriam superados com a superação do sistema capitalista. Tal perspectiva é essencial para compreender um padrão de análise do crime a partir de Marx.

A história não é, portanto, o processo pelo qual o Espírito toma posse de si mesmo, não é história das realizações do Espírito. A história é história do modo real como os homens reais produzem suas condições reais de existência. E história do modo como se reproduzem a si mesmos (pelo consumo direto ou imediato dos bens naturais e pela procriação), como produzem e reproduzem suas relações com a natureza (pelo trabalho), do modo como produzem e reproduzem suas relações sociais (pela divisão social do trabalho e pela forma da propriedade, que constituem as formas das relações de produção). E também história do modo como os homens interpretam todas essas relações, seja numa interpretação imaginária, como na ideologia, seja numa interpretação real, pelo conhecimento da história que produziu ou produz tais relações. (CHAUÍ, 1980, p.47).


4. Estado, Direito e Direito Penal

4.1 O olhar materialista sobre o Estado e o Direito

Seguindo a linha do pensamento de Marx é importante destacar os fenômenos dentro de sua historicidade. O Estado só tem sentido de análise dentro do modo de produção capitalista. E, em geral, muitos marxistas analisam de forma sintética e rasa a afirmação de Marx que o Estado é um balcão de negócios da burguesia. Eis a passagem do manifesto comunista referida: "A burguesia, afinal, com o estabelecimento da indústria moderna e do mercado mundial, conquistou, para si própria, no Estado representativo moderno, autoridade política exclusiva. O poder executivo do Estado moderno não passa de um cômite para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia". (MARX; ENGELS, 1999, p.12). Essa frase de efeito de Marx, dentro de um manifesto partidário, não pode servir de dogma para compreender toda a sua visão sobre o Estado. Um olhar materialista histórico aponta na seguinte entende que “(...) as relações jurídicas bem como as formas de Estado não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução do espírito humano; estas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em sua totalidade (...)” (MARX, 1985, p.232-3).

Ora, entre os cidadãos (ou seja, entre as classes sociais) existem conflitos e se reabre a contradição. Agora, a contradição se estabelece entre os interesses de cada classe social e os das outras, e entre os interesses dos próprios membros de uma classe social. Ou seja, ressurge, de modo novo, a contradição entre o privado (cada classe) e o público (todas as classes). A resolução dessa contradição é feita pelo Estado. (CHAUÍ, 1980, p. 45).

O Estado, nesse sentido, serve de mediador da luta de classes, atua como um modelo de concentração e dispersão da luta de classes.

O Estado constitui a unidade final. Ele sintetiza numa realidade coletiva a totalidade dos interesses individuais, familiares, sociais, privados e públicos. Somente nele o cidadão se torna verdadeiramente real e somente nele se define a existência social e moral dos homens. O Estado é o Espírito Objetivo. O Estado é uma comunidade. Mas difere da comunidade familiar e da comunidade das classes sociais (suas corporações), porque não possui nenhum interesse particular, mas apenas os interesses comuns e gerais de todos. E uma comunidade universal (isto é; seus interesses não sendo particulares, desta ou daquela família, deste ou daquele indivíduo, desta ou daquela classe, são interesses universais). O Estado não é, pois, um dado imediato da vida social, mas um produto da sociedade enquanto Espírito Subjetivo que busca tornar-se Espírito Objetivo. O Estado é a Idéia política por excelência, uma das mais altas sínteses do Espírito. Nele se harmonizam os interesses da pessoa (proprietário), do sujeito (moral) e do cidadão (sociedade e política)”. (CHAUÍ, 1980, p. 45-6).

Em outras palavras, o Estado transforma a realidade de classes num amorfo espaço de cidadãos considerados individualmente.

Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela idéia do Estado – ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela idéia de interesse geral encarnado pelo Estado, e substitui a realidade do Direito pela idéia de Direito – ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos. (CHAUÍ, 1980, p. 91).

Assim, o Estado aglutina as lutas de classes através de suas instituições. Em especial o Direito e sua pretensa neutralidade. No sistema capitalista o Direito funciona como um discurso ideológico de justificação do Estado a partir das noções de igualdade e liberdade e num meio de regulação social.

Sejamos mais precisos. Tomemos, a título de exemplo, o problema do Estado e do Direito burgueses. Marx e vários autores marxistas contemporâneos mostraram que o direito burguês, na medida em que promove a individualização dos agentes sociais e a igualdade de todos perante a lei, é um produto necessário da forma assumida pelas relações de produção capitalistas, notadamente pela separação que as últimas promovem entre o produtor direto e os meios de produção. A funcionalidade do Direito consistiria tanto no seu efeito regulador sobre as novas relações econômicas (por exemplo, através do contrato de trabalho), como na expansão e consolidação dessas relações através dos efeitos ideológicos que ele promove (a ideologia da igualdade, a ocultação da realidade de classe dos agentes sociais, a capacidade que ele confere ao Estado de apresentar-se como o representante do “interesse geral” etc.) (CODATO; PERISSINOTO, 2001, p.27)

Um olhar muito interessante de Direito em Marx é o que traz Roberto Lyra Filho em sua obra “Karl, meu amigo”. Segundo este autor uma compreensão do Direito a partir da perspectiva dialética precisa levar em conta as diversas opiniões que Marx apontou durante sua vida. Num primeiro momento, em sua juventude, Marx teria afirmado o Direito, assim constituindo-se numa tese: “Direito... é a existência positiva de liberdade... Liberdade é o direito de fazer e buscar tudo o que a outrem não prejudica” (MARX, apud, LYRA FILHO, 1983, p.68).

Conforme prosseguiu em seus estudos, chegou a negação total do Direito no texto A ideologia alemã, formulando uma antítese: “Quanto ao direito, acentuamos, em oposição a muitos, a antinomia do comunismo e do direito, tanto público e privado, quanto sob a forma, de máxima generalidade, dos direitos dos homens”. (MARX, apud, LYRA FILHO, 1983, p.68).

Por fim, havendo uma negação da negação, chegou a uma síntese de “O comunismo não retira a ninguém o poder de apropriar-se de sua parte dos produtos sociais, apenas suprime o poder de escravizar o trabalho de outrem, por meio dessa apropriação... A luta pela emancipação das classes trabalhadoras não significa uma luta por privilégios e monopólios de classe, e sim uma luta por direitos e deveres iguais, bem como pela emancipação de todo domínio classístico” (MARX, apud, LYRA FILHO, 1983, p.51). Em síntese mais apurada, afirma Lyra Filho:

Ao ser ultrapassado, porém, naquela sociedade (comunista) o direito (burguês) admite Marx um princípio jurídico (a que, entretanto, não dá tal qualificação) consistente na preceituação: "de cada um, segundo as suas aptidões; a cada um, conforme as próprias necessidades" — o que, incidentemente só numa abordagem dialética pode ser conciliado com "direitos e deveres iguais", após a proclamação da desigualdade visceral do Direito, e perante o brocardo (jurídico também) do comunismo: "o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos" — pressupondo, de resto, uma limitação (jurídica) da liberdade, pois tantas liberdades particulares (de cada um) atropelariam a liberdade geral. Desta maneira, vencido o direito burguês, o Direito não se extingue, senão que se consuma, para Marx, em comunidade perfeita, que, ainda assim, exige certas "normas organizacionais" que ele se recusa a chamar de jurídicas, porque, de início, identificou (em termos gerais, embora com as escapadelas já vistas) Direito, Estado e classe e grupos dominantes. (LYRA FILHO, 1983, p.83)

Marx, portanto, afirma certos princípios do Direito quando estes tem ligação com a realidade, quando ilustram ideais profundos de justiça social. Assim como “de cada um conforme suas próprias aptidões, a cada um, segundo suas necessidades”. Esses valores profundos não são negados, mas como eles ficam dispostos na sociedade burguesa atual, servem apenas como hipócritas frases abstratas diante da desigualdade concreta. “O papel do Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita. A lei é direito para dominante e dever para o dominado”. (CHAUÍ, 1980, p. 90). No sistema capitalista esse padrão de Direito é reforçado pelo sistema que "Compele todas as nações, sob a pena de extinção, a adotar o modo de produção burguês. Compele-as a introduzirem o que chama de civilização no seu meio, ou seja, a se tornarem burguesas. Resumindo, cria um mundo à sua imagem." (MARX; ENGELS, 1999, p.15)

Ora, o Direito e a Moral estão em conflito. Ou seja, os interesses do proprietário estão em conflito com os deveres do sujeito moral, pois o proprietário tem interesse em ampliar sua propriedade espoliando e desapropriando outros proprietários, tratando-os como se fossem coisas suas e não homens livres e independentes. E o sujeito moral deve tratar os demais como homens livres e independentes. Há, pois, uma contradição no interior de cada indivíduo entre sua face-pessoa (proprietário) e sua face-sujeito (moral). Isto é, como proprietário ele se torna não moral e como sujeito ele se torna não proprietário. (CHAUÍ, 1980, p. 43).


4.2 O Direito Penal em Marx

A noção de igualdade e liberdade para contratar é a base do direito da sociedade capitalista. E sobre esse fundamento impõem-se o Direito Penal.

A regulação das relações entre os proprietários conduz ao aparecimento do Direito, no qual o proprietário é definido como pessoa livre. A pessoa é, portanto, o indivíduo natural que é livre porque sua vontade o faz ser proprietário. As pessoas entram em relação por meio dos contratos (relação entre proprietários) e pelo crime (quebra do contrato). (CHAUÍ, 1980, p. 42).

Esses conceitos “igualdade, liberdade e propriedade”, centrais ao capitalismo, foram percebidos com argúcia por Marx, que criticava veementemente o pensamento liberal de seu tempo.

A esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos limites se movimentam compra e venda de força de trabalho, era de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são determinados apenas por sua livre-vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade! Pois cada um dispõe apenas sobre o seu. Bentham! Pois cada um dos dois só cuida de si mesmo. O único poder que os junta e leva a um relacionamento é o proveito próprio, a vantagem particular, os seus interesses privados. E justamente porque cada um só cuida de si e nenhum do outro, realizam todos, em decorrência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma previdência toda esperta, tão-somente a obra de sua vantagem mútua, do bem comum, do interesse geral. (MARX, 1996, p.293).

A própria noção de direitos humanos, para Marx apenas mascarava a exploração do trabalho. “E igual exploração da força de trabalho é o primeiro direito humano do capital”. (MARX, 1996, p.405).

La desigualdad que se deriva de la aplicación de este principio formal es indicado por Marx con el hecho de que tal distribución no tiene en cuenta las diversidades de capacidades y de necesidades entre los individuos. Así, pues, en el desplazamiento del principio del valor al principio del mérito, el derecho en la sociedad de transición conserva la característica ideológica propia del derecho burgués, a saber, la de abstraer la real desigualdad de los sujetos, contribuyendo con la igualdad formal a reproducir y legitimar el sistema de la desigualdad sustancial. En ambos casos, la abstracción consiste en prescindir de las reales características sociales y antropológicas de los individuos, viendo en ellos sólo el sujeto de derecho. (BARATTA, 2004, p. 170)

Aqui vale a pena perceber as nuances que o próprio Marx expõe no texto “O capital”. Em seu texto mais famoso Marx, a partir de exemplos concretos demonstra como a própria noção de repressão do Direito está ligada em sua origem a questão da classe. O contrato sempre irá prevalecer para o lado mais forte. A citação é longa, mas expõe uma situação importante.

A escravidão em que a burguesia mantém preso o proletariado não aparece em nenhum lugar mais nitidamente à luz do dia do que no sistema fabril. Aí cessa toda liberdade de direito e de fato. O operário tem de estar às 5 1/2 horas da manhã na fábrica; caso chegue tarde alguns minutos, é punido; caso chegue 10 minutos atrasado, não pode nem entrar até depois do café da manhã e perde 1/4 de dia do salário. Ele tem de comer, beber e dormir sob o comando (...) O sino despótico arranca-o da cama, do desjejum e do almoço. E o que acontece afinal na fábrica? Aí, o fabricante é legislador absoluto. Baixa regulamentos fabris conforme lhe apetece; modifica seu código e lhe faz acréscimos como lhe agrada; e ainda que insira a coisa mais extravagante, os tribunais dizem ao trabalhador: Já que os senhores por livre e espontânea vontade aderiram a esse contrato, agora também tem de cumpri-lo. (...) Esses trabalhadores estão condenados, de seu nono ano de vida até a morte, a viverem sob essa férula espiritual e corpórea." (ENGELS, F. Op. cit., p. 217 et seqs.) Quero esclarecer com dois exemplos o que “dizem os tribunais”. Um dos casos ocorreu em Shefield, ao final de 1866. Lá um operário se tinha alugado por 2 anos numa fábrica metalúrgica. Por causa de uma divergência com o fabricante, deixou a fábrica e declarou que em nenhuma circunstância trabalharia mais para ele. Foi processado por quebra de contrato e condenado a 2 meses de prisão. (Se o fabricante rompe o contrato, ele só pode ser acusado Civiliter e só arrisca uma pena pecuniária.) Depois de cumprir os dois meses, o mesmo fabricante o intima a, de acordo com o antigo contrato, voltar à fábrica. O trabalhador declara: Não. Pela quebra de contrato ele já pagou. O fabricante o processa de novo, o tribunal o condena novamente, embora um dos juízes, Mr. Shee, denuncie isso publicamente como uma monstruosidade jurídica, pela qual um homem poderia ser punido periodicamente sempre de novo durante toda sua vida pela mesma falta, isto é, delito. Esse julgamento não foi proferido pelos Great Unpaid dogberries provincianos, mas em Londres, por uma das mais altas cortes de justiça. {Adendo à 4ª edição: Agora isso está abolido. Com raras exceções — por exemplo, em empresas públicas de gás — agora, na Inglaterra, o trabalhador, em caso de rompimento de contrato, está equiparado ao empregador e só pode ser processado civilmente. — F. E.} O segundo caso transcorre em Wiltshire, ao final de novembro de 1863. Cerca de 30 operadoras de tear a vapor, empregadas por um certo Harrup, fabricante de pano em Leower’s Mill, Westbury Leigh, fizeram uma strike porque esse mesmo Harrup tinha o agradável hábito de lhes descontar do salário, por atrasos na hora de entrada: 6 pence para 2 minutos, 1 xelim para 3 minutos e 1 xelim e 6 pence para 10 minutos. Isso soma, a 9 xelins por hora, 4 libras esterlinas e 10 xelins por dia, enquanto o salário médio anual delas nunca era maior do que 10 a 12 xelins por semana. Harrup encarregou igualmente um garoto para fazer soar o apito da fábrica, o que ele às vezes faz mesmo antes das 6 horas da manhã e, se os braços já não estão por acaso aí, assim que acaba, os portões são fechados e os de fora são punidos pecuniariamente; e como não há relógio no local, os infelizes braços estão sob o poder do jovem guardião do tempo inspirado por Harrup. Os braços envolvidos na strike, mães de família e moças, declararam que voltariam ao trabalho se o guardião do tempo fosse substituído por um relógio e uma escala mais racional de multas fosse estabelecida. Harrup denunciou aos magistrados 19 mulheres e moças por rompimento de contrato. Elas foram condenadas a pagar, cada uma, 6 pence de multa e 2 xelins e 6 pence de custas sob ruidosa indignação do auditório. Harrup saiu do tribunal seguido por uma massa popular que o vaiava. — Um golpe predileto dos fabricantes é punir os trabalhadores com descontos salariais por falhas do material que lhes é fornecido. Esse método provocou, em 1866, uma strike geral nos distritos cerâmicos ingleses. Os relatórios da “Ch. Employm. Commiss.” (1863/66) apresentam casos em que o trabalhador, ao invés de receber salário por seu trabalho, torna-se, ainda por cima, por meio do regulamento de penalidades, devedor do seu augusto Master. Traços edificantes da sagacidade dos autocratas fabris quanto aos descontos salariais também foram expostos na mais recente crise algodoeira. Mr. R. Baker, inspetor de fábrica, afirma: “Eu mesmo, há pouco, tive de iniciar ação judicial contra um fabricante de algodão por ter ele, nesses tempos duros e difíceis, descontado 10 pence de alguns dos trabalhadores jovens (de mais de 13 anos) que emprega, pelo certificado médico, que só lhe custa 6 pence, e pelo qual a lei só lhe faculta descontar 3 pence, e a tradição não faculta nenhum desconto. (...) Outro fabricante, para alcançar sem conflito com a lei o mesmo objetivo, onera com 1 xelim cada uma das pobres crianças que trabalham para ele como taxa pelo aprendizado da arte e do mistério do fiar, assim que o certificado médico as declare maduras para essa atividade. Há portanto correntes subterrâneas que é preciso conhecer para compreender fenômenos tão extraordinários como strikes em tempos tais como o presente”. (Trata-se de uma strike na fábrica de Darven, em junho de 1863, entre os tecelões de máquina.) (Reports of Insp. of Fact. for 30th April 1863. pp. 50-51.) (Os relatórios de fábrica vão sempre além de sua data oficial.) (MARX, 1996b, p.57-8).

Obviamente a pena de restrição de liberdade não tem origem direta na fábrica, mas a questão não é a origem, mas o uso concreto. Os crimes patrimoniais e relacionados ao “trabalho” foram severamente punidos nesse momento de formação do capitalismo. “Antigamente, o capital fazia valer, onde lhe parecia necessário, seu direito de propriedade sobre o trabalhador livre, por meio da coação legal. Assim, por exemplo, a emigração de operadores de máquinas estava proibida na Inglaterra, até 1815, sob pena de pesada punição”. (MARX, 1996b, p.216). Da mesma forma o Direito a greve e a associação dos trabalhadores foi severamente punida na formação do capitalismo.

Por essa escamoteação parlamentar, os meios de que os trabalhadores podem se servir em uma greve ou lock-out (greve dos fabricantes coligados mediante fechamento simultâneo de suas fábricas) foram subtraídos ao direito comum e colocados sob uma legislação penal de exceção, cuja interpretação coube aos próprios fabricantes em sua qualidade de juízes de paz. Dois anos antes, a mesma Câmara dos Comuns e o mesmo sr. Gladstone, com sua conhecida honradez, tinham apresentado um projeto de lei para abolir todas as leis penais de exceção contra a classe trabalhadora. Porém, jamais se deixou que ele chegasse a uma segunda leitura, e assim a coisa foi sendo protelada até que finalmente o “grande partido liberal”, por meio de uma aliança com os tories, ganhou a coragem de voltar-se resolutamente contra o mesmo proletariado que o havia levado ao poder. (MARX, 1996b, p.262).

Logo no início da tormenta revolucionária, a burguesia francesa ousou abolir de novo o direito de associação que os trabalhadores tinham acabado de conquistar. Pelo decreto de 14 de junho de 1791 ela declarou toda coalizão de trabalhadores como um “atentado à liberdade e à declaração dos direitos humanos”, punível com a multa de 500 libras além da privação, por um ano, dos direitos de cidadão ativo. Essa lei, que comprime a luta de concorrência entre o capital e o trabalho por meio da polícia do Estado nos limites convenientes ao capital, sobreviveu a revoluções e mudanças dinásticas. Mesmo o Governo do Terror deixou-a intocada. Só recentemente foi ela riscada totalmente do Code Pénal. Nada é mais característico que o pretexto para este golpe de Estado burguês. (MARX, 1996b, p.362).

Pode-se afirmar, enfim que a “(…) "criminalidad" y "desviación" no denotan cualidades naturales sino culturales, en el sentido de que resultan de procesos de definición que se desarrollan en el interior del mecanismo ideológico por el cual tiene lugar la reproducción de la realidad social.” (BARATTA, 2004, p.236). Por isso, O Direito Penal aponta para a construção cultural do sistema capitalista, reforçado por outros setores ideológicos.

Assim, por exemplo, a religião cristã é “útil” porque reprova religiosamente os mesmos delitos que o código penal condena juridicamente. (MARX, 1996b, p.241).


4.3 Contribuição para uma teoria crítica ao Direito Penal

A teoria de Marx pode contribuir em diversos aspectos para a construção de uma teoria crítica ao Direito Penal. Uma teoria que complemente a visão limitada de direito penal da dogmática e que explicite as bases que lhe sustentam.

O conceito de modo de produção desenvolvido pelo pensamento marxista, formado pela articulação de forças produtivas em determinadas relações de produção da vida material, permite identificar os objetivos reais do Direito, em geral — cuja existência é encoberta pelos objetivos declarados do discurso jurídico oficial —, nos quais aparece o significado político do Direito Penal como instituição de garantia e de reprodução da estrutura de classes da sociedade, da desigualdade entre as classes sociais, da exploração e da opressão das classes sociais subalternas pelas classes sociais hegemônicas nas sociedades contemporâneas — esclarecendo, complementarmente, a formação econômica das classes sociais nas relações de produção e a luta política dessas classes sociais no terreno das ideologias — por exemplo, nos sistemas jurídico- políticos de controle social —, rompendo, assim, a "opacidade" do real produzida pelo discurso jurídico oficial dos objetivos declarados do Direito Penal (SANTOS, 2008, p.8).

Nesse aspecto vale ressaltar alguns caminhos percorridos pela teoria crítica ao Direito penal.

En un cierto período, la criminología marxista sostuvo predominantemente que el delito era el producto del sistema capitalista y que desaparecería con el nacimiento de una nueva sociedad. En esta perspectiva el desaparecimiento del «delito» se equiparaba al desaparecimiento de las «situaciones-problemas» que provocan los procesos de criminalización. El desaparecimiento del delito no era visto como «desaparecimiento de los procesos de criminalización en cuanto respuesta a las situaciones-problemas». En una etapa ulterior, la criminología crítica cuestionó los prejuicios de clase y los aspectos «irracionales» de los procesos de criminalización primaria y secundaria. En estos esfuerzos fueron desmitificados la «funcionalidad», así como el principio de «igualdad legal», a menudo invocados como legitimación de los procesos de criminalización primaria. Sobre la base de tal desmitificación, la criminología crítica ha argumentado en favor de una descriminalización parcial, una política más restrictiva respecto del uso de la ley penal y una radical no intervención con respecto a determinados delitos y determinados delincuentes. Ha llamado la atención sobre los delitos mucho más graves que se cometen por los poderosos y ha reclamado un cambio en las actividades de la justicia penal, desde los débiles y las clases trabajadoras hacia el «delito de cuello blanco». Ha pintado la guerra contra el crimen como una manera de escurrir el bulto a la lucha de clases; en el mejor de los casos, como una ilusión inventada para vender noticias; en el peor, para hacer recaer sobre los pobres el castigo que merecían otros. Con muy pocas excepciones, sin embargo, no se objeta el concepto de delito como tal, su supuesta realidad ontologica. (HULSMAN, 1995, p.122-3).

Resumindo, a teoria crítica do direito penal foi marcada por algumas tendências: a) delito era resultado do sistema capitalista e iria desaparecer com o desaparecimento do mesmo; b) num segundo momento a critica voltou-se a idéia de igualdade legal e aos crimes de colarinho branco com maior impacto social, que em geral eram impunes. Porém ainda não eram feitas críticas à própria perspectiva do crime como realidade ontológica. Tendência que apareceu recentemente.

Hay también otra tendencia, bastante reciente, que parte del cuestionamiento del concepto de delito como tal (Baratta, 1983; Hulsman y Bernat de Celis, 1982; Landreville, 1978; A. Normandeau, 1984). Este enfoque apunta al hecho de que no hay una «realidad ontologica» del delito. Trata de reorganizar el debate dentro de la criminología y de la política criminal con tal hecho como punto de partida. Esto lleva a la abolición de la justicia criminal como la conocemos. Porque el «delito como realidad ontològica» es la piedra angular de este tipo de justicia criminal. (HULSMAN, 1995,p.124)

Tentando compreender tal perspectiva importa retomar alguns princípios da teoria marxista. O desenvolvimento das forças produtivas corresponde, segundo Marx e Engels, a uma forma humana de satisfação das necessidades, porém essa maneira está bloqueada por uma forma de reificação dos sujeitos, em outras palavras, que a satisfação das necessidades de uns é conseguida a custa da satisfação da necessidade de outros. (BARATTA, 2004b, p. 338).

Utilizando una teoría de las relaciones económicas productivas como la teoría de Marx, no se llega a comprender el proceso de criminalización. Quizás es más fácil llegar a algunos resultados en el análisis de la violencia, violencia en el sentido de infracciones vinculadas realmente a la represión de necesidades de otras personas, de violaciones de derechos humanos, en el análisis de la criminalidad. Y aún en este caso yo siempre he considerado algunos límites del empleo unilateral del marxismo, como por ejemplo, el hecho de que si con el análisis a través de la teoría marxista llamémosla de las desviaciones de las capas dominantes en una sociedad se puede llegar a resultados consistentes, no es lo mismo lo que se puede decir del análisis de las desviaciones de las clases marginadas. Siempre existió esta posición bien limitada, del mismo Marx, con respecto al lumpen proletariado, casi una contradicción interna en la misma teoría de la presencia, en la sociedad capitalista, de un ejército de reserva de la fuerza trabajo, que se compatibiliza con una visión negativa y casi moralista, y entonces represiva, de las desviaciones del lumpen proletariado. Esta posición se ha reproducido, provocando después una actitud bastante impura de la izquierda histórica, dentro del capitalismo, con respecto a la cuestión de la criminalidad, perpetuando este estereotipo de las clases marginadas, que producen un sector del proletariado destinado a la delincuencia, al cual se puede acudir sobre todo a través de la represión penal (BARATTA, 2004b, p.412-3)

Na verdade, a teoria marxista mais tradicional está marcada por uma interpretação um tanto quanto moralista em relação ao crime.

Entonces, la historia política del movimiento obrero está marcada por una inconsistencia con respecto al problema de la criminalidad en su globalidad. Una visión represiva que, si por un lado ha tenido su legitimidad en la reacción también política o la emanada de la justicia, con respecto a las graves violaciones de derechos por parte de la clase dominante, también ha provocado una falta de alternativas, de praxis, con respecto a la criminalidad de las capas marginadas en la sociedad. Entonces el problema no es realizar una teoría económica, economicista, de la criminalidad y de la criminalizacion, sino integrar dentro de este marco de referencia, que es indispensable, a las ciencias sociales. Al producirse esto, en determinada fase del desarrollo de la sociedad, dentro de una formación histórico-social, dentro del marco del capitalismo –lo que es una historia larga-, le permite dar un cierto confín al alcance de una teoría, ir más allá de lo que la pura llave económica puede producir. Porque el interaccionismo simbólico ha aportado elementos, con respecto a la desviación, en relación a los procesos de definición. Pero cierto es que los mecanismos de definición, la atención a los fenómenos que se producen dentro de la opinión pública, han estado siempre fuera del alcance de la teoría materialista tomada en sí misma. (BARATTA, 2004b, p. 412)

É o que aparece em Marx ao explicitar a situação final das crianças exploradas pelo trabalho infantil.

Assim que se tornam velhos demais para seu trabalho infantil, portanto o mais tardar aos 17 anos, são despedidos da tipografia. Tornam-se recrutas da criminalidade. Algumas tentativas de arranjar-lhes ocupação noutro lugar fracassaram em face de sua ignorância, embrutecimento, degradação física e espiritual. (MARX, 1996b, p.113).

Para superar essa contradição não se pode utilizar a teoria de Marx como um dogma ou uma verdade absoluta. Marx, por mais que tenha enxergado além de seu tempo, era um homem de seu tempo.

Para comprender esto, que sería una tesis muy bien armonizada con la intención característica del discurso materialista, del discurso marxista, paradójicamente tenemos que manejar instrumentos que se han producido fuera de ese discurso. ¿Más por qué no puede ser así? Ni Marx es la Biblia, ni es el horizonte exhaustivo del pensamiento moderno. Es un autor de extrema importancia, y por supuesto, al igual que otros autores, puede pretender dar una respuesta exhaustiva. (BARATTA, 2004b, p. 413).

A resposta dada por Alessandro Baratta a esse problema, que nunca foi de fato abordado como centralidade na teoria de Marx, é compreender o crime a partir da visão total de Marx aliada a visões subjetivas como a de Freud.

(…) el alcance de una teoría como la de la Criminología Crítica, que pretende compaginar el pensamiento materialista con el componente interaccionista, no está simplemente limitada al análisis de la sociedad capitalista. La misma teoría, con estos componentes, se adapta para hacer un análisis productivo del proceso de criminalización, de la función de las instituciones de la justicia criminal, en el socialismo real. Lo que pasa es que no se ha producido esto, es decir, esta teoría radical, que llevaba elementos marxistas, con estas correcciones del economicismo a través del componente subjetivista, ha producido una serie de resultados importantes en el análisis de la sociedad capitalista, pero no en relación a la sociedad socialista. (BARATTA, 2004b, p. 414).

Enfim, vale ressaltar que a teoria marxista oferece importante olhar total sobre a sociedade e os fundamentos da criminalidade.

No es entonces, que una economía política produzca una teoría de la criminalidad y de la criminalización; yo pretendo afirmar la postura de que una teoría acertada del proceso de criminalización y también de la desviación dentro de nuestra sociedad, puede dar un aporte a una visión global. No un aporte único, pero sí un aporte, entre otros, a una visión más completa de nuestra estructura económica. (BARATTA, 2004b, p. 415-6).

Por fim, resta ressaltar que Marx é essencial não só pelos conceitos e pelas estruturas, mas pela postura humanista. Idéias marxistas pensam o ser humano além do olhar reducionista da igualdade legal.

A abertura do conceito de inexigibilidade para as condições reais de vida do povo parece alternativa capaz de contribuir para democratizar o Direito Penal, reduzindo a injusta criminalização de sujeitos penalizados pelas condições de vida social. Neste ponto, direito justo é direito desigual, porque considera desigualmente sujeitos concretamente desiguais. (SANTOS, 2008, p.348)

E, se o direito penal é uma construção cultural que permanecerá só o tempo dirá. Mas a proposta marxista soa aos ouvidos como um alarme, alguém imaginou uma sociedade em que os crimes contra o patrimônio, os quais constituem a grande maioria dos crimes cometidos num país como o Brasil, não teriam sentido.

Neste sentido, a teoria dos comunistas pode ser resumida em uma sentença: a abolição da propriedade privada. (MARX; ENGELS, 1999, p. 31)


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FURMANN, Ivan. Marxismo e a crítica do Direito Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3075, 2 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20556. Acesso em: 24 abr. 2024.